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Fichamento Da interpretação: Ensaio sobre Freud (1977), obra de 1969

Prefácio

- “[...] este livro não é um livro de psicologia, mas de filosofia. O que me importa é a
nossa compreensão do homem introduzida por Freud.” (p. 11)

- “Meu problema é o da consistência do discurso freudiano. Em primeiro lugar, é um


problema epistemológico: o que é interpretar em psicanálise, e como a interpretação dos
sinais do homem se articula com a explicação econômica pretendendo atingir a raiz do
desejo? Em seguida, é um problema reflexivo: que compreensão nova de si procede
dessa interpretação e de que ‘si’ se trata de compreender? Enfim, é um problema
dialético: seria a interpretação freudiana da cultura exclusiva de qualquer outra? Se não
é, segundo que regra de pensamento pode ser coordenada com outras interpretações,
sem que a inteligência se veja condenada a só repudiar o fanatismo para cair no
ecletismo? Essas três questões constituem o longo desvio pelo qual retomo com maior
empenho o problema deixado em suspenso no fim de minha Simbólica do mal, a saber,
o da relação entre uma hermenêutica dos símbolos e uma filosofia da reflexão
concreta.” (p. 12)

Livro I

Problemática: Situação de Freud

Capítulo I: Da linguagem do símbolo e da interpretação

1. Psicanálise e Linguagem

- “Parece-me que há um domínio sobre o qual se entrelaçam, hoje em dia, todas as


pesquisas filosóficas: o da linguagem.” (p.15)

- “Estamos hoje em dia à busca de uma grande filosofia da linguagem capaz de explicar
as múltiplas funções do significar humano e suas relações mútuas. Como a linguagem é
suscetível de usos tão diversos quanto a matemática, a física e a arte? [...]. A unidade do
falar humano constitui hoje problema.” (p. 15)
- Ricoeur busca “explorar certas articulações-chaves entre as disciplinas que investigam
a linguagem.” (p. 16)

2. Símbolo e interpretação

- “Chamemos de símbolo essa região do duplo sentido [...]” (p. 18)

- “Ora, esse problema do duplo sentido não é próprio à psicanálise: a fenomenologia da


religião também o conhece; os grandes símbolos cósmicos da terra, do céu, das águas,
da vida, das árvores, das pedras, e esses estranhos relatos sobre as origens e o fim das
coisas que são os mitos, também são seu pão cotidiano. Ora, na medida em que ela é
fenomenologia e não psicanálise, os mitos, os ritos e as crenças que ela estuda não são
apenas fábulas, mas uma maneira de o homem relacionar-se com a realidade
fundamental, qualquer que ela seja.” (p. 18)

- “A interpretação é a inteligência do duplo sentido.” (p. 18)

- “Assim, na ampla esfera da linguagem, precisa-se o lugar da psicanálise: é, ao mesmo


tempo, o lugar dos símbolos ou do duplo sentido e aquele em que se defrontam as
diversas maneiras de interpretar. Doravante, chamaremos de o ‘campo hermenêutico’
essa circunscrição mais vasta do que a psicanálise, embora mais estreita do que a teoria
da linguagem total que lhe serve de horizonte. Por hermenêutica entenderemos sempre a
teoria das regras que presidem a uma exegese, isto é, à interpretação de um texto
singular ou de um conjunto de signos suscetível de ser considerado como um texto
(explicar-nos-emos mais adiante sobre essa noção de texto e sobre a extensão do
conceito de exegese a todos os signos análogos a um texto).” (p. 18-19)

- “Portanto, se as expressões de duplo sentido constituem o tema privilegiado desse


campo hermenêutico, parece logo que é através do ato de interpretar que o problema do
símbolo se inscreve numa filosofia da linguagem.” (p. 19)

- “A nosso ver, o símbolo é uma expressão linguística de duplo sentido que requer uma
interpretação; a interpretação é um trabalho de compreensão visando a decifrar os
símbolos.” (p. 19)

3. Para uma crítica do símbolo


- “Uma definição demasiado ampla é a que faz da ‘função simbólica’ a função geral de
mediação, através da qual o espírito, a consciência, constrói todos os seus universos de
percepção e de discurso. Como se sabe, essa definição é a de Ernst Cassirer, em sua
Filosofia das formas simbólicas. Para o que pretendemos, não é indiferente que o
projeto explícito de Cassirer, inspirado pela filosofia de kant, tenha sido o de quebrar o
quadro por demais estreito do método transcendental, que permanece confinado na
crítica dos princípios da filosofia newtoniana, e o de explorar todas as atividades
sintéticas, bem como todos os domínios de objetivação que lhes correspondam. Mas
seria legítimo chamar de simbólicas essas ‘formas’ diversas de síntese, nas quais o
objeto se regula sobre a função, essas ‘forças’ que produzem e criam, cada uma, um
mundo?” (p. 20)

- “O símbolo é a mediação universal do espírito entre nós e o real; ele pretende exprimir
antes de tudo a não imediatidade de nossa apreensão da realidade. Seu uso na
matemática, na linguística, na história das religiões, parece confirmar esse destino do
termo a um emprego tão universal.” (p. 20)

- “Pareceu-me que o problema da unidade da linguagem não podia ser validamente


colocado antes de ter dado consistência a um grupo de expressões que tem em comum a
propriedade de designar um sentido indireto em um e por um sentido direto, e que,
dessa forma, exigem algo como uma decifração ou, numa palavra, no sentido preciso do
termo, uma interpretação. Querer dizer algo diferente do que se diz, eis a função
simbólica.” (p. 21)

- “Ingressemos um pouco mais na análise semântica do signo e do símbolo. Em todo


signo um veículo é portador da função significante que faz com que ele seja válido, para
outra coisa. Contudo, não direi que interpreto o signo sensível quando compreendo o
que ele diz. A interpretação se refere a uma estrutura intencional de segundo grau que
supõe que um primeiro sentido seja constituído onde algo é visado em primeiro lugar,
mas onde esse algo remete a outra coisa visada apenas por ele.” (p. 21)

- “O que pode aqui prestar-se a confusão é que há o signo uma dualidade, ou antes, dois
pares de fatores que podem ser considerados, cada vez, como compondo a unidade da
significação: em primeiro lugar, há a dualidade de estrutura do signo sensível e da
significação que ele carrega (do significante e do significado, na terminologia de
Ferdinand de Saussure); em seguida, há a dualidade intencional do signo (ao mesmo
tempo sensível e espiritual, significante e significado) e da coisa ou do objeto
designado. É com o signo linguístico, convencional e instituído que essa dupla
dualidade, estrutural e intencional, atinge sua plena manifestação: de um lado, as
palavras, foneticamente diferentes segundo as línguas são portadoras de significações
idênticas, do outro, essas significações fazem com que os signos sensíveis valham para
qualquer coisa que designem. Dizemos que as palavras, por sua qualidade sensível,
exprimem significações e que, graças à sua significação, designam algo. A palavra
‘significar’ recobre os dois pares: o da expressão e o da designação.” (pp. 21-22)

- “Não é dessa dualidade que se trata no símbolo. Ela é de um grau superior: não é nem
a do signo sensível e da significação, nem a da significação e da coisa, a qual, aliás, é
inseparável da precedente. Ela se acrescenta e superpõe à precedente como relação do
sentido ao sentido; pressupõe signos que já possuem um sentido primário, literal,
manifesto, e que, por esse sentido, remetem a outro sentido. Portanto, restrinjo
deliberadamente a noção de símbolo às expressões de duplo sentido ou múltiplo sentido
cuja textura semântica é correlativa ao trabalho de interpretação que explicita seu
sentido ou seus múltiplos sentidos.” (p. 22)

