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RBRH – Revista Brasileira de Recursos Hídricos Volume 18 n.

3 –Jul/Set 2013,41-51

Gestão de Recursos Naturais de uso Comum: Peculiaridades e


Abordagens Teóricas
Maria Eugênia Totti*; Sérgio Azevedo*
totti@uenf.br; sazevedo@uenf.br

Recebido: 12/02/11 - revisado: 14/11/11 - aceito: 26/04/13

RESUMO

O presente artigo aborda conceitos teóricos econômicos básicos (teorias de jogos e de capital social) que podem
auxiliar no entendimento e na gestão mais efetiva dos recursos de uso comum, como é o caso da água e dos comitês de bacia.
Partimos do pressuposto de que a incorporação de alguns instrumentais analíticos das Ciências Sociais atuais podem
permitir aos leitores, mesmo sem intimidade com essa literatura, perceberem tanto a complexidade da ação coletiva quanto as
dificuldades da gestão de recursos de uso comum.

Palavras-Chaves: Recursos naturais de uso comum. Água, comitês de bacia. Ciências Sociais.

INTRODUÇÃO denomina comumente como Ciências Hard ou


Naturais, que englobariam, entre outras, a física, a
química, a geologia e a biologia. Em contraposição
Os recursos naturais de uso comum às mesmas, estariam as chamadas Ciências Soft,
(públicos ou de uma coletividade), como a maioria também conhecidas como Ciências Humanas, entre
dos temas vinculados ao meio ambiente, são por as quais se destacam as Ciências Sociais lato sensu,
natureza interdisciplinares, ou seja, envolvem como a história, a economia, a demografia, a
disciplinas de diferentes matizes. Nesses casos, um sociologia, a antropologia, a ciência política, entre
dos desafios a ser minimizado é a dificuldade de muitas outras.
interação entre pesquisadores com diferentes Um terceiro grupo seria formado pelas
formações acadêmicas, envolucrados em um projeto chamadas Ciências Aplicadas, algumas mais
comum. diretamente vinculada às Ciências Hard — como as
O objetivo deste artigo é apresentar ao diversas engenharias, a informática e as Ciências
pesquisador com fortes trades offs com as atividades Agrárias — e outras mais ligadas às Ciências
de gestão de recursos naturais de uso comum uma Humanas e Sociais como é o caso, por exemplo, da
gama restrita de “meso teorias” ou esquemas Demografia e da Didática. Nesse grupo há também
analíticos de alcance médio que facilite uma maior disciplinas que utilizam concomitantemente — ainda
compreensão e melhor participação na discussão e que em graus diferenciados — os aportes dos dois
análise desse importante issue. primeiros grupos, como ocorre com a Medicina,
Na caracterização das distintas áreas do com alguns ramos da Geografia e mais fortemente
conhecimento podem ser utilizadas diversas formas com temas vinculados ao ambiente.
de tipologias, dependendo dos objetivos, Uma das diferenças entre os três primeiros
prioridades ou mesmo das dimensões que o autor blocos citados seriam as possibilidades diferenciadas
pretenda comparar entre as diferentes disciplinas do uso dos instrumentais fornecidos por um quarto
científicas. grupo de disciplinas denominadas de Ciências
Neste artigo — ainda que reconhecendo o Básicas (ou Instrumentais) como é o caso,
reducionismo dessas agregações —, optamos por especialmente, da Matemática e da Estatística. As
destacar, inicialmente, três grandes blocos nas áreas maiores possibilidades do uso dessas disciplinas
científicas. O primeiro seria formado pelo que se instrumentais por parte das Ciências Hard,
permitindo maior rigor nas análises de fenômenos
estudados, levou a que as mesmas durante muito
*
tempo fossem também conhecidas como Ciências
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Exatas. Essa denominação tem perdido força, por

