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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

HUGO FREITAS DE MELO

“O OFÍCIO DE SACERDOTE”:
mediação cultural, atuação política e produção intelectual de padres no Maranhão

São Luís

2013
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HUGO FREITAS DE MELO

“O OFÍCIO DE SACERDOTE”:
mediação cultural, atuação política e produção intelectual de padres no Maranhão

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Maranhão, para obtenção do Título de
Mestre em Ciências Sociais.
Orientadora: Profª. Drª. Eliana Tavares dos Reis

São Luís
2013
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MELO, Hugo Freitas de.


“O ofício de sacerdote”: mediação cultural, atuação política e produção
intelectual de padres no Maranhão / Hugo Freitas de Melo. – 2013.
190 f.
Impresso por computador (Fotocópia)
Orientadora: Eliana Tavares dos Reis.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Maranhão, Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2013.
1. Sacerdote – Ofício – Aspectos sociais 2. Mediação cultural 3.
Atuação política. 4. Produção intelectual.
CDU 316: 2-725 (812.1)
4

HUGO FREITAS DE MELO

“O OFÍCIO DE SACERDOTE”:
mediação cultural, atuação política e produção intelectual de padres no Maranhão

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Maranhão, para obtenção do Título de
Mestre em Ciências Sociais.

Aprovada em / /

Banca Examinadora

_________________________________________________
Profª.Drª. Eliana Tavares dos Reis (Orientadora)
Professora e pesquisadora – DESOC e PPGCSO/UFMA

_______________________________________________
Prof. Dr. Igor Gastal Grill
Professor e pesquisador – DESOC e PPGCSO/UFMA

______________________________________________
Prof. Dr. Juarez Lopes
Professor – DESOC/UFMA
5

A Odarci e Hugo Raphaell, as razões de


minha existência.
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AGRADECIMENTOS

Ao término de mais uma etapa, olhar retrospectivamente e avaliar a quantidade e


o grau de contribuições obtidas ao longo de um percurso marcado por inúmeros
percalços não é tarefa fácil de realizar, principalmente no que concerne ao aprendizado
do ofício de sociólogo, com seus rigores metodológico e analítico peculiares e
sensivelmente distintivos em relação às demais ciências humanas e sociais.

Por isso, o registro feito nestas maltraçadas linhas em hipótese alguma significa
um ato de predileção por um ou outro nome, apenas a manifestação honrosa àqueles que
se fizeram presentes de uma forma mais intensa para a conclusão deste trabalho.

Explicitadas as ressalvas, agradeço primeiramente à minha mãe, Odarci, cujo


incentivo foi fundamental para o resgate da motivação em findar mais esta fase da
minha vida, diante de tantas dificuldades e contratempos interpostos, e dar continuidade
à aprendizagem deste novo mètier.

Agradeço também a Rafaela, com quem o compartilhamento de momentos


felizes e descontraídos serviu como válvula de escape das tensões diárias de leitura e
escrita da dissertação. Seu carinho e auxílio foram imprescindíveis para que as
atividades do cotidiano não incidissem de forma prejudicial na tessitura do presente
trabalho.

A Hugo Raphaell, o oxigênio diário na busca por dias melhores. Os esforços


aqui empreendidos se multiplicavam em força e determinação a cada sorriso seu. A
todos os meus familiares, pelo carinho e apoio, meu muito obrigado!

Quero externar aqui um agradecimento especial à orientadora deste trabalho, a


professora doutora Eliana Tavares dos Reis, responsável pela sugestão de reformulação
do projeto inicial de investigação ora desdobrado no presente estudo, pelas valiosas
referências bibliográficas e pelos encaminhamentos dados que resultaram na formatação
final da dissertação. A atenção, o acompanhamento, o incentivo e o apoio dispensados,
bem como as proveitosas discussões teórico-metodológicas enredaram uma orientação
segura e competente, inesquecível pela forma e qualidade, se constituindo num dos
sólidos alicerces para que este momento se tornasse possível.
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Agradeço à Capes pelo fornecimento de bolsa que possibilitou a realização da


pesquisa. Agradeço também a todos os professores do Departamento de Sociologia e
Antropologia da UFMA pela receptividade e acolhimento generosos, em especial aos
professores Igor Gastal Grill e Juarez Lopes, pelas valiosas sugestões e observações
críticas feitas na Banca de Defesa desta dissertação.

Registro ainda um agradecimento aos membros do Laboratório de Estudos de


Elites Políticas e Culturais (Leepoc), representado nas figuras dos professores Eliana
dos Reis e Igor Grill, organizadores do referido grupo, pelas ricas discussões, reflexões
e apresentação de trabalhos variados. Essa experiência foi de grande valia para o
enriquecimento do conhecimento sociológico e para uma compreensão mais ampla
sobre os pressupostos que nortearam este estudo.

A todos os amigos da turma do Mestrado de Ciências Sociais da UFMA de


2011, meu muito obrigado pelos bons momentos de descontração e compartilhamento
de ideias e perspectivas, em especial ao irmão e compadre Romário Barros, cuja
amizade, companheirismo e cumplicidade se solidificaram para além dos muros da
Universidade.

Aos funcionários da Cúria Metropolitana da Arquidiocese de São Luís pela


atenção e cooperação, meu muito obrigado. À Dona Creuza, guardiã do Memorial do
Padre Brandt, em Arari, meus sinceros agradecimentos pelo apoio, informações e
disponibilização de livros.

Fundamental ainda registrar o agradecimento à escritora Arlete Nogueira da


Cruz Machado, cujo trabalho sobre a vida e a obra de João Mohana foi de suma
importância para a consecução do capítulo dedicado ao mesmo. Material este gentil e
generosamente cedido a mim. Agradeço também ao irmão do referido padre, Ibrahim
Mohana, pelas conversas e fornecimento de informações sobre a vida de João Mohana.

Por fim, estendo meus agradecimentos a todos e a todas que ajudaram a tornar
mais suaves e prazerosos os passos dados ao longo dessa difícil empreitada,
contribuindo, cada um a seu modo, direta e indiretamente, para que as pedras no meio
do caminho não se constituíssem em barreiras intransponíveis, mas em obstáculos
passíveis de serem ultrapassados, tal como os espinhos que não obnubilam a beleza das
rosas.
8

A concretização deste momento tornou-se possível graças à resultante do


carinho, do auxílio e da amizade de todos os que se fizeram presentes em minha vida
durante o transcurso dessa etapa acadêmica, aqui consubstanciados em nomos
inesquecíveis.
9

“O ato de ler situa-se estrategicamente no ponto


de aplicação onde o universo do texto encontra-se
com o do leitor, onde a interpretação da obra
termina na interpretação do eu.”
Roger Chartier
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RESUMO

Análise dos condicionantes que presidiram a hibridização da atuação de padres no


Maranhão, tanto na capital quanto no “interior”, particularmente nas esferas da religião,
da política e da cultura, exercendo papéis de mediadores culturais e políticos, de
intérpretes da história e da sociedade e de porta-vozes de causas coletivas tidas como
legítimas. O estudo tem como recorte histórico e espacial as dinâmicas sociopolíticas
representadas pelo Maranhão durante as décadas de 1950 e 1980. Para tanto, recorreu-se
ao mapeamento e catalogação de dados e informações sobre os casos investigados das
mais variadas fontes, destacando-se a consulta a trabalhos acadêmicos, textos e livros
produzidos pelos sacerdotes analisados, bibliotecas pertencentes a organizações ligadas
à Igreja, bem como a sites e páginas pessoais disponíveis na internet. Fazendo-se uso
desse material, intentou-se descortinar os poderes sociais que incidem sobre a
diversificação do ofício sacerdotal no Maranhão, tomando-se a escrita como um dos
principais instrumentos de luta acionados pelos agentes no espaço de concorrência
simbólica.
Palavras-chave: Ofício de sacerdote. Mediação cultural. Atuação política. Produção
intelectual.
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ABSTRACT

Analyze of the conditions that governed the hybridization of the performance of priests
in Maranhão, in the capital and on the “inside”, particularly in the spheres of religion,
politics and culture, performing roles of cultural mediators and politicians, interpreters
of history and society and spokespersons of collective causes regarded as legitimate.
The study is historical overview and spatial dynamics sociopolitical represented by
Maranhão during the 1950s and 1980s. Therefore, we resorted to the mapping and
cataloging of data and information on the cases investigated in a variety of sources,
especially the query to academic papers, books and texts produced by the priests
examined, libraries belonging to church-related organizations, as well as the websites
and personal blogs. Making use of this material, brought to unveil social powers that
focus on the diversification of the priestly office in Maranhão, taking up writing as a
major instrument of struggle triggered by agents within symbolic competition.
Keywords: Craft priest. Cultural measure. Political action. Intellectual production.
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LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Algumas propriedades dos 14 agentes investigados......................................60


Quadro 2: Dados sobre a atuação profissional e a participação em distintos espaços de
socialização e de intervenção dos 14 casos investigados................................................67
Quadro 3: Distribuição de livros por gêneros de escrita referente aos 14 casos
investigados.....................................................................................................................78
Quadro 4: Frequência das modalidades de escrita..........................................................79
Quadro 5: Distribuição dos livros por décadas...............................................................81
13

SUMÁRIO

RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE QUADROS

INTRODUÇÃO.............................................................................................................15
“Intelectuais”, mediação e política: aportes conceituais.................................................24
Obstáculos e procedimentos de pesquisa........................................................................35
Capítulo 1: A REESTRUTURAÇÃO DO ESPAÇO RELIGIOSO E A
DIVERSIFICAÇÃO DA ATIVIDADE SACERDOTAL: apontamentos sócio-
históricos.........................................................................................................................45

Capítulo 2: PADRES ESCRITORES EM PERSPECTIVA: propriedades sociais,


recursos culturais e múltiplos registros de inscrição.......................................................58

2.1 Descrição geral dos agentes investigados.................................................................59


2.2 Gêneros de escrita e recursos culturais.....................................................................77
Capítulo 3: CLODOMIR BRANDT E AS DISPUTAS POLÍTICAS EM PAUTA: a
trajetória de um padre político e escritor.........................................................................84
3.1 Do Mearim a Arari: origens, formação cultural e chegada ao “novo lar”................85
3.1.1 Perfil social dos pais.........................................................................................86
3.1.2 O “tio Cláudio” e a centralização das relações de parentesco..........................88
3.1.3 Entrando no mundo eclesiástico: formação seminarística e cultural................90
3.1.4 O vigário de Arari: aspectos sociais, culturais e religiosos da cidade..............93
3.2 Em nome da Igreja: “projetos” sociais e mediação cultural no interior do
Maranhão.......................................................................................................................102
3.2.1 Educação e cultura como base da obra religiosa............................................103
3.2.2 Comunicação social e projeção político-religiosa..........................................107
3.3 A escrita como luta política: posições, posicionamentos e embates políticos........109
3.3.1 Um padre político...........................................................................................111
3.3.2 A guerra política na imprensa........................................................................119
3.4 Da ação política ao reconhecimento “intelectual”..................................................126
Capítulo 4: JOÃO MOHANA E A AFIRMAÇÃO INTELECTUAL DO
SACERDOTE: os usos sociais da escrita ...................................................................130
4.1 O nascimento do escritor: origem social e formação escolar..................................133
4.1.1 Características sociais dos pais.......................................................................137
4.1.2 A “opção” pela Medicina...............................................................................144
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4.2 Um intelectual a serviço da Igreja...........................................................................148


4.2.1 A consagração literária de um escritor católico.............................................150
4.2.2 O ingresso na Academia Maranhense de Letras............................................154
4.3 Da “batina branca” à “batina preta”: a “vocação” do sacerdócio...........................157
4.4 O “ministério da palavra escrita” e a dissolução do religioso................................160
4.4.1 Um padre na disputa pela definição do que é literatura.................................162
4.4.2 Em nome da “libertação”: a JUAC e o recrutamento das elites.....................165
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................171
ANEXOS......................................................................................................................176
REFERÊNCIAS..........................................................................................................179
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INTRODUÇÃO

O presente estudo se inscreve na linha investigativa de trabalhos sobre a


formação e a afirmação de elites políticas e culturais, particularmente de “elites
letradas” na esfera religiosa, e suas múltiplas relações com o espaço de poder mais
amplo, propondo-se a analisar os condicionantes e as lógicas sócio-históricas que
incidem sobre os investimentos de aquisição de saberes e competências por parte de
sacerdotes católicos e sua reconversão voltada para a produção e reprodução de
representações sobre o mundo social. Especificamente, ancorando-se na perspectiva
relacional e disposicional proposta por Pierre Bourdieu, trata-se de uma dissertação que
analisa as lógicas de incorporação e de utilização de saberes específicos por agentes da
Igreja Católica em diferentes esferas sociais, com foco especial na modalidade de
manipulação de bens simbólicos (BOURDIEU, 2004), particularmente de escrita,
objetivada na produção intelectual de padres (notadamente de livros), nos gêneros de
escrita aos quais se dedicam e nas temáticas que abordam em seus escritos, num
contexto representado pelas dinâmicas sociopolíticas e culturais no Maranhão entre as
décadas de 1950 e 1980.

Objetivamente, o estudo focaliza as multidimensionalidades (cultural, social,


político, etc.) e multiposicionalidades assumidas por clérigos católicos que transitam
nas “difusas e móveis fronteiras” do trabalho intelectual, da “política” (GRILL; REIS,
2012), da “cultura” e da religião, através da análise de sua produção escrita em
consonância com seus registros biográficos e outras variáveis que permitiram a
apreensão de suas características, propriedades e recursos sociais. Dentre estes, o estudo
privilegiou a origem familiar, a formação escolar, os postos ocupados na estrutura
hierárquica da Igreja Católica no Maranhão, as funções e atividades profissionais
seculares exercidas ao longo de seus itinerários, bem como os cargos assumidos na
esfera político-burocrática, concepções de política, “projetos” de sociedade, valores e
“visões” de mundo, dados estes que, em conjunto, explicitam os perfis sociais dos
agentes em foco e animam os encaminhamentos da temática proposta ao longo do
trabalho.

A partir do exame de trajetórias específicas que se diferenciaram dos demais


agentes inseridos no espaço religioso “local” precisamente pelo trânsito fluido entre
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distintos domínios e a aquisição de recursos distintivos, a investigação contempla, de


forma sincrônica e diacrônica, a análise das múltiplas experiências clericais dos padres
investigados, o cotejamento das disposições adquiridas e a delimitação dos
condicionantes que presidiram os investimentos (mais ou menos conscientes) no tocante
à dedicação para a produção de trabalhos escritos (poemas, crônicas, memórias,
romances, peças de teatro, ensaios, textos jornalísticos, artigos acadêmicos, etc.)
publicados em formato de livro, em paralelo às suas atividades sacerdotais cotidianas.

Além disso, intenta-se relativizar o peso de tais investimentos “intelectuais” na


composição de carreiras eclesiais, delimitando-se o foco espacial do estudo à
participação de clérigos na esfera político-partidária, à atuação na esfera cultural e no
mercado de bens simbólicos, à inserção em instâncias de representação de frações
sociais e em organizações eclesiásticas caritativas e de cunho militante (Comissão
Pastoral da Terra, Conselho Indigenista Missionário, Cáritas, sindicatos, associações,
etc.), bem como ao pertencimento e ao desempenho de atividades circunscritas ao
âmbito das instâncias secularizadas de consagração e reconhecimento “intelectual”
(academias de letras, faculdades, universidades e institutos de pesquisa).

Com efeito, o cerne da investigação incide sobre os usos sociais da produção


escrita de padres que se arvoram na posse de determinados tipos de saberes, escolar e
prático (savoir-faire), para legitimar sua atuação e intervenção nos domínios cultural,
político e religioso no Maranhão, dentro do recorte em pauta. Investidos do poder
institucional delegado e autorizado pela Igreja, os sacerdotes investigados apresentam
ao longo de seus trajetos individuais e coletivos o acúmulo de uma multifacetada cultura
escolar e de variadas experiências profissionais de seu ofício religioso, as quais
relacionadas em confluência com os prestígios sociais conquistados em distintos e
imbricados domínios enredam seus repertórios de mobilização e sinalizam para a
diversificação de suas formas de atuação em suas interconexões com as demais esferas
sociais.

Desse modo, evidencia-se a possibilidade de análise dos trânsitos, vínculos,


relações de reciprocidade e de interdependência (ELIAS, 2001), amizades instrumentais
e interações de parentesco (WOLF, 2003), bem como as disputas, clivagens e
bricolagens pela conquista e manutenção dos bens simbólicos e materiais disponíveis e
pela ocupação de posições relativamente bem alocadas no espaço considerado, além da
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relação entre os recursos acumulados e acionados como “trunfos” e a valorização dada


pelos agentes a esses “troféus”, que caracterizam a constituição de antagonismos e
concorrências, de alianças e associações (mais ou menos duradouras) denegatórias dos
posicionamentos assumidos, influenciando assim, significativamente, a opção por
determinadas modalidades de intervenção intelectual, particularmente a da escrita, com
maior ou menor incidência no espaço em disputa (REIS; GRIL, 2008; REIS, 2010,
2007).

A escolha pela referida temática processou-se a partir do interesse em ampliar e


aprofundar algumas questões tratadas e defendidas na monografia (MELO, 2010),
intitulada Entre rosas e armas: atuação política da Igreja Católica e ditadura
militar no Maranhão1, quando procurou-se analisar a participação de clérigos católicos
no trato de questões que envolviam a lide com movimentos sociais, entidades
representativas de trabalhadores rurais e operários, associações comunitárias, etc., e nos
conflitos advindos dessas relações com os militares das forças de segurança, tomando
como foco principal as representações discursivas produzidas por membros eclesiásticos
veiculadas pelo periódico oficial da Igreja Católica no estado, denominado “JORNAL
DO MARANHÃO” (1968-1971).

De um modo geral, tratava-se naquela oportunidade de analisar as


representações elaboradas por agentes religiosos ao sabor da conjuntura sociopolítica
dos eventos conflituosos envolvendo padres e militares no Maranhão, tanto na capital
quanto no continente (“interior”), observando-se: a) os usos dos textos jornalísticos
pelos sacerdotes como trincheira de “luta contra a ditadura” e b) o poder político que o
periódico foi adquirindo, como “porta-voz oficial” da Igreja, à medida que aumentava a
intervenção dos agentes católicos na “política local”, mediante o processo de
recrudescimento da repressão e violência do regime militar no estado.

