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Prefácio
- “[...] este livro não é um livro de psicologia, mas de filosofia. O que me importa é a
nossa compreensão do homem introduzida por Freud.” (p. 11)
Livro I
1. Psicanálise e Linguagem
- “Estamos hoje em dia à busca de uma grande filosofia da linguagem capaz de explicar
as múltiplas funções do significar humano e suas relações mútuas. Como a linguagem é
suscetível de usos tão diversos quanto a matemática, a física e a arte? [...]. A unidade do
falar humano constitui hoje problema.” (p. 15)
- Ricoeur busca “explorar certas articulações-chaves entre as disciplinas que investigam
a linguagem.” (p. 16)
2. Símbolo e interpretação
- “A nosso ver, o símbolo é uma expressão linguística de duplo sentido que requer uma
interpretação; a interpretação é um trabalho de compreensão visando a decifrar os
símbolos.” (p. 19)
- “O símbolo é a mediação universal do espírito entre nós e o real; ele pretende exprimir
antes de tudo a não imediatidade de nossa apreensão da realidade. Seu uso na
matemática, na linguística, na história das religiões, parece confirmar esse destino do
termo a um emprego tão universal.” (p. 20)
- “O que pode aqui prestar-se a confusão é que há o signo uma dualidade, ou antes, dois
pares de fatores que podem ser considerados, cada vez, como compondo a unidade da
significação: em primeiro lugar, há a dualidade de estrutura do signo sensível e da
significação que ele carrega (do significante e do significado, na terminologia de
Ferdinand de Saussure); em seguida, há a dualidade intencional do signo (ao mesmo
tempo sensível e espiritual, significante e significado) e da coisa ou do objeto
designado. É com o signo linguístico, convencional e instituído que essa dupla
dualidade, estrutural e intencional, atinge sua plena manifestação: de um lado, as
palavras, foneticamente diferentes segundo as línguas são portadoras de significações
idênticas, do outro, essas significações fazem com que os signos sensíveis valham para
qualquer coisa que designem. Dizemos que as palavras, por sua qualidade sensível,
exprimem significações e que, graças à sua significação, designam algo. A palavra
‘significar’ recobre os dois pares: o da expressão e o da designação.” (pp. 21-22)
- “Não é dessa dualidade que se trata no símbolo. Ela é de um grau superior: não é nem
a do signo sensível e da significação, nem a da significação e da coisa, a qual, aliás, é
inseparável da precedente. Ela se acrescenta e superpõe à precedente como relação do
sentido ao sentido; pressupõe signos que já possuem um sentido primário, literal,
manifesto, e que, por esse sentido, remetem a outro sentido. Portanto, restrinjo
deliberadamente a noção de símbolo às expressões de duplo sentido ou múltiplo sentido
cuja textura semântica é correlativa ao trabalho de interpretação que explicita seu
sentido ou seus múltiplos sentidos.” (p. 22)
Capítulo II
- “Detenhamo-nos nessas definições: elas bastam para nos fazer entender em que a ‘voz
semântica’ – a palavra significante – é interpretação. Também o é no sentido em que,
para Cassirer, o símbolo é mediação universal. Dizemos o real significando-o. Nesse
sentido, interpretamo-lo. A ruptura entre a significação e a coisa já se realiza com o
nome, e essa distância marca o lugar da interpretação. Nem todo discurso se situa
necessariamente no domínio do verdadeiro, pois não adere ao ser. A esse respeito, os
nomes que designam coisas fictícias – o ‘bode-antílope’ do parágrafo terceiro do tratado
aristotélico – mostra bem o que é uma significação sem posição de existência. Contudo,
não teríamos tido a ideia de chamar de interpretação os nomes, se não tivéssemos
percebido seu alcance significativo, à luz dos alcances dos verbos e dos verbos no