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um lado, pelos avanços das pesquisas que mostraram buscam aprofundar uma compreensão mais
que a denominação “exatas” nem sempre pode ser sistemática dos temas de maior interface com o seu
usado de forma literal (os resultados no campo da objeto de estudo.
Física Quântica, por exemplo, são sempre Por outro lado, no que se refere aos
probabilísticos) e, por outro, porque cada vez mais, pesquisadores das Ciências Naturais, primeiramente,
tanto as Ciências Aplicadas como as disciplinas das há de se destacar que mesmo em temas que seriam,
Ciências Humanas, com maior ênfase nas Ciências em princípio, mais próximos das Ciências Sociais,
Sociais, também utilizam o aporte das disciplinas são grandes as contribuições desses cientistas.
Instrumentais. Obviamente, no caso das Ciências Entretanto, no caso brasileiro, é relativamente
Sociais lato sensu, a Economia é a que utiliza em mais recorrente se presenciar exposições ministradas por
larga escala esse instrumental, seguido pela Ciência cientistas naturais, que após analisarem diferentes
Política e a Sociologia. dimensões e idiossincrasias dos recursos de uso
Por fim, há também as denominadas comum — normalmente embasadas em pesquisas
Ciências Interdisciplinares — consideradas como um científicas rigorosas — ao final da apresentação, ao se
subtipo das Ciências Aplicadas — que se referirem às medidas a serem tomadas pelas
caracterizariam por perpassar tanto disciplinas das autoridades competentes, abandonam o discurso
Ciências Hard, como aquelas das Humanas, acadêmico e resvalam para uma retórica de senso
especialmente às das chamadas Ciências Sociais. comum. Algumas vezes, conclamando, de forma
Temas atuais de extrema relevância como o genérica, a todos os presentes, à população, às
processo de urbanização, o meio ambiente, a gestão empresas e ao governo para que busquem
de recursos hídricos, entre outros, são exemplos implementar ações pautadas nos resultados
típicos do que estamos falando. científicos apresentados, sem se darem conta dos
A questão da gestão de recursos naturais de constrangimentos e dos desafios para se lograr a
uso comum, considerada como um grande desafio “cooperação” necessária entre esses atores para a
na área do Meio Ambiente, é emblemática pelos gestão dos recursos naturais de uso comum.
fortes trade offs entre as Ciências Hard e as Ciências As dificuldades de um percentual expressivo
Sociais lato sensu. de pesquisadores para compreender a
Entretanto, como foi mencionado complexidade e os dilemas da ação coletiva no
anteriormente, a necessidade de pesquisadores enfrentamento da questão dos recursos de uso
extremamente especializados para enfrentar as comum são bastante preocupantes, pois impedem
diferentes dimensões desse importante issue que os mesmos possam desempenhar um papel mais
ocasionam limites concretos para diálogos profícuos consistente na defesa de políticas públicas
entre estudiosos voltados para as diferentes embasadas em relevantes pesquisas científicas.
dimensões dos recursos naturais de uso comum. Tendo em vista essas considerações, este
No que se refere aos pesquisadores das artigo prioriza como público-alvo esse tipo de
Ciências Sociais que atuam nessa área, ainda que pesquisador, que, por sua legitimidade científica,
acompanhem o debate que ocorre nas áreas hard — pode desempenhar papel não desprezível no
tais como o aquecimento global, o efeito estufa, o processo mais amplo de indução de mudanças
impacto de desmatamento na deteriorização do incrementais no comportamento dos diferentes
meio ambiente —, eles nem sempre possuem atores políticos.
formação científica suficiente para discutir em Partimos do pressuposto de que a
profundidade as perspectivas distintas sobre alguns incorporação de alguns instrumentais analíticos das
dos citados temas. Ciências Sociais atuais, que poderíamos denominar
Nessas circunstâncias, normalmente, se de microabordagens podem permitir aos leitores,
aceita de forma passiva o mainstream existente, ou as mesmo sem intimidade com essa literatura,
posições desses pesquisadores passam a acompanhar perceberem tanto a complexidade da ação coletiva
o ponto de vista de um pesquisador das Ciências quanto as dificuldades da gestão de recursos de uso
Naturais prestigiado pelo seu círculo de relações, ou comum.
a de um cientista de grande renome, seja ele Uma apropriação dessa literatura básica
canônico ou heterodoxo. Em suma, trata-se de um evidentemente não se propõe a superar
posicionamento que se poderia designar de, no idiossincrasias advindas de diferentes formações
mínimo, muito próximo ao de uma escolha científicas, mas pode mitigar conflitos e ampliar a
ideológica. Obviamente que essa postura pode ser cooperação entre pesquisadores com diferentes
minimizada por todos aqueles cientistas sociais que tipos de experiência acadêmica.

