“O leitor não encontrará neste artigo nem uma história sistemática dos eventos e escolas
sociológicos ou filosóficos que sucederam um ao outro na França desde 1945, nem uma
filosofia da história da filosofia ou da história da sociologia, mas uma sociologia das
principais tendências da sociologia que, de maneira a restaurar o sentido completo de
obras e doutrinas, tenta relacioná-los a seu contexto cultural, em outras palavras, tenta
mostrar como posições e oposições no campo intelectual são conectadas com atitudes
filosóficas explicitamente ou implicitamente” (BOURDIEU; PASSERON, 1967, p.162).
“Mais geralmente, nós vamos considerar os autores, obras e correntes de ideias através
das representações que têm sido as condições de sua penetração de um público intelectual,
mais que examinar suas contribuições efetivas para a história da filosofia ou para a
história da ciência” p.163
Bourdieu e Passeron começam seu texto fazendo uma discussão sobre a assunção de uma
filosofia subjacente à prática científica, e discute a proscrição de Durkheim da sociologia
mais recente acusado de fazer filosofia
“Não estão muitas das descrições que parecem lidar com questões de fato a respeito da
história da sociologia francesa realmente lidando com uma questão epistemológica que
não é nunca formulada? Se, em todas as suas fases, a sociologia expressa, se ele quer
dizer isso ou não, se ela sabe isso ou não, opções filosóficas, não põem as relações entre
sociologia e filosofia assumirem formas e significados muito diferentes, ou podem, por
exemplo, questões filosóficas que absolvam ou removam alguém de qualquer prática
sociológica ou cuja prática sociológica sente compelida a levar em conta em deferência à
moda filosófica do dia seja confundida com aquelas questões que a prática sociológica
coloca para filósofos e, mais importante, aquelas que são postas para a prática sociológica
por e naquela [165] prática mesma? Se, deste modo, alguém substitui uma explícita
questão epistemológica por descrições governadas por uma epistemologia implícita,
determinada mais pela relação do investigador aos seus pares que por sua relação com o
objeto, não se pode evitar reafirmar a questão concernente à história da sociologia posta
pelo neopositivismo: em vez de se questionar por que milagre a sociologia escapou da
escuridão metafísica à qual o triunfo do durkheimismo a havia condenado, não
deveríamos de fato estar perguntando a nós mesmos porque é que a sociologia francesa
foi capaz de assimilar e, mais particularmente, dominar técnicas empíricas apenas pela
redescoberta de uma filosofia científica que não é tão diferente daquela do
durkheimismo?” p.164-165
“Longe de supor que o sociólogo deve ter tido que avançar no disfarce para ganhar
reconhecimento filosófico, nós deveríamos talvez concluir que não era mais fácil para
ele que para seus contemporâneos realizar a sinceridade de suas intenções científicas.
Pois, falando mais geralmente, [168] todas as ciências sociais agora vivem na casa do
durkheimismo, desconhecida para elas, como ela era, porque elas andaram para trás"
p.167-168
NOTA P.167 INTERESSANTE
“Mas à medida que a importância filosófica das ciências sociais cresce, nós vemos os
sociólogos se tornarem mais e mais completamente conscientes da carga filosófica
[philosophical import] do que eles estão fazendo, enquanto os filósofos, em um tempo
cúmplices, revertem mais e mais para seu tradicional discurso sobre a natureza ‘redutiva’
da explicação científica. É isto que faz alguém questionar se não foi porque ele explicou
os ‘enquantos’ [‘whereases’] de sua sociologia que Durkheim uma vez provocou a reação
dos elementos espiritualistas. A divisão do campo intelectual entre a escola de Durkheim
e seus adversários de cada faixa tem sido tão profunda que ainda domina a cena
sociológica francesa como descrita por Marcel Mauss em 1933 e Raymond Aron em
1937” (p.168) SEGUE DUAS CITAÇÕES, MAUSS E ARON
“Há, até hoje, uma philosophia perennis de professores de filosofia que, não afetados
[unaffected] pela sucessão de escolas de filosofia, é passada adiante [handed on through]
e pelo processo de ensino na forma de esboços [outlines] de pensamento e compulsórios
problemas-questões (como, por exemplo, temas de dissertação). Não é surpreendente que
seu próprio sucesso universitário compeliu Durkheim a fazer concessões consideráveis a
este tipo de boas maneiras acadêmicas, que requer de alguém reconhecer, se não um
sistema predeterminado de valores, de qualquer forma o valor do sujeito, ou individual
ou coletivo, pelo qual os valores são postulados. Os registros das discussões da Sociedade
Filosófica Francesa revelam como Durkheim teve que lutar no campo de seus oponentes,
aceitando o papel de réu pelo próprio fato de oferecer uma defesa e no fim sucumbir aos
seus oponentes explicando as razões para sua ação em termos do raciocínio de seus
oponentes. Compelido constantemente a ver seu trabalho nos termos objetivos forçados
a ele [171] por seu meio universitário e o inteiro campo intelectual, Durkheim foi levado,
de uma vez e ao mesmo tempo, a protestar em vão contra as leituras erradas de seu Règles
de la méthode sociologique (“Regras do método sociológico”) pelos filósofos
espiritualistas (como pode ser visto no prefácio da segunda edição) e, contraditoriamente,
entrar em polêmica e avançar [...] uma extravagante e provocativa versão de suas ideias
(pode-se lembrar, por exemplo, certas metáforas mecanicistas e biológicas) dando a seu
trabalho, aos olhos de um leitor superficial, uma aparência antiquada; ou, novamente, ele
foi levado a retraduzir em termos espiritualistas o que a hipótese da consciência coletiva
havia previamente tornado possível ver como resultados mais positivos” p.170-171
