Bibliografia
I. A origem da hermenêutica
- “ Não é inútil lembrar que o problema hermenêutico foi colocado, em primeiro lugar,
nos limites da exegese, vale dizer, no contexto de uma disciplina que se propõe a
compreender um texto, a compreendê-lo a partir de sua intenção, baseando-se no
fundamento daquilo que ele pretende dizer. Se a exegese suscitou um problema
hermenêutico, quer dizer, um problema de interpretação, é porque toda leitura de texto,
por mais ligada que ela esteja ao quid, ao ‘aquilo em vista de que’ ele foi escrito, sempre
é feita no interior de uma comunidade, de uma tradição ou de uma corrente de pensamento
vivo, que desenvolvem pressupostos e exigências [...].” (p. 7)
- “Em que esses debates exegéticos dizem respeito à filosofia? No fato de a exegese
implicar toda uma teoria do signo e da significação [...]. [Acaba aqui a página 7] Mais
precisamente, se um texto pode ter vários sentidos, por exemplo, um sentido histórico e
um sentido espiritual, deve-se recorrer a uma noção de significação muito mais complexa
que a dos signos ditos unívocos, exigida por uma lógica da argumentação. Enfim, o
próprio trabalho da interpretação revela um desígnio profundo: o de superar uma
distância, um afastamento cultural, o de equiparar o leitor a um texto que se tornou
estranho e, assim, incorporar seu sentido à compreensão presente que um homem pode
obter dele mesmo.” (p. 7-8)
- “Não há simbólica antes do homem que fala, mesmo que o poder do símbolo esteja
enraizado mais embaixo. É na linguagem que o cosmos, que o desejo, que o imaginário
acedem à expressão. Sempre é necessária uma palavra para retomar o mundo e convertê-
lo em hierofania. Da mesma forma, o sonho permanece fechado a todos, enquanto não
for levado pelo relato ao plano da linguagem.” (p. 15)
IV – O plano reflexivo
- “[...] devemos dizer que o famoso Cogito cartesiano, que se apreende diretamente na
prova da dúvida, é uma verdade tão vã quanto invencível. Não nego que seja uma verdade;
é uma verdade que se põe a si mesma; a esse título, não pode ser verificada nem deduzida;
é ao mesmo tempo a posição de um ser e de um ato; de uma existência e de uma operação
de pensamento; existo, penso; existir, para mim, é pensar; existo enquanto penso.” (p. 19)
- “Contudo, o Cogito não é apenas uma verdade tão vã quanto invencível; deve-se
acrescentar ainda que ele é um lugar vazio que, desde sempre, foi preenchido por um falso
Cogito. Aprendemos, com efeito, por meio de todas as disciplinas exegéticas e pela
psicanálise, em especial, que a consciência pretensamente imediata é, antes de tudo,
‘consciência falsa’. [...] Por conseguinte, devemos, doravante, acrescentar uma crítica da
consciência falsa a toda redescoberta do sujeito do Cogito nos documentos de sua vida.
Uma filosofia da reflexão deve ser exatamente o contrário de uma filosofia da
consciência.” (p. 19)
- “Esse primeiro motivo se liga ao precedente: não somente o ‘eu’ não pode apropriar-se
senão nas expressões da vida que o objetivam, mas a exegese do texto da consciência
choca-se com as primeiras ‘más interpretações’ da consciência falsa. Ora, como sabemos
desde Schleiermaher, há hermenêutica lá onde houver, antes, má interpretação.” (p. 19)
- “Assim, a reflexão deve ser duplamente indireta; primeiramente porque a existência só
se atesta nos documentos da vida, mas também porque a consciência é, inicialmente,
consciência falsa e sempre é necessário elevar-se, através de uma crítica corretiva, da má
compreensão à compreensão.” (p. 19)
V – A etapa existencial
- “Á sua maneira, a psicanálise nos leva à mesma interrogação: como a ordem das
significações está incluída na ordem da vida? Essa regressão do sentido ao desejo é a in
[acaba aqui página 21] dicação de um possível ultrapassamento da reflexão em direção à
existência. Está justificada, agora, uma expressão de que nos servimos acima, mas que
permanece antecipada: pela compreensão de nós mesmos, dizíamos, apropriarmo-nos do
sentido de nosso desejo de ser ou de nosso esforço para existir. A existência, podemos
dizê-lo agora, é desejo e esforço. Chamamo-la de esforço para ressaltar sua energia
positiva e seu dinamismo; chamamo-la de desejo para designar sua carência e sua
indigência: Eros é filho de Póros e de Pênia. Assim, o Cogito não é mais ato pretensioso
do que era inicialmente, quero dizer, essa pretensão de pôr-se a si mesmo; ele surge como
já posto no ser.” (p. 21-22)
- “Assim, as mais opostas hermenêuticas apontam, cada uma a seu modo, em direção das
raízes ontológicas da compreensão. Cada uma a seu modo diz a dependência do ‘si’ á
existência. A psicanálise mostra essa dependência na arqueologia do sujeito, a
fenomenologia do espírito na teleologia das figuras, a fenomenologia da religião nos
signos do sagrado.” (p. 23)
Hermenêutica e estruturalismo
Estrutura e hermenêutica
- “Achamos que a interpretação possui uma história e que esta história é um segmento da
própria tradição. Não interpretamos de parte alguma, mas para explicitar, prolongar e,