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O presente artigo está dividido em quatro segunda é que são suficientemente amplos para
seções, sendo a primeira dedicada a descrever as tornar altamente onerosa a exclusão de potenciais
especificidades dos recursos de uso comum. Na beneficiários.
segunda, busca-se, de forma sintética, chamar Essa última característica dos bens públicos
atenção para a importância das instituições e dos afeta fortemente a ação coletiva (associação e
atores na gestão de recursos de uso comum. A mobilização) dos potenciais beneficiários em prol
terceira seção, visando uma melhor compreensão dos mesmos. Como não há possibilidade de exclusão
teórica dos problemas relativos à coordenação, ao dos não participantes, quanto maior for a amplitude
acesso, ao uso e à preservação dos recursos de uso do bem público ou coletivo maior será o incentivo à
comum — se propõe analisar, sucintamente, três deserção dos atores envolvidos (OLSON, 1999). Em
conhecidas “representações analíticas” que outras palavras, como o interesse comum não leva,
apresentam interfaces importantes: o dilema nos grandes grupos, à mobilização dos futuros
olsoniano do free rider; o “dilema do prisioneiro”; e a beneficiários, torna-se necessário o uso de outras
“tragédia dos comuns”. Por fim, a parte final do estratégias e incentivos adicionais para lograr uma
artigo tem por objetivo discutir alguns desafios e maior participação.
alternativas voltadas para incrementar a cooperação Em se tratando de unidades de recursos re-
na gestão dos recursos de Uso Comum. nováveis, como no caso da água, as partes retiradas
não devem comprometer o estoque, portanto, ga-
rantir a renovação do mesmo é um aspecto primor-
AS IDIOSSINCRASIAS DOS RECURSOS DE dial da boa gestão desses recursos. Embora a água
USO COMUM seja um recurso renovável, está, também, sujeita ao
esgotamento e à escassez. Essa condição está rela-
cionada a possibilidades de comprometimento da
O direito brasileiro, por meio do Código qualidade, em função do mau uso, e da quantidade
Civil vigente, declara serem bens públicos de uso em função da sobre-exploração e de fatores que
comum do povo os rios, os mares, as estradas, ruas e influenciam o ciclo hidrológico, podendo inviabili-
praças (DOU, 2002). O uso dos bens públicos, por zar o seu uso por outro indivíduo, recaindo, portan-
sua vez, pode ser comum, exercido em igualdade de to, em questão análoga à da subtração de unidades
condições por todas as pessoas, ou privativo, ou quotas.
praticado com exclusividade, mediante título Desse modo, nos processos de gestão de
conferido pelo Estado (por tempo determinado). recursos de uso comum podem-se diferenciar dois
Em princípio, a regra é a utilização gratuita elementos constitutivos: o sistema de recursos e as
dos bens públicos de uso comum, embora seja unidades de recursos. Ostrom (1999) considera que
permitida a cobrança pelo Código Civil. O uso dos um sistema de recursos é melhor compreendido
bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, quando considerado como estoques variados
conforme for estabelecido legalmente pela entidade capazes de, sob condições favoráveis, produzir uma
a cuja administração pertencerem. Ao contrário do quantidade máxima de fluxo do bem sem que se
uso comum, o privativo geralmente não é gratuito. A comprometa o estoque ou o próprio sistema de
tese da onerosidade, para alguns, baseia-se no fato recursos. Assim, as águas doces, tanto superficiais
do beneficiário dever compensar a comunidade pela quanto subterrâneas, são exemplos de sistemas de
desigualdade de desfrute do seu bem. Daí a recursos. O segundo elemento considerado por
expressão compensação financeira, constante do art. Ostrom (1999) é o fluxo de unidades de recurso
20 da Constituição Federal, e a terminologia recurso produzidas pelo sistema. Essas unidades
hídrico, utilizada na lei sobre a Política Nacional de correspondem à parcela do sistema de recursos da
Recursos Hídricos, que aborda a água na condição qual os indivíduos se apropriam ou usam, por
de bem econômico ou recurso de uso comum exemplo, a quantidade de metros cúbicos de água
(POMPEU, 2004). Para Elionor Ostrom (1999) os que são extraídos de um determinado corpo
recursos de uso comum ou bens comuns são hídrico. Este é, portanto, o grande desafio da gestão
sistemas de recursos, naturais ou não, que possuem dos recursos de uso comum: coordenar os diversos
duas características essenciais: a primeira é que as interesses de uso a fim de manter os estoques e, ao
unidades de recursos exploradas por um indivíduo mesmo tempo, permitir o uso por parte de todos.
deixam de estar disponíveis a outros — ou seja, Dessa forma, um determinado recurso de
unidades do recurso podem ser subtraídas. A uso comum pode ser apropriado por um grupo de
indivíduos que usam o sistema de recursos ao

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mesmo tempo. Embora o processo de apropriação leis, regras) e os informais (convenções, códigos de
das unidades de recurso possa ser realizado por conduta, cultura, hábitos, entre outros) de modo a
múltiplos apropriadores de forma simultânea ou orientar as ações dos indivíduos quanto ao que deve
consecutiva, as unidades do recurso em si não são e o que não deve ser feito (NORTH, 1990).
suscetíveis da apropriação ou uso conjunto. Ou seja, Para North (1990), as “regras do jogo” são
os mesmos metros cúbicos de água que um perfeitamente análogas às de um esporte coletivo,
determinado usuário retira, por exemplo, para como o futebol. Em outras palavras, elas consistem
irrigar suas terras, não poderá ser usado pelo seu em regras formais escritas, assim como códigos de
vizinho. Em outras palavras, o sistema de recursos condutas não escritos que suplementam as regras
pode ser utilizado de maneira conjunta enquanto escritas.
que as unidades de recurso não. As arenas desse tipo Uma distinção crucial deve ser feita entre
— denominadas pela literatura como “jogo de soma instituições e organizações. Assim como as institui-
zero” — apresentam conflitos difíceis de serem ções, as organizações proporcionam uma estrutura
processados, pois, na falta de uma coordenação para as interações humanas. De fato, quando exa-
adequada do uso do recurso escasso, o aumento de minamos os custos que surgem como uma conse-
ganhos de um ator significa uma perda quência da moldura institucional, vemos que eles
correspondente de outro. são o resultado não só da moldura, mas também das
organizações que se desenvolveram em consequên-
cia dessa moldura. Conceitualmente, o que deve ser
O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES E DOS claramente diferenciado são as regras e os jogado-
ATORES res.
Continuando com a analogia esportiva, as
instituições seriam as “regras do jogo” e as organiza-
As instituições consideradas por Ostrom ções os times de futebol que participam de um tor-
(1999) podem ser descritas como um conjunto es- neio. O propósito das regras é definir a maneira
pecífico de normas e relações que canalizam com- pela qual o jogo deve ser jogado. Mas o objetivo do
portamentos a fim de atender a determinadas neces- time dentro desse conjunto de regras é vencer o
sidades humanas (BUTTEL, 2001). Incluem-se aí as jogo — a partir de uma combinação de habilidades,
regras formais e informais da sociedade que regu- estratégia e coordenação; por meios justos e às vezes
lam as interações humanas e limitam o conjunto de injustos. A montagem das estratégias e habilidades
escolhas dos indivíduos. de um time é um processo diferente da criação,
As regras são definidas (OSTROM et al. evolução e consequências das regras (NORTH,
1994) como sendo os preceitos que especificam 1990).
quais ações ou resultados são requeridos, proibidos Na abordagem northiana, organizações in-
ou permitidos, e as sanções autorizadas caso as re- cluem corpos políticos (partidos políticos, o Senado,
gras não sejam seguidas. Assim, as regras servem uma câmara municipal, uma agência reguladora,
para estabelecer ordem nas atividades sociais e au- etc), corpos econômicos (firmas, sindicatos, fazen-
mentar a previsibilidade de seus resultados. Para das familiares, cooperativas, etc), corpos sociais (i-
Ostrom & Ahn (2001), as regras também estão rela- grejas, clubes, associações atléticas, etc) e corpos
cionadas a padrões de atividades em diversos níveis, educacionais (escolas, universidades, centros de
podendo incluir desde atividades operacionais diá- treinamento vocacionais, etc). São grupos de indiví-
rias até atividades constitucionais, que ditam as re- duos ligados por algum propósito comum para al-
gras gerais em uma escala “macro” sobre como os cançar determinados objetivos (NORTH, 1990).
indivíduos podem se comportar na sociedade. Tanto o nascimento das organizações quan-
As abordagens de Ostrom (1999) apresen- to a sua evolução através do tempo são fundamen-
tam forte sintonia com as de Douglas North, um dos talmente influenciados pela moldura institucional,
mentores do chamado neo-institucionalismo, para o sendo que as organizações, por sua vez, influenciam
qual as instituições são responsáveis pela definição a evolução da moldura institucional.
das “regras do jogo” em uma sociedade. Em outras As instituições reduzem a incerteza proven-
palavras, as instituições forneceriam, também, os do uma estrutura para vida cotidiana. Além disso,
valores morais e cognitivos tanto para a interpreta- elas afetam o desempenho da economia pelos seus
ção da realidade quanto para a ação de seus atores. efeitos nos custos de troca e produção. Em conjunto
Incluem-se aí os constrangimentos formais (normas, com a tecnologia empregada, as instituições afetam
os custos de transação e de transformação (produ-