contexto do discurso, e se o alcance do discurso não se concentrasse no discurso
declarativo que diz algo de alguma coisa. Dizer algo de alguma coisa é, no sentido
completo e forte do termo, interpretar.” (p. 29)
- “Em que essa ‘interpretação’ própria à proposição declarativa nos orienta para o
conceito moderno da hermenêutica? A relação não é dada evidente. O ‘dizer algo de
alguma coisa’ só interessa a Aristóteles na medida em que é o lugar do verdadeiro e do
falso.” (p. 29)
- “Se o homem interpreta a realidade dizendo algo de alguma coisa, é porque as
verdadeiras significações são indiretas. Só atinjo as coisas atribuindo um sentido a um
sentido.” (p. 30)
- “Freud se situa justamente numa das extremidades dessa corrente: com ele, não é
somente uma ‘escritura’ que se presta à interpretação, mas todo o conjunto de signos
suscetível de ser considerado como um texto a ser decifrado; portanto, tanto um sonho,
um sintoma neurótico, quanto um mito, uma obra de arte ou uma crença. Não é então à
nossa noção de símbolo como duplo sentido que devemos retornar, sem prejulgar ainda
se o duplo sentido é dissimulação ou revelação, mentira vital ou acesso ao sagrado? É
um conceito ampliado da exegese que pensamos quando definimos acima a
hermenêutica como a ciência das regras exegéticas, e a exegese como a interpretação de
um texto particular ou de um conjunto de signos suscetível de ser considerado como um
texto.” (p. 32)
- “É necessário que nos situemos, desde o início, diante dessa dupla possibilidade: essa
tensão, essa tração extrema, é a expressão mais verdadeira de nossa ‘modernidade’; a
situação que hoje em dia se confere à linguagem comporta essa dupla possibilidade,
essa dupla solicitação, essa dupla urgência: de um lado, purificar o discurso de suas
excrescências, liquidar os ídolos, ir da embriaguez à sobriedade, elaborar um balanço de
nossa pobreza; do outro, fazer uso do movimento mais ‘niilista’, mais destruidor, mais
iconoclasta, para deixar falar aquilo que uma vez, aquilo que cada vez foi dito quando o
sentido reapareceu, quando o sentido era pleno. A hermenêutica me parece movida por
essa dupla motivação: vontade de suspeita e vontade de ouvir – desejo de rigor, desejo
de obediência. Somos hoje esses homens que não terminaram de matar os ídolos e que
mal começam a entender os símbolos. Talvez essa situação, em sua aparente desolação,
seja instrutiva; talvez o iconoclasmo extremo pertença à restauração do sentido.” (p. 33)
- “Tornar manifesta a crise da linguagem que hoje em dia faz com que hesitemos entre
desmistificação e a restauração do sentido, eis a razão profunda que motiva a posição
inicial de nosso problema.” (p. 33)
- “O contrário da suspeita, dizendo de modo brutal, é a fé. Que fé? [...]. Trata-se de uma
fé racional, pois ela interpreta; mas permanece uma fé, porque procura, pela
interpretação, uma segunda ingenuidade. Para ela, a fenomenologia é o instrumento da
escuta, do recolhimento, da restauração do sentido. Crer para compreender,
compreender para crer, eis a máxima. E sua máxima é o ‘círculo hermenêutico’ do crer
e do compreender.” (pp. 33-34)
- “Retomam [...] cada um num registro diferente, o problema da dúvida cartesiana, para
transportá-la ao interior mesmo da fortaleza cartesiana. O filósofo formado na escola de
Descartes sabe que as coisas são duvidosas, que não são tais como aparecem. Mas não
duvida de que a consciência não seja tal como ela aprece a si mesma: nela, sentido e
consciência do sentido coincidem. Depois, de Marx, Nietzsche e Freud, duvidamos
disso. Após a dúvida sobre a coisa, ingressamos na dúvida sobre a consciência.” (p. 37)
- “Ora, todos três limpam o horizonte para uma palavra mais autêntica, para um novo
reino da verdade, não somente mediante uma crítica ‘destruidora’, mas pela invenção de
