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RESUMO
Este artigo pretende traçar um percurso histórico da ampliação do conceito da
contratransferência desde os primórdios da psicanálise até a contribuição de Thomas
Ogden, que a partir da leitura original de seus antecessores elabora a construção do terceiro
analítico intersubjetivo. O recorte da pesquisa visa enfocar as teorias dos primeiros
psicanalistas, a partir da relação clínica com seus analisandos: Freud e Ferenczi; Ferenczi e
Klein; Klein e Heimann; Klein e Bion e, finalmente, Bion e Thomas Ogden.
ABSTRACT
THE CONTRIBUTION OF THOMAS OGDEN FOR MANAGEMENT
COUNTERTRANSFERENCE IN THE PSYCHOANALYTIC CLINIC
1
Aluna do curso de graduação da faculdade de Psicologia da FMU
2
Professora e supervisora da faculdade de Psicologia da FMU
“Quem, como eu, invoca os mais maléficos e
maldomados demônios que habitam o peito humano,
com eles travando combate,
deve estar preparado para não sair ileso dessa luta.”
S. Freud
próprios afetos na clínica e todos eles se ocuparam de pensar e buscar um lugar na análise
julgou prejudicial à prática clínica, pois essas reações estariam ligadas aos seus próprios
Latina, Europa e Estados Unidos, a inquietação dos psicanalistas diante de suas reações
emocionais em relação aos seus pacientes – sobretudo nos casos de difícil acesso – levou a
contratransferência, a partir das teorias que fundaram a psicanálise e das técnicas que
como um obstáculo para o processo analítico. Embora não tenha aberto mão de sua posição,
Ao mesmo tempo, é notório como o fenômeno contratransferencial permeia toda sua obra.
Quem, como eu, invoca os mais maléficos e maldomados demônios que habitam o
peito humano, com eles travando combate, deve estar preparado para não sair ileso
dessa luta. Será que eu poderia ter conservado a moça em tratamento, se tivesse eu
mesmo representado um papel, se exagerasse o valor de sua permanência para mim
e lhe mostrasse um interesse caloroso que, mesmo atenuado por minha posição de
médico, teria equivalido a um substituto da ternura por que ela ansiava? Não sei. Já
que em todos os casos parte dos fatores encontrados sob a forma de resistência
permanecem desconhecidos, sempre evitei desempenhar papéis e me contentei com
uma arte psicológica mais modesta. A despeito de todo o interesse teórico e de todo
o empenho médico de curar, tenho muito presente que a influência psíquica
necessariamente tem limites, e respeito como tais também a vontade e a
compreensão do paciente (Freud, 1905 [1901]/2006).
dominarem e a cuidarem dela no âmbito de suas análises pessoais, considerando que “cada
psicanalista consegue ir apenas até onde permitem seus próprios complexos e resistências
Freud aborda questões relevantes sobre a relação que mantém ambígua entre a urgência
de desenvolver e afirmar uma nova teoria e à condição periférica a que relegou sua
devo enfatizar que essa técnica revelou-se a única adequada para a minha
individualidade. Não me atrevo a contestar que uma personalidade médica de
outra constituição seja levada a preferir uma outra atitude ante os pacientes e a
tarefa a ser cumprida (Freud, 1912a/2010).
Com a metáfora do cirurgião, Freud (1912b/2010) propõe que o analista abra mão do
seguinte, propõe que o inconsciente do analista se mantenha como um órgão receptor dos
aplicar uma técnica ao objeto, tem também de aplicar uma determinada técnica a sua
subjetividade para que a técnica que aplica ao objeto possa funcionar – e sem isso não há
como pode o analista abster-se de sua emoção, como o cirurgião, e manter seu inconsciente
disponível para recepção de toda sorte de afetos de seu paciente e sem ser afetado por estes?