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ção). As mudanças institucionais — evoluções ou Pigou afirma que toda vez que uma transação lato
regressões — ocorrem por meio de processos com- sensu (ação, omissão ou permissão) envolvendo dois
plexos, uma vez que as mudanças na margem po- ou mais atores (instituições, empresas ou
dem ser tanto consequências de transformações nas indivíduos) afeta positiva ou negativamente
regras, como também decorrente de constrangi- terceiros, o mercado por si só não seria capaz de
mentos informais e, ainda, de maior ou menor efi- cobrar dos beneficiários os ganhos indevidos ou
cácia das organizações. De mais a mais, as institui- ressarcir aqueles que tiveram prejuízos. Isso significa
ções geralmente mudam de maneira incremental ao que, nesses casos, uma intervenção externa,
invés de fazê-lo de maneira descontinuada. normalmente o Estado, seria a única forma de
A estratégia central das instituições é, por- minimizar os efeitos não esperados dessas transações
tanto, facilitar a superação dos dilemas da ação cole- (PIGOU, 1962).
tiva. São situações nas quais os indivíduos agem de O Teorema de Pigou gozou de uma virtual
modo a maximizar a satisfação de suas próprias pre- unanimidade entre os economistas de diferentes
ferências, comprometendo, assim, a obtenção de um correntes até a publicação do clássico trabalho de
possível resultado adequado para todo o coletivo. Ronald Coase (1960): “The problem of social cost”.
Considera-se que tais dilemas se produzem, em par- No referido artigo — que influenciou fortemente a
te, pela ausência de arranjos institucionais que se “Escola de Chigaco” (Chicago School of Politcal
existentes impediriam, por meio da coerção, que Economy) — Coase refuta a análise de Pigou, con-
cada ator adotasse uma estratégia para maximização trapondo a possibilidade de negociações voluntárias
de seus ganhos individuais. As instituições, portanto, exitosas nos casos de danos a terceiros decorrentes
representam arranjos e estratégias socialmente cons- de uma atividade produtiva. Coase afirma que nesses
truídos, favorecendo muitas vezes a obtenção de casos é possível alcançar um “Pareto — Eficiente” por
conquistas coletivas e reprimindo as racionalidades meio de negociações voluntárias, desde que não
individuais que estejam baseadas em opções opor- haja “custos de transações” e uma legislação que
tunistas individualistas. regule o litígio. Ressalte-se que a legislação para
Coase é importante apenas para incentivar os parti-
cipantes a iniciarem a negociação, uma vez que o
ABORDAGENS TEÓRICAS SOBRE A autor vai procurar demonstrar que, independente
GESTÃO DE RECURSOS DE USO COMUM de quem a lei penaliza, na verdade o resultado da
negociação tende a ser quase o mesmo.
O que ficou conhecido metaforicamente na
No sistema de recursos de uso comum literatura como “Teorema de Coase” foi testado
qualquer intervenção sofrida, melhoria ou através de diversos estudos de casos hipotéticos en-
degradação pode, a princípio, atingir a todos os seus volvendo sempre dois agentes (por exemplo, agri-
usuários de forma simultânea. Pensando em termos cultor prejudicado por pecuarista; consultório mé-
de ganhos, todos se beneficiam com a melhoria da dico afetado pelos ruídos de uma panificação vizi-
qualidade do sistema (isto é, um “jogo de soma nha, entre outros) nos quais Coase busca demons-
positiva”) ou, em caso de degradação, todos trar que a negociação — quando ocorre — sempre
perderiam (isto é, “jogo de soma negativa”), ainda favorece ambas as partes.
que de maneira diferenciada; havendo ou não Por outro lado, Mancur Olson critica forte-
contribuído, respectivamente, para este ganho ou mente a possibilidade de generalização das negocia-
perda. ções coasianas, argumentando que o resultado vai
Por sua vez, por exemplo, considerando a sempre depender do tamanho do grupo em questão
natureza unidirecional dos rios há o agravante de (OLSON, 2000). O autor ressalta que o raciocínio
que os usuários, tanto os beneficiados quanto os de Coase não leva em conta os constrangimentos da
prejudicados estão sempre abaixo, à jusante do ação coletiva dos grandes grupos, tema desenvolvido
ponto de interferência, o que é um fator negativo no seu livro “A lógica da Ação Coletiva”.
para a proteção e o uso múltiplo e comum desse Para Olson, o “Teorema de Coase” pode
recurso. não funcionar, mesmo imaginando que os “custos
Durante muito tempo — em contextos de transação” fossem integralmente cobertos por
similares ao acima relatado —, não havia contestação algum agente externo (Estado, Agência não gover-
sobre a aplicabilidade do chamado “Teorema de namental, etc.). Quando o grupo que partilha inte-
Pigou”. Traduzindo de forma livre, o Teorema de resses comuns é pequeno — através de estratégias de
interação e da utilização de “incentivos seletivos” —