uma arte de interpretar. Descartes vence a dúvida sobre a coisa através da evidência da
consciência. Eles vencem a dúvida sobre a consciência através de uma exegese do
sentido. A partir deles, a compreensão se torna uma hermenêutica: doravante, procurar o
sentido, não significa mais soletrar a consciência do sentido, mas decifrar suas
expressões. Portanto, o que se deveria confrontar, não é somente uma tríplice suspeita,
mas uma tríplice astúcia. Se a consciência não é tal como acredita ser, deve ser
instaurada uma nova relação entre o patente e o latente. [...]. O essencial é que todos três
criam, com os meios disponíveis, isto é, com e contra os preconceitos da época, uma
ciência mediata do sentido, irredutível à consciência imediata do sentido.” (pp. 37-38)
Capítulo III
Método hermenêutico e filosofia reflexiva
- “Nesse empreendimento, sentia-me encorajado por aquilo que aparecia como a riqueza
pré-filosófica do símbolo. O símbolo, pensava eu, faz apelo não somente à
interpretação, como dissemos no primeiro capítulo, mas verdadeiramente à reflexão
filosófica.” (p. 42)
- “[...] a filosofia como ciência rigorosa parece requerer significações unívocas. Ora, o
símbolo, devido à sua textura analógica, é opaco, não transparente. O duplo sentido que
lhe dá raízes concretas, sobrecarrega-o de materialidade. Ora, esse duplo sentido não é
acidental, mas constitutivo, na medida em que o sentido analógico, o sentido
existencial, só é dado no e pelo sentido literal. Em termos epistemológicos, essa
opacidade só pode significar equivocidade. Mas será que a filosofia pode cultivar
sistematicamente o equívoco? (p.44)
- “[...] o que se pergunta não é somente por que uma interpretação?, mas por que essas
interpretações opostas? A tarefa não consiste apenas em justificar o recurso a certo tipo
de interpretação, mas em justificar a dependência da reflexão relativamente a
hermenêuticas já constituídas que se excluem mutuamente.” (p. 44)
- “[...] reflexão não é intuição ou, em termos positivos, a reflexão é o esforço para
reaprender o Ego do Ego Cogito no espelho [acaba aqui p. 45] de seus objetos, de suas
obras e, finalmente, de seus atos. Ora, por que a posição do Ego deve ser reaprendida
através de seus atos? Justamente porque não é dada nem numa evidência psicológica,
nem numa intuição intelectual, nem numa visão mística. Uma filosofia reflexiva é o
contrário de uma filosofia do imediato. [...]. [Existo, penso]. Precisa ser ‘mediatizada’
pelas representações, pelas ações, pelas obras, pelas instituições e pelos monumentos
que a objetivam. É nesses objetos, no sentido mais amplo do termo, que o Ego deve
perder-se e reencontrar-se. Podemos dizer, num sentido um tanto paradoxal, que uma
filosofia da reflexão não é uma filosofia da consciência se, por consciência, entendemos
a consciência imediata de si mesmo. A consciência, como diremos posteriormente, é
uma tarefa.” (pp. 45- 46)
- “[...] a reflexão é menos uma justificação da ciência e do dever, que uma reapropriação
de nosso para existir. A epistemologia é apenas uma parte dessa tarefa ampla: temos de
recuperar o ato de existir, a posição do ‘si’ em toda a espessura de suas obras. Agora,
por que é necessário caracterizar essa retomada como apropriação e mesmo como
reapropriação? Devo recuperar algo que antes se perdeu. Torno ‘próprio’ aquilo que
deixou de ser meu, meu próprio. Faço ‘meu’ aquilo de que me separei, pelo espaço e
pelo tempo, pela distração ou pelo ‘ divertimento’, ou em virtude de algum
esquecimento culpável. A apropriação significa que a situação inicial de onde a reflexão
procedeu é o ‘esquecimento’. [...]. É por isso que a reflexão é uma tarefa [...], a tarefa de
igualar minha experiência concreta à afirmação: existo.” (p. 47)
- “A filosofia é ética na medida em que conduz da alienação à liberdade e à beatitude.