assim, manter viva a própria tradição na qual nos encontramos. É assim que o tempo da
interpretação pertence de certa forma ao tempo da tradição. Em compensação, porém, a
tradição, mesmo entendida como transmissão de um depositum, permanece tradição
morta, se não for a interpretação contínua desse depósito; uma ‘herança’ não é um pacote
fechado que passamos de mão em mão sem abri-lo, mas um tesouro de onde sacamos
com as mãos repletas e que renovamos na operação mesma de sacá-lo. Toda tradição vive
graças à interpretação. É a este preço que ela dura, quer dizer, permanece viva.” (p. 27)
Para o estruturalismo, “Compreender não significa retomar o sentido. [...] não há ‘círculo
hermenêutico’; não há historicidade da relação de compreensão. A relação é objetiva,
independente do observador. É por isso que a antropologia estrutural é ciência e não
filosofia.” (p. 32)
- “Acontece, porém, que o sentido está do lado do arranjo atual, da sincronia. É por isso
que essas sociedades são tão vulneráveis ao acontecimento. Como em linguística, o
acontecimento desempenha o papel de ameaça, em todo caso, de incômodo, e sempre, de
simples interferência contingente (assim, os transtornos demográficos – guerras,
epidemias – que alteram a ordem estabelecida) [...].” (p. 39)
- “A própria história mítica está a serviço dessa luta da estrutura contra o acontecimento,
e representa um esforço das sociedades para anular a ação perturbadora dos fatores
históricos; representa uma tática de anulação do histórico, de amortecimento do
acontecimal [...]. (p. 39)
- Inteligência hermenêutica
- “[...] a regulação estrutural está muito mais perto do fenômeno de inércia que da
interpretação viva que nos parece caracterizar a verdadeira tradição. É porque a regulação
semântica procede do excesso do potencial de sentido sobre seu uso e sua função no
interior do sistema dado na sincronia, que o tempo oculto dos símbolos pode ser portador
da dupla historicidade da tradição que transmite e sedimenta a interpretação, e da
interpretação que entretém e renova a tradição.” (p. 43)
- “[...] não são leis linguísticas que procuramos totalizar para nos compreender a nós
mesmos, mas o sentido das palavras, relativamente ao qual as leis linguísticas são a
mediação instrumental para sempre inconsciente. Procuro compreender-me retomando o
sentido das palavras de todos os homens. É neste plano que o tempo oculto se torna
historicidade da tradição e da interpretação.” (p. 46)
- “É por isso que as duas maneiras de fazer surgir o tempo não se encontram no mesmo
nível [...] [acaba p. 48]. Reservarei os termos de historicidade – historicidade da tradição
e historicidade da interpretação – para toda compreensão tendo consciência, implícita ou
explicitamente, de estar no caminho da compreensão filosófica de si e do ser. Neste
sentido, o mito de Édipo depende da compreensão hermenêutica quando é compreendido
e retomado – já por um Sófocles – a título de primeira solicitação de sentido, em vista de
uma meditação sobre o reconhecimento de si, sobre a luta pela verdade e pelo ‘saber
trágico’.” (p. 48-49)
- “2. [...]. A explicação estrutural, perguntaremos inicialmente, pode ser separada de toda
compreensão hermenêutica? [...]. Mas então, será que a compreensão hermenêutica não
se refugiou na própria constituição do campo semântico onde se exercem as relações de
homologia? [..]. Entendo que o desdobramento de que se trata aqui é o que engendra a
função do signo em geral, e não o duplo sentido do símbolo, tal como o entendemos. Mas
o que é verdadeiro do signo em seu sentido primário, ainda é mais verdadeiro do duplo
sentido dos símbolos. A inteligência desse duplo sentido, inteligência essencialmente
hermenêutica, sempre é pressuposta pela inteligência das ‘trocas de valores
complementares’ levada a efeito pelo estruturalismo. [...] [acaba p. 49]. É por isso que a
inteligência estrutural sempre se faz acompanhar de um grau de inteligência
hermenêutica, mesmo que esta não seja tematizada.” (p. 49-50)
- “[...] a compreensão das estruturas não é exterior a uma compreensão que teria por tarefa
pensar a partir dos símbolos; ela é hoje em dia o intermediário necessário entre a
ingenuidade simbólica e a inteligência hermenêutica.” (p. 53)
- “[...] gostaria de estabelecer que a via da análise e a via da síntese não coincidem, não
são equivalentes: na via da análise, descobrem-se os elementos da significação, que não
possuem mais nenhuma relação com coisas ditas; na via da síntese, revela-se a função da
significação, que já é de dizer e, finalmente, de ‘mostrar’.” (p. 56)
§ I. O nível hermenêutico
- “[...] o problema do sentido múltiplo. Com isto, já designo certo efeito de sentido,
segundo o qual uma expressão, de dimensões variáveis, significando uma coisa, significa
ao mesmo tempo outra coisa, sem deixar de significar a primeira. No sentido próprio do
termo, é a função alegórica da linguagem (ale-goria dizer uma coisa dizendo outra coisa).”