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pode-se alcançar uma barganha mutuamente vanta- nais agem em função de seus interesses próprios e
josa. Entretanto, essa estratégia não produz bens públicos.

(…) if a group is sufficiently large, its members will not


have any incentive to engage in the costil bargaining and O DILEMA DO PRISIONEIRO
strategic interaction that would work out (…) Coaseian
bargain. (…) Any expectation that the Coaseian bargain
would be made would generate a game without a core — a Caracterizado como um jogo não cooperati-
continuing effort of all rational individuals to be in a vo devido à falta de confiança recíproca dos atores
subgroup that obtained the largest gains, the coalition of envolvidos. Nesse contexto (desconfiança) a ten-
free riders (OLSON, 2000, p. 87). dência é que os participantes abram mão da “esco-
lha ótima” — por essa exigir coordenação e confian-
Como pode ser visto a seguir, isso ocorre in- ça entre os envolvidos — optando conscientemente
clusive em casos mais extremos de arenas de “jogo por uma “escolha subótima”, mas que dependa ape-
de soma negativa” onde, a médio ou longo prazo, nas de sua própria ação. Essa é uma das representa-
pelas dificuldades de coordenação de terceiros e de ções mais conhecidas na literatura (contada com
mobilização para ações coletivas, todos os atores são pequenas diferenças por diferentes autores) para
prejudicados. explicitar os efeitos negativos decorrentes da não
Para uma melhor compreensão teórica do negociação entre atores envolvidos em uma ação
problema relativo à coordenação do acesso, do uso e coletiva. Ressalte-se que há fortes críticas ao modelo
da preservação dos recursos de uso comum vamos na medida em que utiliza o caso de um grupo pe-
discutir três conhecidas representações analíticas queno, ou seja, “dois prisioneiros” para demonstrar
que apresentam interfaces importantes: o dilema problemas decorrentes das dificuldades da não ne-
olsoniano do free rider, o “dilema do prisioneiro” e a gociação. Os problemas de negociação na verdade
“tragédia dos comuns”. são comuns aos grandes grupos devido aos altos
custos de negociação, sendo que os pequenos gru-
pos se destacam especificamente pela maior possibi-
O DILEMA OLSONIANO DO FREE RIDER lidade de sucesso de negociação coletiva (COASE,
1960; OLSON, 1999; 2000). Outros críticos lem-
bram, ainda, que toda a trama do “dilema do prisio-
O argumento central de Olson baseia-se no neiro” cairia por terra se os dois prisioneiros fossem,
fato de que se nenhum indivíduo pode ser excluído por exemplo, mãe e filho.
de um bem coletivo uma vez que este já tenha sido
provido, as pessoas que serão beneficiadas têm pou-
cos incentivos para contribuir de maneira voluntária A TRAGÉDIA DOS COMUNS
para a produção desse bem. A lógica da ação coleti-
va aceita como um de seus pressupostos a percepção
de que os custos operativos da formação de sujeitos Esse modelo ficou conhecido a partir da
coletivos não compensam os resultados das ações publicação, em 1968, do artigo de Hardin. O autor
por eles empreendidas, uma vez que indivíduos questiona a possibilidade de se encontrar uma “so-
racionais podem alcançar seus objetivos por meio da lução técnica” para o problema da distribuição de
estratégia do “carona”. A estratégia do “carona” ou recursos no planeta, dado ao crescimento exponen-
free-rider é aquela na qual indivíduos autointeressa- cial da população, sem que se modificassem valores,
dos usufruem os benefícios da ação coletiva, sem ideias e, até mesmo, a moralidade (HARDIN, 1968).
despender esforços para a sua obtenção. Sua estra- Este autor argumenta, através de sua conhecida
tégia dominante é a deserção, uma vez que o bem metáfora do pastor em um “campo aberto a todos”,
coletivo implica no usufruto do bem por todos, que onde muitos usuários têm acesso a um recurso
mesmo daqueles que não cooperam na realização para uso comum haverá um nível de extração maior
das ações tendo em vista a sua obtenção. De fato, os que o ótimo, levando à sobreexploração do recurso.
autores Olson (1999) e Ostrom (1999) concordam A argumentação de Hardin é ilustrada pela ideia de
que os indivíduos não agiriam racionalmente a favor um pasto “aberto a todos”, onde cada pastor, racio-
de objetivos grupais ou coletivos, a menos que fos- nal, se sente impulsionado a introduzir cada vez
sem coagidos a fazê-lo ou que recebessem para isso mais animais no pasto, porque recebe um benefício
algum tipo de incentivo seletivo. Indivíduos racio-