[...]. A filosofia é ética, mas a ética não é puramente moral. [...]. Seu objetivo é
apreender o Ego em seu esforço para existir, em seu desejo para ser. É nesse ponto que
uma filosofia reflexiva reencontra e talvez salva a ideia platônica de que a própria fonte
de conhecimento é Eros, desejo, amor, e a ideia spinozista de que ela é conatus, esforço.
[...]. Esforço e desejo são duas faces da afirmação do ‘Si’ na primeira verdade: existo.”
(p. 47)
- “[...] a reflexão é a apropriação de nosso esforço para existir e de nosso desejo de ser,
através das obras que dão testemunho desse esforço e desse desejo.” (p. 48)
-“[...] a posição desse esforço ou desse desejo não somente é privada de toda intuição,
mas só é atestada por obras cuja significação permanece duvidosa e irrevogável. É aqui
que a reflexão faz apelo a uma interpretação e pretende transformar-se em
hermenêutica. [...]. A reflexão deve tornar-se interpretação, pois não posso apreender
esse ato de existir alhures senão em signos esparsos no mundo.” (p. 48)
- “[...] o filósofo não fala de nenhum lugar: toda questão que pode colocar provém do
fundo de sua memória grega. Assim, o campo de sua investigação é inelutavelmente
orientado. Sua memória comporta a oposição de ‘próximo’ e do ‘distante.’”(p. 49)
- “Que vantagens pode o hermeneuta alegar face à lógica formal? [...] É a espessura do
sentido múltiplo que solicita sua inteligência. E a interpretação consiste menos em
suprimir a ambiguidade que em compreendê-la e em explicar sua riqueza. Diremos
ainda que o simbolismo lógico é vazio e que o simbolismo, segundo a hermenêutica, é
pleno; ele elucida o duplo sentido da realidade mundana ou psíquica [...].” (p. 50)
- “Refletir e interpretar esses símbolos são um único e mesmo ato.” (p. 53)
- “A inteligência desenvolvida pela compreensão dos símbolos não é o substituto
enfermo da definição, porque a reflexão não é um pensamento que define e pensa por
‘classes’. Esbarramos aqui com o problema aristotélico dos ‘múltiplos sentidos do ser’.
Aristóteles foi o primeiro a discernir perfeitamente que o discurso filosófico não se
enquadra na alternativa lógica do unívoco e do equívoco, porque o ser é um ‘gênero’.
No entanto, o ser se diz. Mas ele ‘se diz de múltiplas maneiras’.” (p. 53)
“Desde já sabemos que não é uma interpretação, mas são várias interpretações que
devem ser integradas na reflexão. Portanto, é o próprio conflito hermenêutico que
alimenta o processo da reflexão e comanda a passagem da reflexão abstrata à reflexão
concreta.” (p. 54)
Livro II
Primeira parte
Energética e hermenêutica
Capítulo III
Livro III
- “Pedimos à filosofia duas coisas ao mesmo tempo: arbitrar a guerra das interpretações
e integrar todo o processo da interpretação na reflexão filosófica.” (p. 21)
Capítulo I
- “A redução, com efeito, tem qualquer origem e lugar do sentido; a colocação entre
parênteses, a suspensão de que se trata na fenomenologia, não concerne apenas ao
‘natural’, ao ‘óbvio’ (Sebsrvertandilichkeit) da aparência das coisas, as quais de repente
deixam de aparecer como um bloco de presença, de estar aí, de estar à mão, com um
sentido estabelecido, em si, que se teria apenas que achar. Na medida em que a
consciência acredita saber o estar-aí do mundo, ela acredita também saber-se a si
mesma. [...]. Essa consciência imediata é desposta com a atitude natural. É, pois, por
uma humilhação, uma ofensa a esse saber da consciência imediata, que a fenomenologia
começa. Mesmo porque o saber laborioso de si mesma que ela articula atesta que a
primeira verdade é também a última conhecida. Se o cogito é o ponto de partida, nunca
se acabou de atingir o ponto de partida; não se parte dele, chega-se a ele; toda a
fenomenologia é uma marcha para o ponto de partida. Dissociando assim o começo
verdadeiro do começo real ou atitude natural, a fenomenologia torna manifesto o
desconhecimento de si inerente à consciência imediata.” (p. 305)
- “É esse implícito que permite aplicar ao próprio cogito a crítica de evidência aplicada
antes à coisa: ele também é uma certeza presumida; ele também pode iludir-se sobre si
mesmo, e ninguém sabe até que ponto. A certeza decidida do ‘eu [acaba p. 305] sou’
envolve a questão não decidida da extensão possível da ilusão sobre si mesmo. É nessa
falha, nessa não-coincidência entre a certeza do ‘eu sou’ e a possibilidade da ilusão
sobre si, que uma certa problemática do inconsciente vai poder inserir-se. Mas, ao
mesmo tempo, conhecemos seu estilo próprio. A primeira inconsciência que a
fenomenologia revela é a do implícito, do co-visado: o modelo desse implícito – ou
melhor do ‘co-implicado’ – deve ser procurado numa fenomenologia da percepção.”