(p. 56)
- “O que define a hermenêutica, pelo menos relativamente aos outros níveis estratégicos
que iremos considerar, é inicialmente, a extensão das sequências com as quais ela opera
e que chamo de textos. Foi primeiramente na exegese dos textos bíblicos, depois profanos,
que a ideia de uma hermenêutica, concebida como ciência das regras da exegese,
constituiu-se. Aqui, a noção de texto tem um sentido preciso e limitado. [..]. Ora, o texto
comporta, além de certa extensão, relativamente às sequências mínimas com as quais o
linguista gostará de trabalhar, a organização interna de uma obra, um Zusammenhang,
uma conexão interna.” (p. 56)
- “Para o hermeneuta, é o texto que possui um sentido múltiplo. Para ele, o problema do
sentido múltiplo só se coloca se levarmos em consideração tal conjunto, onde são
articulados acontecimentos, personagens, instituições, realidades naturais ou históricas
[...].” (p. 57)
- “[...] uma coisa é servir-se da hermenêutica como de uma arma de suspeita contra as
‘mistificações’ da falsa consciência, outra é fazer uso dela como de uma preparação a
entender melhor aquilo que uma vez veio ao sentido, aquilo que uma vez foi dito.” (p. 57)
- “Ora, a possibilidade mesma de hermenêuticas divergentes e rivais – no plano da técnica
e do projeto – deve-se a uma condição fundamental que, no meu entender, caracteriza em
bloco o nível estratégico das hermenêuticas. É esta condição fundamental que nos reterá
aqui: consiste em dizer que a simbólica é um meio de expressão para a realidade
extralinguística. Isto é capital para o confronto ulterior. Antecipando-me a uma expressão
que só adquirirá seu sentido preciso em outro nível estratégico, direi: em hermenêutica,
não há enclausuramento do universo dos signos. Enquanto que a linguística se move no
recinto de uma universo auto-suficiente e não encontra jamais senão relações intra-
significativas, relações de interpretação mútua entre signos [...] [acaba p. 57], a
hermenêutica encontra-se sob o regime da abertura do universo dos signos.” (p. 57-58)
- “[...] o único interesse filosófico do simbolismo consiste em que ele revela, por sua
estrutura de duplo sentido, a equivocidade do ser [...]. A razão de ser do simbolismo é a
de abrir a multiplicidade do sentido à equivocidade do ser.” (p. 59)
Semântica léxica
- “O que se nos apresentou, no plano dos textos, como um setor particular do discurso, a
saber, como o setor de plurivocidade, aparece-nos agora fundado numa propriedade geral
das unidades léxicas, ou seja, de funcionar como um acumulador de sentido, como um
permutador entre o antigo e o novo. É dessa forma que o duplo-sentido se reveste de uma
função expressiva em relação a realidades significativas de modo imediato.” (p. 61)
- “Quando falo, realizo apenas uma parte do potencial significativo; o resto é obliterado
pela significação total da frase, que opera como unidade de fala. Mas o resto das
virtualidades semânticas não é anulado; ele flutua em torno das palavras, como uma
possibilidade não completamente abolida. Portanto, o contexto desempenha o papel de
filtro. [...]. Por diversos procedimentos, o discurso pode realizar a ambiguidade que
aparece, assim, como a combinação de um fato de léxico, a polissemia, e de um fato de
contexto, a permissão deixada a vários valores distintos ou mesmo opostos do mesmo
nome de se realizarem na mesma sequência.” (p. 62)
- “[...] há dois modos de explicar o simbolismo: por aquilo que o constitui e por aquilo
que ele quer dizer. Aquilo que o constitui requer uma análise estrutural; e esta análise
dissipa seu caráter ‘maravilhoso’; é sua função e, ousarei dizer, sua missão; o simbolismo
opera com recursos de toda a linguagem, os quais são sem mistério.” (p. 67)
- “[...] não há mistério na linguagem; o simbolismo mais poético, mais ‘sagrado’, opera
com as mesmas variáveis sêmicas que a palavra mais banal do dicionário. Mas há um
mistério da linguagem, a saber, que a linguagem diz, diz algo, diz algo do ser. Se há um
enigma do simbolismo, ele reside inteiramente no plano de manifestação, onde a
equivocidade do ser vem dizer-se na do discurso.” (p. 68)
- “O ato de falar não é somente excluído como execução exterior, como performance
individual, mas como livre combinação, como produção de enunciados inéditos. Eis o
essencial da linguagem e, falando propriamente, sua destinação.” (p. 73)
- “A experiência que temos da linguagem revela algo de seu modo de ser que resiste a
essa redução. Para nós, que falamos, a linguagem não é um objeto, mas uma mediação. É
aquilo através de que, por meio de que, nos exprimimos e exprimimos as coisas. Falar é
o ato pelo qual o locutor supera o fechamento [acaba p. 73] do universo dos signos, com
o intuito de dizer algo sobre alguma coisa a alguém. Falar é o ato pelo qual a linguagem
se ultrapassa como signo em direção à sua referência e ao seu vis-à-vis. A linguagem quer
desaparecer, quer morrer como objeto.” (p. 73-74)
- “1. O discurso tem por modo de presença um ato, a instância de discurso (Benvéniste)
que, como tal, pertence à natureza do acontecimento. Falar é um acontecimento atual, um
ato transitório, desvanecimento. O sistema, em contrapartida, é atemporal, porque é
simplesmente virtual.” (p. 75)
- “2. O discurso consiste numa sequência de escolhas pelas quais certas significações são
eleitas e outras excluídas. Essa escolha é a contrapartida de um traço corresponde do
sistema, a coerção.” (p. 75)
- “3. Essas escolhas produzem combinações novas: emitir frases inéditas, compreender
tais frases, eis o essencial do ato de falar e de compreender a fala. Essa produção de frases
inéditas em número virtualmente infinito tem por contrapartida o repertório finito e
fechado de signos.” (p. 75)
- “4. É na instância do discurso que a linguagem possui referência. Falar é dizer algo de
alguma coisa. [...]. Esse avanço do sentido (ideal) em direção à referência é a própria alma
da linguagem.” (p. 75)
Parte II
Hermenêutica e Psicanálise
- “Para quem foi formado pela fenomenologia, pela filosofia existencial, pela renovação
dos estudos hegelianos e pelas investigações de tendência linguística, o encontro com a
psicanálise constitui um enorme abalo. Não é esse ou aquele tema da reflexão filosófica
que é atingido e questionado, mas o conjunto do projeto filosófico. O filósofo
contemporâneo encontra Freud nas mesmas paragens que Nietzsche e Marx. Todos os
três se apresentam diante dele como os protagonistas da suspeita, os perfuradores de
máscaras. Nasceu um problema novo: o da mentira da consciência, da consciência como
mentira.” (p. 87)
- “[...] não podemos mais contentar-nos, como há vinte anos, em distinguir método e
doutrina. Sabemos, agora, que, nas ciências humanas, a ‘teoria’ não é um acréscimo
contingente: é constitutiva do objeto mesmo [...].” (p. 88)
- “2. A fenomenologia husserliana, por sua parte, iniciou a crítica da consciência refletida
e introduziu o tema, atualmente bem conhecido, do pré-reflexivo e do irrefletido. O
inestimável benefício, embora finalmente negativo, de toda a fenomenologia husserliana,
foi o de haver estabelecido que as pesquisas de ‘constituição’ remetem a um pré-dado, a
um pré-constituído. Mas a fenomenologia husserliana não pode ir até o fim do fracasso
da consciência.” (p. 89)
- “A consciência, dizia, é tão obscura quanto o inconsciente. [...]. Tudo o que se pode
dizer, depois de Freud, sobre a consciência, parece-me estar incluído nessa fórmula: a
consciência não ´origem, mas tarefa.” (p. 94)
- “[...] esta abordagem indireta, mediata, da consciência, nada tem a ver com uma
presença imediata a si da consciência, com uma certeza imediata de si a si mesmo.” (p.