- “Já fizemos alusão à concepção do símbolo na fenomenologia da religião [...]. Ligados


aos ritos e aos mitos, esses símbolos constituem a linguagem do sagrado, o verbo das
‘hierofanias’. Quer tratem do simbolismo do céu como figura do altíssimo e do imenso,
do poderoso e do imutável, do soberano e do sábio, quer do simbolismo da vegetação
que nasce, morre e renasce, da água que ameaça, limpa e vivifica, essas inumeráveis
teofanias ou hierofanias constituem fonte inesgotável de simbolização.” (p. 23)

Capítulo II

O conflito das interpretações

- “O que é interpretar? – perguntávamos no final do estudo precedente. Essa questão


comanda a seguinte: como a psicanálise chega a inscrever-se no conflito das
interpretações? Ora, a questão da interpretação não é menos embaraçosa que a do
símbolo. Cremos ter conseguido arbitrar as oposições concernentes à definição do
símbolo, recorrendo a uma estrutura intencional, a estrutura do duplo sentido que, em
contrapartida, só se torna manifesta no trabalho da interpretação.” (p. 28)
1. O conceito da interpretação

- “Partamos de Aristóteles: como sabemos, o segundo tratado do Organon chama-se


Peri Hermeneias, Da interpretação. Dele procede o que chamo de o conceito
demasiado ‘longo’ da interpretação. Faz-nos lembrar o uso do símbolo no sentido da
função simbólica de Cassirer [...]. É interpretação todo som emitido pela voz e dotado
de significação [...]. O sentido completo da hermeneia só aparece, [...] com o enunciado
complexo, com a frase, que Aristóteles chama de logos e que recobre tanto a ordem, a
confissão, o pedido, quanto o discurso declarativo ou apophansis. A hermeneia, em seu
sentido completo, é a significação da frase. Em seu sentido forte, porém, o do lógico, é a
frase suscetível do verdadeiro e do falso, isto é, a proposição declarativa. O lógico
abandona à retórica e à poética os outros tipos do discurso e só retém o discurso
declarativo cuja forma primeira é a afirmação que ‘diz algo de alguma coisa’.” (p. 28-
29)

- “Detenhamo-nos nessas definições: elas bastam para nos fazer entender em que a ‘voz
semântica’ – a palavra significante – é interpretação. Também o é no sentido em que,
para Cassirer, o símbolo é mediação universal. Dizemos o real significando-o. Nesse
sentido, interpretamo-lo. A ruptura entre a significação e a coisa já se realiza com o
nome, e essa distância marca o lugar da interpretação. Nem todo discurso se situa
necessariamente no domínio do verdadeiro, pois não adere ao ser. A esse respeito, os
nomes que designam coisas fictícias – o ‘bode-antílope’ do parágrafo terceiro do tratado
aristotélico – mostra bem o que é uma significação sem posição de existência. Contudo,
não teríamos tido a ideia de chamar de interpretação os nomes, se não tivéssemos
percebido seu alcance significativo, à luz dos alcances dos verbos e dos verbos no
contexto do discurso, e se o alcance do discurso não se concentrasse no discurso
declarativo que diz algo de alguma coisa. Dizer algo de alguma coisa é, no sentido
completo e forte do termo, interpretar.” (p. 29)

- “Em que essa ‘interpretação’ própria à proposição declarativa nos orienta para o
conceito moderno da hermenêutica? A relação não é dada evidente. O ‘dizer algo de
alguma coisa’ só interessa a Aristóteles na medida em que é o lugar do verdadeiro e do
falso.” (p. 29)
- “Se o homem interpreta a realidade dizendo algo de alguma coisa, é porque as
verdadeiras significações são indiretas. Só atinjo as coisas atribuindo um sentido a um
sentido.” (p. 30)

- “A segunda tradição nos é proposta pela exegese bíblica. Nesse sentido, a


hermenêutica é a ciência das regras da exegese, sendo esta entendida como
interpretação particular de um texto. [...]. Foi especialmente aí que se elaboraram as
noções de analogia, de alegoria, de sentido simbólico. [...]. Essa segunda tradição
assemelha-se, portanto, à hermenêutica quanto à definição do símbolo pela analogia,
embora não o reduza inteiramente a ela.” (pp. 30-31)

- “[A] noção de ‘texto’ – libertada da noção de ‘escritura’ – é interessante: Freud recorre


a ela com frequência, especialmente quando compara o trabalho da análise com a
tradução de uma língua para outra. O relato do sonho é um texto ininteligível que o
analista substitui por um texto mais inteligível. Compreender é fazer essa substituição.”
(p. 31)

- “Freud se situa justamente numa das extremidades dessa corrente: com ele, não é
somente uma ‘escritura’ que se presta à interpretação, mas todo o conjunto de signos
suscetível de ser considerado como um texto a ser decifrado; portanto, tanto um sonho,
um sintoma neurótico, quanto um mito, uma obra de arte ou uma crença. Não é então à
nossa noção de símbolo como duplo sentido que devemos retornar, sem prejulgar ainda
se o duplo sentido é dissimulação ou revelação, mentira vital ou acesso ao sagrado? É
um conceito ampliado da exegese que pensamos quando definimos acima a
hermenêutica como a ciência das regras exegéticas, e a exegese como a interpretação de
um texto particular ou de um conjunto de signos suscetível de ser considerado como um
texto.” (p. 32)

- “De um lado, a hermenêutica é concebida como a manifestação e a restauração de um


sentido que me é dirigido sob a forma de uma mensagem, de uma proclamação ou,
como por vezes se diz, de um enigma; do outro, ela é concebida como uma
desmistificação, como uma redução de ilusões. É desse lado da luta que se situa a
psicanálise, pelo menos numa primeira leitura.” (pp. 32-33)

- “É necessário que nos situemos, desde o início, diante dessa dupla possibilidade: essa
tensão, essa tração extrema, é a expressão mais verdadeira de nossa ‘modernidade’; a
situação que hoje em dia se confere à linguagem comporta essa dupla possibilidade,
essa dupla solicitação, essa dupla urgência: de um lado, purificar o discurso de suas
excrescências, liquidar os ídolos, ir da embriaguez à sobriedade, elaborar um balanço de
nossa pobreza; do outro, fazer uso do movimento mais ‘niilista’, mais destruidor, mais
iconoclasta, para deixar falar aquilo que uma vez, aquilo que cada vez foi dito quando o
sentido reapareceu, quando o sentido era pleno. A hermenêutica me parece movida por
essa dupla motivação: vontade de suspeita e vontade de ouvir – desejo de rigor, desejo
de obediência. Somos hoje esses homens que não terminaram de matar os ídolos e que
mal começam a entender os símbolos. Talvez essa situação, em sua aparente desolação,
seja instrutiva; talvez o iconoclasmo extremo pertença à restauração do sentido.” (p. 33)

- “Tornar manifesta a crise da linguagem que hoje em dia faz com que hesitemos entre
desmistificação e a restauração do sentido, eis a razão profunda que motiva a posição
inicial de nosso problema.” (p. 33)

2. A interpretação como recolhimento de sentido

- “Antes de tudo, o que pretendemos levar a efeito é a hermenêutica como restauração


do sentido. Por contraste, compreenderemos melhor o desafio da psicanálise da cultura e
da escola da suspeita dizendo, antes, aquilo que aí é fundamentalmente contestado.” (p.
33)

- “O contrário da suspeita, dizendo de modo brutal, é a fé. Que fé? [...]. Trata-se de uma
fé racional, pois ela interpreta; mas permanece uma fé, porque procura, pela
interpretação, uma segunda ingenuidade. Para ela, a fenomenologia é o instrumento da
escuta, do recolhimento, da restauração do sentido. Crer para compreender,
compreender para crer, eis a máxima. E sua máxima é o ‘círculo hermenêutico’ do crer
e do compreender.” (pp. 33-34)