A partir disso, a proposta inicial de análise, que tomava os textos em si mesmos,


deslocou-se para os seus produtores, bem como para os condicionantes que
influenciaram e legitimaram a produção escrita desses padres, estendendo-se à presente

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Fruto da graduação em História pela Universidade Estadual do Maranhão, o trabalho analisa os
principais eventos sociopolíticos publicados pelo periódico católico “JORNAL DO MARANHÃO”,
particularmente os fatos conflituosos envolvendo padres e militares, que evidenciaram um
estremecimento nas relações bilaterais entre Igreja e Estado, exigindo da instituição eclesiástica, em
âmbito local, a reformulação de suas estratégias de atuação perante o regime e a adoção de novas práticas
pastorais.
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temática. A atenção a alguns processos e dinâmicas específicas dos investimentos aqui


realizados permitiu o tratamento de algumas questões de outrora e o aprofundamento de
outras aventadas ao longo da investigação, constituindo-se o presente estudo numa
espécie de desdobramento do anterior, reformulado em torno de um instrumental
conceitual construído a partir da confluência de contribuições provenientes da História,
da Sociologia, da Ciência Política e da Antropologia Política que, somadas, permitiram:
1) a análise dos recursos mobilizados pelos agentes como “trunfos” distintivos de suas
atuações em diferentes domínios; 2) a explicitação dos valores, concepções, “causas”,
repertórios, lógicas de justificação e modalidades de engajamento dos sacerdotes
católicos; 3) a identificação das estratégias, discursos, formulações e reprodução de
representações sobre o mundo social; e 4) a análise da relação entre a origem social e o
itinerário dos agentes, objetivados nos títulos, premiações, cargos ocupados e funções
exercidas.

A resultante da construção desse ferramental analítico ajudou a entender que os


poderes sociais adquiridos por sacerdotes católicos investigados dentro do recorte da
pesquisa, para além de suas atividades confessionais, de alguma forma, estão
relacionados às transformações no espaço religioso do Maranhão de meados do século
passado e ao (re)posicionamento institucional da Igreja Católica no estado, em paralelo
com as reformulações propostas pelo Vaticano, especialmente no tocante às questões e
problemáticas sociais locais em pauta.

O que implica pensar que, de certo modo, os multiposicionamentos assumidos


pelos clérigos em foco não estão deslocados das dinâmicas exógenas impostas ao
universo católico, assim como remetem às próprias especificidades do ambiente local de
suas ações originárias, num processo oblíquo e transversal de simultaneidades
conjunturais que se combinam e se reprocessam, não necessariamente de modo
contínuo, exigindo da Igreja, pois, uma reavaliação de seus “projetos”, a reestruturação
de seus quadros e postos hierárquicos e a reconfiguração de suas estratégias de
mobilização e intervenção frente às convulsivas transformações do mundo moderno.

Pode-se pensar ainda que essa mescla processual de condicionantes conjunturais


incide no estabelecimento e atualização de uma agenda de problemáticas sociais tidas
como “legítimas” pelos agentes eclesiásticos e no fornecimento de um aditivo em seus
repertórios de mobilização, quer seja através da elaboração e aplicação de novas ações
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pastorais, que implicam numa forma diferente dos sacerdotes de interpretar e atuar na
sociedade, tendo no engajamento militante de padres nessas “lutas sociais” um de seus
principais exemplos, quer na confecção de novas rotas e esferas de atuação sacerdotal,
onde a escrita se constitui num de seus primazes baluartes.

Convém ressaltar que o nascimento do presente trabalho assim como a


abordagem analítica que o norteia estão calcados na edificação de uma agenda comum
de debates, leituras e estudos realizados por pesquisadores que integram o Laboratório
de Estudos sobre Elites Políticas e Culturais (Leepoc), vinculado ao Departamento de
Sociologia e Antropologia e ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Maranhão, sob orientação e coordenação dos professores
Eliana Tavares dos Reis e Igor Gastal Grill.

Parte-se do estabelecimento de uma matriz teórica comum que direciona uma


pluralidade de pesquisas sobre seleção, hierarquização e princípios de afirmação e
legitimação de “elites” e grupos dirigentes em diversificados domínios, cujas
investigações focalizam múltiplas dinâmicas sociais em distintas localidades
geográficas (nacionais e internacionais) e as injunções daí derivadas e espraiadas para
diferentes esferas, seja a religião (MICELI, 1985; SEIDL, 2003, 2007a, 2007b, 2009a,
2009b), a “política”, a “cultura” (CORADINI, 2003; GRILL; REIS, 2012; REIS;
GRILL, 2008; REIS, 2010, 2008, 2007, 2007b; SAPIRO, 2012; SIGAL, 2012;
SIMIONI, 2008), o sistema escolar, a medicina (CORADINI, 2005; NUNES, 2000), o
judiciário (GRILL; REIS, 2010), as forças armadas (SEIDL, 2008).

Algumas problemáticas impostas pela abordagem proposta nos estudos


supracitados suscitam a observação percuciente de sua aplicabilidade em outras
realidades distintas da qual foi elaborada. A utilização neste trabalho do arcabouço
analítico bourdiano requer a explicitação de que não se trata aqui de uma “importação”
de uma lógica científica europeizante de uma sociedade central para uma dinâmica
periférica, baseada numa relação “centro-periferia” (CORADINI, 2003), muito menos
de uma postura de “aplicação de conceitos” (SIGAL, 2012) que renegam ou
secundarizam aspectos pertinentes às dinâmicas observadas. Mas sim de adaptação e de
absorção de uma proposta investigativa que se mescla com os elementos específicos do
espaço geográfico analisado e com as dinâmicas sócio-históricas evidenciadas, e que,
20

portanto, “não assume as condições periféricas como mera manifestação de ausências”


(SIGAL, 2012, p. 52).

Diversos estudos já apontaram que a generalização de conceitos para outras


realidades distintas dos “centros” ocidentais onde foram concebidos se mostraram
intransferíveis (BADIE; HERMET, 1993), uma vez que diferentes regiões geográficas,
como a América Latina, o continente africano e países do leste europeu, com suas
particularidades e dinâmicas específicas, não puderam simplesmente ser negligenciadas
(HERMET, 1973), principalmente em suas formas de organização religiosa, cujas
implicações continuaram intervindo nos diferentes domínios sociais, especialmente nas
respectivas arenas políticas.

Com isso, entretanto, não se quer atingir aqui a fundamentação teórica adotada
ou seus princípios analíticos, nem redirecionar as abordagens investigativas, mas antes
adequar a proposta bourdiana para contextos “periféricos” como o Maranhão,
reafirmando a sua validade e abrangência enquanto esquema analítico que evidencia a
relevância das especificidades estudadas, num processo de ajustamento das ferramentas
conceituais para distintas localizações geográficas, conforme apontaram Coradini e Reis
(2012). Segundo os autores, a compreensão do que é “política”, por exemplo, deve estar
cimentada nas “lógicas autóctones” dos espaços investigados, e não nas definições por
analogia importadas dos “centros” ocidentais. Ainda que haja um elo consistente de
intermediação entre estes centros e os cientistas sociais de diferentes nacionalidades que
advogam e se apropriam do esquema analítico bourdiano, operacionalizando-o em seus
respectivos países de atuação, faz-se necessário “priorizar o caráter relacional dos
mecanismos de estruturação e hierarquização dos domínios sociais nos limites fluidos
das fronteiras nacionais” (CORADINI; REIS, 2012, p. 13).

Com efeito, a relativização de tais fronteiras nacionais, que exige a observação


da configuração específica de cada espaço e localidade pesquisada, acaba também por
atualizar a discussão em torno dos limites entre diferentes domínios, colocando em
evidência a fluidez dos liames entre cultura, religião e política, a imbricação entre
espaço público e esfera privada (BURITY, 2001). Pode-se mesmo dizer que assim
como o religioso informa o político e o político estrutura o religioso (COUTROT, 2003,
p. 335), dando-se ênfase num menor grau de autonomização (sempre relativa) entre os
diferentes “campos”, os múltiplos registros de inscrição de agentes católicos em
21

diversificados domínios de atuação, os diferentes postos e posições ocupados ao longo


de seus trajetos de vida, bem como a cultura escolar multifacetada que apresentam, para
além de sua formação “tradicional”, salientam a hibridização de sua atividade
sacerdotal, a reconfiguração do espaço religioso e a redefinição da própria “excelência
religiosa” (SEIDL, 2009a) e do que significa “ser católico”.

De fato, o conjunto de práticas adotadas pela Igreja face às convulsões do


mundo moderno (MAINWARING, 2004; SERBIN, 2002) ensejou um processo de
recomposição e de reformulação das estratégias de dominação do poder religioso,
produzindo como principal efeito a legitimação da atuação de seus sacerdotes em
distintas esferas, fomentando ainda a participação de membros da Igreja em assuntos e
debates não necessariamente de cunho espiritual e ampliando a diversificação de suas
modalidades de intervenção no mundo social, inclusive no âmbito da produção e escrita
de livros, constituindo-se tal atividade como um plus na luta pela imposição de sentidos
e representações no espaço de manipulação simbólica.

Nessa perspectiva, a disposição de sacerdotes para a produção de bens


simbólicos, especialmente de bens culturais (artísticos, literários, filosóficos,
científicos), evidencia o poder da escrita nas sociedades de “letrados” (CORADINI,
2003, 2010; GRILL; REIS, 2012; REIS; GRILL, 2008; REIS, 2010, 2007),
particularmente entre as “elites eclesiásticas” (MICELI, 1988; SEIDL, 2007b, 2003),
que ao se revestirem desse tipo de reconhecimento “intelectual” traduzem o valor social
desse trunfo para o interior do espaço religioso, acionando-o enquanto instrumento de
luta na disputa pela ocupação de posições relativamente privilegiadas e de papéis
estratégicos no espaço de concorrência. Como bem frisou Pierre Bourdieu (2004, p.
121-122), agentes dedicados à atividade da escrita, portanto inseridos num campo de
concorrência de manipulação simbólica, por vezes,

são pessoas que se esforçam para manipular as visões de mundo (e, desse modo, para
transformar as práticas) manipulando a estrutura da percepção do mundo (natural e
social), manipulando as palavras, e, através delas, os princípios de construção da
realidade social.

De fato, o uso da escrita por agentes (ou conjunto de agentes) inscritos no espaço
de manipulação simbólica e, por conseguinte, de dominação cultural – onde o acesso à
cultura escolar é amplamente controlado e desigual –, diferentemente de uma percepção
22

centrada no ego do escritor, cujo reconhecimento “intelectual” pauta-se numa lógica de


justificação e de reciprocidade que enaltece certas habilidades técnicas em detrimento
das teias sociais às quais o autor está enredado, se constitui num instrumento de luta
simbólica, de conquista de posições e de afirmação de posicionamentos no jogo em
disputa. Segundo a lógica que perpassa a produção escrita de determinados agentes, “em
condições de excessiva monopolização da cultura erudita legítima [...], o mero recurso à
palavra escrita ou publicada pode promover reputações e legitimidades” (CORADINI;
REIS, 2012, p. 15).

No tocante à investigação sobre os condicionantes que influem nos


investimentos (mais ou menos conscientes) de especialização na produção de bens
simbólicos e de reprodução de representações sobre o mundo social por clérigos
católicos, ainda há uma escassez de estudos que aprofundem discussões e analisem as
especificidades de uma configuração recortada pelo Maranhão de meados do século
XX, o que dificultou sobremaneira a execução deste trabalho, sobretudo pela ausência
de interlocução no âmbito da referida temática.

No Maranhão, as investigações já realizadas (e outras ainda em curso) que


identificam dinâmicas, processos, relações, práticas e discursos de agentes eclesiásticos
operadores de um determinado tipo de catolicismo, cujo eixo central é nascituro de uma
configuração institucional de “crise”, de instabilidade política e de conflito social
(LAGROYE, 2006; SERBIN, 2008), dedicam-se ao estudo de dimensões analíticas
centradas na “politização do engajamento religioso”, na constituição de “causas
coletivas” e “problemáticas legítimas”, no ativismo de sacerdotes em associações,
sindicatos, movimentos populares e lutas estudantis, além da inserção desses agentes no
ambiente acadêmico-universitário e nas instâncias de consagração “intelectual”, que
demarcam uma significativa atuação clerical no polo cultural do espaço religioso
maranhense (BORGES, 1998; MACHADO, 2012; NERIS, 2011; PEREIRA, 2011,
REIS, 2010).

Dos trabalhos acima arrolados, destaca-se o artigo desenvolvido por Wheriston


Neris (2011) no tocante às relações entre catolicismo e instâncias de reconhecimento
intelectual no Maranhão, onde o autor, seguindo a perspectiva adotada por Ernesto Seidl
(2008), tateia sobre os condicionantes que levaram à formação de mediadores culturais
socialmente reconhecidos para legitimar uma interpretação católica sobre a história e a
23

cultura maranhense (NERIS, 2011, p. 11-14). No entanto, no referido trabalho, o


pesquisador não aprofunda suas observações analíticas, muito menos toca na questão
dos usos sociais da escrita feitos pelos agentes investigados, detendo-se à constituição
de uma espécie de agenda de pesquisas sobre as diversas inter-relações tecidas por
membros da Igreja em diferentes domínios sociais, privilegiando a dimensão do
“militantismo político-religioso”.

Outro trabalho que também aborda a questão da mediação cultural no Maranhão,


porém enfocando agentes da esfera política, é o artigo produzido por Eliana dos Reis
(2010), intitulado Em nome da cultura, no qual a autora desenvolve uma análise sobre
as práticas e os recursos acionados por porta-vozes que disputam a autoridade legítima
para definir o que é a “cultura” no Estado. Realçando as concepções e representações
produzidas por estes mediadores, a pesquisadora lança luz sobre as bases de sustentação
do prestígio social destes e do papel do mediador na definição de políticas públicas e na
construção de identidades regionais por meio da “cultura”. A importância deste estudo
para o presente trabalho deve-se, primordialmente, ao seu aspecto metodológico, uma
vez que também se faz uso do exame dos “repertórios de mobilização, espaços de
inserção e os perfis sociais de agentes” situados em posições estratégicas nos domínios
de produção cultural e política no Maranhão (REIS, 2010, p. 499), a fim de se analisar o
papel de mediação política e cultural desenvolvido por sacerdotes da Igreja Católica no
estado.

Assim, diante dos escassos estudos sobre a atuação de agentes católicos como
mediadores nos domínios da política e da cultura no Maranhão, bem como sobre a
relevância ou não de seu trabalho “intelectual” enquanto produtores culturais,
autorizados pela instituição eclesiástica e legitimados socialmente, de representações do
mundo social sob o olhar da Igreja, e ressalvadas as problemáticas que perpassam a
operacionalização de conceitos importados de “centros” ocidentais para regiões
“periféricas”, conforme já foi apontado, intentou-se articular no presente trabalho as
significativas contribuições das pesquisas já citadas e de outras recentes que sinalizam
para a análise do peso relacional da origem social, do capital escolar, da produção
escrita e de redes de relações mais ou menos privilegiadas na composição de carreiras
de religiosos católicos em diferentes eixos de formação e atuação profissional,
transplantando-se as contribuições destacadas para a esfera religiosa local.
24

A pluralidade de modalidades de intervenção de sacerdotes católicos inscritos


em diferentes domínios ensejou ainda alguns questionamentos subjacentes à
investigação em foco: O que leva um padre a se dedicar à atividade da escrita em
paralelo ao exercício do sacerdócio? Que tipo de retribuições ele obtém pelo
desempenho de tal atividade? O que informa a produção intelectual de padres no
Maranhão? Quais as correspondências existentes entre os tipos de escrita e as posições
ocupadas pelos clérigos no espaço em disputa? Em nome de que esses agentes
legitimam sua inserção em diversificados espaços de atuação? Quais os trunfos
mobilizados que permitem esses agentes fazer o que fazem, dizer o que dizem e
escrever o que escrevem? Qual o repertório disponibilizado por este tipo de catolicismo
que possibilita aos seus agentes assumirem posições e tomar posição em determinadas
situações sócio-históricas? Qual a lógica subjacente que define esses papéis e quem está
na disputa por tais definições?

Sem pretender oferecer respostas a todas essas questões, formuladas em


conjunto, e tomando-as muito mais como linhas-mestras do itinerário traçado para a
edificação do presente estudo, intenta-se o cotejamento das dimensões ensejadas ao
longo do trabalho que segue.

“Intelectuais”, mediação e política: aportes conceituais

A corrente teórica que se debruça sobre o estudo de “elites” e grupos dirigentes


remete a uma cristalizada tradição sociológica com base numa árvore genealógica
consagrada em torno de seus “pais fundadores” no campo das Ciências Sociais,
evidenciando uma matriz geracional de autores – Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e
Robert Michels – amplamente referenciados no processo de constituição deste campo de
estudo (CORADINI, 2008; GRYNSZPAN, 1996, 1999; GRILL, 2008). O foco inicial
desses pesquisadores aportara sobre o “caráter inexorável” de toda e qualquer
organização política, strictu sensu, o de “governo de uma minoria exercido sobre uma
maioria” (GRILL, 2008, p. 13). O escopo de definição do termo “elites” assentava-se
sobre as noções de grupos minoritários e socialmente “superiores”, possuidores de
atributos valorizados no mundo social, que se impunham perante a “maioria”, cujas
25

disputas pela manutenção do poder se davam entre as velhas e novas forças emergentes,
especialmente concentradas na análise sobre os burocratas de Estado (esfera político-
administrativa), donos de empresas, bancos, etc. (esfera econômica), oficiais de alta
patente das forças armadas, etc. (GRYNSPAN, 1996, 1999; GRILL, 2008).

A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, a composição de uma “teoria das


elites” moldada nos termos propostos por Mosca, Pareto e Michels recebeu uma série de
críticas de outras correntes teóricas que irrompiam no cenário acadêmico mundial,
principalmente através das abordagens metodológicas oriundas dos Estados Unidos,
propostas por Wright Mills e Robert Dahl2. Contudo, com o advento da sociologia
política francesa, ancorada nos trabalhos desenvolvidos por Pierre Bourdieu e
pesquisadores inseridos em seus grupos de estudos, a partir do final da década de 1960,
processou-se uma renovação no campo de investigações sobre as “elites”.