97)
- “[...] por que o homem fracassa em ser feliz? Por que o homem é insatisfeito enquanto
ser da cultura?” (p. 109)
- “Se a obra de arte dura e permanece, não é porque ela é sempre portadora das
significações que enriquecem o patrimônio de valores da cultura? A objeção não é
irrelevante; ela nos dá a oportunidade de apreender o alcance daquilo que nos arriscamos
a chamar de uma hermenêutica da cultura.” (p. 120)
- “Pode-se realmente objetar à interpretação do Moisés de Miguel Ângelo e, mais ainda,
à do Édipo-Rei de Sófocles ou do Hamlet de Shakespeare, que, essas obras são criações,
é na medida em que não são simples projeções dos conflitos do artista, mas o esboço de
suas soluções [...]; a obra de arte está diante do próprio artista; é um símbolo prospectivo
da síntese pessoal e do futuro do homem, mais do que um sintoma regressivo de seus
conflitos não resolvidos. É por isso que a compreensão, pelo amador, não é simples
revivescência de seus próprios conflitos, uma satisfação fictícia dos desejos evocados nele
pelo drama, mas a participação no trabalho da verdade que se realiza na alma do herói
trágico [...].” (p. 121)
- “Diremos daqui a pouco o enorme alcance de tal esforço, similar, quanto ao essencial,
ao de Marx e de Nietzsche, para desmascarar a consciência ‘falsa’. Mas não se deve ser
exigido, sobretudo, aquilo que poderíamos chamar de uma crítica de fundamento. Essa é
a tarefa de outro método: não mais de uma hermenêutica das expressões psíquicas – do
sonho à obra de arte, do sintoma ao dogma religioso, - mas de um método reflexivo,
aplicado ao agir humano em seu conjunto, vale dizer, ao esforço para existir, ao desejo
de ser, contemporâneo desse desejo, e às múltiplas mediações pelas quais o homem tenta
apropriar-se da mais originária afirmação que habita seu esforço e seu desejo. A
articulação de uma sobre a outra, de uma filosofia reflexiva e de uma hermenêutica do
sentido é, hoje em dia, a mais urgente tarefa de uma antropologia filosófica.” (p. 123)
- “Precisarei ainda pouco mais aquilo que, a meu ver, falta na interpretação freudiana do
fenômeno cultural em seu conjunto e da ilusão em particular: uma ilusão, para Freud, é
uma representação a que não corresponde nenhuma realidade. Sua definição é positivista.
Ora, será que não há outra função da Imaginação que escape à alternativa positivista do
real e do ilusório? Aprendemos, paralelamente ao freudismo e independentemente dele,
que os mitos e os símbolos são portadores de um sentido que escapa a essa alternativa.
Outra hermenêutica, distinta da psicanálise e mais próxima da fenomenologia da religião,
ensina-nos que os mitos não são fábulas, quer dizer, histórias ‘falsas’, ‘irreais’. Essa
hermenêutica pressupõe, contrariamente a todo positivismo, que o ‘verdadeiro’, que o
‘real’, não se reduzem àquilo que pode ser verificado por via matemática ou experimental,
mas dizem também respeito à nossa relação com o mundo, com os seres e com o ser. É
esta relação que o mito começa a explorar de modo imaginativo.” (p. 125)
- “Não se duvida mais que a obra de Freud seja tão importante para a tomada de
consciência do homem moderno quanto a de Marx ou a de Nietzsche. Entre esses três
críticos da consciência ‘falsa’, o parentesco é surpreendente.” (p. 127)
- “Antes de tudo, é contra a mesma ilusão que eles se insurgem, contra essa ilusão
aureolada com um nome prestigioso: a ilusão da consciência de si. Essa ilusão é o fruto
de uma primeira vitória, conquistada sobre uma ilusão anterior: a ilusão da coisa. O
filósofo formado na escola de Descartes sabe que as coisas são duvidosas, que não são
tais como aparecem. Mas não duvida que a consciência seja tal como ela aparece a si
mesma: nela, sentido e consciência do sentido coincidiriam. Depois de Marx, Nietzsche
e Freud, duvidamos disso. Após a dúvida sobre a coisa, ingressamos na dúvida sobre a
consciência.” (p. 127)
- “Todavia, esses três mestres da suspeita não constituem três mestres do ceticismo.
Seguramente, são três grandes ‘destruidores’. No entanto, isso não deve nos enganar. A
destruição, diz Heidegger em Sein und Zeit, é um momento de toda nova fundação.” (p.
