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Fichamento Tempo e Narrativa 3

- “A quarta parte de Tempo e narrativa visa explicitar da forma mais completa possível a
hipótese que governa nossa investigação, qual seja, a de que o trabalho de pensamento
presente em toda configuração narrativa culmina em uma refiguração da experiência
temporal. De acordo com nosso esquema da tripla relação mimética entre a ordem da
narrativa e a ordem da ação e da vida, essa capacidade de refiguração corresponde ao
terceiro e último momento da mímesis.” (p. 3)

Primeira seção: A aporética da temporalidade

-“Insistir nas aporias da concepção agostiniana do tempo, antes de expor aquelas que
surgem em alguns de seus sucessores, não significa renegar a grandeza de sua descoberta.
Ao [p. 14] contrário, significa marcar, num primeiro exemplo, essa característica muito
singular da teoria do tempo de que qualquer progresso alcançado pela fenomenologia da
temporalidade se paga com o preço cada vez mais elevado de uma aporicidade crescente.
A fenomenologia de Husserl, a única que faz jus ao título de fenomenologia pura,
comprovará à porfia essa lei desconcertante. A fenomenologia hermenêutica de
Heidegger, apesar de sua ruptura em profundidade com uma fenomenologia da
consciência interna do tempo, tampouco foge à regra, embora acrescente suas próprias
dificuldades às de seus dois ilustres predecessores.” (pp. 13-14)

Cap. 1. Tempo da alma e tempo do mundo: o debate entre Agostinho e Aristóteles

- “Ora, por trás de Aristóteles, desenha-se toda uma tradição cosmológica, segundo a qual
o tempo nos circunscreve, nos envolve e nos domina, sem que a alma tenha a potência de
produzi-lo. Minhas convicção é a de que a dialética entre a intentio e a distentio animi
não é capaz de produzir por si só esse caráter imperioso do tempo; e que, paradoxalmente,
ela até contribui para ocultá-lo.” (p. 15)

- “Para Agostinho, a divisão do tempo em dias e anos, bem como a capacidade, familiar
para qualquer retórico antigo, de comparar entre si sílabas longas e breves, designam
propriedades do próprio tempo. A distentio animi é a possibilidade mesma da medida do
tempo. [...] Condenava-se ao mesmo tempo a buscar na distensão do espírito o princípio
da extensão do tempo. No entanto, os argumentos mediante os quais pensa ter conseguido
fazê-lo não se sustentam. A hipótese de que [p. 17] todos os movimentos –tanto o do Sol
como o do oleiro ou da voz humana – poderiam variar, portanto se acelerar, diminuir de
velocidade ou até de interromper, sem que os intervalos de tempo fossem alterados, é
impensável [...]. [...]. As próprias correções que a ciência fez incessantemente à noção de
‘dia’ – como unidade fixa no cômputo dos meses e dos anos – demonstram que a busca
de um movimento absolutamente regular continua sendo a ideia diretora de toda medida
do tempo. É por isso que simplesmente não é verdade que um dia continuaria sendo o que
chamamos de ‘um dia’ se não fosse medido pelo movimento do Sol.” (pp. 16-17)

- “A lição que Agostinho tira disso é que o tempo é algo diferente do movimento:
‘Portanto, o tempo não é o movimento de um corpo’ (XI, 24, 31). Aristóteles teria tirado
a mesma conclusão, mas esta não teria constituído mais que a face negativa de seu
argumento principal, qual seja, de que o tempo é algo do movimento, embora não seja
movimento. Já Agostinho não podia perceber a outra face de seu próprio argumento,
tendo-se limitado a refutar a tese menos elaborada, em que o tempo é identificado
diretamente ao movimento do Sol, da Lua e dos astros.” (p. 17)

- “Ficava condenado, assim, a sustentar a impossível aposta de encontrar na expectativa


e na lembrança o princípio da própria medida delas: é por isso que, segundo Agostinho,
deve-se dizer que a expectativa encolhe quando as coisas esperadas se aproximam e que
a lembrança se alonga quando as coisas rememoradas se afastam, e que, quando recito
um poema, o trânsito pelo presente faz com que o passado cresça na mesma proporção
em que o futuro diminui. Faz-se necessário indagar, então, com Agostinho, o que aumenta
e o que diminui e qual unidade fixa permite comparar entre si durações variáveis.” (p. 18)

