Você está na página 1de 7
~ 0 | &m: penadas Juliane de touts Uneamane Ae i Pacwniliat de Crmpenes, 1706 ~ ACoisa e a coisa: apontamentos de uma experiéncia de leitura C topics) sobre a leitura na formagao do psicanalista Claudia F.G. de Lemos 1 Suscitado por questdes que se levantaram a partir da experiéncia de leitura orientada do Seminario da Angustia, foi sugerido como tema dessas Jornadas com que se inicia o ano de 1998 na Escola, a leitura na formagao do analista e, mais particularmente, nossa experiéncia, a experiéncia de cada um de nds, de leitura em Psicanalise. Dada minha formacdo e histéria na universidade, tanto como aluna quanto como professora, pareceu interessante a Comissao de Ensino que eu tratasse aqui, em contraponto, dessas duas experiéneias, fazendo de sua diferenca um lugar de significaco. O titulo que dei a esta apresentacdo: "A Coisa e a coisa: apontamentos. de um experiéncia de leitura sobre a leitura na formagao do analista", diz, na soletragdo de sua homonimia, tanto dessa diferenca oculta sob a semelhanca quanto de sua ancoragem No texto. "A. coisa freudiana ou sentido. de um retorno- a Freud em Psicandlise". ! Na verdade, porém, essa diferenca comecou por emergir do interior de minha propria experiéncia académica: assim que me pus a pensar nela, 0 que veio a tona nao foi a histéria das minhas leituras nem de um modo de ler, mas episédios que me surpreenderam por colocarem-na em risco. Em primeiro lugar no tempo, a fala do filésofo Bento Prado. Jr. em uma mesa-redonda-cujo-tema-era-o- estruturalismo_em Filosofia, 2 sobre 0 fato de que o ensino da Filosofia no-século XVIII comegava pela cépia sistematica pelos alunos das obras dos fildsofos escohidos como objeto de estudo. Isto 6, o estudo comegava pela copia. Em seguida, a observacdo de que até mesmo os textos escritos de alunos da pés-graduacao se apresentavam, de inicio, como uma colagem de fragmentos dos textos lidos no curso ou da fala do professor para s6 depois passarem a ser tecidos com o que se costuma chamar de suas prdprias palavras. Tanto o ensino pela cOpia quanto 0 efeito de repetic¢ao advindo de um primeiro contacto com um discurso desconhecido traziam de volta, para mim, estudiosa da aquisi¢ao da linguagem pela crianca, de um outro lugar, o que eu prépria tinha identificado nesse percurso de infans para falante. A saber, que esse percurso se da pela incorporacao da fala do outro através da qual o Outro captura a crianga nas suas redes de significantes. S6 que, ao que tudo indicava, nao se tratava apenas da crianca, muito de menos de um inicio definido em um tempo cronolégico, mas de um processo que parece reinstaurar-se diante da resisténcia que um discurso, instanciado em um texto, pode opor a um entendimento concebido como coincidéncia entre o que ele diz e 0 que se supde que ele quer dizer. Sobre esses episédios veio ainda a incidir uma citagao de Thomas Kuhn, filésofo da ciéncia que trabalha com a noc&o de paradigma e mudanc¢a de paradigma nas ciéncias, citagaéo essa com que me deparei ao ler um trabalho de Teresa Lemos e que dizia: “ Traduzir uma teoria ou visao do mundo na sua propria linguagem nao é fazé-la sua. Para isso é necess4rio utilizar essa como se fosse nossa lingua materna, descobrir que se esta pensando e trabalhando _e nao apenas traduzindo _uma lingua que antes era estranha. Contudo, essa transig&o nao é daquelas que podem ser feitas ou nao através de deliberagdes e escolhas, por melhores razées que se tenha para proceder desse modo. Em lugar disso, num determinado momento do processo de aprendizagem da traduc4o, 0 individuo descobre que ocorreu a transicao, que ele deslizou para a nova linguagem sem ter tomado qualquer decis&o a respeito.” (Kuhn, 1996:250) A afinidade que pode existir entre esses depoimentos, digamos, com todas as suas diferencas, esta no que, de dentro do que se concebe a formacao universitaria e cientifica, eles, de certa forma, a contradizem e, por contradizé-la, chamam a atengao para o que nela se supée ser a leitura como relagao com o texto. O que, com efeito, nos dizem, a disciplina da cépia, a incorporagao de fragmentos de textos pela crianca e pelo, por assim dizer, aprendiz, assim como a afirmacao de Kuhn relativamente ao deslizamento de um “individuo" para um outro discurso/linguagem, sem ter como porta de entrada a traducdo, nem como ponto de partida sua decisao/deliberacao? Que, ao contrario do que se supde na universidade, e conforme © que na verdade acontece também na universidade, nao é pela via do significado que um falante se inclui no texto, nem que um texto nos © oferece conhecimentos a serem interiorizados, armazenados na meméria. Suposigao que, por sua vez, assenta sobre a crenca em uma correspondéncia direta, indireta ou cruzada a ser estabelecida ~ entre os significados que o texto é dito veicular e os significados

Você também pode gostar