Deslocando-se o foco das análises determinísticas sobre “quem governa”, que


concebia as “elites” como objeto objetivado em si, os estudos de Pierre Bourdieu
privilegiaram os princípios de estruturação, legitimação e hierarquização das práticas e
das relações sociais, explicitando os processos e condicionantes que caracterizam os
modos de dominação e as estruturas responsáveis por garantir a sua manutenção e
reprodução (BOURDIEU, 2002, p. 1-2). Não se trata mais de pesquisar os grupos nem
os indivíduos, tomados em si, mas os recursos e princípios estruturantes que legitimam
práticas e estabelecem relações de poder no espaço social (CORADINI, 2008).

O que passa a pesar e a definir, portanto, os tipos de relações objetivas e práticas


sociais entre agentes situados em posições de dominantes e dominados são a
distribuição e o volume de capital acumulado no “campo de poder”, concebido como o
espaço das relações de força entre agentes ou instituições detentores de poderes (ou de
espécies de capital) necessários para a ocupação de posições dominantes (BOURDIEU,
2010, p. 244). No tocante ao “campo religioso”, uma espécie de sub-campo dentro do
campo de poder mais amplo, Bourdieu (2004, p. 120) assevera que se trata de um
“espaço”, no qual os agentes “lutam pela imposição da definição legítima não só do
religioso, mas também das diferentes maneiras de desempenhar o papel religioso”,
lutando inclusive pela imposição dos princípios de dominação religiosa.

2
Sobre as contribuições dessa sociologia norte-americana para a atualização das significações do conceito
de “elites” e sua proposta teórica, ver: GRILL, Igor Gastal. Elites, profissionais e lideranças na política:
esboço de uma agenda de pesquisas. In: Ciências Humanas em Revista, v. 4, n. 2, 2008.
26

Vários estudos desenvolvidos por Pierre Bourdieu (2002a, 2002b, 2008, 2010,
2011) e por pesquisadores que circulam nos seus grupos3 ressaltam essa perspectiva de
luta entre dominantes e dominados no campo de poder e de conquista e manutenção dos
meios que garantam tal relação de dominação, da qual o presente trabalho está
embebido, com especial destaque para As regras da arte (2010), onde o sociólogo
analisa os princípios que regem escritores e instituições literárias na elaboração e
manipulação de bens simbólicos. Neste trabalho, Bourdieu retira toda a áurea singular
que recobre os escritores como “geniais”, reconstituindo-lhes os vetores e os
condicionantes que perpassam suas produções, além de analisá-los relacionalmente em
seus espaços de concorrência com outros agentes, explicitando as regras que permitem o
surgimento de “produtores culturais” em diferentes e múltiplos domínios de
manipulação simbólica, não se restringindo apenas aos “literatos”, mas estendendo-se
também à produção de artistas, filósofos, cientistas, políticos, religiosos.

Nessa perspectiva, a abordagem aqui adotada direciona-se para as condições de


emergência da figura do “produtor cultural” enquanto formulador de formas identitárias
(DUBAR, 1998) que conferem organicidade a um conjunto de indivíduos. Concebe-se
esse “produtor cultural” como mediador que define o nomos da “política” e do
“político” e, por conseguinte, da “religião”, do “religioso” e da “cultura”,
desenvolvendo um trabalho intelectual que inventa e reafirma papéis, posições, epítetos,
“missões” e “causas legítimas” em contextos periféricos (CORADINI, 2003; REIS,
2010; SEIDL, 2007b; SIMIONI, 2008). A explicitação desses condicionantes possibilita
o entendimento do próprio ato de “mediar” ou de “representar” dos agentes, que se
legitimam e se posicionam como porta-vozes de determinadas pessoas ou grupo de
pessoas, conferindo existência e legitimidade a si e aos próprios representados
(BOURDIEU, 2004, p. 189).

Outros estudos de Bourdieu (1998) evidenciam as dimensões das relações de


reciprocidade como elementos não negligenciáveis no estudo sobre a afirmação de elites
em posições de dominação no espaço de poder mais amplo. A operacionalização de tal
perspectiva é feita através do conceito de capital social, definido como “o conjunto de
recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações

3
Duas coletâneas organizadas por Odaci Luiz Coradini (2008) e outra contando com a colaboração de
Eliana Tavares dos Reis (2012) identificam os pesquisadores que circulam nos grupos de estudos
bourdianos.
27

mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento”


(BOURDIEU, 1998, p. 67). Em sociedades periféricas, como no caso do Brasil, onde
não houve um relativo processo de autonomização dos diferentes “campos”
(CORADINI, 2003, p. 126), a lógica das redes de relações pessoalizadas irrompe como
uma louvável dimensão de análise dos condicionantes que hierarquizam as relações
entre estruturas de capital, posições, disposições e tomadas de posição dos agentes.

Por esse intermédio, compreende-se a importância das contribuições fornecidas


pelos trabalhos de pesquisadores como Carl Landé (1977) e Eric Wolf (2003), cujas
formulações teóricas salientam as “relações diádicas”, as “alianças como addenda”, a
influência do “parentesco”, da “amizade”, do “clientelismo” na sedimentação de lógicas
que estruturam as práticas sociais. Segundo Landé (1997, p. 1-4), uma relação diádica
envolve alguma forma de interação entre dois indivíduos, que “visam à troca e à ajuda
mútua quando necessário”. Contudo, ressalta o autor, uma relação diádica não se
sustenta de modo suficiente precisamente por sua intermitência e voluntariedade,
necessitando, portanto, de uma “estrutura de relações institucionalizadas”, que são
contínuas e inclusivas, “pois determinam formas de interação substancial e
processualmente padronizadas”. Nesta relação de interdependência, tanto as alianças
diádicas quanto as relações institucionalizadas, conforme o peso e a estrutura de cada
uma no espaço considerado, podem ser estabelecidas como um addendum, isto é, como
um aditivo no conjunto das relações observadas, modificando assim sua configuração e
suscitando a formação de novas alianças.

Por sua vez, as noções elaboradas por Eric Wolf (2003) referentes às relações de
“parentesco”, de “amizade” e de “patrono-cliente” fundamentam as possibilidades de
análise das teias sociais gestadas a partir da “interação dialética entre estruturas formais
e os diferentes tipos de associações informais”. Segundo o autor, muitas vezes, “as
relações sociais informais são responsáveis pelos processos metabólicos necessários
para que se mantenha a instituição formal em operação” (WOLF, 2003, p. 94). Nesse
sentido, ponderar o peso das funções desempenhadas pela família e pelos parentes, pelas
relações de amizade e sua variante “instrumental” e pelas relações “patrono-cliente” é
fundamental para se analisar o grau de importância de laços de “lealdade”, ajuda mútua,
redes de reciprocidade e de auto-consagração entre pares para o direcionamento de
carreiras eclesiais, sedimentação de posições estratégicas no espaço religioso e para a
afirmação política e intelectual de sacerdotes no Maranhão.
28

As formulações teóricas estabelecidas por Landé (1977) e Wolf (2003),


enquanto conjunto de estruturas existentes em sociedades complexas, funcionam ainda
como elementos norteadores da abordagem adotada neste estudo no tocante à apreensão
das relações interpessoais, dos trânsitos e vínculos tecidos pelos agentes eclesiásticos
em suas interconexões com outras esferas sociais, conferindo-se assim uma maior
dimensão de análise sobre os recursos acumulados por cada sacerdote e o peso desse
tipo de capital na constituição de suas carreiras e trajetos pessoais.

Com efeito, as perspectivas apresentadas até aqui evidenciam, em seu conjunto,


a importância do trabalho “intelectual” realizado pelos mediadores, particularmente na
definição de papéis políticos, culturais e religiosos, observando-se, assim, a existência
de uma espécie de complexificação da função de mediação, exigindo-se dessa atividade
de “invenção das posições” e papéis sociais cada vez mais um elevado grau de relativa
especialização dos agentes responsáveis pela manipulação de bens simbólicos, de onde
surge o poder dos “intelectuais”, os fundamentos de sua legitimidade e o
estabelecimento de suas problemáticas como “legítimas”, que se inscrevem em níveis
menos abrangentes e englobam instituições específicas, como a igreja, as forças
armadas, o sistema escolar, dentre outras (CORADINI, 2003, p. 126).

Constituídos como agentes intermediários culturalmente favorecidos e


estabelecidos entre os grupos dirigentes e o “povo”, exercendo a função de “porta-
vozes”, os “intelectuais” se diferenciam dos demais agentes no espaço de manipulação
simbólica pelo desempenho de papéis que exprimem sua “capacidade de definir o social
e de explicar as condições de sua organização” (PECAULT, 1990, p. 33). Nos primeiros
decênios do século XX, estudos apontavam a relevância do trabalho desenvolvido pelos
“intelectuais” no tocante à elaboração e organização das formas de pensar, observar e
compreender os fenômenos sociopolíticos e culturais. Esse trabalho “intelectual” ficou
ainda mais evidenciado na questão da formulação das bases teóricas do “Estado
Nacional”, de onde se pôde depreender que os “intelectuais”, por sua capacidade social
e culturalmente favorecida, possuíam uma “vocação” para elite dirigente, detentores de
saberes e habilidades que os legitimavam para a “organização do político” (ibid.,1990,
p. 39).

A partir de novos estudos, evidenciou-se que o trabalho de definição e de


nomeação das coisas do mundo social não se sustentava apenas pelo acúmulo de
29

habilidades individuais e pela “intelectualidade” dos mediadores, mas primordialmente


pela posição ocupada no espaço de poder mais amplo. Como bem apontou Pierre
Bourdieu (2008), em seu trabalho sobre A economia das trocas linguísticas, no qual
produz sua crítica ao estruturalismo e aos seus renomados advogados, dentre eles
Saussure e Michel Foucault, o poder dos “intelectuais” que exercem a função de “porta-
voz” depende de sua posição social no espaço de concorrência e não meramente do teor
de seus escritos. Para o sociólogo, “o poder das palavras é apenas o poder delegado do
porta-voz”, que enseja a observação de outras dimensões, como o reconhecimento e o
desconhecimento, fatores estruturantes da delegação da autoridade da fala (e da escrita)
e, por conseguinte, da produção e reprodução do discurso autorizado do porta-voz
(BOURDIEU, 2008, p. 87-91).

Constituídos desses poderes sociais que sedimentam a autoridade delegada do


“porta-voz” que, no estudo em questão, são combinados com o poder institucional
eclesiástico que lhes recobre as vestes e os gestos, as práticas e as representações que
produzem sobre o mundo social, bem como com as relações sociais (amizade,
parentesco, “patrono-cliente”, etc.) que perpassam seus trajetos, os sacerdotes católicos
instituem seu lugares de fala legitimada e autorizada por um tipo de reconhecimento
(social, intelectual, político) advindo dos domínios exógenos à esfera religiosa, relativos
às múltiplas inscrições e associações (mais ou menos estáveis) tecidas e mantidas a
partir do fluxo estabelecido com outras esferas sociais.

Daí pode-se entender que a atividade da escrita (consubstanciada na publicação


de livros) exercida por esses agentes configura-se como fator de distinção, como
atributo de “notoriedade” em relação aos demais agentes, como um tipo de capital
amplamente valorizado no espaço em disputa à medida que o exercício de escrever é
concebido como um dos principais atributos passíveis de reconhecimento “intelectual”
(GRILL; REIS, 2012), ao mesmo tempo em que se constitui e é reivindicado como
recurso legítimo para a ocupação de determinadas posições e tomadas de posição no
espaço de concorrência simbólica.

No que se refere à “formação da cultura” e da “organização do político”


(PECAULT, 1990), a observação das posições ocupadas pelos mediadores no momento
de suas produções culturais, principalmente de escrita, é de fundamental importância
para se compreender que seu poder de nomeação e de definição reside na combinação
30

de seu trabalho intelectual com o reconhecimento social que lhe é conferido, isto é, na
delegação da autoridade de onde provém seu discurso autorizado.

Essa imbricação entre cultura e política, efetuada pelo trabalho de mediação dos
“intelectuais”, obteve como resultado por parte destes um estado de saída da teoria ao
engajamento. Diversos estudos já enfatizaram que a passagem desses agentes do campo
teórico para a práxis social se processou por meio da constituição e diferenciação de
“modelos de intervenção”, espraiados para diferentes domínios e espaços sociais (REIS,
2010; SAPIRO, 2012; SEIDL, 2007b; SIGAL, 2012). Gisèle Sapiro (2012) identifica
algumas modalidades de intervenção dos intelectuais na política4 a partir do exame do
caso francês, levando em conta o capital simbólico, a autonomia em relação às
demandas externas e o grau de especialização dos agentes. Para a autora, “os
intelectuais ocupam uma posição dominada no seio das classes dominantes como
detentores de um capital cultural que se diferenciou do capital econômico com a
institucionalização do sistema escolar” (SAPIRO, 2012, p. 22), tal como ponderou
Coradini (2003) em estudo anterior.

A partir desse entendimento, levando-se em consideração que a emergência e


afirmação da figura do “intelectual” perpassam pelo processo de expansão do sistema
escolar e pela institucionalização do ensino universitário no Brasil, o que propiciou o
surgimento de um mercado editorial interno e, simultaneamente, consumidor de bens
simbólicos (SORÁ, 2010), os “intelectuais” são concebidos como “produtores e agentes
de circulação de noções comuns, concernentes à ordem social” (SIGAL, 2012, p. 56).
Fundamentando sua análise no contexto representado pela Argentina, Sigal assevera que
os “intelectuais” são detentores de um saber que autoriza os investimentos no sentido de
intervenção no mundo social, de onde parte para analisar “o lugar dos intelectuais na
política e o lugar do político para os intelectuais”.

Convém observar, no entanto, que analisar os “intelectuais” enquanto


“produtores de noções” numa dinâmica periférica como a do Maranhão de meados do
século XX implica ponderar o peso das peculiaridades existentes e contrastantes entre

4
Analisados numa perspectiva sócio-histórica e construídos de modo ideal-típico, Sapiro identifica e
esmiúça oito tipos de intervenção política dos intelectuais: o intelectual crítico universalista; o guardião
da ordem moralizador; o grupo intelectual contestador ou a “vanguarda”; o intelectual de instituição ou de
organização política; o especialista consultado pelos dirigentes ou o “expert”; o intelectual crítico
especializado ou o “intelectual específico”; e o grupo contestador especializado ou o “intelectual
coletivo”.
31

distintas regiões geográficas. Isso acaba por revelar que, a nível local, no que tange à
definição de “intelectual”, com sua ramificação católica, não há como se precisar uma
conceituação nestes termos, principalmente levando-se em consideração o fato de
muitos “intelectuais católicos” do Maranhão serem assim identificados através de um
processo de consagração baseado no “auto-reconhecimento” e em relações de
reciprocidade, nascido e fomentado entre seus próprios pares e nos círculos sociais aos
quais pertencem.

Além disso, as especificidades da atuação de sacerdotes no Maranhão, que


apresentam uma gama de elementos e condicionantes exógenos ao universo religioso
incidindo sobre sua intervenção intelectual no mundo social, apontam para a própria
disputa pela definição do que é “intelectual” ou “ser intelectual”. Tais observações
ajudam a pensar que a participação de padres em espaços de socialização de “letrados” e
“literatos” se dá por conta das retribuições simbólicas advindas desses espaços, como a
conquista do reconhecimento de “intelectual”, justificando assim, em linhas gerais, a
inserção de sacerdotes católicos nas academias de letras, universidades, institutos de
pesquisa, jornais, bem como nos círculos de jornalistas, poetas, romancistas,
historiadores e escritores maranhenses já estabelecidos.

Em verdade, não há como negligenciar duas dimensões analíticas fundamentais


que evidenciam um menor grau de institucionalização do espaço religioso maranhense
e, por isso mesmo, uma maior heteronomia da produção intelectual de padres dedicados
à atividade da escrita e à publicação de livros: a primeira diz respeito a uma maior
valorização e importância das instâncias e dos critérios externos de consagração; e a
outra, de um elevado grau de dependência à esfera política (CORADINI, 2003, p. 126),
particularmente pelo desapossamento dos bens materiais que se constituem como
impeditivos de primeira ordem à produção e veiculação de trabalhos escritos (contatos
com editoras e editores) e suscitam a recorrência às redes de relações pessoalizadas de
cada agente5 (busca por apoios, patrocínios, financiadores e apadrinhamentos políticos).
Em outras palavras, o “campo de produção cultural” analisado apresenta-se duplamente
dominado pelo poder político e pelo poder econômico (posse dos bens materiais de

5
Sobre a formação do mercado editorial brasileiro e as redes de relações pessoais que definem a
possibilidade de publicação e de pertencimento ao panteão dos literatos no país, obliterando assim a
“genialidade” dos escritores, ver Sorá (2010). Tal perspectiva pode ser apreciada ainda no âmbito das
artes plásticas, através da construção de “epítetos” que glorificam artistas “ilustres” e silenciam
profissionais “anônimas”, presente no trabalho de Simioni (2008).
32

produção), mediado por redes de relações sociais que acabam condicionando os


assuntos abordados e limitando a inventividade dos escritores.

Nesse sentido, cabe realçar aqui a importância de dois estudos centrais para a
elaboração da presente pesquisa. O primeiro deles foi desenvolvido em conjunto por
Eliana dos Reis e Igor Grill (2012), intitulado O que escrever quer dizer na política?
Carreiras políticas e gêneros de produção escrita, onde são analisados os
significados e o peso que a atividade da escrita pode adquirir, mediante o
reconhecimento “intelectual”, na carreira de agentes dedicados profissionalmente ao
trabalho político, apreendendo-se especificamente “as relações entre a diversidade de
gêneros de escrita e as modalidades de atuação privilegiadas por profissionais da
política” (GRILL; REIS, 2012, p. 102).

Os autores partem de um trabalho anterior mais específico (REIS; GRILL,


2008), no qual tecem um quadro comparativo entre duas distintas localidades
geográficas, Maranhão e Rio Grande do Sul, para analisar as vinculações entre saber
intelectual e potencial de elegibilidade, contemplando diferentes momentos históricos e
dinâmicas específicas de concorrência. Na pesquisa que se toma como referência para
esta dissertação, cuja tessitura investigativa ampliou-se em termos geográficos e
restringiu-se à produção de livros escritos por políticos que alcançaram o ápice da
hierarquia de postos eletivos (Deputado Federal e Senador), os pesquisadores
evidenciam a importância da intervenção de produtores culturais sobre o mundo da
política, na contramão de inúmeros estudos que evocam apenas a influência da
“política” no mundo da “cultura”, salientando a imbricação entre reconhecimento
“intelectual” e “comprometimento político”, particularmente na realização do “trabalho
social de invenção das posições e dos papéis políticos”, empenhando-se na definição do
que é ou deveria ser a “política”, o “político”, a “sociedade”, em determinadas
condições histórico-sociais (ibid., 2012, p. 103).