“A reação filosófica, que se tornou aparente apenas antes de estourar a guerra, achou solo
fértil nas condições sociais e intelectuais da Ocupação e da Resistência, e
subsequentemente da Liberação. Não há necessidade de entrar em uma análise
sociológica detalhada da vida intelectual deste período para realizar quanto muito dos
temas e ‘lugares comuns’ da filosofia e literatura deviam à crise pela qual a França
acabara de passar” p.172
NOTA 15 “Como Sartre observou em 1960, em seu prefácio à nova edição de Aden,
Arábia de Paul Nizan, a geração que dominou o período pós-guerra já havia antes da
guerra rompido com a filosofia de seus professores e em particular com a dinastia de
neokantianos que seguiram um ao outro desde Ravaisson a Brunschiwcg. Além de Les
chiens de garde de Nizan – uma expressão agressiva deste desejo de romper – os trintas
viram a publicação de Le malheur de la conscience dans la philosophie de Hegel de Jean
Wahl, vários artigos sobre Hegel e os estudos hegelianos de Alexandre Koyré, Les
tendances actuelles de la philosophie allemande de Georges Gurvitch e La sociologie
allemande contemporaine de Raymonde Aron” p.172
“As escolhas filosóficas que, na época em que foram feitas, devem ter sido sentidas como
completas rupturas com as filosofias que dominaram a vida intelectual antes da guerra,
eram na realidade essencialmente relacionadas à filosofia do sujeito, seja em sua forma
brunschwicguiana ou bergsoniana” p.173
“Pois está mais para o que poderia ser chamado de seu ‘tom metafísico’ ou, como diz
Lovejoy, seu ‘ânimo’ [mood], que o pensamento filosófico deste período, pelo menos
onde sua expressão é mais impregnada pela atmosfera do tempo, renova temas e
problemas que permanecem inalterados em suas assunções básicas” p.173
“Nunca antes, talvez, tenha havido uma tão completa manifestação da lógica peculiar ao
campo intelectual francês que requer que cada intelectual se pronuncie totalmente sobre
todo e qualquer problema. Cada intelectual se sentia observado por todos os outros
perpetuamente (como pode ser visto a partir de uma análise sociológica do fenômeno
mais característico do período – a petição política) para justificar seu status intelectual
por um engajamento político mantido com sua imagem pública, e, mais especificamente,
examinar todas as consequências de suas opções filosóficas, como também justificar
filosoficamente suas opções políticas. É significativo que as bibliografias dos filósofos
do período mostrem trabalhos teóricos alternando com trabalhos políticos que lançam em
discussões dos problemas do dia todo o peso e reputação de suas teorias. Maurice
Merleau-Ponty, por exemplo, embora mais proximamente ligado que Sartre aos textos
canônicos da fenomenologia, e em seus trabalhos teóricos – que se apoiavam nas últimas
descobertas das ciências sociais – mais removido daquele contato existencial com o
século sempre refletido no trabalho de Sartre, segue La structure du comportement (“A
estrutura do comportamento”) com Sens et non sens (“Senso e contrassenso”), uma
coleção de ensaios sobre temas tão diversos como [175] a arte de Cézanne, o cinema e o
romance, e La phénoménologie de la perception (“A fenomenologia da percepção”) com
Humanisme et terreur (“Humanismo e terror”), um comentário sobre as ações históricas
dos partidos comunistas. Enquanto, em geral, todo o pensamento social europeu – de
Weber, Pareto e Durkheim a Aron e Lévi-Strauss – difere da tradição americana no que
Marx e o marxismo são de maior importância como pontos de referência, na França o
todo da vida intelectual é afetado pela existência de um Partido Comunista organizado e
duradouro [long-standing], e pela presença de um considerável grupo de intelectuais
marxistas. Todo intelectual é consequentemente convocado pela situação de fato a
justificar sua adesão ou não adesão” (BOURDIEU; PASSERON, 1967, p.174-175).
“Tais idas e vindas de temas sugerem integração intensiva do domínio intelectual, que
poderia ser medida a partir do alto grau de intercomunicação entre as diferentes
categorias de intelectuais. A organização do campo intelectual na França fornece sem
dúvida mais oportunidade para contato do que é o caso em outros lugares. Os periódicos
mais bem conhecidos são, de fato, distinguidos por sua receptividade indiferenciada, que
lhes permite imprimir, lado a lado, uma análise estrutural de um mito e um artigo sobre
música dodecafônica ou pintura moderna. Tais periódicos encorajam e atraem uma classe
especial de intelectuais – especialistas em generalidade [specialists in generality] – que
são frequentemente marcados por sua capacidade para [177] mudar, sempre no mesmo
nível de generalidade, de uma área para outra – da sociologia eleitoral, por exemplo, para
a antropologia estrutural. Então emerge aí uma pequena república das letras, um tipo de
koiné, ou às vezes uma língua franca comum ao romancista que discute suas obras em
termos filosóficos, o filósofo que se lança a julgamentos sobre a arte do romancista e o
jornalista que fala sobre tudo e todos” p.176-177
“Um mundo intelectual com tal forte integração – ‘terminológica’, lógica e moral –
esconde atrás de patentes disputas sectárias a aceitação não dita [unspoken] de uma
ortodoxia. As rupturas bombásticas [shattering] que pontuam biografias e marcam as
fases da história intelectual são possíveis apenas quando baseadas em uma cumplicidade
que pode não ser conhecida porque as senhas são as palavras mestras da rejeição e
repúdio: naturalismo, materialismo, positivismo, redução explicativa e atomização
analítica. Então Sartre, que entrou na cena intelectual fazendo um ataque ao idealismo de
universidade de Brunschwicg, acabou por descobrir que ambos tinham os mesmos
inimigos absolutos – Comte, Taine, Durkheim” p.177