3. A interpretação como exercício da suspeita

- “Terminamos de situar Freud, não somente colocando-o diante de um confronto, mas


de uma companhia. À interpretação como restauração do sentido, oporemos
globalmente a interpretação segundo o que chamarei coletivamente de a escola da
suspeita.” (p. 36)
- “Uma teoria da interpretação teria, assim, que dar conta não somente da oposição entre
duas interpretações da interpretação, uma como recolhimento do sentido, a outra como
redução das ilusões e das mentiras da consciência, mas também da fragmentação e do
esfacelamento de cada uma dessas duas grandes ‘escolas’ da interpretação em ‘teorias’
diferentes e mesmo estranhas uma à outra. Sem dúvida, isso é mais verdadeiro para a
escola da suspeita do que para a escola da reminiscência. Três mestres, aparentemente
exclusivos um do outro, a dominam: Marx, Nietzsche e Freud. [...] Torna-se
relativamente fácil constatar que esses três empreendimentos têm em comum a
contestação do primado do ‘objeto’ em nossa representação do sagrado e da ‘realização’
da visada por uma espécie de analogia entis que nos enxertaria no ser pela virtude de
uma intenção assimiladora. Também é fácil reconhecer que se trata de um exercício, a
cada vez, diferente da suspeita; da verdade como mentira, tal seria a fórmula negativa
sob a qual poderíamos situar esses três exercícios da suspeita.” (p. 36-37)

- “Retomam [...] cada um num registro diferente, o problema da dúvida cartesiana, para
transportá-la ao interior mesmo da fortaleza cartesiana. O filósofo formado na escola de
Descartes sabe que as coisas são duvidosas, que não são tais como aparecem. Mas não
duvida de que a consciência não seja tal como ela aprece a si mesma: nela, sentido e
consciência do sentido coincidem. Depois, de Marx, Nietzsche e Freud, duvidamos
disso. Após a dúvida sobre a coisa, ingressamos na dúvida sobre a consciência.” (p. 37)

- “Ora, todos três limpam o horizonte para uma palavra mais autêntica, para um novo
reino da verdade, não somente mediante uma crítica ‘destruidora’, mas pela invenção de
uma arte de interpretar. Descartes vence a dúvida sobre a coisa através da evidência da
consciência. Eles vencem a dúvida sobre a consciência através de uma exegese do
sentido. A partir deles, a compreensão se torna uma hermenêutica: doravante, procurar o
sentido, não significa mais soletrar a consciência do sentido, mas decifrar suas
expressões. Portanto, o que se deveria confrontar, não é somente uma tríplice suspeita,
mas uma tríplice astúcia. Se a consciência não é tal como acredita ser, deve ser
instaurada uma nova relação entre o patente e o latente. [...]. O essencial é que todos três
criam, com os meios disponíveis, isto é, com e contra os preconceitos da época, uma
ciência mediata do sentido, irredutível à consciência imediata do sentido.” (pp. 37-38)

Capítulo III
Método hermenêutico e filosofia reflexiva

-“Gostaríamos, neste capítulo, de ir mais longe e discernir nas psicanálise, na própria


guerra hermenêutica e na problemática de toda a linguagem, uma crise da reflexão, isto
é, no sentido forte e filosófico do termo, uma aventura do Cogito e da filosofia reflexiva
que dele procede.” (p. 41)

1. O recurso do símbolo à reflexão

- Seria possível, perguntava-me, articular uma com a outra, de modo coerente, a


interpretação dos símbolos e a reflexão filosófica? A essa questão, respondia apenas por
um desejo contraditório: jurava, de um lado, ouvir a rica palavra dos símbolos e dos
mitos que precede minha reflexão, a instrui e a alimenta; do outro, continuar, através da
exegese filosófica dos símbolos e dos mitos, a tradição de racionalidade da filosofia, de
nossa filosofia ocidental. O símbolo [...] dá, é o dom da linguagem. Mas esse dom cria
para mim um dever de pensar, de inaugurar o discurso filosófico a partir daquilo mesmo
que sempre o precede e o funda. [...] [acaba a p. 41] a filosofia nada começa, pois o
pleno da linguagem a precede, e porque ela começa a partir de si, uma vez que é ela que
instaura a questão do sentido e do fundamento do sentido.” (pp. 41-42)

- “Nesse empreendimento, sentia-me encorajado por aquilo que aparecia como a riqueza
pré-filosófica do símbolo. O símbolo, pensava eu, faz apelo não somente à
interpretação, como dissemos no primeiro capítulo, mas verdadeiramente à reflexão
filosófica.” (p. 42)

- “Portanto, a interpretação não consiste simplesmente na descoberta da intenção


segunda, que é ao mesmo tempo dada e mascarada no sentido literal, mas tenta
tematizar essa universidade, essa temporalidade, essa exploração ontológica implicadas
no mito. Assim, é o próprio símbolo que é aurorada reflexão. Por conseguinte, o
problema hermenêutico não se impõe de fora a reflexão, mas é proposto de dentro pelo
próprio movimento do sentido, mediante a via implícita do símbolo, tomado em seu
nível semântico e mítico.” (p.42)

- “[...] tentaremos aqui abarcar o problema em toda a sua generalidade e colocar a


seguinte questão: como uma filosofia da reflexão pode alimentar-se da fonte simbólica e
tornar-se hermenêutica?” (p. 43)
- “[...] será que a reflexão faz apelo aos mitos e à interpretação dos símbolos? [...]
[acaba p.43]. Precisamos certificar-nos [...] de que o ato filosófico, em sua natureza
mais íntima, não somente não exclui, como também requer algo como uma
interpretação.” (pp. 43-44)

- “[...] a filosofia como ciência rigorosa parece requerer significações unívocas. Ora, o
símbolo, devido à sua textura analógica, é opaco, não transparente. O duplo sentido que
lhe dá raízes concretas, sobrecarrega-o de materialidade. Ora, esse duplo sentido não é
acidental, mas constitutivo, na medida em que o sentido analógico, o sentido
existencial, só é dado no e pelo sentido literal. Em termos epistemológicos, essa
opacidade só pode significar equivocidade. Mas será que a filosofia pode cultivar
sistematicamente o equívoco? (p.44)

- “[...] o que se pergunta não é somente por que uma interpretação?, mas por que essas
interpretações opostas? A tarefa não consiste apenas em justificar o recurso a certo tipo
de interpretação, mas em justificar a dependência da reflexão relativamente a
hermenêuticas já constituídas que se excluem mutuamente.” (p. 44)

- “Justificar o recurso ao símbolo, em filosofia, consiste, finalmente, em justificar a


contingência cultural, a linguagem equívoca e a guerra das hermenêuticas no próprio
interior da reflexão.” (p. 45)

- “O problema será resolvido se conseguirmos mostrar que a reflexão, em seu próprio


princípio, exige algo como a interpretação. É a partir dessa exigência que pode ser
justificado, também em seu princípio, o desvio pela contingência das culturas, por uma
linguagem incuravelmente equívoca e pelo conflito das interpretações.” (p. 45)