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direto, na íntegra, por cada um de seus próprios eficiente as atividades de coordenação (OSTROM,
animais, e arca apenas com os custos resultantes do 1999; OSTROM ; AHN, 2001).
sobre pastoreio rateados entre todos os pastores. Em suma, “a tragédia dos comuns” chama a
Essa coletividade, acreditando na liberdade dos bens atenção para a impossibilidade da produção do bem
comuns, teria como destino uma tragédia, já que público numa situação de busca de maximização do
cada indivíduo persegue seu próprio interesse, preso ganho individual no uso dos recursos comuns ou
em um sistema que o compele a aumentar seu gado públicos, o que simplesmente inviabilizaria sua pre-
sem nenhum limite, em um espaço que é limitado. servação, prejudicando igualmente a todos os inte-
A discussão sobre como organizar a gestão ressados. Pode-se admitir que, no curto prazo, a
dos recursos de uso comum é bastante polêmica. O realização do autointeresse seja uma estratégia ra-
argumento sustentado pelas teorias convencionais cional do ator; porém, no médio prazo, pode ser a
dos recursos de uso comum é que, caso não haja pior estratégia possível para todos.
mecanismo de cooperação entre os atores O modelo teórico, apesar de sua interessan-
envolvidos, a busca de maximização dos interesses te intuição a respeito das dificuldades relativas à
individuais de cada um dos agentes acarretará a coordenação do acesso aos bens comuns, aprisiona
médio ou longo prazo um “jogo de soma negativa” os indivíduos numa trágica armadilha de sua própria
em que com a degradação do bem comum todos os racionalidade. A tragédia dos comuns, através do
atores sairão perdendo. Mesmo tendo consciência exemplo clássico do uso de terras coletivas por ato-
desse futuro sombrio, a inexistência de coordenação res individuais sem a existência de mecanismos de
ou pactuação de um acordo entre os envolvidos, fará coordenação dos atores (seja através de uma autori-
com que a busca de maximização dos usos por cada dade externa ou de mecanismos de cogestão), de-
agente, nessas circunstâncias, seja encarada como monstra que, em um mercado sem regulação, as
uma ação racional, pois é a única forma — antes da ações racionais individuais de cada ator — em parti-
degradação do bem comum — que cada ator tem de, cular para aumentar os seus ganhos de curto prazo —
pelo menos, não sofrer perdas muito maiores que a aceleram o processo de “tragédia” de todos os parti-
média dos atores envolvidos. cipantes. No caso em pauta, a inexistência ou impos-
Em situações desse tipo, os atores não sibilidade de coordenação confiável das ações indi-
seriam capazes de encontrar formas de cooperação viduais faz com que, mesmo nos casos em que os
ou negociação voluntária entre si devido aos altos diversos atores tenham plena consciência da inevi-
“custos de negociação” (COASE, 1960). Ou seja, tabilidade do desastre geral, cada ator busque ma-
somente poderiam escapar de um laisser faire com ximizar seus interesses para pelo menos perder me-
perdas para todos os envolvidos por meio da nos que os demais.
intervenção de uma instituição externa — capaz de
diminuir consideravelmente os “custos de transação”
— seja ela um órgão governamental (Estado), uma À GUISA DE CONCLUSÃO: DESAFIOS PARA
entidade pública não estatal, ou ainda, um INCREMENTAR A COOPERAÇÃO NA
colegiado representativo dos consumidores, com GESTÃO DOS RECURSOS DE USO COMUM
poderes coercitivos para com os membros que não
sigam as regras acordadas (OLSON, 2000).
As possibilidades de construção de formas Os modelos apresentados colocam em ques-
de coordenação em ambientes desse tipo — que tão as possibilidades e condições nas quais as pessoas
envolvem a necessidade de pactuação de um se dispõem a cooperar. Resumidamente, podemos
número muito grande de atores (individuais e dizer que juntas essas abordagens chamam atenção,
coletivos), com interesse diversos — exige uma especialmente, para a necessidade do enfrentamen-
instituição coordenadora com autoridade de to de três importantes constrangimentos:
regulação e uma relativa capacidade de controle dos
diferentes agentes. Além disso, como a coerção por a) o “dilema olsoniano do free rider” (“carona”),
si não é suficiente para empreitadas dessa ou seja, daquele indivíduo que terá um
magnitude — seja por limitações estruturais do órgão comportamento não cooperativo, se puder
regulador, seja pelas inúmeras possibilidades dos se beneficiar do bem coletivo produzido pe-
agentes de burlarem as regras — seria necessário que los demais;
essa política regulatória fornecesse também, entre b) o “dilema do prisioneiro”, onde, em função
outras vantagens, incentivos seletivos para os do baixo nível de confiança entre os pares,
participantes como forma de legitimar e tornar mais

