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ARTIGO ARTICLE
etnoepidemiológica
Em primeiro lugar, diz que a epidemiologia to- apontados por alguns autores como determi-
ma para estudo a enfermidade, ao invés dos nantes dos limites da epidemiologia.
problemas em populações. Parte de uma defi- Barreto & Alves (1994), ao discutirem o co-
nição profissional do que seja enfermidade, em letivo e o individual na epidemiologia, e a pro-
detrimento de uma definição popular ou do pósito de sua interface com as ciências sociais,
sistema de signos. Utiliza categorias médicas, admitem que, embora tenha se estruturado co-
supondo geralmente uma causalidade linear mo a disciplina que estuda a distribuição e os
com limitado número de fatores determinan- determinantes da doença em populações, em
tes. Por sua vez, a antropologia, segundo Bi- um coletivo humano, a epidemiologia enfatiza
beau, lida com categorias menos definidas, su- a determinação de estruturas normativas, pa-
pondo uma causalidade mais global. Em vez de drões de comportamento e valores sociais nos
se ater às taxas de prevalência de enfermidades indivíduos. Nesta perspectiva estruturalista,
e sua precisão quantitativa, a antropologia bus- perde de vista a existência de indivíduos con-
ca a freqüência e forma do problema, qualitati- cretos que vivenciam situações sociais que lhe
vamente. O autor, ao defender uma proposta são dadas e que interpretam e fornecem signi-
alternativa para a antropologia médica, cunha ficados aos seus comportamentos e aos dos ou-
o conceito de dispositivo patogênico estrutural, tros. Ou seja, para a epidemiologia, segundo
discutindo a necessidade de superação da ten- esses autores, a atividade humana resulta das
dência deformante da antropologia, que expli- condições materiais coercitivas. Essa perspecti-
ca tudo em termos culturais. Feita esta crítica à va adotada pela epidemiologia ao lidar com o
sua própria disciplina, Bibeau (op. cit.) assinala coletivo, pressupõe, segundo eles, a determina-
sua crítica à epidemiologia, que busca a expli- ção social sobre o sujeito. Argumentam que,
cação da enfermidade nos comportamentos de embora haja, de fato, implicações das circuns-
alguns indivíduos, como uso de álcool, tabagis- tâncias estruturais, historicamente herdadas,
mo, ou em características “sociodemográficas”, do coletivo, os indivíduos monitoram suas ações
como idade, condições de habitação e identifi- em processos interativos, negociando, adaptan-
ca os grupos de risco abordando a população do e modificando significados e contextos. Pa-
como uma agregação de indivíduos, objeto das ra os autores, a epidemiologia, nesta perspecti-
intervenções dos profissionais. Por outro lado, va, recusa aspectos essenciais da coletividade hu-
a antropologia deve buscar a compreensão dos mana: o universo de significados, motivos, aspi-
problemas a partir das condições materiais rações, atitudes, valores e crenças (op. cit.). A
(ambiente ecológico, político-econômico), do constatação faz os autores enfatizarem a neces-
contexto social (extensão da rede familiar ou sidade, já apontada nas ciências sociais, de su-
social, ausência ou presença de apoio social) e peração dessas duas perspectivas, em uma sín-
do contexto cultural (modo de educação, valo- tese que leve em conta a objetividade das estru-
res, crenças, concepções). Esta disciplina lida turas e a subjetividade das práticas individuais.
com grupos sociais (e não agregado de indiví- Mas ao falar em determinação social sobre
duos), com sua heterogeneidade social, cultu- os indivíduos, não se pode deixar de mencio-
ral e econômica, nos quais os atores participam nar a contribuição teórica de autores da epide-
com os profissionais na solução dos problemas miologia social latino-americana que estabele-
(op. cit.). ceram uma ruptura no pensamento médico
Embora Bibeau tenha sistematizado essa dominante, cujo postulado fundamental é o
discussão para sua proposta de uma etnografia caráter natural e a-histórico do processo saú-
limitada de comunidade, como alternativa me- de-doença. Ainda que, na sua perspectiva es-
todológica para a antropologia médica, ele si- truturalista, esses autores estejam vulneráveis a
naliza, nesse quadro, aspectos que têm caracte- críticas, inclusive algumas dessas formuladas
rizado a epidemiologia. Ressalvadas suas críti- por Barreto & Alves, já referidas, eles, por sua
cas sobre a sobreculturalização dos problemas vez, acumulam o mérito de ter trazido para a
pelos antropólogos, conforme referido acima, epidemiologia uma discussão que elevou seu
ele também caracteriza o que têm sido as abor- patamar para além da determinação “natural”
dagens qualitativas, especialmente, os estudos da doença.
antropológicos em saúde. Ao fazer uma aproximação com esses auto-
O texto de Bibeau, ao pontuar o que separa res é possível identificar um debate no qual se
a antropologia da epidemiologia, contribui pa- discutiu os limites das proposições dos grupos
ra identificar alguns aspectos que têm sido da América Latina.