2. O recurso da reflexão ao símbolo

- “Quando dizemos: a filosofia é reflexão, certamente queremos dizer reflexão sobre si


mesmo. Mas o que significa o ‘Si’? Sabemos melhor o que ele significa do que
podemos compreender os termos símbolo e interpretação? Sim, sabemos, mas com um
saber abstrato, vazio e vão. [...]. Talvez seja a simbólica que salvará a reflexão de sua
vaidade, ao mesmo tempo que a reflexão fornecerá a estrutura de acolhida para todo
conflito hermenêutico. Por conseguinte, o que significa Reflexão? O que significa o ‘Si’
da reflexão sobre si mesmo?” (p. 45)
- “Reconheço, aqui, que a oposição do ‘Si’ é a primeira verdade para o filósofo situado
no cerne dessa vasta tradição da filosofia moderna que parte de Descartes, desenvolve-
se com Kant, Fichte e a corrente reflexiva da filosofia europeia. Para tradição, que
consideramos como um todo antes de opor-lhe os principais representantes, a posição
do ‘si’ é uma verdade que se coloca por si mesma; não pode ser nem verificada, nem
deduzida; é ao mesmo tempo a posição de um ser e de um ato; a posição de uma
existência e de uma operação de pensamento: Existo, penso; existir, para mim, é pensar;
existo enquanto penso. Uma vez que essa verdade não pode ser verificada como um
fato, nem deduzida como uma conclusão, deve afirmar-se na reflexão: sua autoposição é
reflexão. [...]. Eis nosso ponto de partida filosófico.” (p. 45)

- “[...] reflexão não é intuição ou, em termos positivos, a reflexão é o esforço para
reaprender o Ego do Ego Cogito no espelho [acaba aqui p. 45] de seus objetos, de suas
obras e, finalmente, de seus atos. Ora, por que a posição do Ego deve ser reaprendida
através de seus atos? Justamente porque não é dada nem numa evidência psicológica,
nem numa intuição intelectual, nem numa visão mística. Uma filosofia reflexiva é o
contrário de uma filosofia do imediato. [...]. [Existo, penso]. Precisa ser ‘mediatizada’
pelas representações, pelas ações, pelas obras, pelas instituições e pelos monumentos
que a objetivam. É nesses objetos, no sentido mais amplo do termo, que o Ego deve
perder-se e reencontrar-se. Podemos dizer, num sentido um tanto paradoxal, que uma
filosofia da reflexão não é uma filosofia da consciência se, por consciência, entendemos
a consciência imediata de si mesmo. A consciência, como diremos posteriormente, é
uma tarefa.” (pp. 45- 46)

- “[...] a reflexão é menos uma justificação da ciência e do dever, que uma reapropriação
de nosso para existir. A epistemologia é apenas uma parte dessa tarefa ampla: temos de
recuperar o ato de existir, a posição do ‘si’ em toda a espessura de suas obras. Agora,
por que é necessário caracterizar essa retomada como apropriação e mesmo como
reapropriação? Devo recuperar algo que antes se perdeu. Torno ‘próprio’ aquilo que
deixou de ser meu, meu próprio. Faço ‘meu’ aquilo de que me separei, pelo espaço e
pelo tempo, pela distração ou pelo ‘ divertimento’, ou em virtude de algum
esquecimento culpável. A apropriação significa que a situação inicial de onde a reflexão
procedeu é o ‘esquecimento’. [...]. É por isso que a reflexão é uma tarefa [...], a tarefa de
igualar minha experiência concreta à afirmação: existo.” (p. 47)
- “A filosofia é ética na medida em que conduz da alienação à liberdade e à beatitude.
[...]. A filosofia é ética, mas a ética não é puramente moral. [...]. Seu objetivo é
apreender o Ego em seu esforço para existir, em seu desejo para ser. É nesse ponto que
uma filosofia reflexiva reencontra e talvez salva a ideia platônica de que a própria fonte
de conhecimento é Eros, desejo, amor, e a ideia spinozista de que ela é conatus, esforço.
[...]. Esforço e desejo são duas faces da afirmação do ‘Si’ na primeira verdade: existo.”
(p. 47)

- “[...] a reflexão é a apropriação de nosso esforço para existir e de nosso desejo de ser,
através das obras que dão testemunho desse esforço e desse desejo.” (p. 48)

-“[...] a posição desse esforço ou desse desejo não somente é privada de toda intuição,
mas só é atestada por obras cuja significação permanece duvidosa e irrevogável. É aqui
que a reflexão faz apelo a uma interpretação e pretende transformar-se em
hermenêutica. [...]. A reflexão deve tornar-se interpretação, pois não posso apreender
esse ato de existir alhures senão em signos esparsos no mundo.” (p. 48)

- “[...] as aporias da interpretação são as da própria reflexão.” (p. 49)

- “[...] o filósofo não fala de nenhum lugar: toda questão que pode colocar provém do
fundo de sua memória grega. Assim, o campo de sua investigação é inelutavelmente
orientado. Sua memória comporta a oposição de ‘próximo’ e do ‘distante.’”(p. 49)

- “A justificação da hermenêutica só pode ser radical se procurarmos na própria


natureza do pensamento reflexivo o princípio de uma lógica do duplo sentido, complexa
e não arbitrária, rigorosa em suas articulações mas irredutível à linearidade da lógica
simbólica. Essa lógica deixa então de ser uma lógica formal para ser uma lógica
transcendental. Com efeito, ela se estabelece ao nível das condições de possibilidade.”
(p. 49)

- “Que vantagens pode o hermeneuta alegar face à lógica formal? [...] É a espessura do
sentido múltiplo que solicita sua inteligência. E a interpretação consiste menos em
suprimir a ambiguidade que em compreendê-la e em explicar sua riqueza. Diremos
ainda que o simbolismo lógico é vazio e que o simbolismo, segundo a hermenêutica, é
pleno; ele elucida o duplo sentido da realidade mundana ou psíquica [...].” (p. 50)

- “Refletir e interpretar esses símbolos são um único e mesmo ato.” (p. 53)
- “A inteligência desenvolvida pela compreensão dos símbolos não é o substituto
enfermo da definição, porque a reflexão não é um pensamento que define e pensa por
‘classes’. Esbarramos aqui com o problema aristotélico dos ‘múltiplos sentidos do ser’.
Aristóteles foi o primeiro a discernir perfeitamente que o discurso filosófico não se
enquadra na alternativa lógica do unívoco e do equívoco, porque o ser é um ‘gênero’.
No entanto, o ser se diz. Mas ele ‘se diz de múltiplas maneiras’.” (p. 53)

4. A reflexão e o conflito hermenêutico

“Desde já sabemos que não é uma interpretação, mas são várias interpretações que
devem ser integradas na reflexão. Portanto, é o próprio conflito hermenêutico que
alimenta o processo da reflexão e comanda a passagem da reflexão abstrata à reflexão
concreta.” (p. 54)

- “Desde já, apresenta-se-nos um traço dessa disciplina [hermenêutica]: os dois


empreendimentos que opusemos no início – a redução das ilusões e a restauração do
sentido mais pleno – têm em comum o caráter de descentrar a origem do sentido em
direção a outro núcleo que não é mais o sujeito imediato da reflexão – ‘a consciência’ –
o eu desperto, atento à sua presença, preocupado consigo e apegado a si mesmo. Assim,
a hermenêutica, abordada por seus polos mais opostos, representantes de tudo uma
contestação e uma prova para a reflexão cujo primeiro movimento é o de identificar-se
com a consciência imediata. Deixar-nos dilacerar pela contradição das hermenêuticas
extremas é entregar-nos à admiração que põe em movimento a reflexão. Sem dúvida,
precisamos distanciar-nos de nós mesmos, desalojar-nos do centro para saber, enfim, o
que significa: Penso, existo.” (p. 54)