intrincada rede de “pontos cegos”, os quais vêm sendo investigados por meio da
pelas discordâncias técnicas e teóricas entre Sándor Ferenczi e seu psicanalista. Freud
Ferenczi era chamado de enfant terrible da psicanálise exatamente por sua marca de
rebeldia em relação à mestria. “A maior admiração que Ferenczi nos desperta deve-se a sua
coragem e ousadia que advém de duas fontes: sua crença inabalável no método psicanalítico
ao qual atribuía poder de cura e sua preocupação com o sofrimento do paciente. E para isso
Em meados dos anos 20 do século passado, a partir de sua experiência clínica, tanto
como analisando de Freud quanto como analista, é possível afirmar que a inteligência e
sensibilidade clínica de Ferenczi o leva a empreender uma inversão lógica à primeira regra
inconsciente de seu paciente, não seria possível pensar que também o paciente pudesse
fazê-lo em relação a seu terapeuta?” (Sanches, 1994). Ferenczi deixa registrado em seu
diferenciada daquela orientada por Freud. A técnica freudiana, portanto, a qual exigia a
Ferenczi aprofunda-se com maior rigor nas questões relativas aos processos mentais do
artigo “A técnica psicanalítica”, Ferenczi expõe sua posição a respeito do manejo dos
analista, seja obstáculo ou instrumento para análise, poderia ser definido como parte
afetos e pensamentos que lhe ocorram em relação ao paciente e a si próprio para que
possa manejá-los analiticamente. Mais tarde, Ferenczi radicaliza sua clínica com o a
técnica que ele chamou de ‘análise mútua’, na qual o analista deve comunicar ao
para a instituição psicanalítica dos anos 1930. Não é por acaso que a investigação da
unânimes em apresentá-lo como uma pessoa afetiva. Alguns chegam a cogitar certa
Para Melanie Klein, analisanda por cerca de sete anos e introduzida na psicanálise
por Ferenczi, é possível inferir que foram exatamente a personalidade deste psicanalista
e sua polêmica técnica que a acolheram da depressão aguda, intensificada pela morte da
mãe em 1914, e que permitiram a construção dos fundamentos que deram origem ao
Ferenczi, por meio de sua afetividade, apontou um novo destino para reconhecida
psicanalista “Tenho muito que agradecer a Ferenczi. Uma coisa que ele me transmitiu e
para vida psíquica” (Grosskurth, 1992). Enquanto que Karl Abraham, seu segundo
Klein se agarrou como meio de se sentir amada. Abraham parece ter sido seu grande
relações de objeto características dos primeiros meses de vida e das instâncias mais
identificação projetiva não era de modo algum o tema central de seu artigo. “Klein a
descreve como uma dentre diversas defesas contra a ansiedade paranoide primitiva, e sua
discussão sobre isto não vai além de umas poucas frases.” (Spillius, 1992). E cita Klein:
medo, o bebê usa o mecanismo de defesa da projeção para transferi-lo para dentro da
mãe (ou do analista). Assim, o bebê (ou o paciente) passa a sentir a mãe má, o que o
leva a ter a sensação de que está sendo atacado. Frequentemente, essa sensação que
experimenta a partir da identificação com a mãe má, distorcida pela projeção, volta-se
para dentro do bebê levando-o a sentir que está sendo atacado por perseguidores
internos. Klein afirma que nos primeiros meses de vida e, posteriormente, nas instâncias
psíquica das pulsões de vida e de morte, que são vivenciadas como amor e ódio, além
de uma tentativa constante de mantê-los cindidos com objetivo de preservar o ego. Mas
Klein, a identificação projetiva como uma fantasia e aqueles que entendem a identificação
concordância sobre o fato de que os pacientes comportam-se de tal maneira que o analista
acaba experimentando os sentimentos do paciente que, por uma razão ou outra, não pode
conter dentro de si ou não pode expressar de outro modo, exceto levando o analista com ele
teorias acerca de seus afetos em relação ao paciente, bem como sobre o modo como o
paciente percebe seu analista. No entanto, a ideia de identificação projetiva ficou suspensa
servir de alienação dos psicanalistas, que facilmente poderiam atribuir seus próprios pontos
analista e supervisora.
ser confidente de Melanie Klein, por ocasião da morte de seu filho em 1934. Em situação de
objetos internos e regressão, foram relevantes para a teoria kleiniana. De acordo com
Oliveira (1994), em outros artigos, levantou a discussão sobre problemas clínicos e questões
inquietação reinante de seus colegas do grupo kleiniano, Heimann irá esboçar em seu
mesma técnica da atenção flutuante em relação à escuta de seus pacientes, para acompanhar
suas próprias vivências emocionais no encontro com cada um deles. Diz ela:
Eu sugeriria que o analista, junto com essa atenção que trabalha livremente
[‘freely working attention’], necessita de uma sensibilidade emocional livremente
ligada [‘freely roused emotional sensibility’] de modo a seguir os movimentos
emocionais e fantasias inconscientes do seu paciente. Este vínculo em nível
profundo vem à superfície sob forma de sentimentos que o analista nota como
resposta a seu paciente na sua contratransferência. Este é o modo mais dinâmico
através do qual a voz do paciente o alcança. Na comparação de sentimentos que
são acordados nele com associações e o comportamento do seu paciente, o analista
possui um meio dos mais valiosos para verificar se ele compreendeu ou não
conseguiu compreender seu paciente (Heimann, 1950/1987).