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tende-se a priorizar estratégias individualis- coletivamente irracionais parece desafiar a convic-


tas, que deságuam em soluções “subótimas”; ção fundamental de que seres humanos racionais
e possam obter resultados racionais.
c) a “tragédia dos comuns”, que ao apresentar Por sua vez, Adhikari (2001) comenta que,
uma situação de não cooperação onde es- desde a publicação do artigo de Hardin (1968), tem
tratégias individualmente racionais podem ocorrido um crescente debate sobre a questão dos
conduzir a resultados coletivamente irracio- recursos de uso comum, direitos de propriedade e
nais, traz um paradoxo que questiona a a- degradação dos recursos naturais, dentro do qual
firmação de que os seres humanos racionais diversos autores têm argumentado que uma gestão
sempre podem alcançar resultados racio- coletiva e descentralizada, incluindo os usuários de
nais. recursos comuns, poderia ser uma forma mais ade-
quada de superar o problema da tragédia dos co-
Em suma, esses modelos — o “dilema olsoni- muns. Essa é uma alternativa, também, defendida
ano do free rider”, o dilema do “prisioneiro” e a “tra- por Ostrom (1999), quando procura entender como
gédia dos comuns” — colocam em questão as possibi- indivíduos cousuários de recursos seriam capazes de
lidades e condições nas quais as pessoas se dispõem criar uma forma efetiva de governança e gestão des-
a cooperar. Todos eles têm em essência que o com- ses, de modo a resolver os dilemas da cooperação.
portamento mais provável é o do “carona”. Entre- Nesse sentido, sua argumentação admite como plau-
tanto, se todos os indivíduos dependentes de um sível que os indivíduos interessados criem institui-
bem coletivo decidissem se comportar como caro- ções que favoreçam a cooperação entre eles.
nas, o benefício comum não seria produzido, muito Em suma, o problema da gestão dos recur-
pelo contrário, o resultado seria ruim para todos os sos de uso comum traz os dilemas da ação coletiva,
interessados. Assim, por algum tempo, as únicas onde, por muito tempo, predominou uma visão
opções colocadas para esse problema residiam na dicotômica entre as possibilidades do Estado ou do
necessidade de que houvesse algum mecanismo de mercado solucionarem a questão. Embora elas não
coerção externo. estivessem completamente incorretas, falharam ao
McKean e Ostrom (2001) defendem que é desconsiderar que muitos problemas da ação coleti-
fundamental o reconhecimento de que a va estão enraizados em redes, organizações ou rela-
propriedade comum ou coletiva significa, na prática, ções entre os indivíduos — o que constituem elemen-
a propriedade privada compartilhada, e não de livre tos do que tem sido chamado de capital social.
acesso. A falta de rigor nessas definições teria sido o O argumento básico de Robert Putnam
erro fundamental do modelo da “tragédia dos (1996), um dos principais autores da teoria do capi-
comuns” de Hardin, uma vez que este autor tal social, é que o funcionamento de instituições
considerou que as pastagens eram de livre acesso e democráticas é condicionado pela existência de uma
não de propriedade comum, não estando sujeitas a sociedade civil ativa e vibrante, em outras palavras,
nenhum tipo de regulação, nem mesmo acordos de uma sociedade que tenha uma grande reserva de
entre seus usuários. capital social. O autor parte de uma pesquisa empí-
Essa falta de articulação e de negociação en- rica que teve como objeto os governos regionais da
tre os usuários, que é impressa nos modelos teóricos, Itália (década de 1970), que, no período em ques-
é um importante fato a ser destacado. Embora os tão, viviam uma transição na qual a tradição secular
modelos possam ser aplicáveis a determinadas situa- de centralização do governo italiano dava lugar a
ções reais, não considera que a racionalidade hu- novos governos regionais autônomos. A lógica do
mana seja capaz de apreender que, sob determina- argumento de Putnam (1996) é que uma sociedade
das situações, a cooperação é a melhor alternativa, civil é fundamental para o fortalecimento de uma
ainda que para isso seja necessário arcar com algum ordem política democrática (RENNÓ, 2003). Nessa
ônus dela resultante. Além de que, essa racionalida- lógica, um eficiente arranjo institucional deliberati-
de seria um tanto míope, pois um ser racional pode vo deve ser precedido por uma sociedade organiza-
ser definido como aquele que toma decisões pro- da.
porcionais e coerentes com o conhecimento que Nesse mesmo sentido, segundo a teoria do
tem do meio ambiente onde vai aplicá-las, tendo em capital social, indivíduos que são mais confiantes uns
vista a sua capacidade de implementá-las. nos outros, mais tolerantes a divergências políticas e
Dentro desse mesmo contexto, Ostrom mais otimistas quanto a seus futuros são também
(1999) faz a seguinte reflexão: o paradoxo de que mais propensos a envolverem-se em distintas formas
estratégias racionais individuais levam a resultados de ação coletiva porque são mais abertos à interação