(pp. 305 – 306)
- “[...] como uma diversidade de vivências são ‘compossíveis’ em um mesmo Ego? São
as ‘leis essenciais da compossibilidade’ que regulam todos os problemas de Genesis na
espera do Ego. A forma da compossibilidade, para um Ego, é na realidade o tempo, não
o tempo do mundo, mas a temporalidade pela qual uma série de cogitationes forma uma
sequência, um encadeamento. A gênese em fenomenologia designa, pois, uma maneira
de operar a ligação entre as diversas dimensões do fluxo temporal, passado, presente e
futuro: ‘O Ego se constitui para si mesmo, de alguma maneira, na unidade de uma
história.’” (p. 307)
- “A língua tem uma maneira própria de ser dialética: cada signo visa alguma coisa da
realidade apenas por sua posição no conjunto dos signos. Nenhum signo é significante
por uma relação termo a termo com uma coisa correspondente, cada signo é definido
por sua diferença com todos os outros. Mais precisamente, é combinando as diferenças
fonemáticas e as diferenças lexicais, portanto, fazendo funcionar a dupla articulação dos
fonemas dos monemas, que dizemos o mundo.” (p. 310)
- “Por sua vez, a utilização da linguagem pela palavra dos sujeitos falantes faz aparecer
a ambiguidade de todos os signos. Na linguagem ordinária, cada signo contém em si
potencial indefinido de sentidos [...]. Falar é instituir um texto que funciona como
contexto para cada palavra; o potencial das palavras mais carregadas de sentido é assim
limitado e determinado pelo contexto, sem que o restante da carga de sentidos seja com
isso abolida; apenas uma parte do sentido é assim tornada presente, pela ocultação do
resto do sentido possível.” (p. 310)
- “[...] todas as nossas relações com o mundo têm uma constituição intersubjetiva.” (p.
311)
- “A redução é como uma análise, porque não visa substituir o sujeito da atitude natural
por um outro sujeito; nenhuma fuga para um outro lugar a anima; a reflexão é o sentido
do irrefletido, enquanto sentido confessado, proferido, ou melhor, o sujeito que exerce a
redução não é um outro sujeito que não o sujeito natural, mas o mesmo; considerado
como desconhecido ele se torna reconhecido.” (p. 313)
- “A fenomenologia não alcança a psicanálise, mas somente lhe dá, por diferença
esvanecente, uma espécie de compreensão nos limites de si mesma.” (p. 314)
Capítulo II
- “Está aqui uma suprema prova para uma filosofia da reflexão. É o próprio sujeito da
apercepção imediata que é colocado em questão.” (p. 347)
- “O homem, que já sabia não ser ele nem o senhor do cosmo, nem o senhor dos seres
vivos, descobre que não é nem mesmo o senhor de sua psique.” (p. 348)
- “[...] [a] realidade não existe senão como realidade ‘diagnosticada’. A realidade do
inconsciente não é uma realidade absoluta, mas relativa às operações que lhe dão
sentido.” (p. 355)
- “É essa realidade que se deve compreender bem: ela não se reduz a uma simples
projeção do intérprete, num sentido vulgarmente psicológico; significa que a realidade
da tópica se constitui ‘na’ hermenêutica, mas num sentido puramente epistemológico.”