No tocante ao presente estudo, a perspectiva adotada pelos autores supracitados


foi retraduzida para a esfera religiosa maranhense, com foco especial nas suas
dinâmicas internas e nas múltiplas interações estabelecidas por agentes católicos em
distintos espaços de inscrição, quer seja no polo cultural do catolicismo local, quer na
vida política das regiões onde se concentraram suas experiências clericais, permitindo
assim o desvelamento das lógicas que influem na produção escrita de agentes
33

eclesiásticos e nas modalidades de escrita às quais se dedicam, relacionando-as aos


postos assumidos e às temáticas abordadas ao longo de seus itinerários.

Além disso, foca-se na mensuração do peso relativo que o exercício de escrever


adquire no desenvolvimento de carreiras de religiosos, na conquista de posições
relativamente bem situadas e na demarcação de posicionamentos no interior do espaço
em disputa, dimensões de análise que, de algum modo, dialogam com a lógica de
reestruturação do poder religioso do catolicismo mundial, evidenciando a interferência
de condicionantes exógenos na estrutura interna da Igreja e os elementos teológicos
intervindo no mundo social.

Tal abordagem não seria aqui possível, contudo, sem a incorporação das
contribuições presentes em diversos estudos desenvolvidos por Ernesto Seidl (2003,
2007a, 2007b, 2009a, 2009b), especialmente no tocante à constituição de intérpretes da
história e da cultura, onde o autor articula as homologias entre carreiras religiosas e
mediação cultural no Rio Grande do Sul, outra importante dimensão analítica
contemplada na composição desta dissertação. Na citada pesquisa, o cientista social
desenvolve uma linha investigativa que analisa a constituição de agentes sociais,
vinculados à Igreja Católica, investidos do papel de “especialistas” ou “intérpretes” da
cultura e da história do Rio Grande do Sul, provenientes dos processos de imigração
alemã e italiana ocorrido na metade do século XX naquela região do país. O
pesquisador destaca ainda que a formação e a afirmação de mediadores culturais
oriundos da Igreja se operam pela “combinação de recursos acumulados
simultaneamente através de carreiras religiosas e acadêmico-intelectuais” (SEIDL,
2007b, p. 79), evidenciando assim o acúmulo de capital necessário para que os agentes
imponham seus princípios de hierarquização e de definição das posições e dos papéis no
espaço religioso em disputa.

Cabe ressaltar que, no Maranhão do período em foco, houve um significativo


processo de envolvimento de religiosos católicos (particularmente de padres e bispos)
em distintos domínios de atuação, quer na produção de bens simbólicos, nas “lutas
populares”, ou no enfrentamento contra a “ditadura militar”, tanto no aspecto militante
quanto no de formação educacional, cultural e política de diferentes segmentos sociais
(camponeses, trabalhadores rurais, operários urbanos, representantes de entidades
estudantis e sindicais, movimentos quilombolas e sem-terra, além de comunidades
34

indígenas), quer no âmbito universitário e nas instâncias de consagração intelectual


laicizadas pela separação entre Estado e Igreja no alvorecer da República (BORGES,
1998; MACHADO, 2012; MELO, 2010; NERIS, 2011; PEREIRA, 2011).

Aliás, não são raros os casos de agentes eclesiásticos que acionam dispositivos
de reconhecimento social exógenos à esfera religiosa para legitimarem sua atuação
evangelizadora e ocupar posições relativamente bem alocadas na estrutura interna da
Igreja. Da mesma forma, mas no sentido inverso, não é desconhecido o fato de muitos
padres usufruírem da autoridade delegada pela instituição eclesiástica para intervir no
mundo social. Inúmeros são os sacerdotes atuantes no Maranhão que possuem formação
de nível superior além das tradicionalmente estabelecidas (teologia e filosofia),
destacando-se padres que se formaram e atuaram como médicos, advogados, jornalistas,
psicólogos, historiadores, sociólogos, professores universitários, e que também atuaram
como “intérpretes da história e da cultura” maranhenses, respaldados pelo poder
simbólico da Igreja Católica no estado, ao produzirem obras calcadas nos princípios
científicos do mundo universitário ou nas regras artísticas que entremeiam as produções
literárias, bem como ao se inscreverem em diversos debates públicos locais, ao
ocuparem cargos públicos e exercerem funções administrativas em governos municipais
e estaduais, e ao participarem ativamente nas lutas político-partidárias regionais e na
organização de movimentos sociais e culturais.

O somatório de tais fatores e condicionantes evidencia, pois, aquilo o que


Bourdieu (2004) chamou de a “dissolução do religioso”, de onde provém a
diversificação de ofertas de bens de salvação e a ampliação da produção de sentidos
sobre o mundo social por clérigos católicos que, ancorados em elementos externos ao
âmbito religioso, engendram uma “redefinição dos limites” da esfera religiosa
(BOURDIEU, 2004, p. 122), bem como uma ressignificação da própria atividade
religiosa (SEIDL, 2009a), ressaltando-se o intercruzamento entre as lógicas distintas de
funcionamento nas esferas da política, da religião, da cultura e do social (BURITY,
2001; SEIDL, 2007a, 2009b).

Desse modo, a intervenção de clérigos católicos nos espaços secularizados da


“política” e da “cultura”, proveniente de uma tentativa de dominação ou de imposição
dos princípios e regras religiosos sobre o mundo social, evidencia as “intersecções da
esfera religiosa com o espaço universitário e intelectual e as formas de acúmulo da
35

autoridade necessária ao exercício legítimo do papel de mediador socialmente


reconhecido” (SEIDL, 2007b, p. 80). Através do exame dos condicionantes que
permitiram a afirmação desses papéis por agentes católicos, o presente enfoque incide
sobre a dimensão das condições sociais de pertencimento institucional desses
“intelectuais católicos” e as articulações por eles tecidas com outros “produtores
culturais” e instâncias exógenas ao mundo religioso, para fins de identificação e análise
dos recursos acumulados e refratados para a esfera religiosa, possibilitando a
constituição de “intérpretes culturais” (ibid, 2007b, p. 81).

A análise pretendida neste estudo, no entanto, se distingue das acima


mencionadas por investigar um grupo de agentes católicos que não figuram nas
posições mais altas da hierarquia eclesiástica. Com efeito, o enfoque proposto incide
sobre uma espécie de “agentes intermediários” que não se constituem efetivamente num
grupo uno e coeso, mas que estão mais ou menos bem situados em posições dominadas
no espaço dominante de produção cultural. Na maioria dos casos analisados, como se
verá mais à frente, os sacerdotes que se dedicam à atividade da escrita ocupam cargos e
funções que passam longe dos altos postos hierárquicos da Igreja Católica no Maranhão,
bem como das posições dominantes no mercado editorial local, sendo, portanto,
duplamente dominados, tanto na esfera eclesiástica quanto no espaço mais amplo de
concorrência de produção e de manipulação simbólicas, o que não significa uma
diminuição de sua influência nestes espaços, mas sim a possibilidade de uma análise
simbiótica dos usos sociais que fazem da escrita e do peso relacional que esta adquire
no desenvolvimento de suas carreiras religiosas.

Obstáculos e procedimentos de pesquisa

Pontua-se neste trabalho que o processo de construção do universo de agentes


investigados teceu-se no decurso da própria pesquisa, o que implicou num movimento
contínuo de reflexão e controle sobre as escolhas realizadas. Inicialmente, o trabalho
englobava uma população de dez padres identificados em recente pesquisa com um tipo
de perfil social característico: o de engajamento militante, cujas “missões” pastorais
eram desenvolvidas baseadas em estratégias de afirmação “em nome do povo”,
36

privilegiando a dimensão da “politização do engajamento religioso” (MACHADO,


2012, p. 112). A tentativa original era de analisar a produção intelectual desses agentes,
a fim de perceber as temáticas que abordavam, os gêneros de escrita a que mais se
dedicavam, além de observar o modo como construíam suas representações sobre o
mundo social, suas concepções de sociedade, da religião e da política.

Contudo, à medida que as primeiras pesquisas foram realizadas, percebeu-se


uma escassez de escritos publicados por esse perfil de padres. A se levar em
consideração uma esparsa quantidade de textos produzidos por agentes da Igreja e
veiculados em jornais de razoável circulação na capital e no interior do Maranhão – e,
por isso mesmo, difícil de mobilizar em um curto espaço de tempo – uma reduzida
produção livresca de autoria de sacerdotes “militantes” não passava de um ou outro
ensaio ou artigo que se tornou capítulo de livro.

Diante desse quadro inexpressivo de publicações que permitisse uma maior


consistência da análise então proposta, procedeu-se ao alargamento do universo de
agentes pesquisados, porém mantendo-se o mesmo recorte operado. Passou-se a
considerar os casos de padres que tiveram significativa e volumosa produção escrita,
particularmente de livros, reveladora dos recursos acumulados, das competências e
saberes adquiridos, das redes de sociabilidades construídas e dos reconhecimentos
sociais obtidos por estes, e não apenas aqueles com perfil militante. Dessa forma,
chegou-se a catorze casos elencados como característicos de padres que apresentam em
seus itinerários registros de produção escrita em consonância com o exercício de seu
ofício de sacerdote.

Dos catorze agentes selecionados, procedeu-se à escolha de dois casos


específicos para a operacionalização de uma análise ancorada na composição de suas
carreiras religiosas socialmente reconhecidas, de par com sua participação em diferentes
domínios e sua destacada produção intelectual. Padres como João Mohana, com mais de
40 publicações e com relevante intervenção no polo cultural da Igreja em São Luís, e
Clodomir Brandt, que registra um total de 26 livros escritos, além de ser uma das
referências religiosas mais ricas em particularidades e fatos marcantes na vida política e
cultural da cidade de Arari-MA, foram elencados como representativos e distintivos em
relação aos demais agentes inseridos no mundo social recortado pela pesquisa, não só
pela quantidade de textos publicados, o que evidencia o grau de associações e relações
37

sociais estabelecidas com os detentores dos bens de produção simbólica (donos de


editoras, parques gráficos, jornais, etc.), possibilitando-lhes gozar de certo prestígio
social e intelectual (SORÁ, 2010), mas principalmente pela heteronomia e alcance de
suas atividades clericais, cuja pluralidade de participação em diferentes domínios
sociais revela a hibridização do ofício de sacerdote no Maranhão.

Através de suas carreiras religiosas plurais e distintivas, privilegiando-se o


estudo dos condicionantes que presidiram suas reconhecidas atuações nos domínios
sociais em que estavam inseridos, tornou-se possível estabelecer uma análise
comparativa entre o modus operandi de sacerdotes na capital e no “interior”
(continente) do Maranhão, de onde se pôde observar o acionamento das relações
parentais e de amizade, a tessitura dos trânsitos e dos vínculos sociais, o
estabelecimento de conexões e de redes de interdependência entre as difusas e móveis
fronteiras das diversificadas esferas sociais (GRILL; REIS, 2012), os tipos de recursos
disponíveis em disputa e o peso relacional de investimentos “intelectuais” dentro da
esfera religiosa.

Além disso, através da composição dos trajetos dos padres Brandt e Mohana, é
possível conhecer e analisar os condicionantes históricos e sociais que incidem na
reprodução da “vocação” religiosa e na formação de padres no Maranhão, as distintas
motivações que direcionam agentes para a ordenação sacerdotal, bem como as
disposições de clérigos para a produção de interpretações sobre o mundo social, além de
similitudes e discrepâncias, aproximações e distanciamentos entre os feitos de cada um.

Padre Brandt é oriundo de um berço familiar, com raízes alemãs, que encontrou
na Igreja a oportunidade de dar continuidade aos estudos e de seguir uma carreira
religiosa, em detrimento das escassas alternativas que se apresentavam-lhe. Já o
sacerdote Mohana provém de uma família libanesa de forte tradição católica, mas que
só se torna padre depois de já ter obtido uma formação superior e de atuar
profissionalmente como médico, e de ter se consagrado literariamente através de
premiações recebidas por seus escritos. Os dois personagens, além dos troféus sociais
conquistados, ocuparam posições e assumiram posicionamentos que evidenciam
também a diversificação das modalidades de intervenção de “intelectuais católicos” nos
domínios da política e da cultura no Maranhão (não somente militantes de “causas
sociais”), para além das atividades confessionais cotidianas.
38

Contudo a pesquisa, em diversos momentos de levantamento dos dados


sociográficos referentes aos catorze casos investigados, deparou-se com uma série de
obstáculos e dificuldades. Isto devido à constatação de que não há no Maranhão nenhum
tipo de catalogação sistemática dos registros sociais de padres e clérigos católicos que
apresentam em seus itinerários publicação de escritos, muito menos de tal produção
intelectual. A priori, partiu-se da ideia de que os dados sociográficos que ajudariam a
compor um perfil mais geral sobre sacerdotes que se dedicaram à atividade da escrita e
que possuem livros ou textos (artigos, crônicas, poemas, ensaios, etc.) publicados em
formato de livros estariam contidos em acervos guardados e preservados nas mais
diversas instâncias e instituições vinculadas à Igreja Católica no Maranhão, dentre
outras a Arquidiocese de São Luís, o Seminário de Santo Antônio, Iesma, CPT, CIMI.

Na contramão dessa linha investigativa, após a visita a tais lugares, observou-se


uma precariedade muito significativa da Igreja no tocante à preservação da memória
histórica de suas organizações e de seus agentes. Em termos práticos, não foi localizado
nenhum tipo de documentação ou de acervo que contivesse registros mais gerais sobre
os dados biográficos dos sacerdotes pesquisados, nem uma sistematização de
informações referentes às suas obras, como se pensou inicialmente no que diz respeito
aos anuários publicados pela Igreja Católica no Maranhão.

Originalmente, pensava-se que estes anuários contivessem um significativo


volume de informações sobre sacerdotes destacados por sua atividade religiosa. Assim,
procedeu-se à pesquisa em busca de dados referentes aos catorze padres elencados e à
sua produção livresca, no tocante aos locais geográficos de concentração desses
escritos, os gêneros de escrita produzidos e os investimentos feitos pelos agentes nessa
modalidade de atuação, intentando-se encontrar ainda nestes anuários informações sobre
a existência de possíveis fichários ou espécies de currículos dos sacerdotes, ou ainda a
catalogação de dados mais específicos, como funções e cargos ocupados pelos agentes
dentro e fora do âmbito da Igreja.

No entanto, para a surpresa do pesquisador, tais dados não foram catalogados


nos citados anuários. Os poucos encontrados no acervo da biblioteca do Instituto de
Ensino Superior do Maranhão (Iesma) continham apenas informações de ordem mais
técnica sobre as dioceses espalhadas pelo território estadual (ano de fundação,
39

localização geográfica, densidade populacional, etc.) e os bispos que as comandavam


(nome completo, ano de chegada e período de permanência).

Ao contrário do que se poderia supor, as constatações obtidas in loco, isto é, no


desenvolvimento da pesquisa de campo, apontaram para um processo de privatização
das fontes e das obras dos padres destacados. Muitos dos textos publicados não estão
disponíveis em locais públicos de preservação histórica, nem nas bibliotecas das
instituições da própria Igreja, mas sim pertencentes a acervos particulares, em sua
maioria de propriedade dos próprios padres ou de seus familiares, cujo acesso é bastante
restrito.

Alguns destes escritos ainda figuram em páginas especializadas na venda de


livros antigos na internet, porém sem apresentar dados introdutórios sobre as obras,
detendo-se somente no detalhamento de suas condições físicas (presença ou não de
rabiscos, rasgos, carimbos, dentre outros elementos). Diante da inviabilidade de
aquisição de todos esses livros, o mapeamento então efetuado na pesquisa contemplou
somente as obras que continham algum tipo de descrição sobre seus conteúdos e seus
autores, o que implicou na exclusão de muitas outras publicações e de outros escritores,
a exemplo do bispo D. Felipe Condurú Pacheco, que dentre outras obras escreveu a
História Eclesiástica do Maranhão, uma das principais referências consultadas por
pesquisadores sobre o estudo da Igreja Católica no Maranhão, cuja publicação se deu no
ano de 1969 e sobre o qual não foi possível reunir um conjunto de dados suficientes
para o presente trabalho. Certamente, o estudo de sua trajetória e de sua produção
intelectual ajudaria a compreender um pouco mais sobre a atuação híbrida de clérigos
católicos no Estado, bem como a autoridade e o reconhecimento conferidos a agentes da
Igreja para legitimarem representações católicas sobre a história e a cultura
maranhenses.

Em verdade, no Maranhão, raros são os acervos de propriedade privada que


disponibilizam seus conteúdos a um público maior. No caso do presente estudo, as
informações disponíveis sobre as duas trajetórias específicas analisadas, além das
demais fontes consultadas, foram obtidas junto aos organizadores das próprias “casas de
memória” dos referidos padres, por meio das figuras de Dona Creuzinha, organizadora
do “Memorial do Padre Clodomir Brandt e Silva”, situado na cidade de Arari-MA,
aberto à visitação pública, e de Ibrahim Mohana, um dos responsáveis pela “Casa João
40

Mohana”, localizada no centro histórico de São Luís, cujo acesso só foi possível
mediante a satisfação de exigências prévias dos familiares do padre, como a não
concessão de entrevistas e o envio, por escrito, do roteiro de pesquisa para o
levantamento dos dados biográficos.

Cabe ressaltar ainda que, sobre a guarda da memória destes dois padres
específicos, enquanto no Memorial do Padre Brandt todos os livros de sua autoria estão
disponíveis para a venda, salvo raras exceções por esgotamento editorial, na Casa
Mohana não foi permitido o acesso à sua produção livresca, sob o argumento de que
esta está disponível no mercado para a venda, o que implica asseverar que a referida
casa de guarda da memória do padre Mohana não possui acervo disponível para a
comercialização ou mesmo para a consulta local do público interessado. Daí o porquê
da importância da escritora Arlete Nogueira da Cruz Machado para este trabalho, que
gentilmente forneceu ao pesquisador um rico material jornalístico contendo muitas
fotos, dados e informações sobre a vida e a produção intelectual do padre João Mohana.