- “Infelizmente, a dificuldade de comparar entre si durações sucessivas diminuiu apenas


um grau: não se consegue perceber qual o acesso direto que se pode ter a essas impressões
que supostamente permanecem no espírito e, sobretudo, como elas poderiam fornecer a
medida fixa de comparação que nos proibimos de pedir ao movimento dos astros.” (p. 18)

- “O fracasso de Agostinho em derivar o princípio da medida do tempo apenas da


distensão do espírito nos convida a abordar o problema do tempo por sua outra
extremidade, a natureza, o universo, o mundo [...]. Mostraremos posteriormente como é
importante para uma teoria narrativa que os dois acessos ao problema do tempo, pelo lado
do espírito e pelo lado do mundo, permaneçam abertos. A aporia da temporalidade, a que
responde de diversas maneiras a operação narrativa, consiste precisamente na [p. 19]
dificuldade de manter as duas extremidades da cadeia: o tempo da alma e o tempo do
mundo. É por isso que é preciso ir até o fundo do impasse e reconhecer que uma teoria
psicológica e uma teoria cosmológica do tempo se ocultam reciprocamente na própria
medida em que se implicam uma a outra.” (pp. 18-19)

- “Para fazer aparecer o tempo do mundo que a análise agostiniana ignora, escutemos
Aristóteles e deixemos ressoar, por trás de Aristóteles, palavras mais antigas, cujo sentido
nem mesmo o Estagirita domina.” (p. 19)

- “[...] se a percepção do tempo não se dá sem a percepção do movimento, é a existência


do próprio tempo que não se dá sem a do movimento.” (p. 20)

- “Essa dependência do tempo com relação à mudança (movimento) é uma espécie de


fato primitivo e a tarefa, mais adiante, consistirá em inserir de algum modo a distensão
da alma nesse ‘algo do movimento’. A dificuldade central do problema do tempo resulta
daí. Pois, num primeiro momento, é difícil ver como a distensão da alma poderá se
conciliar com um tempo que se define em primeiro lugar como ‘algo do movimento’
(Física, 219 a 9-10).” (p. 20)

- “Assim, termina a segunda fase do argumento: o tempo, dissemos acima, é algo do


movimento. O que do movimento? O antes e o depois no movimento. Sejam quais forem
as dificuldades de fundar o antes e o depois numa relação de ordem que dependa da
grandeza como tal e de transferi-la por analogia da grandeza ao movimento e do
movimento ao tempo, a conclusão do argumento não dá lugar a dúvidas: a sucessão, que
nada mais é que o antes e o depois no tempo, não é uma relação absolutamente primeira;
ela procede, por analogia, de uma relação de ordem que é no mundo antes de ser na [p.
22] alma. Topamos, também aqui, com um irredutível: seja qual for a contribuição do
espírito para a apreensão do antes e do depois – e, acrescentamos, o que quer que o espírito
construa sobre essa base por sua atividade narrativa -, ele encontra a sucessão nas coisas
antes de retomá-la nele mesmo; começa por submeter-se a ela e até por sofrê-la antes de
construí-la.” (pp. 21-22)

- “Embora [p. 23] certamente se necessite de uma alma para determinar o instante – mais
precisamente para distinguir e contar dois instantes – e para comparar entre si os
intervalos a partir de uma unidade fixa, a percepção das diferenças funda-se na das
continuidades de grandeza e de movimento e na relação de ordem entre o antes e o depois,
que ‘segue’ a ordem de derivação entre os três contínuos análogos. Assim, Aristóteles
pode especificar que o importante para a definição do tempo não é o número numerado,
mas enumerável, que é dito do movimento antes de ser dito do tempo. Daí resulta que a
definição aristotélica do tempo – ‘o número do movimento, segundo o antes e o depois’
(219 b2) – não comporta nenhuma referência explícita à alma, apesar da remissão, em
cada fase da definição, a operações de percepção, de discriminação e de comparação que
só podem ser operações da alma.” (pp. 22-23)