Livro II

Analítica: leitura de Freud

Primeira parte

Energética e hermenêutica

O problema epistemológico do freudismo


- “[...] não resta dúvida de que a psicanálise seja uma hermenêutica: não é por acaso,
mas por destino, que ela visa a dar uma interpretação da cultura em seu conjunto. Ora,
as obras de arte, aos ideais e as ilusões são, a títulos diversos, modalidades da
representação. E se vamos da periferia em direção ao centro, da teoria da cultura à teoria
do sonho e da neurose, que constitui o núcleo forte da psicanálise, é ainda e sempre à
interpretação, a ato de interpretar e [acaba p. 67] ao trabalho de interpretação, que
somos remetidos. [...]. Ora, esse problema da interpretação recobre exatamente o do
sentido ou da representação. Assim, de ponta a ponta, a psicanálise é interpretação.” (p.
67-68)

Capítulo III

Livro III

Dialética: Uma interpretação filosófica de Freud

- “Pedimos à filosofia duas coisas ao mesmo tempo: arbitrar a guerra das interpretações
e integrar todo o processo da interpretação na reflexão filosófica.” (p. 21)

Capítulo I

Epistemologia: entre psicologia e fenomenologia

3. Enfoque fenomenológico do campo psicanalítico

- “O que de pronto faz a fenomenologia voltar-se para a psicanálise, antes de qualquer


elaboração de um tem determinado, é o ato filosófico que a inaugura e que Husserl
coloca sob o título da ‘redução’.” (p. 305)

- “A redução, com efeito, tem qualquer origem e lugar do sentido; a colocação entre
parênteses, a suspensão de que se trata na fenomenologia, não concerne apenas ao
‘natural’, ao ‘óbvio’ (Sebsrvertandilichkeit) da aparência das coisas, as quais de repente
deixam de aparecer como um bloco de presença, de estar aí, de estar à mão, com um
sentido estabelecido, em si, que se teria apenas que achar. Na medida em que a
consciência acredita saber o estar-aí do mundo, ela acredita também saber-se a si
mesma. [...]. Essa consciência imediata é desposta com a atitude natural. É, pois, por
uma humilhação, uma ofensa a esse saber da consciência imediata, que a fenomenologia
começa. Mesmo porque o saber laborioso de si mesma que ela articula atesta que a
primeira verdade é também a última conhecida. Se o cogito é o ponto de partida, nunca
se acabou de atingir o ponto de partida; não se parte dele, chega-se a ele; toda a
fenomenologia é uma marcha para o ponto de partida. Dissociando assim o começo
verdadeiro do começo real ou atitude natural, a fenomenologia torna manifesto o
desconhecimento de si inerente à consciência imediata.” (p. 305)

- “É esse implícito que permite aplicar ao próprio cogito a crítica de evidência aplicada
antes à coisa: ele também é uma certeza presumida; ele também pode iludir-se sobre si
mesmo, e ninguém sabe até que ponto. A certeza decidida do ‘eu [acaba p. 305] sou’
envolve a questão não decidida da extensão possível da ilusão sobre si mesmo. É nessa
falha, nessa não-coincidência entre a certeza do ‘eu sou’ e a possibilidade da ilusão
sobre si, que uma certa problemática do inconsciente vai poder inserir-se. Mas, ao
mesmo tempo, conhecemos seu estilo próprio. A primeira inconsciência que a
fenomenologia revela é a do implícito, do co-visado: o modelo desse implícito – ou
melhor do ‘co-implicado’ – deve ser procurado numa fenomenologia da percepção.”
(pp. 305 – 306)

- “[...] como uma diversidade de vivências são ‘compossíveis’ em um mesmo Ego? São
as ‘leis essenciais da compossibilidade’ que regulam todos os problemas de Genesis na
espera do Ego. A forma da compossibilidade, para um Ego, é na realidade o tempo, não
o tempo do mundo, mas a temporalidade pela qual uma série de cogitationes forma uma
sequência, um encadeamento. A gênese em fenomenologia designa, pois, uma maneira
de operar a ligação entre as diversas dimensões do fluxo temporal, passado, presente e
futuro: ‘O Ego se constitui para si mesmo, de alguma maneira, na unidade de uma
história.’” (p. 307)

- “A redução é o deslocamento metódico que define a atitude da fenomenologia; a


intencionalidade é seu tema.” (p. 309)

- “A língua tem uma maneira própria de ser dialética: cada signo visa alguma coisa da
realidade apenas por sua posição no conjunto dos signos. Nenhum signo é significante
por uma relação termo a termo com uma coisa correspondente, cada signo é definido
por sua diferença com todos os outros. Mais precisamente, é combinando as diferenças
fonemáticas e as diferenças lexicais, portanto, fazendo funcionar a dupla articulação dos
fonemas dos monemas, que dizemos o mundo.” (p. 310)

- “Por sua vez, a utilização da linguagem pela palavra dos sujeitos falantes faz aparecer
a ambiguidade de todos os signos. Na linguagem ordinária, cada signo contém em si
potencial indefinido de sentidos [...]. Falar é instituir um texto que funciona como
contexto para cada palavra; o potencial das palavras mais carregadas de sentido é assim
limitado e determinado pelo contexto, sem que o restante da carga de sentidos seja com
isso abolida; apenas uma parte do sentido é assim tornada presente, pela ocultação do
resto do sentido possível.” (p. 310)

- “A dialética da presença e de ausência, que a linguagem põe em ação, encontra-se


mais tarde em todas as formas do implícito e do co-visado, em toda experiência humana
e em todos os níveis.” (p. 311)

- “[...] todas as nossas relações com o mundo têm uma constituição intersubjetiva.” (p.
311)

- “A redução é como uma análise, porque não visa substituir o sujeito da atitude natural
por um outro sujeito; nenhuma fuga para um outro lugar a anima; a reflexão é o sentido
do irrefletido, enquanto sentido confessado, proferido, ou melhor, o sujeito que exerce a
redução não é um outro sujeito que não o sujeito natural, mas o mesmo; considerado
como desconhecido ele se torna reconhecido.” (p. 313)

4. A psicanálise não é fenomenologia

- “A fenomenologia não alcança a psicanálise, mas somente lhe dá, por diferença
esvanecente, uma espécie de compreensão nos limites de si mesma.” (p. 314)

- “A fenomenologia é uma disciplina reflexiva; o deslocamento metodológico de que


faz uso é o deslocamento mesmo da reflexão com relação à consciência imediata.” (314)

- “[...] é um outro texto que a psicanálise decifra, a partir do texto da consciência. A


fenomenologia faz compreender que é um outro texto, mas não que esse texto seja
outro.” (p. 315)
- “Numa língua sem metáforas, haveria certamente relações de significante, a
significado [...]; mas não haveria nem equívoco na linguagem, nem inconsciente a
decifrar.” (320)

- “Por que a análise é um trabalho? Em primeiro lugar e essencialmente, porque ela é


uma luta contra as resistências do enfermo. Desse ponto de vista, a arte de interpretar
está subordinada à técnica analítica, desde o momento que se definiu esta pela luta
contra as resistências; com efeito, se há alguma coisa a interpretar, é porque há
deformação das ideias tornadas inconscientes; mas se há deformação, é porque uma
resistência se opôs à sua reprodução consciente. As resistências que dão origem à
neurose são também as que se opõem à tomada de consciência e a toda manobra
analítica. Consequentemente, as regras da arte de interpretar são uma parte da arte de
manipular as resistências.” (p. 323)

- “A correlação entre hermenêutica e energética, que nos ocupou continuamente neste


capítulo, reaparece sim, de maneira decisiva, no nível da práxis, como uma correlação
entre a arte de interpretar e o trabalho com as resistências: ‘traduzir’ o inconsciente em
consciente e ‘suprimir a coação’ nascida das resistências é uma só coisa. Interpretar e
trabalhar coincidem.” (p. 323)