Dentro desse contexto de poucos avanços e frequentes recuos, foram frustradas


as inúmeras tentativas de levantamento do maior número possível de dados biográficos
pela via das fontes “oficiais” produzidas pela Igreja Católica no Maranhão referente aos
catorze padres investigados. O fato de nem mesmo as bibliotecas de algumas das
mencionadas instituições possuírem acervos contendo tais registros sociais ou de suas
obras suscita pontuar-se duas observações: primeiro, tornam-se evidentes a precarização
desses exíguos espaços de guarda da memória e a negligência de setores da hierarquia
eclesiástica no estado em catalogar e preservar, de forma sistemática, se não os dados
sociográficos de seus sacerdotes, minimamente sua produção escrita. Segundo, aponta
para um certo tipo de controle da Igreja sobre a vida de seus membros, uma vez que o
acesso aos dados sociais de padres implica uma inserção maior do pesquisador tanto na
esfera administrativa eclesiástica quanto nos círculos de socialização onde se inseriam.

De um modo geral, as informações biográficas e os dados relativos aos livros


publicados, contidos nos quadros apresentados neste estudo, foram coletados de
diferentes e variadas fontes. As obras que foram possíveis serem mapeadas figuram em
citações presentes em produções acadêmicas (monografias, dissertações, teses, artigos e
relatórios de pesquisa), em sites da internet com conteúdo religioso, em suplementos
literários e culturais de jornais e em livros adquiridos junto a amigos e a padres
41

consultados. Contou-se ainda com o apoio dos administradores das bibliotecas


frequentadas, que contribuíram com sugestões e informações sobre escritos e escritores
católicos.

Além do mapeamento dessa esparsa produção intelectual, procedeu-se a uma


leitura preliminar sobre os seus conteúdos, a fim de se compreender as lógicas de
construção de representações e de sentidos sobre o mundo social pelos membros da
Igreja, seus posicionamentos perante assuntos exógenos à esfera religiosa, bem como
seu olhar sobre o papel desempenhado por agentes católicos nos diferentes domínios
sociais, na tentativa de se perceber o processo de construção de si mesmos enquanto
produtores de interpretações “legítimas” da vida social.

De posse desses dados, ainda que escassos, tornou-se possível a composição de


um mosaico sobre o perfil de padres que não se restringiram apenas à esfera de atuação
confessional, nem tampouco se dedicaram exclusivamente ao engajamento militante na
defesa de “causas sociais”. Com efeito, os agentes investigados apresentam diversos
registros de inscrição em outras esferas e ramos de atividade, quer seja no âmbito da
política, da literatura, da imprensa, da acadêmico/científica, da “cultura” e da educação,
atuando como “políticos”, médicos, advogados, romancistas, teatrólogos, poetas,
jornalistas, historiadores, sociólogos, além de professores e pesquisadores em
instituições de ensino superior, conferindo-lhes certo prestígio e reconhecimento
“intelectual” e social que os legitima e os autoriza a ocuparem determinadas posições e
a intervirem nestes mesmos espaços.

A inscrição de religiosos católicos (particularmente de padres e bispos) em


domínios sociais tão variados e distintos de sua esfera cotidiana de atuação confessional
suscitou, por fim, o cotejamento dos condicionantes que ensejaram o processo de
inculcação de propriedades sociais responsáveis pela definição dos limites de atuação
dos casos investigados, bem como pelo delineamento dos perfis sociais de sacerdotes
que, em algum momento de seus itinerários religiosos, buscaram na atividade da escrita
a “fuga da rotina” do cotidiano, a materialização de suas concepções de mundo e de
“projetos” de sociedade (GRILL; REIS, 2012, p. 3-4), a externalização de suas
ideologias sobre a religião, a cultura e a política, além de demarcarem sua posição
distintiva em relação aos demais agentes no espaço em disputa.
42

Com isso, considera-se que as orientações teórico-metodológicas que norteiam o


presente estudo, conforme exposto anteriormente, possibilitam a análise sobre a
distribuição das posições e dos papéis definidores que estruturam a ação católica de
determinados agentes e/ou grupos sociais, ao mesmo tempo em que se a operacionaliza
como instrumento revelador das estratégias de dominação adotadas pela hierarquia
eclesiástica e das lógicas que engendram a produção intelectual desses agentes, dos
quais são exigidas certas habilidades e competências técnicas, além de conhecimentos
específicos e saberes práticos que, somados aos títulos escolares e às redes de relações
sociais, definem o tipo, o volume e o peso do capital que os autorizam e os legitimam a
ocupar determinadas posições e a assumirem posicionamentos no espaço de poder mais
amplo.

Assim, diante do somatório dos dados e registros levantados, aliados ao exame


dos perfis sociais dos sacerdotes pesquisados, seus recursos, concepções, práticas e
representações, além de seus repertórios variados de mobilização e de intervenção no
mundo social, têm-se a noção do peso relacional da atividade da escrita no tocante ao
desenvolvimento de carreiras religiosas no Maranhão e na constituição, definição,
legitimação e hierarquização de papéis sociais protagonizados por membros da Igreja
nos domínios da cultura e da política maranhenses.

***

Considerando as observações e ponderações supracitadas, tem-se a presente


dissertação arquitetada e enredada em quatro capítulos. No Capítulo 1, apontam-se os
principais aspectos históricos, sociais, políticos e culturais que presidiram a híbrida
atuação de sacerdotes católicos no Maranhão, no período de 1950 a 1980. Além disso,
busca-se situar historicamente os condicionantes que possibilitaram a emergência da
figura do “intelectual católico”, tomando como exemplo o caso francês, e apresentar
analiticamente as contribuições teóricas que norteiam o presente trabalho, explicitando e
ponderando conceitos fundamentais e ajustando-os às dinâmicas periféricas
investigadas.
43

No Capítulo 2, analisam-se as características sociais dos 14 sacerdotes


pesquisados, na tentativa de compor um mosaico geral sobre o perfil social de padres
que se dedicam à atividade da escrita no Maranhão em paralelo com as suas atividades
eclesiásticas cotidianas. Para isso, foram mobilizadas algumas variáveis que permitiram
uma análise mais frutífera sobre os casos elencados, como a nacionalidade, formação
escolar, ano de nascimento, idade de ordenação, atuação profissional e pertencimento a
outros espaços de socialização, como academias de letras, universidades, institutos de
pesquisa, cargos ocupados em órgãos públicos e entidades ligadas à Igreja Católica no
Maranhão (CPT, CIMI, Cáritas, etc.). Os dados, registros e informações coletados para
a composição deste capítulo foram obtidos em diversas e distintas fontes, entre
consultas a jornais e livros pertencentes às bibliotecas das entidades visitadas, em
trabalhos acadêmicos (artigos, monografias, dissertações e teses) e em alguns escritos
produzidos pelos próprios sacerdotes analisados.

No Capítulo 3, parte-se para o estudo da trajetória do padre Clodomir Brandt e


Silva, que teve uma significativa e diversificada atuação no “interior” do Maranhão,
mais precisamente na cidade de Arari, localidade onde desenvolveu suas funções
eclesiais de modo expressivo e distintivo em relação aos demais agentes católicos, cujas
práticas e discursos reverberaram na história cultural e política da cidade. Para a
confecção deste capítulo, lançou-se mão de obras produzidas por aqueles que viveram
no município e conviveram com o sacerdote, muitas vezes combatendo-o nas trincheiras
da luta política e midiática. Além disso, os livros escritos pelo próprio padre Brandt
serviram como indispensável plataforma para a composição de seu itinerário,
salientando-se criticamente, contudo, o aspecto autobiográfico e a tendência de
“glorificação” de suas ações presentes em seus textos.

Por fim, no Capítulo 4, analisam-se as dinâmicas e os condicionantes que


presidiram a trajetória de João Mohana, sacerdote de destacada atuação no cenário
sociocultural de São Luís. Parte-se do rico trabalho desenvolvido pela escritora Arlete
Nogueira da Cruz Machado que catalogou registros, informações, dados e fotos em
comemoração ao aniversário de 70 anos do padre Mohana para um suplemento cultural
do jornal “O IMPARCIAL”, publicado em junho de 1995. Além disso, utilizam-se os
dados fornecidos em entrevista por um dos irmãos do sacerdote, o também escritor
Ibrahim Mohana, cujas informações foram obtidas por escrito através de um
questionário previamente elaborado que privilegiou questões concernentes à origem
44

familiar do padre Mohana (escolaridade e profissão dos pais e avós), recursos


acumulados antes da “entrada oficial” na Igreja, como a formação e o exercício da
Medicina no Maranhão, e a inserção nos círculos “intelectuais” da capital.

Com a espinha dorsal da dissertação assim delineada, intenta-se compreender e


analisar as lógicas e os condicionantes que incidem sobre a atuação híbrida de
sacerdotes católicos no Maranhão. Os 14 casos investigados foram elencados tomando-
se em apreço as características e os vetores que lhes permitiram falar, escrever e agir de
modo distintivo, particularmente nas esferas da política e da cultura, em relação aos
demais padres que atuaram no Estado entre as décadas de 1950 e 1980.

O exame das trajetórias dos dois padres investigados nos capítulos 3 e 4,


respectivamente Clodomir Brandt e João Mohana, exemplificam a hibridização que
perpassa a atuação de sacerdotes no Maranhão que, para além de suas atividades
eclesiais cotidianas, investiram (de modo mais ou menos consciente) no acúmulo de
saberes e no estabelecimento de relações sociais que os possibilitaram ocupar
determinadas posições e intervir significativamente nas difusas e fluidas “fronteiras”
entre os domínios religioso, cultural e político, fazendo da escrita um de seus principais
trunfos na conquista e manutenção destas posições e na demarcação de seus
posicionamentos.
45

CAPÍTULO 1:

A REESTRUTURAÇÃO DO ESPAÇO RELIGIOSO E A DIVERSIFICAÇÃO


DA ATIVIDADE SACERDOTAL: apontamentos sócio-históricos

O recorte temporal escolhido neste estudo justifica-se pelas múltiplas dinâmicas


em curso que remetem às transformações políticas e culturais ocorridas dentro e fora da
esfera religiosa e à diversificação dos espaços de atuação eclesiástica experimentadas
pela Igreja Católica a nível nacional e internacional, particularmente num estado
periférico como o Maranhão que, em meados do século XX, apresentava uma
significativa singularidade em relação a outros contextos, seja pelo afastamento do eixo
central dos estados federativos, seja pelos exemplos sintomáticos de crescente
desfiliação religiosa e dos baixos índices de renovação de seus quadros clericais
(MELO, 2010; SEIDL, 2003).

Dentro do mercado de interpretações disponíveis sobre as transformações


historicamente processadas nas relações entre Igreja e Estado no Brasil, têm-se diversos
estudos que apontam para um estado de “crise” da instituição eclesiástica, mediante o
reordenamento de suas dinâmicas internas específicas e o aumento das pressões
exógenas de condicionantes sócio-históricos em voga (ALVES, 1979; BRUNEAU,
1974; DELLA CAVA, 1975; MAINWARING, 2004).

Tais estudos apontam as estratégias que a Igreja utilizou para o enfrentamento


das turbulências que ameaçavam desmoronar os alicerces de sustentação do seu
prestígio e poder no seio da sociedade brasileira, principalmente com a Proclamação da
República (1889) e a promulgação da Constituição de 1891, quando se estabelece a
separação entre Estado e Igreja e a laicização dos diversos setores estruturantes da
sociedade, cujos valores católicos entram em concorrência com o advento de novas
formas de pensamento, de organização política e de religiosidade, principalmente o
protestantismo6. A partir daí, houve uma limitação dos espaços de atuação católica que,
entre outras coisas, significou a perda de influência e de poder da Igreja no Brasil,

6
No Maranhão, a presença de grupos religiosos protestantes, tais como Anglicanos, Presbiterianos,
Batistas, Pentecostais, dentre outros, data das primeiras décadas do século XIX, com forte incidência já
no início do século XX. Sobre este assunto, ver Santos (2004).
46

exigindo da instituição eclesiástica a recomposição de suas estratégias e a diversificação


dos espaços de sua atuação.

No final do século XIX e início do século XX, a Igreja passava por um processo
interno denominado de romanização7 e o Estado brasileiro reorganizava-se sob os
auspícios da República. Dessas transformações políticas e religiosas, que se espraiaram
também para os domínios do “social” e da “cultura”, gestou-se o fim do regime do
Padroado, em cujo bojo estabeleceu-se a separação, em termos político-administrativos,
entre as esferas política e religiosa e a laicização da sociedade brasileira.

Com o divórcio republicano entre Estado e Igreja e a promulgação da


Constituição de 1891, o catolicismo sofreu uma espécie de “abalo” em seu poderio
material e simbólico no país, especialmente pela “abertura” propiciada por tal
rompimento para a emergência e afirmação de novos credos no cenário religioso e para
o advento de correntes filosóficas e políticas concorrentes, que não tinham na instituição
eclesiástica suas referências estruturantes. Além disso, a Igreja experimentou a perda de
certas funções que antes eram de sua exclusiva competência e responsabilidade, e que a
partir de então foram chanceladas ao domínio do Estado. Segundo Hermann (2007, p.
123),

o projeto da nova Constituição (...) apresentava propostas evidentes de


limitação da esfera de ação da Igreja e de religiosos: reconhecimento e
obrigatoriedade do casamento civil, laicização do ensino público, secularização
dos cemitérios, proibições de subvenções oficiais a qualquer culto religioso,
impedimento para abertura de novas comunidades religiosas, especialmente da
Companhia de Jesus, inelegibilidade para o Congresso de clérigos e religiosos
de qualquer confissão.

Como se observa, diante das dinâmicas sociais e dos processos políticos em


curso, a Igreja perdeu espaço e poder no Brasil do alvorecer do século passado. Funções
e atividades de grande abrangência na sociedade, até então desenvolvidos e pertencentes
exclusivamente ao domínio católico, como o ensino público, o casamento e os
sepultamentos, passaram a ser administrados pelo estado laico brasileiro.

7
Conforme aponta Rodrigues (2003, p. 11), entre 1889 e 1922, “a Santa Igreja Católica Apostólica
Romana passava por um processo de centralização do poder em torno da autoridade papal, conhecido por
romanização”, uma espécie de ajustamento das diretrizes doutrinárias produzidas pelo Vaticano, em
Roma.
47

Mas, se por um lado, a ruptura dos laços institucionais com o Estado significou
uma redução de poderes e benefícios, por outro a Igreja pôde gozar de um relativo
aumento de sua autonomia, sobretudo no que concerne à ampliação e estruturação de
seus postos (paróquias e dioceses, a priori), aos princípios de recrutamento e seleção de
seu corpo de agentes e à reformulação e redefinição de sua competência religiosa
(MICELI, 1988; SEIDL, 2003).

É nesse período que ganha força no país, principalmente nas esferas da cultura e
da política, a figura do “intelectual católico” e a valorização da atividade da escrita
como trunfo distintivo da atuação de sacerdotes. A sociogênese desse tipo de agente,
que representa um reordenamento da Igreja perante o mundo social, remete, contudo, ao
início do século XIX, mais precisamente ao ano de 1802, quando é publicado Génie du
christianisme, de François-René de Chateaubriad, autor que propõe uma nova
legitimidade ao catolicismo no campo da literatura. Em contraposição aos “filósofos das
Luzes” e aos princípios da Revolução Francesa de 1789, que colocaram o homem no
centro do universo e desapossaram as obras literárias francesas da metafísica religiosa,
Chateaubriand reaproxima literatura e religião (católica), selando uma aliança entre
ambas e, ao mesmo tempo, se interpondo contra a ascensão do poder científico
(SERRY, 2004, p. 131-132).

No decurso do século XIX, o abade Felicité de Lamennais propõe, no entanto, a


necessidade de uma linha de pensamento católico precisamente em comunhão com o
avanço das descobertas científicas de então, numa tentativa de “superação das filosofias
individualistas em favor da tradição cristã”, reafirmando a autoridade da Igreja perante
o mundo social. Em seu Essai sur l’indifférence em matiére de religion (1820),
Lamennais busca orientar a “formação de uma elite clerical capaz de enfrentar os
desafios intelectuais do tempo”, reconciliando fé e ciência e reafirmando a necessidade
da presença de intelectuais católicos nos debates científicos (ibid, 2004, p. 133-134).

Já no final do século XIX, assiste-se a uma “crise” entre clero e laicato que,
dentre outros subprodutos daí provenientes, acaba por criar as condições de valorização
e reconhecimento dos “intelectuais católicos”, não necessariamente “ungidos” pela
ordenação sacerdotal. A partir da atuação de Louis Veuillot, jornalista a serviço de
Roma, se estabelece as “modalidades de um engajamento intelectual leigo em nome do
48

catolicismo”8. Veuillot, que não se ordenou padre, alcança prestígio e poder junto ao
papado de Pio IX, tornando-se “porta-voz” de Roma e estimulando a produção
intelectual de escritores leigos sobre o catolicismo, orientando a opinião do clero,
intervindo nos debates internos da Igreja e servindo de ponte entre a hierarquia
eclesiástica e a “opinião pública” francesa, que adquire nova importância com o
desenvolvimento da imprensa (SERRY, 2004, p. 138).

A partir desse esforço de restauração do poder do catolicismo no domínio


intelectual, a Igreja francesa começa a reunir em torno de si pensadores e escritores
(entre clérigos e leigos) bem situados socialmente para sistematizar o pensamento
católico sobre os campos da literatura, das artes e das ciências, legitimando e
promovendo a intervenção desses agentes no campo de produção cultural. A Igreja
parece pôr em prática, nesse momento de início do século XX, uma espécie de projeto
político-cultural que visa contrabalançar as críticas advindas do positivismo e do
modernismo, que atacavam os alicerces de sustentação da autoridade eclesiástica e do
monopólio do discurso sobre o religioso.