ser determinadas por ansiedades e conflitos inconscientes, cuja fonte deve ser buscada no
analisando. Para ela, portanto, a contratransferência é tida como uma criação do paciente,
contratransferência é elaborada por ela como uma forma de comunicação primitiva, que
mais primitivas da mente são reativadas. No entanto, Heimann não se utiliza do conceito da
... demorei-me sobre minhas próprias reações no grupo por uma razão que espero
poder tornar mais evidente posteriormente. Pode ser justamente argumentando que
interpretações para as quais as provas mais fortes residem, não nos fatos observados
no grupo, mas nas reações subjetivas do analista, têm mais probabilidade de
encontrar sua explicação na psicopatologia do analista que na dinâmica do grupo. É
uma crítica justa, uma crítica que terá de ser enfrentada por anos de trabalho
cuidadoso, por mais de um analista, mas, exatamente por essa razão, deixá-la-ei de
lado agora e passarei a enunciar uma asserção que defenderei durante todo esse
trabalho. É ela a seguinte: no tratamento de grupo, muitas interpretações – e, entre
elas, as mais importantes – têm de ser feitas fiando-se nas próprias reações
emocionais do analista. Acredito que estas reações dependem do fato de o analista
no grupo encontrar-se na extremidade receptora daquilo que Melanie Klein (1946)
chamou de identificação projetiva e que esse mecanismo desempenha um papel
muito importante nos grupos (Bion, 1961/2004).
psicanálise em 1937, a partir de sua análise com John Rickman, a qual foi interrompida pela
guerra, em 1939. Após a guerra ambos empreenderam um projeto de trabalho com grupos,
Melanie Klein para fazer sua formação analítica. Bion retoma sua formação, iniciando a
análise com Melanie Klein, que durou de 1945 até 1953. É qualificado como analista em
Ilustra sua ideia com a passagem de uma sessão em que o paciente deitado no divã
permanece em silêncio por uns vinte minutos. Bion apercebe-se com medo do que o
paciente o atacasse fisicamente, ainda que não pudesse, de fato, vislumbrar qualquer
mudança na postura do paciente. Sentindo uma tensão crescente, diz ao paciente: “Você
está metendo dentro de mim seu medo de que quer me matar”. Em seguida à
interpretação, o paciente cerra os punhos sem nada dizer. O analista sente então sua
tensão decrescer e prossegue: “Quando lhe falei, você retomou para dentro de si seu medo
de que queria matar-me, você agora está sentindo o temor de que cometerá um ataque
assassino contra mim.” E dá algumas pistas por onde sua clínica está caminhando:
Segui o mesmo método durante toda a sessão, esperando por impressões a reunir até
que senti que estava em posição de formular minha interpretação. Observar-se-á que
minha interpretação depende do emprego da teoria de Melanie Klein da
identificação projetiva, primeiro para esclarecer minha contratransferência e, depois,
para compor a interpretação que dou ao paciente (Bion, 1955/2004).
No final dos anos 1950 Bion publica uma série de artigos, nos quais elabora e
como o nível em que ela ocorre já não é apenas o da fantasia: a partir da concepção de Bion
a mãe passa, de fato, a conter os sentimentos perturbadores do bebê e reage à sua presença.
Há nesse entendimento uma forma especial de comunicação, por meio da qual a mãe pode
por meio de sua própria identificação parcial com o sofrimento do bebê (paciente). É assim
que o bebê pode vir a reintrojetar, por meio da função alfa, não apenas uma sensação, um
medo mais suportável, mas também o próprio objeto (mãe/analista), quando pode, então, vir
identificações projetivas, que passa, então, a ser utilizada na clínica como uma forma de
psicanalítica no San Francisco Psychoanalytic Institute e deu continuidade aos seus estudos
diversos idiomas. Em português as únicas obras traduzidas são “Os sujeitos da psicanálise”
influenciada por sua formação em filosofia, paixão pela literatura e sua insatisfação com
aspectos da psicologia do ego. A forma de pensar e ampliar suas concepções sobre a Matriz
da mente (Ogden, 1986) está baseada em elaborações a partir de sua análise pessoal com
W.R. Bion e de sua releitura de um amplo espectro da teoria psicanalítica, desde sólidos
conceitos, fundamentados em Freud, Klein, Bion e Winnicott, passando por Tustin, Balint,
Grotstein, Winnicott e pelo modelo de campo do casal Baranger, entre outros. Uma parte
essencial da base teórica de Ogden, a partir da qual conceitua a prática da psicanálise, deriva
A partir deste ponto de vista, para Ogden (1994), o sujeito psicanalítico é capaz de
“gerar uma sensação de ‘eu-dade’, que experiencia a subjetividade, por mais rudimentar e
não verbalmente simbolizada que possa ser.” Segundo o autor, o sujeito da psicanálise é
seu livro “Os sujeitos da psicanálise”, Ogden aprofunda o estudo acerca das dialéticas
por aquilo que não está, embora aluda o tempo todo àquilo que falta em si mesma. Aquilo
que está ausente está sempre presente na falta que presentifica” (Ogden, 1994).