Capítulo II

Reflexão: uma arqueologia do sujeito

1. Freud e a questão do sujeito

- “É um só é mesmo projeto compreender o freudismo como um discurso sobre o sujeito


e descobrir que o sujeito não é jamais aquele que se crê. A reinterpretação reflexiva do
freudismo não poderia deixar intacta a ideia que fazemos da reflexão: a inteligência do
freudismo mudou, mas também a inteligência de nós mesmos.” (p. 344)

- “O que, inicial e fundamentalmente, deve ser repetido é sua crítica da consciência


imediata. Nesse ponto, considero a metapsicologia freudiana uma extraordinária
disciplina da reflexão: como a Fenomenologia do Espírito de Hegel, nas em um sentido
inverso, ela opera um descentramento do foco das significações, um deslocamento, a
consciência imediata vê-se desapossada em proveito de uma outra instância do sentido,
transcendência da palavra ou posição do desejo. Esse desapossamento ao qual a
sistemática freudiana obriga a seu modo, deve ser operado como uma espécie de ascese
da própria reflexão, cujo sentido e necessidade só aparecem depois, como a recompensa
de um risco não justificado. Enquanto não dermos efetivamente esse passo, não
compreendemos realmente o que dizemos quando declaramos que a filosofia da
reflexão não é uma psicologia da consciência. Para mostrá-lo e manifestá-lo, é preciso
aprofundar a distância entre a posição da reflexão, da qual dissemos que é apodítica, e a
pretensão da consciência, da qual admitimos, mas em princípio somente, que não é
adequada, que pode enganar-se, iludir-se sobre si mesma. É necessário realmente
proceder à perda da consciência e de sua pretensão a reger o sentido para salvar a
reflexão e sua inexpugnável segurança.” (p. 345)

- “Se o ponto de vista da consciência é – inicialmente e quase sempre – ponto de vista


falso, devo usar da sistemática freudiana, de sua tópica e de sua econômica, como de
uma ‘disciplina’ destinada a me desorientar inteiramente, a me desapossar desse Cogito
ilusório, que ocupa inicialmente o lugar do ato fundador do Penso, existo. [...] [acaba p.
345]. Ao termo desse processo, destinado a desfazer as pretensas evidências da
consciência, eu não saberia mais o que significam objeto, sujeito, nem mesmo
pensamento; o fim confessado dessa disciplina é a vacilação do falso saber que obstrui o
acesso do Ego Cogito Cogitatum. Ora, esse desapossamento da consciência imediata é
relegado pela construção de um modelo ou de uma série de modelos nos quais a própria
consciência figura como um dos lugares entre outros. [...] a antifenomenologia da tópica
e da energética freudianas pode ser erigida em momento de reflexão, na medida em que
serve para dissociar de maneira definitiva a apoditicidade da reflexão e a evidência da
consciência imediata.” (p. 345-346)

- “Está aqui uma suprema prova para uma filosofia da reflexão. É o próprio sujeito da
apercepção imediata que é colocado em questão.” (p. 347)

- “O homem, que já sabia não ser ele nem o senhor do cosmo, nem o senhor dos seres
vivos, descobre que não é nem mesmo o senhor de sua psique.” (p. 348)

2. Realidade do ID, idealidade do sentido

- “[...] [a] realidade não existe senão como realidade ‘diagnosticada’. A realidade do
inconsciente não é uma realidade absoluta, mas relativa às operações que lhe dão
sentido.” (p. 355)
- “É essa realidade que se deve compreender bem: ela não se reduz a uma simples
projeção do intérprete, num sentido vulgarmente psicológico; significa que a realidade
da tópica se constitui ‘na’ hermenêutica, mas num sentido puramente epistemológico.”
(p. 355)

3. O conceito de arqueologia

- “[...] o desapossamento da consciência é sua vida, porque o tornar-se consciente é sua


tarefa.” (p. 357)

- “Mas é um Cogito injuriado que procede dessa aventura: um Cogito que se coloca mas
não se possui; um Cogito que não compreende sua verdade originária senão na e pela
confissão da inadequação, da ilusão, da mentira da consciência atual.” (p. 357)

- ‘Os processos do sistema Inconsciente são fora do tempo, o que equivale a dizer que
eles não são ordenados temporalmente, que não são alterados pelo transcorrer do tempo,
em suma, que não tem qualquer relação com o tempo. A relação temporal, uma vez
mais, está ligada ao trabalho do sistema ‘consciente’. “Essa declaração é inseparável da
seguinte:” ‘Os processos inconscientes tampouco levam em conta a realidade; eles são
submetidos aos princípios de prazer.” (p. 360)

- “A pulsão de morte não é, com efeito, uma figura arcaica entre outras, mas o indício
arcaico de todas as pulsões e do próprio princípio de prazer. Devemos aqui lembrar que
a pulsão de morte foi introduzida inicialmente para explicar uma peripécia da
terapêutica, a resistência à cura, a impulsão para repetir a situação traumática original
em vez de elevá-la ao nível da lembrança. A função da repetição parece assim mais
primitiva que a função de destruição na pulsão de morte.” (p. 365)

- “É ainda a repetição que se exprime em todos os retornos, sublimes ou não, ao


narcisismo. É da repetição que se trata de Totem e Tabu a Móises e o Monoteísmo:o
homem é puxado para trás pela instância que não cessa de puxá-lo para fora do desejo
infantil. O processo de temporalização, no qual consiste em última análise o sistema
consciente, se desdobra em sentido inverso num intemporal de natureza pulsional, ou
antes, se se aceita Além do Princípio do Prazer, de encontro a uma impulsão a que se
pode chamar destemporalizante.” (p. 366)

4. Arqueologia e filosofia reflexiva


- “A questão filosófica está agora colocada: poderemos pensar essa arqueologia no
quadro de uma filosofia da reflexão?” (p. 366)

- “Um método hermenêutico, unido à reflexão, vai muito mais longe do que um método
eidético como o que seu praticava então: a dependência do Cogito com relação à
posição do desejo não é diretamente apreendida a partir da experiência imediata, mas
interpretada por uma outra consciência, a [acaba p. 370] partir dos signos aparentemente
insensatos oferecidos à interlocução. Não é de forma alguma uma dependência
experimentada, é uma dependência decifrada, interpretada através dos sonhos, das
fantasias, dos mitos, que constituem de alguma maneira o discurso indireto dessa treva
muda. O enraizamento da reflexão na vida não é compreendido na consciência reflexiva
senão na qualidade de verdade hermenêutica.” (pp. 370-371)

Capítulo III

Dialética: Arqueologia e Teologia

- “Somente tem uma arché um sujeito que tem um telos. Se eu compreendesse essa
articulação entre arqueologia e teologia, compreenderia muitas coisas. E em primeiro
lugar, compreenderia que minha própria ideia da reflexão é abstrata, enquanto essa
dialética nova não lhe tiver sido integrada. O sujeito, dizíamos acima, não é jamais
aquele que se acredita ser; mas não basta, para que atinja seu ser verdadeiro, que ele
descubra a inadequação da consciência que toma de si mesmo, nem mesmo o poder do
desejo que o coloca na existência. É preciso que descubra que o ‘tornar-se consciente’,
através do qual ele se apropria do sentido de sua existência como desejo e como
esforço, não lhe pertence, mas pertence ao sentido que se realiza nele. Cumpre-lhe
mediatizar a consciência de si pelo espírito, isto é, pelas figuras que dão um telos a esse
tornar-se consciente’. A proposição de que não há arqueologia do sujeito a não ser no
contraste com uma teleologia remete a essa outra: não há teleologia a não ser através
das figuras do espírito, isto é, através de um novo descentramento, um novo
desapossamento a que chamo de espírito, como tinha chamado do inconsciente o lugar
desse outro deslocamento da origem do sentido atrás de mim.” (p. 373)