Com a “crise modernista” e o alvorecer da República, em 1905, houve uma


maior valorização e afirmação do laicato frente aos sacerdotes católicos. Estes foram
obrigados, a partir da publicação da encíclica Rerum Novarum (1891), do papa Leão
XIII, a se retirarem dos debates intelectuais e científicos e a direcionarem suas forças
para o terreno social, dando início à chamada “era militante” na Igreja, e assim, abriu-se
espaço para a valorização da figura do escritor leigo (não filiado ao catolicismo).
Conforme observou Hervé Serry (2004, p. 142), “ao obrigar seus clérigos envolvidos no
trabalho intelectual a se retirar dos debates científicos com os não-católicos, a alta
hierarquia católica abre aos escritores possibilidades de se colocarem a seu serviço”.

A partir desse processo de retirada dos clérigos dos debates intelectuais, houve
um aumento no espaço de atuação e de autonomia para os leigos, especialmente para os
escritores, que não mais se encontravam num estado de submissão e obediência estrita
ao clero. Contudo, sua valorização e reconhecimento no campo de produção cultural
tornaram-se possível justamente pelo fato de atuarem e escreverem em defesa da Igreja,

8
Para saber mais sobre as relações entre literatura e religião e a gênese social dos intelectuais católicos,
consultar Literatura e Catolicismo na França (1880-1914): contribuição a uma sociohistória da
crença, de Hervé Serry (2004), que esmiúça as especificidades de cada um desses momentos históricos e
as motivações que levaram à edificação teórica dessas linhas de pensamento católico sobre o “campo
intelectual”, particularmente sobre o domínio das letras e das artes em geral.
49

contra o avanço das ciências e dos fenômenos políticos e sociais que questionavam os
fundamentos de sua autoridade religiosa.

Com efeito, o advento da República, que estabeleceu a laicização entre Estado e


Igreja, tanto na França quanto no Brasil, forneceu os condicionantes que ajudaram a
recompor e a diversificar os espaços de atuação religiosa, uma vez que a intervenção de
agentes católicos não se restringiu única e exclusivamente no domínio confessional e
nos assuntos internos da Igreja, se irradiando fortemente para as esferas da cultura e da
política.

Em consonância com os novos ditames doutrinários emanados de Roma, a Igreja


Católica no Brasil alinha-se aos postulados do processo em voga de romanização
mundial do catolicismo. Em retribuição, obtém do Vaticano o subsidiamento da
ampliação de sua estrutura de postos e carreiras. Paralelamente a isso, as elites
hierárquicas da Igreja no Brasil buscam uma reaproximação com os centros nacionais
de poder e com os grupos dirigentes regionais da chamada “República Velha”, como
forma de reinserir-se estrategicamente nos espaços de decisão política do país, dos quais
havia sido obliterada (DELLA CAVA, 1975; MICELI, 1988).

De acordo com Bruneau (1974, p. 28), “até 1930 a Igreja se utilizou de várias
táticas para ser readmitida no que ela considerava ser a posição política que lhe
competia por direito”. Acreditando assim na necessidade de ancorar-se no Estado como
forma de reaver seus privilégios outrora perdidos, a alta hierarquia eclesiástica buscou
aproximar-se dos novos agentes políticos que comandavam a máquina administrativa
brasileira de então, quer pelo estabelecimento de relações de reciprocidade e de
manifestações públicas de apoio mútuo, realização de atividades religiosas e
cerimoniais cívicos em conjunto, ou pela participação de membros da Igreja no
exercício de funções e cargos de competência política e burocrática (BRUNEAU, 1974;
DELLA CAVA, 1975, AZZI, 2008, MICELI, 1988, SEIDL, 2003). Assim, desfrutando
de certa autonomia e estreitando cada vez mais os laços com as elites dirigentes do país,
a Igreja adentra a Era Vargas (1930-1945) gozando do relativo sucesso propiciado pelo
advento da “Neocristandade”9 (BEOZZO, 1986).

9
Conforme define José Oscar Beozzo (1986, p. 322), a Neocristandade era “uma ordem econômica,
social e política sob a direção dos princípios cristãos definidos pela Igreja”, que visava “reconduzir a
sociedade brasileira aos valores morais e culturais do cristianismo católico”. Em outras palavras, tratava-
se da (re)adoção e (re)incorporação de princípios e valores católicos na definição de programas e projetos
50

É no seio do período Vargas que a Igreja responde às novas situações impostas


pelas transformações políticas, sociais e institucionais em curso, através da criação de
movimentos como a Ação Católica (AC), em 1932, que em seu conjunto visava
cimentar a ampliação dos quadros clericais, formar leigos para auxiliarem bispos e
sacerdotes no trabalho de ensino dos cristãos e dar um novo ânimo às práticas
evangelizadoras através de um conjunto de ações de cunho caritativo e humanitário
(DELGADO e PASSOS, 2003; RIDENTI, 2002). Aliás, o estudo sobre a importância, a
influência e a autonomia do laicato no auxílio do exercício das funções eclesiais e no
desenvolvimento das atividades evangelizadoras, que ajudaram a recompor e a
reoxigenar o poder do catolicismo e, por conseguinte, da própria Igreja, sem a
intervenção direta da hierarquia eclesiástica, se constitui num campo de investigação
ainda pouco explorado.

É no transcurso da década de 1930 que tem início uma disputa pelo controle do
sistema educacional e pela produção cultural no país, onde a Igreja articula e desenvolve
estratégias com vistas a um processo de ideologização do ensino primário e secundário,
assim como o âmbito universitário, o qual Sérgio Miceli (1979, p. 51) chamou de
“enquadramento institucional dos intelectuais”. Em 1935, são criadas a Juventude
Universitária Católica (JUC) e a Ação Universitária Católica como uma tentativa de
circunscrever dentro da esfera de influência religiosa da Igreja as novas lideranças
“intelectuais” do país provenientes das universidades (MAINWARING, 2004; MICELI,
1979).

No Maranhão, a principal responsável pelo fomento e organização de novas


práticas evangelizadoras, e também pela obtenção de maior prestígio e reconhecimento
da Igreja junto à sociedade, às elites dirigentes e aos grupos de “intelectuais”, foi a Ação
Católica, criada em 1936 pelo padre Sebastião Fernandes que, juntamente com a Liga
Eleitoral Católica (LEC)10, fundada em 1932, promoveu uma difusão maior dos
princípios sociais católicos junto à população, dentre os quais destacam-se a assistência
religiosa às Forças Armadas, o fortalecimento dos laços matrimoniais, a liberdade de

políticos para o país, propiciada pelo estreitamento dos laços entre membros da hierarquia eclesiástica e
elites dirigentes, durante o período governamental de Getúlio Vargas.
10
A LEC tinha como função congregar o eleitorado católico e selecionar candidatos que se
comprometessem com os princípios sociais da Igreja. O trabalho da Liga consistia no alistamento de
eleitores, na apresentação de propostas aos candidatos e na divulgação via imprensa dos nomes
consignados com tais propostas (NERIS, 2012, p. 43). A título de exemplo de seu relativo sucesso,
muitos projetos elaborados pela LEC foram contemplados na Constituição de 1934 (PACHECO, 1969).
51

associação sindical, a defesa irrestrita da vida e da propriedade privada e o ensino


religioso obrigatório nas séries de formação fundamental e secundária (PACHECO,
1969, p. 588).

No tocante ao ensino universitário, a criação da JUC no Maranhão exemplifica


bem as tentativas da Igreja Católica em manter e expandir seu domínio nas esferas
cultural e educacional, como forma de recrutar os futuros “intelectuais” e lideranças
religiosas junto às elites locais para compor os novos quadros da instituição eclesiástica
no Estado.

Inicialmente, a JUC tinha apenas esse caráter conservador, clerical, voltado para
a “cristianização das futuras elites”. Contudo, após a reorganização da Ação Católica no
Brasil, entre 1946 e 1950, o movimento leigo adquire maior autonomia em relação à
hierarquia eclesiástica passando a ter maior envolvimento nas questões sociais
específicas do mundo dos universitários e se aproximando da chamada “esquerda”
brasileira, chegando a uma “rápida radicalização que a levou a um contundente conflito
com a hierarquia”, assumindo assim uma “responsabilidade explícita pela ação política
como parte de seu compromisso evangélico” (MAINWARING, 2004, p. 84).

Como fruto direto dessa “radicalização” religiosa e de aproximação dos


membros da JUC com a ideologia de “esquerda”, pautada nos pressupostos teóricos do
marxismo e suas diversas ramificações, tem-se o surgimento da Ação Popular (AP),
influenciada por “conjunturas de fechamento e repressão política, por manifestações de
diferentes porta-vozes do catolicismo e pelo impacto da revolução cubana e da
revolução cultural chinesa”, ao mesmo tempo em que sofreu interferências tanto dos
“empreendimentos de teólogos e intelectuais brasileiros como de agentes de outras
nacionalidades e com posicionamentos ideológicos diferenciados, que vinham
disseminar novas interpretações sobre o papel da Igreja e dos seus “seguidores” nesse
contexto” (REIS, 2007, p. 164-165). Convém ressaltar ainda que a criação da AP foi
precursora das bases teóricas da Teologia da Libertação e de importantes movimentos
do catolicismo que surgiriam posteriormente, como as comunidades eclesiais de base
(RIDENTI, 2002, p. 214; SALEM, 1981).

Não obstante, como veremos no exame da trajetória do padre Mohana, esse


“conflito com a hierarquia” clerical não se processou de forma unânime e global. Pelo
contrário, os enlaces sociais envolvendo o referido padre e membros do alto clero
52

maranhense semearam um terreno de atuação evangelizadora bastante fértil, de


cumplicidade e de ajuda mútua entre o laicato e a hierarquia eclesiástica.

O processo de estruturação e de controle do ensino universitário pela Igreja no


Maranhão alcança seu fulgor no início da década de 1960, com a fundação da
Universidade “Católica” do Maranhão que, posteriormente, se transformou na
Universidade Federal do Maranhão (UFMA)11, em 1966, tendo em seu comando inicial,
como reitor por dois mandatos consecutivos, o cônego Ribamar Carvalho (1963-1967 e
1968-1972), um dos destacados “intelectuais” eclesiásticos maranhenses. Conforme
assinala Regina Faria (2005, p. 18),

a Universidade do Maranhão, instituição criada pela Arquidiocese de São Luís em 1961,


mais conhecida como Universidade Católica, congregava a Escola de Enfermagem São
Francisco de Assis, a Faculdade de Serviço Social do Maranhão, a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras e a Faculdade de Ciências Médicas, todas diretamente
ligadas à Igreja Católica.

Com a expansão do ensino universitário, houve também o processo de


institucionalização das ciências humanas e sociais que, em condições periféricas, serviu
como base teórica para a atuação de sacerdotes como mediadores políticos e culturais,
tanto no engajamento militante em defesa de causas coletivas quanto na inserção em
espaços de produção acadêmico/científica, onde estas ciências “são postas a serviço da
“empresa de salvação” e de seus novos princípios de legitimação e práticas religiosas”
(CORADINI, 2012, p. 69).

Desse modo, evidencia-se o surgimento de “novas condições de oposição nas


relações centro/periferia e, mais especificamente, dos confrontos associados às novas
heterodoxias”, como a própria teologia da libertação, que se apropria destas ciências
para “incluir novas problemáticas legítimas” e, assim, legitimar a intervenção de
sacerdotes em outros domínios sociais, reafirmando sua capacidade de mediação (ibid.,
2012, p. 73-80).

Nesse rol de estratégias e ações da Igreja articuladas junto aos setores influentes
da sociedade, particularmente no domínio “intelectual”, destacando-se as relações
institucionais estabelecidas com a imprensa, cabe elencar a instituição do “Dia da Boa
Imprensa”, a fundação da “Associação de Jornalistas Católicos” (1937) e até a

11
Sobre este assunto, consultar Faria; Montenegro (2005), Neris (2011).
53

realização da “Páscoa dos Intelectuais” (NERIS, 2012, p. 45). Merece destaque também
a fundação do periódico “JORNAL DO MARANHÃO”12, o veículo de comunicação
oficial da Igreja Católica no estado, que congregava diversos “intelectuais” (católicos e
não-católicos) na confecção das interpretações da instituição eclesiástica sobre o que
ocorria em âmbito local, nacional e internacional.

Mesmo diante de tantas estratégias e iniciativas por parte da Igreja de melhor


realocar-se no espaço de poder e, assim, tentar restabelecer seu poderio e influência
perante a população, já no início da década de 1950 os clérigos católicos enfrentavam
uma forte concorrência religiosa – principalmente das seitas protestantes e das religiões
de origem africana e suas múltiplas manifestações culturais –, relativa diminuição do
número de ordenações sacerdotais e uma crise financeira advinda da escassez de
recursos mediante a queda de fiéis nas celebrações eucarísticas. Disputavam ainda o
filão desse mercado salvacionista em estado de “crise” as organizações ateístas e os
movimentos políticos que tinham como base um marxismo ortodoxo que considerava a
religião como “o ópio do povo” (ALVES, 1979; BRUNEAU, 1974; MAINWARING,
2004).

Essa tendência de forte concorrência à hegemonia do catolicismo no Brasil


mantém-se também durante o limiar da década de 1960, forjando na Igreja a adoção de
novas práticas que irão abalar ainda mais seus alicerces de sustentação ideológica e
desembocar numa maior interferência de seus agentes nos assuntos relativos à esfera
política, com a diferença de que agora os vínculos não seriam costurados junto aos
“poderosos”, mas sim através da aproximação perante o “povo oprimido”. Para muitos
estudiosos, essa mudança de postura da Igreja reflete a crise que a instituição enfrentava
por ter se mantido, historicamente, ao lado das elites e dos grupos dirigentes do país.
Segundo Bruneau (1979, p. 159), “na origem da crise da qual surge uma reorientação da
Igreja Católica no Brasil, encontramos uma tomada de consciência de sua perda de
influência entre a população mais pobre”.

12
O periódico chamava-se inicialmente de “CORRESPONDENTE”; depois foi batizado de “O
MARANHÃO”, até receber o nome definitivo de “JORNAL DO MARANHÃO”. Fundado em 1930 pela
Arquidiocese de São Luís, o jornal tornou-se o canal oficial de publicação da visão da Igreja sobre os
acontecimentos no Maranhão, no Brasil e no mundo. Teve suas atividades suspensas no auge da repressão
da “ditadura militar”, em meados da década de 1960, voltando a circular somente em 2009. Para saber
mais sobre esse assunto, ver Melo (2010).
54

Diversos relatórios encomendados pelos bispos quanto à expansão das religiões


concorrentes ao catolicismo e ao advento de novas organizações políticas que não
tinham na Igreja suas referências, durante as décadas de 50 e 60 do século XX,
evidenciavam certo declínio de seu “monopólio religioso”, que propiciou aos membros
da hierarquia eclesiástica maior consciência da necessidade de reformular as práticas
pastorais em voga e de “tratar com circunspecção os problemas sociais”
(MAINWARING, 2004, p. 53-54).

Tal concepção, contudo, não envolvia a Igreja como uma unidade compósita.
Pelo contrário, havia disputas internas entre correntes teológicas que divergiam quanto à
aproximação e/ou distanciamento da “doutrina social” preconizada pelo Vaticano.
Ainda segundo Mainwaring (2004, p. 55), enquanto alguns segmentos do clero (os ditos
“tradicionalistas”) reprovavam a aproximação com os movimentos populares por
acreditarem constituírem-se numa “ameaça”, à medida que adquiriam um enfoque “anti-
católico” e questionador da “hierarquia social”, para os “moderados” e “progressistas”
tal aproximação ajudou a fomentar uma nova consciência dos problemas fundamentais
da sociedade brasileira, modificando assim a forma com que muitos líderes eclesiásticos
percebiam a sociedade.

Ao mesmo tempo em que sofria mutações em sua visão sobre os problemas do


mundo, a própria Igreja estava inserida num contexto também de profundas
transformações. Vivia-se o tempo da Guerra Fria, o bipolarismo mundial entre
comunistas soviéticos e capitalistas ocidentais, exemplificado principalmente na
Revolução Cubana (1959), na Guerra do Vietnã (1959-1975) e no Muro de Berlim
(1961-1989). Cabe destacar ainda nesse contexto convulsivo a deposição de governos
democráticos, o advento de regimes militares em quase toda a América Latina e no
continente asiático e a explosão de movimentos sociais na Europa, particularmente na
França. No Brasil, o surgimento de sindicatos, associações comunitárias, organização
do movimento estudantil e do campesinato, além da mobilização de grupos armados de
resistência ao regime militar, constituíam o pano de fundo que circunscrevia as
mudanças em curso no seio da Igreja (SERBIN, 2002, p. 9-10).
55

A realização do Concílio Vaticano II13 (1962-1965) acabou sendo uma espécie


de “resposta” da instituição eclesiástica para o mundo em ebuliente mutação e serviu de
mote para a própria reestruturação de suas bases doutrinárias. Foi a partir do Concílio
que a Igreja oficializou certas práticas e medidas já em vigência por parte da Ação
Católica, como a adoção do método do “ver, julgar e agir”, criado pelo belga monsenhor
Cardjin no interior da Juventude Operária Católica (JOC), que aproximava os instruídos
sacerdotes da realidade vivida pelos “pobres e oprimidos” (SALEM, 1981, p. 22-23),
em sua ampla maioria despossuídos de uma formação educacional básica.

Observa-se, assim, que as mudanças preconizadas neste Concílio não partiram


de uma tomada de posição exclusivamente da hierarquia eclesiástica, de cima para
baixo, mas sim de uma imbricação com a vanguarda leiga católica atuante em alguns
países, principalmente no Brasil, cujas práticas inovadoras de aproximação junto à
realidade dos fiéis suscitavam um remodelamento das antigas. Em outras palavras, a
observação das transformações à luz da realidade histórica que se apresentava refletia-se
nas ações empreendidas pelos grupos católicos de vanguarda, ora influenciando as
decisões da Igreja, ora sendo influenciada por ela. Tal perspectiva se alinha ao
pensamento de Michel Lowy (2000, p. 241), para quem “a combinação ou convergência
de mudanças internas e externas à igreja (...) se desenvolveu da periferia em direção ao
centro”. Na tentativa de acompanhar e de responder às transformações do mundo
moderno, o autor afirma que a Igreja Católica sofreu influências e refletiu as convulsões
sociais em desenvolvimento.