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cação de disciplina aplicada, cujo conhecimento zem os autores, não é possível ordenar com
encontraria seu sentido último no processo de precisão os fenômenos quanto à etiologia ou
transformação das realidades concretas de saúde. mecanismos patogênicos, daí o recurso ao con-
Teria como pressuposto que os fenômenos da ceito de transtorno, por vezes utilizado, parti-
saúde-doença são processos sociais, devendo ser cularmente na área de saúde mental. Concluem
concebidos como tais, históricos, complexos, frag- que, em função da insuficiência de se lidar com
mentados, conflitivos, dependentes, ambíguos e o conceito de enfermidade, o fenômeno adoeci-
incertos (Almeida Filho, 1992; 2000). mento deve ser pensado em outras bases. As-
Almeida Filho (s.d.) sugere três modalida- sim, na proposta de uma etnoepidemiologia,
des para a perspectiva etnoepidemiológica: 1) que convoca a integração das perspectivas et-
estudo das diversidades étnicas e culturais co- nológica e epidemiológica, o conceito de mo-
mo fatores de risco, de proteção ou fatores léstia, traduzido por Sevalho & Castiel (op. cit.)
prognósticos para moléstias e outros proble- como “sensação difusa de haver algo desagra-
mas de saúde; 2) estudos de modelos comuni- dável, incômodo (perceber-se molesto)”, pare-
tários de distribuição e ocorrência de doença ce ser mais apropriado para apreensão dos efei-
em populações, ou seja, estudos interessados tos à saúde.
na ocorrência e prevenção de moléstia em gru- O desafio para o estudo dos processos saú-
pos, populações e culturas; 3) estudo da prática de-doença não se limita aos aspectos teóricos,
científica epidemiológica com a aplicação de mas são também localizados nas estratégias
métodos antropológicos. O autor denomina metodológicas a serem construídas: Enxergar
essas modalidades de etnoepidemiologia tipo I, outras representações de saúde e doença, admiti-
II e III, respectivamente. las na coleta de dados, construir novas taxono-
A etnoepidemiologia tipo II parte da com- mias incorporando a interpretação das narrati-
preensão de que as pessoas criam, compartilham, vas, situá-las no contexto histórico, social e cul-
organizam e usam um conhecimento comum, tural, reconhecer os rituais, perceber a diversida-
uma semiologia popular e um sistema de signos, de dos gêneros e grupos sociais no âmbito da sin-
que são socialmente e historicamente construídos gularidade do adoecer humano e considerá-la no
(Almeida Filho, 2001). coletivo das populações, devem ser algumas ques-
Dentro da mesma perspectiva teórica, uma tões a serem pensadas (Sevalho & Castiel, 1998).
discussão é trazida por Sevalho & Castiel (1998) A construção da integração de diferentes
a propósito da necessária aproximação com disciplinas se deparará com questões metodo-
novas categorias que substituam a enfermidade lógicas importantes, como a questão da repre-
tomada da clínica. Este conceito é próprio da sentatividade e seu significado para a epide-
biomedicina, que despreza as representações, o miologia e a etnografia, a confiabilidade, as
ponto de vista do paciente e da ordem sociocul- questões éticas, como a impossível neutralida-
tural, domínios dos aspectos simbólicos, onde re- de, o etnocentrismo, sob a utopia da constru-
sidiria a singularidade mais rica dos indivíduos e ção de um objeto transdisciplinar. No entanto,
da cultura. Os autores propõem o termo mo- este é um dos desafios que está colocado para
léstia, em correspondência a illness, como o os pesquisadores que acreditam na possibilida-
conceito capaz de fugir à lógica formal da taxo- de de uma nova via incorporar o melhor dos
nomia clínico-epidemiológica, na qual o con- campos epidemiológico e antropológico.
ceito de doença, enfermidade, evoca uma ho-
mogeneidade de propriedades e características,
pressupondo uma ordem ao fenômeno do adoe- Conclusões
cimento (op. cit.).
Esse fenômeno da doença ou enfermidade, O desenvolvimento de abordagens que inte-
na perspectiva clínico-epidemiológica, resulta, grem a investigação da morbidade e seus deter-
segundo Sevalho & Castiel (1998), de modelos minantes, a partir da metodologia epidemioló-
de raciocínio causal baseados em uma evolu- gica e a identificação, em maior profundidade,
ção de eventos, em que os sinais e sintomas são dos elementos necessários ao entendimento des-
decorrentes de uma entidade construída a par- tas formas de adoecer ou se sentir doente, pode
tir de processos admitidos como patogênicos, resultar em uma maior contribuição para o co-
em função de uma etiologia. No entanto, os nhecimento acerca das possibilidades de pro-
modelos nem sempre são capazes de definir to- moção da saúde. Isto é o que os problemas de
dos os níveis de eventos, e algumas vezes, di- saúde contemporâneos estão a reclamar. Nesta
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