127)
- “Ora, os três pensadores limpam o horizonte para uma palavra mais autêntica, para um
novo reino da verdade, não somente mediante uma crítica ‘destrutiva’, mas pela invenção
de uma arte de interpretar. Descartes vence a dúvida sobre a coisa pela evidência da
consciência. Eles vencem a dúvida sobre a consciência por uma exegese do sentido. A
partir deles, a compreensão é uma hermenêutica: doravante, procurar o sentido, não é
mais soletrar a consciência do sentido, mas decifrar suas expressões. Portanto, o que se
deve confrontar, não é somente uma tríplice suspeita, mas uma [acaba p. 128] tríplice
astúcia. Se a consciência não é o que acredita ser, deve ser instituída uma nova relação
entre patente e latente. Essa nova relação corresponderia à que a consciência instituíra
entre a aparência e a realidade da coisa. A categoria fundamental da consciência, para os
três, é a relação oculto-mostrado ou, se preferirmos, simulado-manifestado. [...] o fato
[está em] os três criarem com os meios disponíveis, vale dizer, com e contra os
preconceitos da época, uma ciência mediata do sentido, irredutível à consciência imediata
do sentido. O que os três tentaram, através de caminhos diferentes, foi fazer coincidirem
seus métodos ‘conscientes’ de decifração com o trabalho ‘inconsciente’ da cifração que
atribuíam à vontade de poder, ao ser social e ao psiquismo inconsciente.” (p. 127-128)
- “Descobre-se ao mesmo tempo um parentesco mais profundo ainda entre Marx, Freud
e Nietzsche. Os três, dizíamos, começam pela suspeita concernindo às ilusões da
consciência, e continuam pela astúcia da decifração. Os três, enfim, longe de serem
detratores da ‘consciência’, visam a uma extensão dela.” (p. 128)
- “Eis o que esses três exegetas pretenderam fazer para o homem moderno. Todavia,
estamos longe de ter assimilado suas descobertas e de nos compreender, plenamente,
mediante a interpretação que nos fornecem de nós mesmos. Devemos confessar que suas
intepretações ainda flutuam distante de nós, que ainda não encontraram seu justo lugar.
Entre sua interpretação e nossa compreensão, a distância é, ainda, enorme. Mais ainda,
não nos encontramos diante de uma interpretação unitária que deveríamos assimilar
conjuntamente, mas de três interpretações cuja discordância é mais manifesta que o
parentesco. Ainda não existe nenhuma estrutura de acolhimento, nenhum discurso
seguido, nenhuma antropologia filosófica capazes de integrar, entre si e em nossa
consciência, a hermenêutica de Marx, a de Nietzsche e a de Freud.” (p. 129)
1. Resistência à verdade
§ Argumento
§ Exposição
- “[...] não nos é possível coincidir com uma obra; no máximo, podemos retomá-la a partir
de uma constelação de temas manipulados pela intuição e, sobretudo, a partir de um feixe
de articulações que, de certa forma, constituem sua subestrutura, sua armadura
subjacente. É por isso que não repetimos, mas construímos. [...]. É neste sentido que falo
de objetividade, porque, num sentido negativo de não-objetividade, o filósofo coloca
entre parênteses suas próprias convicções, suas próprias tomadas de posição e, em
primeiro lugar, sua própria maneira de começar, de atacar e de dispor estrategicamente
seu pensamento; objetividade, num sentido positivo, porque sua leitura é submetida
àquilo que pretende e quer dizer a própria obra, a qual permanece o quid que regula sua
leitura.” (p. 139)
- “Com Nabert, sustento que compreender [acaba p. 144] é inseparável de compreender-
se, que o meio simbólico é o meio da autoexplicitação. Isso quer dizer: de um lado, que
não há mais problema de sentido, se os signos não constituem o meio, o ambiente, o
medium, graças ao qual um sistema humano procura situar-se, projetar-se, compreender-
se; do outro, em sentido inverso, que não há apreensão direta de si por si, percepção
interior, apropriação de meu desejo de existir sobre a via curta da consciência, mas
somente pela via longa da interpretação dos signos. Em suma, minha hipótese de trabalho
filosófica é a reflexão concreta, vale dizer, o Cogito mediatizado por todo o universo dos
signos.” (p. 144-145)
- “Minha questão é a seguinte: o que acontece a uma filosofia da reflexão quando ela se
deixa instruir por Freud?” (p. 146)
- “[...] o que ocorre ao sujeito da reflexão quando são levadas a sério as astúcias da
consciência, quando a consciência é descoberta como consciência falsa que diz algo
distinto do que diz e acredita dizer? [...] depois de Freud, não é mais possível estabelecer
a filosofia do sujeito como filosofia da consciência. Reflexão e consciência não coincidem
mais. Deve-ser perder a consciência para se encontrar o sujeito. O sujeito não é mais o
que se acredita. A apoditicidade do Cogito não pode ser atestada sem que seja, ao mesmo
tempo, reconhecida a inadequação da consciência. [...] [acaba p. 146]. Torna-se, então,
possível repetir o freudismo, fazer dele uma repetição reflexiva que seja, ao mesmo
tempo, uma aventura da reflexão. Chamei de desapropriação ou destomada esse
movimento ao qual me constrange a sistemática freudiana. É a necessidade dessa
desapropriação que justifica o naturalismo freudiano. [...]. Adoto sua antifenomenologia
decidida; adoto sua energética e sua econômica, como os instrumentos de um processo
intentato contra o Cogito ilusório que inicialmente, ocupa o lugar do ato fundador do
penso, existo. Em suma, sirvo-me da psicanálise como Descartes se utilizava dos
argumentos céticos contra o dogmatismo da coisa. Todavia, dessa vez, é contra o próprio
Cogito, ou antes, é no interior do Cogito que a psicanálise vem cindir a poditicididade do
Eu (Je), das ilusões da consciência e das pretensões do Ego (Moi). Num ensaio de 1917,
Freud fala da psicanálise como de uma ferida e de uma humilhação do narcisismo, como
o foram, diz ele, a seu modo, as descobertas de Copérnico e de Darwin, que descentraram
o mundo e a vida relativamente à pretensão da consciência. Da mesma maneira, a
psicanálise descentra a constituição do mundo fantasmático relativamente à consciência.