Se antes do Golpe de 1964, a Igreja no Brasil marchava ao lado da classe média


urbana, dos políticos e das elites empresariais a favor da destituição de um presidente
eleito pelas vias legais vigentes e em defesa da tomada do poder pelos militares,
realçando assim as engrenagens do regime liberal nos países capitalistas (CODATO e
OLIVEIRA, 2004, p. 273), a partir do Concílio II e, mais à frente, com a realização da
Conferência de Medellín (1968), o pensamento social da Igreja e do laicato modifica-se
irremediavelmente, passando à defesa dos direitos humanos, reivindicação das
liberdades democráticas, luta pelos direitos dos trabalhadores rurais e citadinos,

13
O Concílio Vaticano II (1962-1965) “representou para a Igreja do Brasil a oportunidade de reafirmar e
renovar a sua presença na sociedade, empreendendo um percurso de aggiornamento em diversos planos,
na teologia, nas estruturas eclesiais e nas práticas pastorais, para responder e se posicionar diante os
desafios da modernidade” (BONATO, 2009, p. 15). A palavra italiana aggiornamento pode ser traduzida,
em português, como “atualização”, e é nessa perspectiva que o autor a compreende.
56

enfrentamento contra a repressão do regime militar, além da dedicação à formação


cultural e política dos militantes engajados nas “causas sociais” defendidas pela
instituição eclesiástica. Segundo alguns estudiosos, tal formação tinha que proporcionar
uma visão crítica aos agentes das pastorais e às classes populares, cujo aprendizado
implicasse numa atuação cristã na sociedade e numa tomada de posição na esfera
política, contemplando reflexão, orientação, adaptação e ação (DELGADO e PASSOS,
2007, p. 109).

No plano das ideias, as encíclicas Mater et Magistra, de 1961 e Pacen in Terris,


de 1963, publicadas durante o papado de João XXIII (1958-1963), exerceram enorme
influência sobre a população católica brasileira, a partir das quais um grupo de bispos
organizados em torno da CNBB14 se manifestaria para tratar de temas de caráter social e
de promoção dos direitos humanos, principalmente nas áreas rurais do país, suscitando a
criação de movimentos como o MEB - Movimento de Educação de Base15, que teve
atuações marcantes por todo o país, especialmente no Nordeste.

A II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano16- CELAM, realizada


entre 26 de agosto e 06 de setembro de 1968, e a Conferência de Puebla (1979)
marcaram também uma nova etapa do catolicismo na América Latina, uma vez que as
doutrinas emanadas pelos “eventos político-religiosos” (BEOZZO, 2005, p. 147-156)
serviam como contraponto aos inúmeros acontecimentos que colocavam em xeque a
influência da Igreja na região, onde se registra com maior intensidade o avanço
sistemático de novas crenças e um exponencial crescimento de desfiliação religiosa
(MELO, 2010).

No plano teológico, a emergência da Teologia da Libertação sistematizou, em


termos teórico-doutrinários, as propostas oriundas no Vaticano II, em Medellín e em
Puebla, tendo nas figuras de Leonardo Boff e Roberto Gutierrez os principais

14
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil foi fundada em 1952 pelo, então, monsenhor Hélder
Câmara, com a aprovação da Secretaria de Estado do Vaticano. O objetivo era instituir uma coordenação
nacional para as dioceses que estavam em plena expansão (GONÇALVES, 2004, p. 50).
15
O Movimento de Educação de Base foi criado pela Igreja Católica em 1961, a partir de encontros de
bispos nordestinos. Utilizando-se do método de alfabetização do pedagogo de orientação marxista, Paulo
Freire, sua proposta estava fincada nas bases de “educar para transformar”, isto é, politizar, conscientizar
e mobilizar socialmente as comunidades alcançadas (ibid).
16
A primeira reunião do episcopado no continente ocorreu em 1959, na cidade do Rio de Janeiro. Na
ocasião, a prioridade dos debates residia nas questões internas da Igreja. Já nesta segunda conferência,
realizada em Medellín, na Colômbia, as discussões giraram em torno dos problemas enfrentados
especificamente pelos povos da América Latina (DELGADO e PASSOS, 2007, p. 113).
57

defensores de uma teologia que prega a “libertação política e religiosa” dos cristãos.
Segundo Boff (2012, p. 34-35), o sujeito histórico dessa libertação deve ser o “povo
oprimido”, a partir da tomada de consciência deste de sua “condição de oprimido”,
consequência direta do “tipo de organização elitista, de acumulação privada, enfim, da
própria estrutura econômico-social do sistema capitalista”.

Leonardo Boff (ibidem) elabora algo que poderia se chamar aqui de a construção
religiosa da dimensão do político, vez que o teólogo estabelece que a fé cristã deva ser a
responsável pelo “despertar” da consciência do povo oprimido que, ao se dar conta das
injustiças, “passa para a compreensão das estruturas reais que produzem as injustiças”.
Concluindo assim que, a partir de tal compreensão, faz-se necessário “mudá-las [as
estruturas] para que não produzam mais o pecado social”.

No entanto, os esforços intelectuais dos “teólogos da libertação” não foram


suficientes para que a Igreja colocasse em prática os compromissos assumidos. As
dificuldades financeiras e materiais, as disputas teológicas internas, a falta de
organicidade e unidade da hierarquia eclesiástica em diversos países católicos, bem
como as ingerências dos contextos histórico-sociais marcados por situações de crise que
enredaram os eventos religiosos do Concílio e das Conferências e suas reverberações,
especialmente no Brasil, obstacularizaram a operacionalização das prerrogativas pós-
conciliar e acabaram por perder ares de “prioridade” com o processo de reabertura
política e a emergência de novas “pautas” religiosas e sociais.

Diante desse cenário de crescente mobilização de sacerdotes e leigos em torno


dos novos preceitos católicos e de um certo “esvaziamento prático” dos mesmos diante
das dificuldades supracitadas, observa-se que a confluência de fatores de “crise”
condicionou uma atuação militante bastante híbrida dos agentes eclesiásticos, ao mesmo
tempo que possibilitou a diversificação das modalidades de intervenção dos
“intelectuais católicos”, destacando-se o campo de produção escrita como espaço de luta
simbólica pela imposição de representações sobre o mundo social, cuja reverberação
pôde ser identificada em diferentes domínios, particularmente nas esferas da política e
da cultura, complexificando ainda mais as relações entre Estado e Igreja no Brasil.
58

CAPÍTULO 2:

PADRES ESCRITORES EM PERSPECTIVA: propriedades sociais, recursos


culturais e múltiplos registros de inscrição

O objetivo deste capítulo é analisar o perfil social dos catorze casos elencados
através do maior número possível das variáveis disponíveis sobre os agentes católicos
que atuam como mediadores culturais, investindo na produção de bens simbólicos, e
que acionam tais recursos em diferentes momentos de suas trajetórias, a fim de
apreender seus trânsitos, vínculos, relações de reciprocidade, o peso de investimentos
mais ou menos conscientes e os tipos de capital de que dispõem (social, cultural,
político, etc.), enfim, suas amálgamas e distintas interações sociais, cujos registros de
inscrição os colocam numa posição de poder relacionalmente privilegiada no espaço
social mais amplo.

Analisa-se ainda as lógicas que engendram a produção intelectual desses


agentes, que se utilizam da ação de escrever como instrumento de entrada e de luta nos
diferentes domínios em disputa. Com isso, busca-se pontuar os gêneros de escrita aos
quais se dedicam e as temáticas que dão a tônica de seus textos, bem como investiga-se
a correlação desta produção com a composição sócio-histórica de suas carreiras
religiosas.

A operacionalização da análise se corporifica através da descrição dos perfis


sociais de sacerdotes que se dedicam à atividade da escrita em paralelo com suas
atividades eclesiais cotidianas. Com isso, passa-se à explicitação de variáveis como
origem familiar, nacionalidade, formação escolar, cargos e postos ocupados dentro e
fora da Igreja, exercício de profissões não clericais e pertencimento a instâncias de
consagração “intelectual” e a espaços de socialização relativamente privilegiados.

Em suma, o presente capítulo trata de analisar os usos da produção escrita no


que tange às posições, às disposições e às tomadas de posição que esses sacerdotes
assumem em suas interconexões com outras esferas sociais, dentro de uma lógica que,
de alguma forma, dialoga com o processo de reestruturação dos espaços de atuação
católica e de redefinição da “excelência religiosa” (SEIDL, 2009a).
59

1.1 Descrição geral dos agentes investigados

A composição dos quadros a seguir mostra algumas das variáveis tomadas como
ponto de análise e de composição do perfil social de catorze agentes católicos que
apresentam registros de atividade de escrita em suas carreiras religiosas no período
recortado (1950-1980), consubstanciados na publicação de textos em formato de livros.
Parte-se da análise da formação escolar, dos títulos, da atuação profissional, dos
trânsitos e reconhecimentos adquiridos em espaços sociais mais heterônomos, como
esferas de atuação de “letrados” (faculdades, universidades, academias de letras, jornais,
institutos de pesquisa), de participação política e de ação militante, além de dados gerais
sobre as obras (ano de publicação, gêneros de escrita, temáticas, etc.) para se estabelecer
as relações sincrônica e diacrônica entre formação escolar e modalidades de escrita e
entre posição social e produção intelectual no tocante às trajetórias dos padres
investigados, percebendo as representações que elaboram sobre o mundo social, sobre si
mesmos e sobre as “questões” que se dispõem a abordar em seus escritos.

A escolha dos catorze casos elencados justifica-se pela sua significativa e


reconhecida atuação como mediadores culturais em distintas esferas e pela consistência
das propriedades sociais levantadas sobre os sacerdotes que, em determinados
momentos de suas carreiras, se dedicaram à escrita como marco distintivo em relação
aos demais agentes, como forma de luta política dentro dos espaços onde estavam
inseridos, como “fuga da rotina” de suas atividades confessionais cotidianas (GRILL;
REIS, 2012), além da demarcação e manutenção de suas posições no espaço de poder
mais amplo. Desta forma, os casos arrolados na pesquisa são representativos das
principais características que ajudam na elaboração analítica sobre as regularidades e as
discrepâncias, aproximações e distanciamentos, que se formulam na apreensão das
propriedades e dos recursos sociais de cada agente em questão.

Pontua-se ainda que não foi possível, durante a pesquisa dos dados biográficos,
o levantamento de variáveis como escolaridade e profissão dos pais de todos os agentes,
por dois motivos principais: a) o primeiro pela escassez de dados referentes aos agentes
investigados, cuja apreensão se deu, de forma limitada, pelas informações contidas em
alguns de seus escritos (as raras vezes que os textos tratam da origem social do escritor
referem-se a um aspecto geral de “origem humilde”, porém, não em todos os casos), em
60

produções acadêmicas já publicadas ou ainda em curso, e em páginas na internet


(blogues pessoais e sites que contém informações esparsas sobre os casos pesquisados);
b) e o segundo pela difícil localização dos familiares dos padres (muitos destes já
falecidos), impossibilitando assim uma análise comparativa satisfatória sobre a sua
origem social. Desta forma, procedeu-se à análise desses condicionantes apenas nas
trajetórias dos casos específicos, uma vez que a precariedade de informações sobre os
catorze casos se tornou um impeditivo de uma análise mais geral dos dados sobre a
família, parentes, amigos próximos de cada agente.

Em contrapartida, compreende-se que as demais variáveis levantadas (idade de


ordenação, nacionalidade, escolaridade, atividade profissional e instâncias de inserção)
atendem perfeitamente à proposta de se analisar a delimitação dos tipos de engajamento
incorporados pelos agentes, o seu âmbito de atuação, os tipos de investimentos feitos, os
reconhecimentos obtidos e as posições ocupadas ao longo de seus trajetos, como forma
de se explicitar os condicionantes que presidiram escolhas e caminhos trilhados e a
relevância da atividade da escrita no desenvolvimento de suas carreiras religiosas.

Quadro 1
Algumas propriedades sociais dos 14 agentes investigados

Ano de Idade/Ano de
Padre Nacionalidade/Origem Formação superior
Nascimento Ordenação

Eider
1916 33 Brasileiro/Viana-MA Teologia, Filosofia
Furtado
(1949)
Clodomir
Teologia, Filosofia,
Brandt e 1917 26 Brasileiro/Colinas-MA
Humanidades
Silva (1943)
Cônego
Ribamar 1923 21 Brasileiro/Codó-MA Teologia, Filosofia
Carvalho (1944)

João Medicina, Teologia,


1925 35 Brasileiro/Bacabal-MA
Mohana Filosofia
(1960)
Alípio de 24 Teologia, Filosofia,
1929 Português
Freitas (1953) História
61

Hélio Brasileiro/Barra do Corda-


1930 26 Teologia, Filosofia
Maranhão MA
(1956)

Teologia,
Vito Milesi 1931 24 Italiano
Filosofia, Sociologia
(1955)

Xavier Teologia, Filosofia,


1935 27 Francês
Gilles Direito
(1962)

Cláudio
1937 29 Italiano Teologia, Filosofia
Bergamashi
(1966)
Letras, Teologia,
Victor Filosofia, Sociologia,
1938 26 Canadense
Asselin Direito, Mestrado em
(1964)
Teologia

Carlo Teologia, Filosofia,


1939 25 Italiano
Ubbiali Antropologia
(1964)
Teologia, Filosofia,
Especialização em
Jean Marie-
Educação de Jovens
Van 1947 28 Belga
e Adultos, Mestrado
Damme (1975)
em Ciências Éticas e
Religiosas

Josimo
1953 26 Brasileiro/Marabá-PA Teologia, Filosofia
Tavares
(1979)

Cláudio Teologia, Filosofia,


1953 26 Italiano
Zannoni História, Sociologia
(1979)
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.

Com foco nos dados expostos no quadro acima, cujos agentes estão ordenados
conforme o ano de nascimento, de modo crescente, tem-se a exposição das principais
características dos perfis sociais que ajudam a construir, comparativamente, um perfil
mais geral de padres que escrevem. Através de tais dados, intenta-se estabelecer uma
correlação entre o volume de recursos acumulados e a lógica operada na definição
62

objetiva dos múltiplos registros de inscrição e dos tipos de modalidades de intervenção


no mundo social.

O primeiro aspecto a ser salientado trata da idade e do ano de ordenação


sacerdotal dos agentes. São jovens que iniciaram sua vida clerical com idade variando
de 21 a 35 anos. Quanto a essa característica, 12/14 dos casos pesquisados foram
ordenados padres com menos de 30 anos, com média de idade de 25 anos. O mais
jovem desses casos, com idade de entrada na esfera eclesiástica com apenas 21 anos, diz
respeito ao cônego Ribamar Carvalho, cuja atuação se concentrou em atividades tidas
como de “intelectuais”, principalmente as de escritor e professor universitário. Já o mais
velho dos sacerdotes ordenados foi João Mohana, que se tornou padre aos 35 anos.

É interessante observar que a “entrada oficial” de Mohana no mundo da Igreja


de modo “tardio” em relação aos demais agentes investigados suscita o acúmulo de
outras experiências vividas por ele, inclusive de formação profissional e de
pertencimento a círculos sociais fora do âmbito religioso, como foi o seu caso, que se
formou e atuou como médico e foi premiado a nível nacional por sua produção literária
antes de se tornar padre, cujos conhecimentos e reconhecimentos foram acionados no
transcorrer de sua carreira religiosa, levando-o à ocupação de posições relativamente
bem alocadas no espaço religioso maranhense dentro de um campo de poder mais
amplo, o que justifica um exame específico e detalhado de sua trajetória, como veremos
mais adiante, no terceiro capítulo.

Em relação ao ano de ordenação dos 14 casos analisados, tem-se variação entre


as décadas de 1940 a 1970, com concentração nos anos de 1960 (5/14). Vivia-se neste
período as ingerências do regime militar brasileiro e os auspícios das prerrogativas
emanadas do Concílio Vaticano II (SERBIN, 2002), condicionantes que, dentre outras
coisas, influíram sobremaneira no engajamento militante de padres num contexto
periférico como o Maranhão (MELO, 2010; NERIS, 2011; PEREIRA, 2011), uma vez
que os padres recém-saídos dos seminários formavam uma espécie de plantel
eclesiástico à disposição dos líderes da Igreja Católica, que os direcionavam para os
locais onde a “necessidade” por sacerdotes era mais acentuada (MELO, 2010, p. 54).

Além disso, registra-se uma constante proporcional na ordenação de padres nas


décadas de 1940, 1950 e 1970 (3 em cada período apontado). Destes, dois casos são
sintomáticos: os padres ordenados com mais de 30 anos, Eider Furtado e João Mohana,
63

com 33 e 35 anos, respectivamente, apresentam uma bipolarização em seus trajetos no


que concerne à atividade militante do sacerdote engajado e à publicação de escritos.

Padre Eider registra forte atuação militante na CEB de Viana, em meados da


década de 60, através de “lutas” pela conquista de direitos e “justiça social”, exemplos
do variado repertório ofertado pelo catolicismo vigente (MAINWARING, 2004;
BEOZZO, 2005). No entanto, sua produção intelectual restringiu-se muito mais à
escrita de artigos em jornais, registros estes não contemplados neste trabalho pelas
dificuldades de localização e de acesso aos mesmos. Ainda assim, foi possível a
catalogação de um de seus muitos textos, publicado como capítulo em um livro escrito
conjuntamente com outros padres, no qual padre Eider elabora uma análise sobre O
Evangelho segundo Viana.

Já o sacerdote João Mohana, que apresenta intensa atividade no polo intelectual


do catolicismo maranhense, exemplificada em sua vasta publicação de livros (mais de
quarenta obras escritas), não possui o mesmo vigor in loco na luta pelas “causas
sociais”. Apesar de ter presidido a Ação Católica no Maranhão, principal movimento de
aggiornamento da instituição eclesiástica em âmbito local, Mohana dedica grande parte
de sua força vital ao trabalho de formação de líderes e à escrita de livros dos mais
variados gêneros, sempre “em nome da Igreja”, atuando muito mais como um tipo de
“intelectual católico” que idealiza e formata ações pastorais e produz representações
sobre a importância da religião na vida dos fiéis.

No que concerne à nacionalidade dos agentes, tem-se 6/14 nascidos no Brasil e


8/14 com nascimento em território estrangeiro. Dos brasileiros, contam-se 5
maranhenses e 1 paraense. A concentração dos nascidos no Maranhão dá-se
caracteristicamente no interior do estado (Bacabal, Colinas, Barra do Corda, Viana e
Codó). Quanto aos estrangeiros, contam-se 4/8 italianos e 4/8 de distintas
nacionalidades (1 canadense, 1 francês, 1 português, 1 belga).