- “Se compreendo essa conexão, no âmago de uma filosofia do sujeito, entre sua
arqueologia e sua teleologia, isto é, entre dois desapossamentos da consciência,
compreendo, além disso, que a guerra das hermenêuticas, que era o problema mais
importante de nossa problemática, está em vias de encontrar uma saída. Vista de fora, a
psicanálise nos aparece como uma hermenêutica redutora, desmistificante. Nessa
qualidade, ela se opunha a uma hermenêutica que havíamos chamado de restauradora, a
uma meditação do sagrado. [acaba p. 373] [...]. A dialética da arqueologia e da
teleologia é o solo filosófico verdadeiro com base no qual pode ser compreendida a
complementaridade das hermenêuticas irredutíveis e opostas, aplicada às formações
mítico-poéticas da cultura. Essa resolução do problema hermenêutico inicial é, pois, o
horizonte de todo o nosso projeto.” (p. 373-374)

1. Um modelo teológico da consciência: fenomenologia hegeliana

2. O insuperável da vida e do desejo

- “E, em primeiro lugar, não devemos perder de vista que o reconhecimento – fenômeno
espiritual por excelência – é luta. Luta pelo reconhecimento, sem dúvida, e não luta pela
vida, mas reconhecimento pela luta. Ora, essa luta significa que a grandeza terrível do
desejo é transpor [acaba p. 381] tada para a esfera do espírito sob a figura da violência.
Sem dúvida, a paixão de se fazer reconhecer supera a luta animal pela conservação ou
pela dominação, e o conceito de reconhecimento é um conceito não econômico por
excelência: a luta pelo reconhecimento não é luta pela vida, é uma luta para arrancar ao
outro a confissão, a atestação, a prova de que eu sou uma consciência de si autônoma.
Mas essa luta pelo reconhecimento é uma luta na vida, contra a vida, pela vida. [...]. São
sempre operações sobre a vida que balizam a dialética: arriscar a vida, trocá-la – gozar,
trabalhar. É sempre o momento da natureza, a alteridade da vida, que, no sentido
próprio do termo, alimenta e nutre as oposições de cada consciência a uma outra distinta
dela.” (p. 381-382)

- “A ilusão da liberdade pensante do estoicismo consiste precisamente em colocar a


identidade de todos os seres racionais à margem de todas as diferenças, em elevar a
identidade de Marco Aurélio, imperador, e de Epiteto, escravo, acima da luta viva e
histórica. Essa libertação simplesmente pensada reconduz à alteridade absoluta. Os
desejos em luta não tem mais si e o si não tem mais corpo. É nesse sentido que a vida é
insuperável. E o próprio termo si – Selbst – anuncia que a identidade a si mesmo
continua a se basear nessa diferença de si, nessa alteridade que não cessa de renascer e
que reside na vida. É a vida que se torna o outro, sobre o qual o si não cessa de se
conquistar.” (p. 382)

5. A teleologia implícita do freudismo:

c) A questão da sublimação

- “Aquilo a que chamamos ‘nossos ideias’ muito frequentemente nada mais são do que
projeções desse mesmo amor-próprio ao qual atribuímos, de outro ponto de vista, a
resistência à verdade.” (p. 395)

Capítulo IV

Hermenêutica: As abordagens do símbolo

- “[...] só agora [...] que podemos entrever uma solução, não mais eclética, mas
dialética, do conflito hermenêutico. O princípio da solução, nós o conhecemos agora:
ele está na dialética da arqueologia e da teleologia. [...]. Pretendemos mostrar, por
minha conta e risco, que aquilo que a psicanálise chama de ‘sobredeterminação’
encontra seu pleno sentido numa dialética da interpretação, cujos polos opostos são
constituídos pela arqueologia e pela teleologia.” (p. 399)

- “Voltemos para considerar o caminho percorrido.” (p. 399)

- “Inicialmente, foi preciso passar pelo estádio do desapossamento: desapossamento da


consciência enquanto lugar e origem do sentido.” (p. 399)

- “Depois, foi preciso atravessar uma antitética da reflexão. A interpretação


arqueológica mostrou-se então como o reverso de uma gênese progressiva do sentido
através de figuras sucessivas, cujo sentido respectivo depende, em cada caso, do sentido
das figuras ulteriores.” (p. 399)

- “O símbolo, nesse sentido, é o momento concreto dessa dialética, mas não é


absolutamente seu momento imediato. O concreto é sempre o cúmulo da mediação ou a
mediação cumulada. O retorno à simples escuta dos símbolos é a ‘recompensa depois de
um pensamento’. O concreto da linguagem de que nos avizinhamos mediante uma
penosa aproximação é a segunda ingenuidade da qual sempre temos apenas um
conhecimento fronteiriço, ou antes, liminar.” (p. 400)
- “O perigo, para o filósofo (digo ‘para o filósofo’ e não ‘para o poeta’) é o de chegar
depressa demais, de perder a tensão, de diluir-se na riqueza simbólica, na abundância do
sentido. Não renego as descrições da problemática; continuo a dizer que os símbolos
solicitam a interpretação por sua estrutura significante, pelo movimento de remetimento
do sentido que lhes é imanente. Mas a explicação desse movimento do remetimento
exige tripla disciplina do desapossamento da antitética, da dialética. É preciso
problematizar o símbolo, a fim de pensar segundo o símbolo. Só então torna-se possível
inscrever a dialética na própria interpretação e retornar à palavra viva. É essa última
fase da reapropriação que constitui a passagem à reflexão concreta. Ao retornar à escuta
da linguagem, a reflexão passa para a plenitude da palavra simplesmente ouvida.” (p.
400)

- “A reflexão volta à palavra e continua a ser reflexão, isto é, inteligência do sentido; a


reflexão torna-se hermenêutica; é a única maneira pela qual pode tornar-se concreta e
permanecer reflexão.” (p. 400)

1. A sobredeterminação do sentido

- “A ambiguidade do símbolo não é, então, uma falta de univocidade, mas a


possibilidade de suportar e de engendrar interpretações adversas e coerentes cada uma
em si mesma.” (p. 400)

- “[...] a oposição entre regressão e progressão, com a qual e contra a qual batalhamos,
ao mesmo tempo para instruí-la e para superá-la, explicita a textura paradoxal que
poderíamos exprimir como a unidade do ocultar-mostrar. Os verdadeiros símbolos estão
na encruzilhada das duas funções que alternadamente opusemos e fundimos uma na
outra. Ao mesmo tempo que disfarçam, eles desvelam. [...]. Disfarçar, desvelar; ocultar,
mostrar. Essas duas funções já não são absolutamente exteriores uma à outra. Elas
exprimem as duas faces de uma única função simbólica. [...]. A reflexão pode
inicialmente apenas quebrar essa função. [...] [acaba p. 401]. É necessária, então, a
contrapartida de uma fenomenologia do espírito para salvar a outra dimensão e fazer
com que apareça no símbolo o esquema do tornarmos nós mesmos que abre aquilo que
ele revela.” (p. 401-402)