posições está uma qualidade particular de angústia, além de formas de defesa e de relação
como um sutil pano de fundo (subtle background)” (Ogden, 1994). Sua concepção de
... representa uma elaboração e uma extensão da noção de Winnicott de que ‘não
existe bebê’ [fora da provisão materna]. Acredito que, em um contexto analítico,
não existe analisando fora da relação com o analista, nem analista fora da relação
com o analisando. A afirmação de Winnicott é, creio eu, intencionalmente
incompleta. Ele pressupõe que se entenderá que a ideia de que não existe bebê é
ludicamente hiperbólica e representa um dos elementos de uma afirmação paradoxal
mais ampla. A partir de outra perspectiva (do ponto de vista do outro ‘polo’ do
paradoxo), obviamente existe um bebê e uma mãe que constituem entidades físicas
e psicológicas separadas A unidade mãe-bebê coexiste em tensão dinâmica com a
mãe e o bebê separados. Da mesma forma, a intersubjetividade analista-analisando
coexiste em tensão dinâmica com o analista e o analisando como indivíduos
separados, com seus próprios pensamentos, sentimentos, sensações, realidades
corporais, identidades psicológicas, funções e assim por diante (Ogden, 1994).
pessoa do analista com a pessoa do analisando. De acordo com Coelho (2012), é assim
relação analíticas:
Ainda que, de um ponto de vista realista e/ou empírico, a situação analítica nunca
deixe de ser a situação de dois sujeitos separados e distintos, em comunicação um
com o outro, o que Ogden nos propõe é que abandonemos esse ponto de vista em
nossa tentativa de compreender os fenômenos analíticos. Dessa forma, aquilo que
antes identificamos como sentimentos e pensamentos comunicados de forma
inconsciente, ou induzidos inconscientemente pelo analisando no analista, Ogden
descreve como sentimentos e pensamentos que são simplesmente sentidos e
pensados pelo terceiro sujeito intersubjetivo. O problema deixa de ser, assim, o da
natureza e dos meios de uma comunicação qualificada de inconsciente, para tornar-
se o problema da natureza desse “sujeito intersubjetivo”. A relação entre analista e
analisando enquanto sujeitos plenamente constituídos e separados continua a ocorrer
no nível verbal e consciente. Por outro lado, ao considerarmos a intersubjetividade,
conforme concebida por Ogden, não encontramos mais relação, nem comunicação
envolvidas. A intersubjetividade, compreendida como um “terceiro sujeito
intersubjetivo”, não é uma relação entre dois sujeitos, mas justamente um novo
sujeito. Aquilo que, de certo ponto de vista, ocorria na relação entre os sujeitos,
agora ocorre como experiência de um terceiro sujeito (Coelho, 2012)
similar ao que ocorre na identificação projetiva e que uma análise não é simplesmente um
método de descoberta do que está oculto, é um processo que permite a criação de um sujeito
analítico que não existia antes (Ogden, 1994), e exemplifica sua afirmação,
A história do analisando não é descoberta, ela é criada na transferência-
contratransferência, num fluxo perpétuo em que a intersubjetividade do processo
analítico evolui e é interpretada pelo analista e pelo analisando (ver Schafer, 1976,
1978). Dessa forma, o sujeito analítico é ‘criado por’, e existe em permanente
evolução na intersubjetividade dinâmica do processo analítico: o sujeito da
psicanálise toma forma no espaço interpretativo entre analista e analisando. O
término de uma experiência psicanalítica não é o fim do sujeito da psicanálise. O
analisando apropria-se da intersubjetividade do par analítico e a transforma num
diálogo interno” (Ogden, 1994)
Considerações finais
A partir desse estudo foi possível observar que historicamente a psicanálise tem se
contratransferência parece ter se tornado o arcabouço que está esclarecendo esse dilema, à
medida que é notável como não há teoria psicanalítica que se sobreponha à biografia e às
experiências afetivas de seus autores com seus pacientes. A história mostra que os pioneiros
se dividiram entre aqueles que desenvolveram a teoria psicanalítica (Freud e Klein) e os que
investigaram, a partir das teorias, a técnica psicanalítica voltada à pessoa do analista em sua
Referências Bibliográficas
Antonelli, E. (2006) O amor e o ódio na contratransferência: considerações sobre o
lugar do analista em casos de difícil acesso. Dissertação de mestrado em Psicologia.
PUC-SP. http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2859
[acessado em 10 de setembro de 2013]
Grosskurth, P. (1992) O mundo e a obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago Editora
Klein, M. (1946/2006). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In Klein, M., Inveja e
Gratidão. Rio de Janeiro: Imago Editora