(p. 355)
3. O conceito de arqueologia
- “Mas é um Cogito injuriado que procede dessa aventura: um Cogito que se coloca mas
não se possui; um Cogito que não compreende sua verdade originária senão na e pela
confissão da inadequação, da ilusão, da mentira da consciência atual.” (p. 357)
- ‘Os processos do sistema Inconsciente são fora do tempo, o que equivale a dizer que
eles não são ordenados temporalmente, que não são alterados pelo transcorrer do tempo,
em suma, que não tem qualquer relação com o tempo. A relação temporal, uma vez
mais, está ligada ao trabalho do sistema ‘consciente’. “Essa declaração é inseparável da
seguinte:” ‘Os processos inconscientes tampouco levam em conta a realidade; eles são
submetidos aos princípios de prazer.” (p. 360)
- “A pulsão de morte não é, com efeito, uma figura arcaica entre outras, mas o indício
arcaico de todas as pulsões e do próprio princípio de prazer. Devemos aqui lembrar que
a pulsão de morte foi introduzida inicialmente para explicar uma peripécia da
terapêutica, a resistência à cura, a impulsão para repetir a situação traumática original
em vez de elevá-la ao nível da lembrança. A função da repetição parece assim mais
primitiva que a função de destruição na pulsão de morte.” (p. 365)
- “Um método hermenêutico, unido à reflexão, vai muito mais longe do que um método
eidético como o que seu praticava então: a dependência do Cogito com relação à
posição do desejo não é diretamente apreendida a partir da experiência imediata, mas
interpretada por uma outra consciência, a [acaba p. 370] partir dos signos aparentemente
insensatos oferecidos à interlocução. Não é de forma alguma uma dependência
experimentada, é uma dependência decifrada, interpretada através dos sonhos, das
fantasias, dos mitos, que constituem de alguma maneira o discurso indireto dessa treva
muda. O enraizamento da reflexão na vida não é compreendido na consciência reflexiva
senão na qualidade de verdade hermenêutica.” (pp. 370-371)
Capítulo III
- “Somente tem uma arché um sujeito que tem um telos. Se eu compreendesse essa
articulação entre arqueologia e teologia, compreenderia muitas coisas. E em primeiro
lugar, compreenderia que minha própria ideia da reflexão é abstrata, enquanto essa
dialética nova não lhe tiver sido integrada. O sujeito, dizíamos acima, não é jamais
aquele que se acredita ser; mas não basta, para que atinja seu ser verdadeiro, que ele
descubra a inadequação da consciência que toma de si mesmo, nem mesmo o poder do
desejo que o coloca na existência. É preciso que descubra que o ‘tornar-se consciente’,
através do qual ele se apropria do sentido de sua existência como desejo e como
esforço, não lhe pertence, mas pertence ao sentido que se realiza nele. Cumpre-lhe
mediatizar a consciência de si pelo espírito, isto é, pelas figuras que dão um telos a esse
tornar-se consciente’. A proposição de que não há arqueologia do sujeito a não ser no
contraste com uma teleologia remete a essa outra: não há teleologia a não ser através
das figuras do espírito, isto é, através de um novo descentramento, um novo
desapossamento a que chamo de espírito, como tinha chamado do inconsciente o lugar
desse outro deslocamento da origem do sentido atrás de mim.” (p. 373)
- “Se compreendo essa conexão, no âmago de uma filosofia do sujeito, entre sua
arqueologia e sua teleologia, isto é, entre dois desapossamentos da consciência,
compreendo, além disso, que a guerra das hermenêuticas, que era o problema mais
importante de nossa problemática, está em vias de encontrar uma saída. Vista de fora, a
psicanálise nos aparece como uma hermenêutica redutora, desmistificante. Nessa
qualidade, ela se opunha a uma hermenêutica que havíamos chamado de restauradora, a
uma meditação do sagrado. [acaba p. 373] [...]. A dialética da arqueologia e da
teleologia é o solo filosófico verdadeiro com base no qual pode ser compreendida a
complementaridade das hermenêuticas irredutíveis e opostas, aplicada às formações
mítico-poéticas da cultura. Essa resolução do problema hermenêutico inicial é, pois, o
horizonte de todo o nosso projeto.” (p. 373-374)
- “E, em primeiro lugar, não devemos perder de vista que o reconhecimento – fenômeno
espiritual por excelência – é luta. Luta pelo reconhecimento, sem dúvida, e não luta pela
vida, mas reconhecimento pela luta. Ora, essa luta significa que a grandeza terrível do
desejo é transpor [acaba p. 381] tada para a esfera do espírito sob a figura da violência.