2. A ordem hierárquica do símbolo


- “[...] a constituição do si não se esgota numa econômica e numa política e tem
prosseguimento na região da cultura. Ora, aqui também, a ‘psicologia’ da personalidade
capta apenas a sombra, a saber, a intenção, presente em todo homem, de ser estimado,
aprovado, reconhecido como pessoa. Minha existência para mim mesmo é, com efeito,
tributária dessa constituição de si na opinião do outro. Meu ‘si’ – se posso assim me
exprimir – é recebido da opinião do outro que o consagra. Mas essa constituição dos
sujeitos, essa constituição mútua por ‘opinião’, é guiada por novas figuras das quais se
pode dizer, num sentido novo, que elas são ‘objetivas’. Esses objetos já não são coisas,
como ainda o são na esfera do ter. [...]. Não obstante, essas figuras do homem devem ser
buscadas nas obras e nos monumentos do direito, da arte e da literatura. É nessa
objetividade de um gênero – a objetividade dos objetos culturais propriamente ditos –
que prossegue a prospecção das possibilidades do homem. Mesmo quando Van Gogh
pinta uma cadeira, ele pinta o homem. Ele projeta uma figura do homem, a saber, esse
homem que ‘tem’ esse mundo representado. Os testemunhos culturais dão assim a
densidade da ‘coisa’ a essas ‘imagens’. Eles fazem com que existam entre os homens e
no meio dos homens, ao encarná-las em ‘obras’. É através dessas obras, pela mediação
desses momentos, que se constitui uma dignidade do homem e uma estima de si. É
nesse nível, enfim, que o homem pode alienar-se, degradar-se, ridicularizar-se,
aniquilar-se.” (p. 408)

- “Tal é, parece-me, a exegese que se pode fazer da ‘consciência’ segundo um método


que não é mais uma psicologia da consciência, mas [acaba p. 408] um método reflexivo
que tem seu ponto de partida no movimento objetivo das figuras do homem. [...] É por
reflexão que se pode dele derivar a subjetividade que se constitui ao mesmo tempo que
se engendra essa objetividade.” (p. 408-409)

- “Como se vê, essa abordagem indireta, mediata, da consciência nada tem a ver com
uma presença imediata a si da consciência, com uma certeza imediata de si a si mesma.”
(p. 409)

3. Retomada dialética do problema da sublimação e do objeto cultural

- “O exemplo de uma criação tão excepcional como a tragédia de Sófocles revela mais
do que uma antitética: ela mostra, na própria obra, a unidade profunda do disfarce e do
desvelamento, cimentada na própria estrutura do símbolo tornado objeto cultural.” (p.
415)

- “Torna-se possível então situar o onírico e o poético numa mesma escala simbólica:
produção do sonho e criação da obra de arte representam as duas extremidades dessa
escala, conforme predomine no símbolo o disfarce ou o desvelamento, a distorção ou a
revelação. Por meio dessa fórmula, tento explicar ao mesmo tempo a unidade funcional
que existe entre o sonho e a criação e a diferença de valor que separa um simples
produto de nosso sonho das obras duráveis, suscetíveis de se inscreverem no patrimônio
cultural da humanidade. Entre o sonho e a criação há uma continuidade funcional, no
sentido em que disfarce e desvelamento aí operam conjuntamente, mas numa proporção
inversa. [...]. Passando do sonho noturno ao devaneio, deste ao jogo e ao humor, em
seguida ao folclore e às lendas, enfim às obras de arte, ele atesta por meio dessa espécie
de analogia gradativa, que toda criação depende da mesma função econômica, opera a
mesma substituição de satisfação que a formações de compromisso do sonho e da
neurose.” (p. 415)

- “Se o sonho permaneceu uma expressão privada, perdida na solidão do sono, é porque
lhe falta a mediação do trabalho que incorpora a fantasia a um material duro e o
comunica a um público. Mas essa mediação do trabalho artesanal e essa comunicação só
advém a sonhos que, ao mesmo tempo, veiculam valores capazes de fazer avançar a
consciência em direção a uma nova compreensão de si mesma. Se o Moisés de
Michelangelo, o Édipo Rei de Sófocles, o Hamlet de Shakespeare são criações, é na
medida em que não são simples projeções dos conflitos do artista, mas também o
esboço de sua solução. É porque nele o disfarce predomina sobre o desvelamento, que o
sonho olha antes para trás, para o passado, para a infância. É porque nela o
desvelamento predomina, que a obra de arte é antes um símbolo prospectivo da síntese
pessoal e do porvir do homem, e não somente um sintoma regressivo de seus conflitos
não resolvidos. É pela mesma razão que nosso prazer de amador não é a simples
revivescência, mesmo ornada por um prêmio de sedução, de nossos próprios conflitos,
mas o prazer de participar no trabalho da verdade que se efetua através do herói.” (p.
416)

- “O próprio sonho não será um compromisso variável entre essas duas funções
[regressão e progressão], conforme o aspecto neurótico o incline para a repetição e o
arcaísmo, ou conforme ele próprio esteja no caminho de uma ação terapêutica exercida
de si sobre si? Inversamente, haverá um único grande símbolo criado pela arte, pela
literatura, que não mergulhe no arcaísmo dos conflitos e dos dramas da infância
individual ou coletiva? As figuras mais inovadoras que o artista, o escritor [acaba p.
416] ou o pensador podem engendrar mobilizam energias antigas, inicialmente
investidas em figuras arcaicas. Mas, ao mobilizar essas figuras, comparáveis a sintomas
oníricos ou neuróticos, o criador revela os possíveis menos consumados, menos
advindos, e os erige em símbolos novos da dor da consciência de si.” (p. 416-417)

- “É numa busca de estima mútua, de aprovação, que se persegue a busca de


reconhecimento. Minha existência para mim mesmo torna-se assim tributária de uma
constituição na opinião de outrem. O si é assim recebido na opinião do outro que o
consagra. Ora, essa constituição mútua por opinião ainda está guiada por objetos que já
não são coisas, como ainda o são os bens, as mercadorias, os serviços na esfera do ter.
Nem mesmo lhe correspondem instituições como na esfera do poder. Esses objetos são
os monumentos e as obras do direito, da arte, da literatura, da filosofia. É nessa
objetividade de um novo gênero, a objetividade dos objetos culturais propriamente
ditos, ou das ‘obras’, que se leva à frente a prospecção das possibilidades do homem. As
obras pintadas, esculpidas, escritas dão a densidade da coisa, a dureza do real, a essas
‘imagens do homem’. Elas fazem com que estas existam entre os homens e no meio dos
homens, encarnando-as no material da pedra, da cor, da partitura [acaba p. 417] musical,
da palavra escrita. É através dessas obras, pela mediação desses monumentos, que se
constitui uma ‘dignidade’ do homem, que é ainda o instrumento e o traço de um
processo de consciência duplicada, de reconhecimento de si num outro si.” (p. 417-418)

4. Fé e religião: A ambiguidade do sagrado

- “O horizonte é a metáfora do que se aproxima se jamais tornar-se objeto possuído.” (p.


420)

- “Kant foi o primeiro a nos ensinar a considerar a ilusão como uma estrutura necessária
do pensamento do incondicionado. O schein transcendental não é simples erro, puro
acidente da história do pensamento; é uma ilusão necessária. Aí está, a meu ver, a
origem radical de toda ‘consciência falsa’, a fonte de toda problemática da ilusão, para
além da mentira social, da mentira vital, [acaba p. 422] do retorno do recalcado. Marx,
Freud, Nietzsche já operam ao nível de formas segundas e derivadas da ilusão. É a razão
por que suas problemáticas são parciais e reais.” (pp. 422-423)

5. Valor e limites de uma psicanálise da religião

a) religião e pulsão

b) religião e fantasia

- “Ora, esse imaginário não vestigial, portador de um sentido novo, Freud igualmente o
encontrou: não quando fala de religião, mas quando fala de arte. Lembremo-nos de
nossa exegese do sorriso da Mona Lisa: a lembrança de mãe perdida, dizíamos, é
propriamente recriada pela obra de arte. Ela não está escondida sob..., subjacente, à
maneira de um estrato real e apenas recoberto. Ela é propriamente criada, na própria
medida em que é exposta.” (p. 421)

c) fé e palavra

- “Tornar-se consciente, para o homem, é, dizíamos ser tirado para fora de seu arcaísmo
pela série das figuras que o instituem e o constituem como homem.” (p. 433)

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