- “É ela, a phýsis, que, ao sustentar o dinamismo do movimento, preserva a dimensão


mais que humana do tempo.” (p. 24)

- “[...] é preciso ouvir, vindo de [p. 25] mais longe que Platão, as irrefutáveis palavras
que, antes de toda a nossa filosofia e apesar de toda a nossa fenomenologia da consciência
do tempo, mas que ele nos envolve, nos circunda e nos domina com sua temível potência:
como não pensar aqui no famoso fragmento de Anaximandro sobre o poder do tempo,
onde as alternâncias das gerações e das corrupções veem-se submetidas à ‘ordem fixa do
tempo’?” (pp. 24-25)

- “Para ser pensável, o instante aristotélico não requer mais que um corte operado pelo
espírito na continuidade do movimento, na medida em que este é enumerável. [p. 29] Ora,
esse corte pode ser indiscriminado: qualquer instante é igualmente digno de ser o
presente. Mas o presente agostiniano, diríamos hoje na esteira de Benveniste, é qualquer
instante designado por um locutor como o ‘agora’ de sua enunciação. Que o instante seja
simplesmente um instante qualquer e o presente tão singular e determinado quanto a
enunciação que o contém é um traço diferencial que tem duas consequências para nossa
própria investigação. Por um lado, numa perspectiva aristotélica, os cortes mediante os
quais o espírito distingue dois instantes bastam para determinar um antes e um depois em
virtude apenas da orientação do movimento de sua causa para seu efeito; assim, posso
dizer: o acontecimento A precede o acontecimento B e o acontecimento B sucede ao
acontecimento A, mas nem por isso posso afirmar que o acontecimento A é passado e o
acontecimento B futuro. Por outro lado, numa perspectiva agostiniana, só há futuro e
passado relativamente a um presente, ou seja, a um instante qualificado pela enunciação
que o designa. O passado só é anterior e o futuro posterior a um presente dotado da relação
de autorreferência, atestada pelo próprio ato de enunciação.” (pp. 28-29)

- “Não é possível passar de uma perspectiva sobre o tempo para a outra por meio de um
salto, mas é como se uma estivesse condenada a ocultar a outra. No entanto, as
dificuldades próprias a ambas as perspectivas exigem que as duas se conciliem; com
relação a isso, a conclusão da confrontação entre Agostinho e Aristóteles é clara: não é
possível atacar o problema do tempo apenas por uma das extremidades, a alma ou o
movimento. Apenas a distensão da alma não pode produzir a extensão do tempo; apenas
o dinamismo do movimento não pode gerar a dialética do triplo presente.” (p. 35)

- “Nossa poética da narrativa necessita tanto da cumplicidade como do contraste entre a


consciência interna do tempo e a sucessão objetiva para tornar mais urgente a investigação
das mediações narrativas entre a concordância discordante do tempo fenomenológico e a
simples sucessão do tempo físico.” (p. 36)

Cap. 2. Tempo intuitivo ou tempo invisível?: Husserl confrontado com Kant

- “Se escolhi interrogar Husserl nesse estágio da investigação sobre a aporética do tempo
foi devido à ambição maior que a meu ver caracteriza sua fenomenologia da consciência
interna do tempo, a saber, fazer aparecer o próprio tempo por meio de um método
apropriado e assim livrar a fenomenologia de toda aporia. Ora, a ambição de fazer
aparecer o tempo como tal choca-se sem sucesso com a tese essencialmente kantiana da
invisibilidade desse tempo que, no capítulo anterior, aparecia sob o título de tempo físico
e que retorna, na Kritik der reinen Vernunft [Crítica da razão pura], com o título de tempo
objetivo, isto é, de tempo implicado na determinação dos objetos. Para Kant, o tempo
objetivo, nova figura do tempo físico numa filosofia transcendental, nunca aparece como
tal, sendo sempre uma pressuposição.” (p. 37)

1. O aparecer do tempo: as ‘Lições’ de Husserl sobre a fenomenologia da consciência


interna do tempo

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