Sem dúvida, a paixão de se fazer reconhecer supera a luta animal pela conservação ou
pela dominação, e o conceito de reconhecimento é um conceito não econômico por
excelência: a luta pelo reconhecimento não é luta pela vida, é uma luta para arrancar ao
outro a confissão, a atestação, a prova de que eu sou uma consciência de si autônoma.
Mas essa luta pelo reconhecimento é uma luta na vida, contra a vida, pela vida. [...]. São
sempre operações sobre a vida que balizam a dialética: arriscar a vida, trocá-la – gozar,
trabalhar. É sempre o momento da natureza, a alteridade da vida, que, no sentido
próprio do termo, alimenta e nutre as oposições de cada consciência a uma outra distinta
dela.” (p. 381-382)
c) A questão da sublimação
- “Aquilo a que chamamos ‘nossos ideias’ muito frequentemente nada mais são do que
projeções desse mesmo amor-próprio ao qual atribuímos, de outro ponto de vista, a
resistência à verdade.” (p. 395)
Capítulo IV
- “[...] só agora [...] que podemos entrever uma solução, não mais eclética, mas
dialética, do conflito hermenêutico. O princípio da solução, nós o conhecemos agora:
ele está na dialética da arqueologia e da teleologia. [...]. Pretendemos mostrar, por
minha conta e risco, que aquilo que a psicanálise chama de ‘sobredeterminação’
encontra seu pleno sentido numa dialética da interpretação, cujos polos opostos são
constituídos pela arqueologia e pela teleologia.” (p. 399)
1. A sobredeterminação do sentido
- “[...] a oposição entre regressão e progressão, com a qual e contra a qual batalhamos,
ao mesmo tempo para instruí-la e para superá-la, explicita a textura paradoxal que
poderíamos exprimir como a unidade do ocultar-mostrar. Os verdadeiros símbolos estão
na encruzilhada das duas funções que alternadamente opusemos e fundimos uma na
outra. Ao mesmo tempo que disfarçam, eles desvelam. [...]. Disfarçar, desvelar; ocultar,
mostrar. Essas duas funções já não são absolutamente exteriores uma à outra. Elas
exprimem as duas faces de uma única função simbólica. [...]. A reflexão pode
inicialmente apenas quebrar essa função. [...] [acaba p. 401]. É necessária, então, a
contrapartida de uma fenomenologia do espírito para salvar a outra dimensão e fazer
com que apareça no símbolo o esquema do tornarmos nós mesmos que abre aquilo que
ele revela.” (p. 401-402)
- “Como se vê, essa abordagem indireta, mediata, da consciência nada tem a ver com
uma presença imediata a si da consciência, com uma certeza imediata de si a si mesma.”
(p. 409)
- “O exemplo de uma criação tão excepcional como a tragédia de Sófocles revela mais
do que uma antitética: ela mostra, na própria obra, a unidade profunda do disfarce e do
desvelamento, cimentada na própria estrutura do símbolo tornado objeto cultural.” (p.