No término dessa desapropriação, a consciência mudou de signo filosófico: não é mais
um dado; não há mais ‘dados imediatos da consciência’; ela é uma tarefa, a tarefa do
tornar-se-consciência. [...]. É assim que a leitura de Freud torna-se uma aventura da
reflexão. O que emerge dessa reflexão é um Cogito ferido; um Cogito que se põe, mas
não se possui; um Cogito que só compreende sua verdade originária na e pela confissão
da inadequação, da ilusão, da mentira da consciência atual.”
- “Esse resultado podia ser previsto pela filosofia transcendental de tipo kantiano ou
husserliano. O caráter empírico da consciência autoriza os mesmos erros e as mesmas
ilusões que a percepção mundana. Encontramos em Husserl, nos §§ 7 e 9 das Meditações
Cartesianas, o reconhecimento teórico [acaba p. 203] dessa dissociação entre o caráter
seguro do Cogito e o caráter duvidoso da consciência. O sentido do que sou não está dado,
mas oculto. [...].” (p. 203-204)
- “A filosofia do sujeito receberá da psicanálise uma outra lição além dessa retificação
crítica? O enraizamento da existência subjetiva no desejo deixa aparecer uma implicação
positiva da psicanálise, além da tarefa negativa de ‘des-construção’ do falso Cogito.
Merleau-Ponty propunha o título de arqueologia do sujeito para essa encarnação
pulsional.” (p. 204)
- “Esse aspecto do Freudismo não é menos importante que o precedente: a dissolução dos
prestígios e dos ídolos do consciente e, tão-somente, o reverso de uma descoberta, a da
‘econômica’, que Freud dizia ser mais fundamental do que a ‘tópica’. São da alçada dessa
‘econômica’ os aspectos temporais do desejo, ou antes, sua ausência de relação ao tempo
ordenado do real.” (p. 205)
- “[...] o sistema de signos não tem mais um fora mas somente um dentro. Esse último
postulado, que se pode chamar de postulado do enclausuramento dos signos, resume e
comanda todos os outros. É ele, efetivamente, que constitui o desafio mais importante
para a fenomenologia. Para esta, a linguagem não é um objeto, mas uma mediação, ou
seja, aquilo por intermédio do que, e através do que, nos dirigimos em direção à realidade
(qualquer que ela seja). Ela consiste em dizer algo sobre algo. Desse modo, ela escapa em
direção daquilo que diz, ela se ultrapassa e se estabelece num movimento intencional de
referência. Para a linguística estrutural, a língua basta-se a si mesma: todas as suas
diferenças lhe são imanentes. E é um sistema que precede o sujeito falante.” (p. 210)
- “Que espécie de filosofia do sujeito poderá responder a esse desafio, sob a forma que o
estruturalismo lhe confere?” (p. 211)
- “É, com efeito, no mesmo nível de organização e de efetuação que a linguagem tem uma
referência e tem um sujeito: ao passo que o sistema é anônimo ou, antes, não tem sujeito
– nem mesmo ‘a gente’, - porque a questão ‘quem fala?’ não tem sentido ao nível da
língua, é com a frase que se apresenta a questão do sujeito da língua. Esse sujeito pode
não ser eu, ou aquele que creio ser. Mas, pelo menos a questão ‘quem fala?’ toma sentido
nesse nível, mesmo que venha a permanecer uma questão sem resposta.” (p. 213)
- “Além, reinterpretada à luz da semiologia, a psicanálise tem por tema a relação da libido
e do símbolo. Ela pode então inscrever-se numa disciplina mais geral, a que podemos
chamar hermenêutica. Chamo aqui hermenêutica a toda disciplina que proceda por
interpretação, e dou ao termo interpretação seu sentido forte: o discernimento de um
sentido oculto num sentido aparente. A semântica do desejo destaca-se no campo mais
vasto dos efeitos de duplo sentido: aqueles mesmos que uma semântica linguística
encontra sob um outro nome, que denomina transferência de sentido, metáfora, alegoria.
A tarefa de uma hermenêutica é a de confrontar os diferentes usos de duplo sentido e as
diferentes funções da interpretação por disciplinas tão diferentes como a semântica dos
linguistas, a psicanálise, a fenomenologia e a história comparada das religiões, a crítica
literária, etc. Percebe-se, então, como, através dessa hermenêutica geral, a psicanálise
pode ser ligada a uma filosofia reflexiva. Passando por uma hermenêutica, a filosofia
reflexiva sai da abstração: a afirmação do ser, o desejo e o esforço de existir que me
constituem encontram na interpretação dos signos o caminho longo da tomada de
consciência. [...]. Por um lado, compreender o mundo dos signos é o meio de se
compreender. O universo simbólico é o meio da auto-explicação. [...] essa relação entre
desejo de ser e simbolismo significa que a via curta da intuição de si por si está fechada.