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com estranhos (PUTNAM, 1996). A confiança in- dos, conspiram contra um alinhamento automático
terpessoal estimula a mobilização em torno de as- entre, por exemplo, a esfera econômica e a esfera
suntos coletivos porque gera expectativas positivas política (marxismo ortodoxo).
acerca do comportamento de outros. Na essência do Quando se deseja incentivar mudanças, ou
conceito de confiança, de acordo com vários auto- em outras palavras, utilizar o próprio formato insti-
res, está a ideia de reciprocidade (PUTNAM, 1996; tucional como uma das variáveis independentes (ou,
HARDIN, 1968). Uma pessoa confia em outra por- pelo menos, intervenientes) no processo, o grande
que espera dela certo tipo de atitude. Quando há desafio é o de não se replicar automaticamente o
confiança interpessoal generalizada, o espaço para encaixe “quase perfeito”, pois esse seria um fator
comportamentos oportunistas é reduzido, já que inibidor de mudanças (LEVI, 1996). Por outro lado,
tendem a prevalecer padrões comportamentais coo- não deve, muito menos, cair no extremo oposto,
perativos. uma vez que uma forte assimetria entre normas
A tolerância política, por sua vez, é um sinal organizacionais e o equilíbrio de forças entre os
de que um indivíduo aceita diferenças de ponto de agentes, significa inviabilizar o processo de institu-
vista e respeita posições e preferências contrárias às cionalização por boicote dos atores com maior con-
suas (PUTNAM, 1996). Um indivíduo tolerante trole sobre recursos estratégicos, quando estes ve-
busca conciliação e aceita conviver com visões de nham a sentir-se prejudicados (REIS, 2000; LEVI,
mundo conflitantes, ambas as características impor- 1996; AZEVEDO & ANASTASIA, 2002).
tantes para quem participa em formas de ação cole- O que se demanda, portanto, é um apro-
tiva, como nos casos dos comitês de bacia hidrográ- fundamento da democracia, capaz de lidar com a
fica. Por isso, pessoas otimistas quanto ao futuro necessidade de se criar formas alternativas de orga-
também estão mais propensas a envolverem-se em nizações, como as instituições deliberativas, nas
movimentos e grupos sociais, pois também tendem a quais a participação de representantes da sociedade
ver outras pessoas de maneira positiva. organizada na deliberação e planejamento de estra-
Uma leitura ortodoxa de Putnam (1996) tégias e soluções para problemas coletivos seja fun-
poderia nos levar a pensar que as sociedades com damental, tanto pelos fins em si, como pelo processo
baixo grau de “capital social” — como a brasileira e a aí envolvido (EVANS, 2003). Nesse sentido, diversos
de outros países emergentes — estariam fadadas ao arranjos institucionais têm sido criados nos últimos
fracasso no enfrentamento dos dilemas de ação anos visando o cogerenciamento de recursos de uso
coletiva, através de mecanismos democráticos. Res- comum, o empoderamento das comunidades locais
salte-se — mesmo reconhecendo a importante con- e sua capacitação para uma participação cada vez
tribuição de Putnam — que trabalhos recentes têm mais qualificada nos processos de gestão. Várias
matizado interpretações culturalistas que superesti- combinações de divisão de responsabilidades entre
mam a importância da “confiança interpessoal” poder público e usuários têm sido criadas, em dife-
como elemento central para explicar políticas e rentes níveis, tanto em uma instância quanto em
contextos democráticos. outra (NYIKAHADZOI & SONGORE, 1999).
Dessa maneira, conforme observado por Entre essas inovações, tem-se a implementa-
Levi (1996), as instituições resolvem problemas da ção das chamadas “instituições híbridas”, que são
ação coletiva trazendo à tona contribuições de indi- formadas, em parte, por representantes do Estado,
víduos que, por sua vez, só conseguem realizar seus e, em parte, por representantes da sociedade civil,
desígnios porque existe alguém (ou algumas pesso- com poderes consultivos e/ou deliberativos, que
as) que têm o poder de coordenar, ou coagir, ou reúnem, a um só tempo, elementos da democracia
mobilizar um grupo de pessoas para agir conjunta- representativa e da democracia direta” (AVRITZER,
mente. 2000). Essas instituições permitem maior participa-
Teoricamente, no campo das políticas pú- ção de grupos organizados da sociedade na elabora-
blicas, há possibilidades de oficializar distintos for- ção, na implementação e na fiscalização das políticas
matos institucionais em consonância com as correla- públicas, como é o caso dos comitês de bacia hidro-
ções de forças existentes entre os atores envolvidos. gráfica.
Mesmo nos casos em que os atores com maior con- Ressalta-se que a política nacional de recur-
trole sobre os recursos críticos (financeiros, políti- sos hídricos (Lei nº. 9433/1997) preconiza, para a
cos, organizacionais, etc) tendam a optar por um gestão das bacias hidrográficas, um formato institu-
determinado arranjo institucional, a autonomia cional de “gestão participativa”, pois compartilham
relativa do sistema político, bem como as especifici- tanto atores governamentais (três níveis de gover-
dades e a capacidade de pressão dos grupos envolvi-

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Gestão de Recursos Naturais de uso Comum: Peculiaridades e Abordagens Teóricas

no), como usuários de água (empresas públicas e EVANS, P. Além da Monocultura Institucional: insti-
privadas) e representantes da sociedade organizada. tuições, capacidades e o desenvolvimento deliberati-
Assim, um governo que propicie um ambi- vo. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n. 9, p. 20-63,
ente institucional no qual os indivíduos possam criar jan./jun. 2003.
organizações para lidar com uma diversidade de
problemas e oportunidades de ação coletiva pode FEENY, D.; BERKES, F.; McCAY, B. J.; ACHESON, J.
aumentar, significativamente, o capital social de sua M. A tragédia dos comuns: vinte e dois anos depois.
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Management Of Natural Resources For Common


Use: Peculiarities And Theoretical Approaches

ABSTRACT

This article discusses economic concepts


(games theory and social capital) that can help
undestand and manage resources for common use
more effectively, as in the case of water and river
basin committees. We begin with the assumption
that the incorporation of a few analytical instru-
ments of current Social Sciences can allow even
readers who do not have close contact with this lit-
erature, to realise both the complexity of collective
action and the difficulties of management of re-
sources for common use.
Keywords: natural resources for common use; water;
water basin committees; Social Sciences.

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