415)
- “Torna-se possível então situar o onírico e o poético numa mesma escala simbólica:
produção do sonho e criação da obra de arte representam as duas extremidades dessa
escala, conforme predomine no símbolo o disfarce ou o desvelamento, a distorção ou a
revelação. Por meio dessa fórmula, tento explicar ao mesmo tempo a unidade funcional
que existe entre o sonho e a criação e a diferença de valor que separa um simples
produto de nosso sonho das obras duráveis, suscetíveis de se inscreverem no patrimônio
cultural da humanidade. Entre o sonho e a criação há uma continuidade funcional, no
sentido em que disfarce e desvelamento aí operam conjuntamente, mas numa proporção
inversa. [...]. Passando do sonho noturno ao devaneio, deste ao jogo e ao humor, em
seguida ao folclore e às lendas, enfim às obras de arte, ele atesta por meio dessa espécie
de analogia gradativa, que toda criação depende da mesma função econômica, opera a
mesma substituição de satisfação que a formações de compromisso do sonho e da
neurose.” (p. 415)
- “Se o sonho permaneceu uma expressão privada, perdida na solidão do sono, é porque
lhe falta a mediação do trabalho que incorpora a fantasia a um material duro e o
comunica a um público. Mas essa mediação do trabalho artesanal e essa comunicação só
advém a sonhos que, ao mesmo tempo, veiculam valores capazes de fazer avançar a
consciência em direção a uma nova compreensão de si mesma. Se o Moisés de
Michelangelo, o Édipo Rei de Sófocles, o Hamlet de Shakespeare são criações, é na
medida em que não são simples projeções dos conflitos do artista, mas também o
esboço de sua solução. É porque nele o disfarce predomina sobre o desvelamento, que o
sonho olha antes para trás, para o passado, para a infância. É porque nela o
desvelamento predomina, que a obra de arte é antes um símbolo prospectivo da síntese
pessoal e do porvir do homem, e não somente um sintoma regressivo de seus conflitos
não resolvidos. É pela mesma razão que nosso prazer de amador não é a simples
revivescência, mesmo ornada por um prêmio de sedução, de nossos próprios conflitos,
mas o prazer de participar no trabalho da verdade que se efetua através do herói.” (p.
416)
- “O próprio sonho não será um compromisso variável entre essas duas funções
[regressão e progressão], conforme o aspecto neurótico o incline para a repetição e o
arcaísmo, ou conforme ele próprio esteja no caminho de uma ação terapêutica exercida
de si sobre si? Inversamente, haverá um único grande símbolo criado pela arte, pela
literatura, que não mergulhe no arcaísmo dos conflitos e dos dramas da infância
individual ou coletiva? As figuras mais inovadoras que o artista, o escritor [acaba p.
416] ou o pensador podem engendrar mobilizam energias antigas, inicialmente
investidas em figuras arcaicas. Mas, ao mobilizar essas figuras, comparáveis a sintomas
oníricos ou neuróticos, o criador revela os possíveis menos consumados, menos
advindos, e os erige em símbolos novos da dor da consciência de si.” (p. 416-417)
- “Kant foi o primeiro a nos ensinar a considerar a ilusão como uma estrutura necessária
do pensamento do incondicionado. O schein transcendental não é simples erro, puro
acidente da história do pensamento; é uma ilusão necessária. Aí está, a meu ver, a
origem radical de toda ‘consciência falsa’, a fonte de toda problemática da ilusão, para
além da mentira social, da mentira vital, [acaba p. 422] do retorno do recalcado. Marx,
Freud, Nietzsche já operam ao nível de formas segundas e derivadas da ilusão. É a razão
por que suas problemáticas são parciais e reais.” (pp. 422-423)
a) religião e pulsão
b) religião e fantasia
- “Ora, esse imaginário não vestigial, portador de um sentido novo, Freud igualmente o
encontrou: não quando fala de religião, mas quando fala de arte. Lembremo-nos de
nossa exegese do sorriso da Mona Lisa: a lembrança de mãe perdida, dizíamos, é
propriamente recriada pela obra de arte. Ela não está escondida sob..., subjacente, à
maneira de um estrato real e apenas recoberto. Ela é propriamente criada, na própria
medida em que é exposta.” (p. 421)
c) fé e palavra
- “Tornar-se consciente, para o homem, é, dizíamos ser tirado para fora de seu arcaísmo
pela série das figuras que o instituem e o constituem como homem.” (p. 433)