A apropriação de meu desejo de existir é impossível pela via curta da consciência; só a
via longa da interpretação dos signos está aberta. Tal é minha hipótese de trabalho
filosófico: chamo-lhe a reflexão concreta, ou seja, o Cogito mediatizado por todo o
universo dos signos.” (p. 221)
- “O existo é mais fundamental que o falo. É preciso, portanto, que a filosofia se coloque
a caminho, em direção ao falo a partir da posição do existo [...].” (p. 222)
- “Há primeiramente o ser no mundo, depois o interpretar, depois o dizer.” (p. 222)
- “Se assim é, a hermenêutica pela qual deve passar a filosofia reflexiva não deve se
confinar nos efeitos de sentido e de duplo sentido: ela deve ser ousadamente uma
hermenêutica do existo. Dessa maneira, somente, podem ser vencidas a ilusão e a
pretensão do Cogito idealista, subjetivista, solipsista. Só essa hermenêutica do existo pode
envolver ao mesmo tempo a certeza apodíctica do penso cartesiano e as incertezas, e
mesmo as mentiras e as ilusões do si, da consciência imediata. Só ela pode manter lado a
lado a afirmação serena: existo, sou e a dúvida pungente: o que sou eu?” (p. 223)
- “Talvez seja preciso ter experimentado a decepção que se prende à ideia de filosofia
sem pressuposição para chegar à problemática que vamos evocar. Ao contrário das
filosofias do ponto de partida, uma meditação sobre os símbolos parte da plenitude da
linguagem e do sentido já presente. Ela parte do meio da linguagem que já se realizou e
onde tudo já foi dito de uma certa maneira. Ela pretende ser o pensamento, não sem
pressuposição, mas em, e com todas as suas pressuposições. Para ela, a primeira tarefa
não consiste em começar, mas sim, do meio da fala, em relembrar-se.” (p. 242)
- “[...] se levantamos o problema do símbolo agora, neste período da história, isso ocorre
e ligação com certos traços de nossa ‘modernidade’ e para replicar a essa modernidade
mesma. O momento histórico da filosofia do símbolo é o do esquecimento e também o
da restauração: esquecimento das hierofanias; esquecimento dos signos do Sagrado; perda
do próprio homem como vinculado ao Sagrado. Esse esquecimento, nós o sabemos, é a
contrapartida da tarefa grandiosa de nutrir os homens, de satisfazer as necessidades pelo
domínio da natureza, mediante uma técnica planetária. E é o obscuro reconhecimento
desse esquecimento que nos move e nos estimula a restaurar a linguagem integral. É na
época mesma em que nossa linguagem se faz mais precisa, mais unívoca, mais técnica,
para dizê-lo numa única palavra, mais apta a essas formalizações integrais que se chamam
precisamente lógica simbólica [...], é nessa mesma época do discurso que queremos
recarregar nossa linguagem, que queremos repartir da plenitude da linguagem. Ora, isso
também é um presente da ‘modernidade’. Pois nós, os modernos, somos os homens da
filosofia, da exegese, da fenomenologia, da psicanálise, da análise da linguagem. Assim,
é a mesma época que desenvolve a possibilidade de esvaziar a linguagem e a de enchê-la
de novo. Não é, por conseguinte, o pesar das atlântidas desmoronadas que nos anima, mas
a esperança de uma recriação da linguagem. Para além do deserto da crítica, queremos de
novo ser interpelados.” (p. 243)
§ I. A ordem do símbolo
- “[...] não há símbolo que não suscite uma compreensão, mediante uma interpretação.
Mas como essa compreensão pode estar ao mesmo tempo no símbolo e além?” (p. 250)
- “Vejo três etapas desse compreender. Três etapas que balizam o movimento que se
dirige da vida nos símbolos em direção a um pensamento que seja pensado a partir dos
símbolos.” (p. 250)
- “Isso dito, a hermenêutica ainda não é a reflexão. Ela é solidária de textos singulares
cuja exegese regula. A terceira etapa da inteligência dos símbolos, a etapa propriamente
filosófica, é a de um pensamento a partir do símbolo.” (p. 252)
- “Minha convicção é de que é preciso pensar por trás dos símbolos, mas a partir dos
símbolos, em conformidade com os símbolos; que sua substância é indestrutível, que eles
constituem o fundo revelador da palavra que habita entre os homens. Em suma, o símbolo
dá a pensar. De outra parte, um perigo que nos espreita é o de repetir o símbolo num
mimo da racionalidade, de racionalizar os símbolos enquanto tais, e assim fixá-los, no
plano imaginativo onde nascem e se desdobram. Essa tentação de uma ‘mitologia
dogmática’ é a da gnose.” (p. 252)
- “Meu problema é, portanto, o seguinte: como podemos pensar a partir do símbolo, sem
voltar à velha interpretação alegorizante, nem cair na armadilha da gnose? Como extrair,
do símbolo, um sentido que ponha em movimento o pensamento, sem supor um sentido
já aí, oculto, dissimulado [acaba p. 252], recoberto, nem cair no pseudo-saber de uma
mitologia dogmática? Gostaria de tentar um outro caminho que fosse o de uma
interpretação criadora, de uma interpretação que respeite o enigma original dos símbolos,
que se deixe ensinar por ele, mas que, a partir disso, promova o sentido, forme o sentido,
na plena responsabilidade de um pensamento autônomo. Como um pensamento pode ser
ao mesmo tempo ligado e livre? Como manter juntas a imediatidade do símbolo e a
meditação do pensamento?” (p. 252-253)
- “[...] uma interpretação que, antes de mais nada, abandonou o ponto de vista da
consciência não elimina somente a consciência, mas renova radicalmente o seu sentido.
O que é definitivamente negado não é a consciência, mas sua pretensão a conhecer-se a
si mesma desde o começo, seu narcisismo. Precisamos, portanto, atingir o ponto de
desolação, em que não sabemos mais o que a consciência significa, a fim de recobrar a
consciência como esse modo de existência que tem o inconsciente como seu outro.” (p.
273)
1
Meu apontamento: ramo do conhecimento cujo objeto é a pesquisa e a determinação das causas e
origens de um determinado fenômeno. Análise de causas de doenças.
- “Tomemos agora essa nova abordagem da consciência. Tudo o que podemos dizer sobre
a consciência depois de Freud parece incluído na fórmula: ‘A consciência não é imediata.
Ela não é uma fonte, mas uma tarefa, a tarefa de tonar-se mais consciente.’” (p. 273)
- “É aqui que se exige uma outra espécie de hermenêutica, que descentre o foco de sentido
de maneira diferente da psicanálise. Não é na própria consciência que reside a chave da
compreensão. Precisamos descobrir novas figuras, novos símbolos, irredutíveis aos que
estão enraizados no solo libidinal: essas figuras, esses símbolos puxam a consciência para
frente, para fora de sua infância. Depois de Freud, a única filosofia possível da
consciência seria aparentada à fenomenologia hegeliana do espírito. Nessa
fenomenologia, a consciência imediata não se conhece a si mesma. Para [acaba p. 273]
retomar nossa expressão anterior, direi que o homem torna-se adulto, torna-se
‘consciente’, se e quando ele se torna capaz dessas novas figuras cuja sucessão constitui
o ‘espírito’, no sentido hegeliano do termo. Uma exegese da consciência consistiria num
inventário e numa constituição, de grau em grau, das esferas de sentido que a consciência
deve encontrar e apropriar-se, a fim de se refletir como um Si, como um Eu humano,
adulto, ético. Esse processo já não é absolutamente uma introspecção, uma consciência
imediata. Já não é absolutamente uma figura do narcisismo, posto que o núcleo do Si não
é o ego psicológico, mas o espírito, ou seja, a dialética das próprias figuras. A
‘consciência’ é, apenas, a interiorização desse movimento que é preciso reencontrar na
estrutura objetiva das instituições, dos monumentos, das obras de arte e de cultura.” (p.
273-274)
- “De um lado, na fenomenologia hegeliana cada figura recebe sua significação daquela
que se segue: o estoicismo é a verdade do reconhecimento mútuo do senhor e do escravo,
mas o ceticismo é a verdade da posição estoica que anula todas as diferenças entre senhor
e escravo e, assim por diante: a verdade de um momento reside no momento seguinte. A
inteligibilidade procede sempre do fim em direção ao começo. Tal é a razão por que
podemos dizer que a consciência é uma tarefa: só no fim ela está assegurada. De outro
parte, o inconsciente significa que a compreensão procede das figuras anteriores.” (p.
274)
- “[...] se a filosofia é reflexão, havíamos dito ao começar, por que a reflexão deve
recorrer a uma linguagem simbólica? Por que a reflexão deve tornar-se interpretação?”
(p. 275)
- “Quando dizemos: a filosofia é reflexão, queremos dizer reflexão sobre si mesmo. Mas
o que significa o Si? Admito, aqui, que a posição do Si é a primeira verdade para o
filósofo, pelo menos para essa vasta tradição da filosofia moderna que parte de Descartes,
desenvolve-se com Kant, Fichte e a corrente reflexiva da filosofia ocidental. Para essa
tradição, que consideraremos como um todo antes de opor seus principais representantes,
a posição do si é uma verdade que se coloca por si mesma. Ela não pode ser nem
verificada, nem deduzida. É, ao mesmo tempo, a posição de um ser e de um ato. A posição
de uma existência e de uma operação de pensamento: existo, penso. Existir para mim é
pensar. Existo na medida em que penso. Dado que essa verdade não pode ser verificada
como um fato, nem deduzida como uma conclusão ela deve se colocar na reflexão. Sua
autoposição é reflexão. [...]. Tal é nosso ponto de partida filosófico.” (p. 275)
- “Mas essa primeira referência à posição do Si, como existente e pensante, não basta para
caracterizar a reflexão. Em particular, não compreendemos ainda por que ela requer um
trabalho de deciframento, uma exegese e uma ciência da exegese ou hermenêutica e, ainda
menos, por que deciframento deve ser quer uma psicanálise, quer uma fenomenologia do
Sagrado. Esse ponto não poderá ser entendido enquanto a reflexão aparecer como uma
volta à pretensa evidência da consciência imediata. Precisamos introduzir um segundo
traço da reflexão que se enuncia assim: reflexão não é intuição. Ou, e termos positivos: a
reflexão é o esforço para retomar o ego do Ego Cogito no espelho de seus objetos, de suas
obras e, finalmente, de seus atos. Ora, por que a posição do ego deve ser retomada através
de seus atos? Precisamente porque ela não é dada nem numa evidência psicológica, nem
numa intuição intelectual, nem numa visão mística. Uma filosofia reflexiva é o contrário
de uma filosofia do imediato. A primeira verdade – existo, penso – permanece tão abstrata
e vazia quanto é invencível. Ela precisa ser ‘mediatizada’ pelas representações, pelas
ações, pelas obras, pelas instituições, pelos monumentos que a objetivam. É nesses
objetos, no mais amplo sentido do termo, que o ego deve se perder e se encontrar.
Podemos dizer que uma filosofia da reflexão não é uma filosofia da consciência, se por
consciência entendemos a consciência imediata de si mesmo. A consciência é uma tarefa,
dizíamos [acaba p. 275] mais acima, mas ela é uma tarefa porque não é um dado.
Certamente, tenho uma apercepção de mim mesmo e de meus atos, e essa apercepção é
uma espécie de evidência. Descartes não pode ser desalojado dessa proposição
incontestável: não posso duvidar de mim mesmo sem aperceber que duvido. Mas o que
significa essa apercepção? Uma certeza, certamente, mas uma certeza privada de verdade.
Como Malebranche compreendeu muito bem, contra Descartes, essa apreensão imediata
é apenas um sentimento e não uma ideia. Se a ideia é luz e visão, não há nem visão do
ego, nem luz da apercepção. Sinto apenas que existo e penso. Sinto que estou desperto,
tal é a apercepção. Em linguagem kantiana, uma apercepção do ego pode acompanhar
todas as minhas representações, mas essa apercepção não é conhecimento de si mesmo,
ela não pode ser transformada numa intuição que verse sobre uma alma substancial.” (p.
275-276)