A presença e atuação de padres estrangeiros no Maranhão no período estudado,


tanto no engajamento militante em “causas sociais” quanto na dedicação à produção de
representações católicas sobre o mundo social, sinaliza para um processo mais amplo de
importação de sacerdotes sob a regência do Vaticano para países periféricos, onde a
escassez de padres é mais sintomática. Números divulgados em pesquisa realizada
64

anteriormente, assim foram apresentados aos católicos maranhenses no final da década


de 1960:

dados sociológicos de 1955 revelam que a Igreja do Maranhão dispunha de 130


sacerdotes de ambos os cleros [regular e secular]: 67 eram brasileiros e 63 estrangeiros.
Hoje, em 1968, há no Maranhão 212 sacerdotes seculares e religiosos, sendo 58
brasileiros e 154 estrangeiros (“JORNAL DO MARANHÃO”, apud MELO, 2010, p.
44).

Os dados acima evidenciam que a participação de padres estrangeiros na vida


cultural do estado, particularmente na produção de livros, não está dissociada de um
movimento macro de imigração de sacerdotes de diversas nacionalidades para o
Maranhão, o que lhes confere outro aspecto distintivo em relação aos demais padres de
origem “local”. O fato de dos 14 casos investigados, 8 ocuparem posições de destaque
no cenário de produção escrita no estado revela, entre outros fatores, o peso relativo que
as relações “centro/periferia” conferem aos agentes “vindos de fora”.

Há que se levar em consideração também o fato de muitos destes agentes


pertencerem a círculos sociais relativamente privilegiados e terem estabelecido relações
de poder (mais ou menos estáveis) que lhes permitiram a produção e a publicação de
livros em âmbito regional, constituindo-se assim em “intérpretes” da história, da
“cultura”, da “política” (SEIDL, 2007) e da “sociedade” maranhense. Certamente, um
estudo mais aprofundado sobre a presença e atuação de padres estrangeiros no
Maranhão se constitui num frutífero campo para pesquisas futuras.

Em relação ao caso do padre nascido no Pará, trata-se de Josimo Moraes


Tavares, um dos principais nomes na esfera de atuação militante da Igreja Católica no
estado, coordenador da Comissão Pastoral da Terra e presença marcante em questões de
conflitos de terras no interior do Maranhão, particularmente na cidade de Imperatriz,
cuja intervenção nas esferas social e política estava indissociável de seu ofício de
sacerdote, suscitando um “engajamento total” (MATONTI; POUPEAU, 2006). Por
conta de sua expressiva atividade de luta em defesa dos direitos dos trabalhadores
rurais, foi morto por pistoleiros da região e transformado pela Igreja em símbolo de
“resistência” contra os latifundiários e exemplo de “sacrifício pessoal” em nome dos
trabalhadores do campo, cuja imagem está estampada na sala de visitas da sede da CPT
em São Luís. Pouco tempo antes de sua morte, sob o calor das ameaças sofridas em
65

detrimento de suas ações, redigiu seu “testamento espiritual”, onde assevera suas
convicções política e religiosa:

Tenho que assumir. Agora estou empenhado na luta pela causa dos pobres lavradores
indefesos, povo oprimido nas garras dos latifúndios. Se eu me calar, quem os
defenderá? Quem lutará a seu favor? [...] Eu pelo menos nada tenho a perder. Não tenho
mulher, filhos e nem riqueza sequer... Só tenho pena de uma coisa: de minha mãe, que
só tem a mim, e não mais ninguém por ela. Pobre. Viúva. Mas vocês ficam aí e cuidarão
dela. Nem o medo me detém. É hora de assumir. Morro por uma justa causa. Agora
quero que vocês entendam o seguinte: tudo isto que está acontecendo é uma
consequência lógica resultante do meu trabalho, na luta e defesa dos pobres, em prol do
Evangelho que me levou a assumir até as últimas consequências. A minha vida nada
vale em vista da morte de tantos pais lavradores assassinados, violentados, despejados
de suas terras. Deixando mulheres e filhos abandonados, sem carinho, sem pão e sem
lar. (TAVARES, apud COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, 1986, p. 17-18. Grifo
nosso).

O “testamento espiritual” de padre Josimo Tavares é um importante registro


sobre o grau de “sacrifício” a que determinados padres da Igreja Católica no Maranhão
se submetiam “em prol de um Evangelho” que os conduziram “a assumir até as últimas
consequências”, chegando ao ponto de não se temer as frequentes ameaças de morte
feitas por latifundiários e grileiros de terras em função de uma “justa causa”. Observa-se
que a lógica que perpassa toda a construção do discurso “heroico” e “glorificador” de
padre Josimo está assentada no seu “trabalho” enquanto evangelizador, qual seja a “luta
e defesa dos pobres”. O martírio de Josimo, pois, é a constatação nítida de que a
incorporação dos pressupostos conciliares do Vaticano II despertaram nele e em outros
agentes da Igreja, como o caso dos padres Xavier Gilles e Antonio Monteiro (MELO,
2010, p. 76), uma espécie de conscientização sobre uma inequívoca indistinção entre a
ação de evangelizar e o de colocar o evangelho em ação.

Retomando a descrição dos casos destacados, no que se refere ao nível de


instrução superior, além dos estudos obrigatórios para o exercício do ofício de sacerdote
(Filosofia e Teologia), 9/14 apresentam formação escolar diversificada. Deste montante,
a predominância é do bacharelado em Sociologia (3), seguido pelos cursos de História
(2) e Direito (2), além de Medicina (1), Letras (1), Antropologia (1) e “Humanidades”
(1), curso assim mencionado nas fontes consultadas sobre a formação do padre
Clodomir Brandt. Dos 9 casos de escolarização híbrida, 2 registram acúmulo de
formação em Sociologia e Direito concomitantemente, o que explica a correspondência
numérica entre a quantidade de agentes com múltipla formação superior (9) e o
quantitativo de cursos preponderantes (5).
66

Nos testes realizados para se verificar se havia ou não correspondência entre as


variáveis apresentadas, é possível observar algumas regularidades entre nacionalidade e
diversificação da instrução superior. Dos 9 casos que apresentam formação além de
Teologia e Filosofia, 2 são brasileiros e 7 estrangeiros. Mais uma vez, os padres
estrangeiros apresentam atributos que lhes conferem maiores distinções em relação aos
sacerdotes de origem local o que, de certa forma, sinaliza para o entendimento das
posições ocupadas e das tomadas de posição assumidas por estes agentes ao longo de
seus trajetos específicos, conforme já dito anteriormente.

Os padres de nacionalidade brasileira são os maranhenses João Mohana


(bacharel em Medicina) e Clodomir Brandt (licenciado em “Humanidades”, curso
apresentado pelas fontes consultadas como uma interdisciplinaridade entre História,
Geografia e Letras). Tal distinção em relação aos demais brasileiros, que não
apresentam uma formação superior além da tradicional, vem reforçar a especificidade
dessas duas trajetórias como representativas do universo pesquisado, haja vista que a
heterogeneidade de uma instrução superior habilita e legitima os agentes a uma
diversificação das atividades exercidas, para além de seu ofício de sacerdote e, muitas
vezes, exógenas ao próprio âmbito religioso.

Isso não justifica, contudo, a ausência de algum estrangeiro na escolha dos casos
específicos. Nesse aspecto, a inclusão de padres de diferentes nacionalidades implicaria
a observação de outras dimensões de análise, por ora não contempladas no presente
estudo, principalmente no que se refere à importação de “ideias vindas de fora” e à
circulação internacional dos agentes, como no trabalho desenvolvido por Seidl (2007b).

Ainda assim, no caso dos padres estrangeiros (7) que se encaixam nesta
formação escolar híbrida, 3 são italianos, 1 canadense, 1 francês, 1 português e 1 belga.
Deste montante, predomina a formação em Sociologia (3), seguida pelo Direito (2),
História (2) e Letras (1). A predominância de tais cursos é reveladora das definições do
processo de aquisição de disposições em torno das modalidades de engajamento dos
padres estrangeiros com formação multifacetada. Não por acaso, os agentes que
apresentam em seus registros biográficos participação em espaços de atuação mais
próximos de um perfil militante, como veremos mais adiante, possuem predominância
de formação na área das ciências sociais e do Direito.
67

Pode-se depreender disso a tessitura de uma configuração na qual não é rara a


utilização de determinados saberes por parte dos agentes, adquiridos de um modo geral
em espaços de formação superior, na formulação de estratégias, práticas e intervenções
sobre as dinâmicas do mundo social, sendo possível correlacionar o uso desses
conhecimentos com o acionamento de certas modalidades de engajamento (REIS, 2008;
SAPIRO, 2012), que em seu conjunto condicionam as ações dos sacerdotes nas
diferentes esferas das quais participam e que são, também por isso, valorizadas como
pré-requisitos para a definição e ocupação de posições relativamente bem alocadas no
espaço de poder mais amplo.

Nesse sentido, os dados sobre a formação escolar dos casos elencados oferecem
pistas significativas sobre o tipo de perfil de agentes que se dedicam em algum
momento à atividade de escrita, indissociavelmente conectados às posições que ocupam
e às causas que defendem. São estes casos que, mais à frente, participam da organização
de atividades concernentes ao âmbito de ação de instituições vinculadas à Igreja, onde a
defesa de “causas sociais” se constitui em pauta legítima de reivindicação no repertório
de mobilização tanto dos sacerdotes e leigos quanto da própria Igreja.

Quadro 2
Dados sobre a atuação profissional e a participação em distintos espaços de
socialização e de intervenção dos 14 casos investigados

Atuação profissional, funções Pertencimento a instâncias de Participação em outros


e atividades consagração intelectual espaços de socialização
Fundador e presidente da
Médico, poeta, teatrólogo, Juventude Universitária
Membro da AML (1970),
romancista, ensaísta, professor, Autêntica Cristã (JUAC);
Cadeira Nº 03
pesquisador Presidente Arquidiocesano da
Ação Católica no Maranhão
Candidato à prefeitura de Arari
Educador, teatrólogo, (1959); vereador por três
Editor dos jornais “Notícias” e
romancista, ensaísta, mandatos (PSD); fundador de
“A Cruzada Maranhense”
pesquisador, jornalista, político escolas, teatros, jornais, postos
de saúde
Professor do Seminário de Santo Fundador e organizador da CEB
Professor, poeta, ensaísta
Antônio; Sócio-titular da de Tutoia (1965); fundador de
68

Academia Barracordense de escolas, organizações sociais,


Letras (1997); Membro da AML, movimentos rurais e entidades
Cadeira Nº 21 (1998); Presidente religiosas; Assistente eclesial da
da Academia de Ciências, Artes Juventude Universitária Católica
e Letras de Tutoia (2002), (JUC); primeiro Presidente do
Cadeira Nº 01 Instituto de Colonização e Terras
do Maranhão – Iterma (1982);
Capitão da Capelania Militar do
Maranhão desde 1993
Professor de Filosofia e
Sociologia nos cursos de Direito,
Pedagogia e Ciências Contábeis
Professor, romancista da UFMA (1983-1994); __________
fundador e Presidente da
Academia Imperatrizense de
Letras (1991-1999)
Coordenador Estadual das CEBs
no Maranhão (1973-1975);
Fundador da CPT Nacional
(1975); fundador e primeiro
Presidente da CPT-MA (1976-
1980); Diretor da Cáritas-MA
(1980); Chefe de Gabinete na
Professor no Seminário de Santo
Professor, advogado Prefeitura de Balsas (1995-
Antônio
2000); consultor da Secretaria de
Segurança do Governo Jackson
Lago (2006-2009); formação de
lideranças da Juventude Operária
Católica (JOC); advogado nas
esferas do Direito Agrário e do
Direito Penal
Assistente eclesial da JOC;
Reitor do Seminário de Santo Coordenador Estadual da CPT e
Militar, professor, advogado Antônio (1989-1994), além de das CEBs do Maranhão (1980-
professor da mesma instituição 1982); advogado na esfera do
Direito do Trabalho
Professor da Faculdade de Escreveu para “Jornal do Povo”
Filosofia do Maranhão; e “Jornal do Maranhão”, além de
Professor, jornalista
Professor de História e Filosofia ter sido editor do jornal das
da Universidade do Maranhão Ligas Camponesas, “A Liga”;
69

(hoje UFMA) militante da Ação Operária


Católica e da JOC; Membro do
Secretariado Nacional das Ligas
Camponesas
Membro da Academia Vianense Organizador e militante da CEB
Educador popular
de Letras, Cadeira Nº 02 de Viana
Coordenador Estadual da CPT-
__________ __________
MA (1982)
Fundador da CPT-MA (1976);
Fundador e primeiro
Fundador da Escola de
Coordenador do Conselho
Professor, pesquisador Antropologia Aplicada à
Indigenista Missionário (CIMI)
distância em São Luís-MA
do Maranhão; Vice-Presidente
Nacional do CIMI
Assessor teológico e educacional
da CPT-MA;
organizador da CEB do bairro do
Professor de Filosofia, História e
Professor, pesquisador, Anjo da Guarda, em São Luís
Sociologia do Seminário de
educador popular (1975); Educador popular da
Santo Antônio
Associação da Saúde da Periferia
(ASP); Membro do Conselho de
Assistência Social do Maranhão
Professor do Departamento de Coordenador Regional do CIMI-
Professor, pesquisador
História da UFMA MA (1985-1993)
Diretor da Faculdade de
Filosofia do Maranhão (1957);
Secretário de Educação do
Membro da AML (1959),
Professor, jornalista, poeta, Governo Newton Bello;
Cadeira Nº 19; Vice-Reitor
romancista Assistente eclesial da JIC, JOC e
(1962-1966) e Reitor da
JUC
Universidade do Maranhão
(1963-1967 e 1968-1972)
Coordenador da CPT-GO
__________ __________ (1979); militante nas questões de
conflitos de terras no Maranhão
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.

Sobre os registros profissionais desempenhados pelos agentes ao longo de seus


itinerários, pontua-se uma profusão de profissões, funções e atividades que mantêm
estreita relação com o universo de sua instrução superior, assim como a participação em
outros espaços de socialização e de intervenção. Dessa forma, observa-se uma
70

miscelânea de atividades exercidas por clérigos católicos que extrapolam o ambiente


confessional, concernentes ao âmbito de atuação de médicos, advogados, jornalistas,
professores, pesquisadores e “literatos”.

Dos 14 casos investigados, 12 registram atuação como professores e/ou


educadores de escolas, seminários, institutos de pesquisa, faculdades e universidades.
Desta soma específica, 3/12 apresentam registros como educadores, sendo dois atuantes
nas Comunidades Eclesiais de Base de suas respectivas regiões, identificados como
“educadores populares”, e um com participação marcante em escolas das séries iniciais
do ensino fundamental no interior do estado. O caso em questão trata-se da cidade de
Arari, onde se registra a significativa atuação do padre Clodomir Brandt como fundador
de escolas e de entidades religiosas, a exemplo da Escola Arariense e do Instituto Nossa
Senhora das Graças, instituições estas que contribuíram para a formação escolar de
muitas gerações de ararienses.

Do montante dos casos que atuaram como professores de formação superior


(9/12), observa-se uma certa equivalência entre os que lecionaram no âmbito de
formação seminarística e os que atuaram em faculdades e na universidade. 4/9 se
dedicaram ao magistério no Seminário de Santo Antônio17, principal local de formação
de padres do Maranhão, com sede na capital São Luís, enquanto que 5/9 exerceram a
função de professores universitários e/ou de institutos de pesquisa. Nota-se que a
incidência de agentes que transitam no espaço de ensino superior é bastante
significativa, o que oferece pistas sobre os tipos de produção escrita aos quais se
dedicaram, tais como artigos (de cunho religioso ou não) e pesquisas científicas
publicadas em livros, o que se observará mais adiante.

Dos que atuaram nessa esfera de produção de conhecimento, 3 alcançaram o


ápice da hierarquia administrativa das instituições de ensino superior onde lecionaram,
sendo um fundador da Escola de Antropologia Aplicada à Distância em São Luís, um
reitor do Seminário de Santo Antônio, entre os anos de 1989 e 1994, e um diretor da
Faculdade de Filosofia do Maranhão, em 1957. Caso do cônego Ribamar Carvalho, o

17
O Seminário diocesano de Santo Antônio foi fundado em 1838, durante o bispado de D. Marcos
Antonio de Sousa (1827-1842). O Seminário tinha por função iniciar os futuros padres recrutados junto às
elites maranhenses nos estudos da fé e da doutrina cristã, ofertando-lhes uma formação educacional
religiosa, moral e literária (SILVA, 2012, p. 155). Com o tempo, tornou-se o único Seminário no
Maranhão dedicado exclusivamente à formação do sacerdócio (PACHECO, 1969).
71

mesmo que, alguns anos depois, assumiria a reitoria da Universidade Federal do


Maranhão por dois mandatos consecutivos (1963-1967 e 1968-1972).

O comando de instituições de ensino superior no Maranhão sob a batuta de


agentes católicos evidencia a tentativa da Igreja de controlar e manter sua influência
sobre a produção cultural e a formação educacional no país como um todo. Isso se
coaduna com o predomínio exercido historicamente pela instituição eclesiástica no
Brasil, particularmente nestas duas esferas, cultura e educação, quando os estudos
iniciais e secundários eram promovidos e geridos pela Igreja e as interpretações sobre a
história do país eram produzidas por padres (MICELI, 1979; PACHECO, 1969).

No Maranhão, isso não foi diferente. Mesmo após a laicização promovida pelo
advento da República, a Igreja continuou disputando o controle ideológico do ensino
junto ao Estado. A partir da década de 1930, as disputas se arrefecem quando são
criadas, em âmbito local, a Juventude Universitária Católica e a Ação Universitária
Católica, que a nível nacional estavam direcionadas para o recrutamento das futuras
elites representadas pelos universitários (RIDENTI, 2002). A nível regional, este
processo acabou desembocando na fundação da Universidade Federal do Maranhão,
onde se registrou a participação efetiva de membros da hierarquia eclesiástica que
comandavam a Arquidiocese de São Luís e dos “literatos” que integravam a Academia
Maranhense de Letras (FARIA; MONTENEGRO, 2005, p. 18-19).

Concomitante a isso, a expansão da influência da Igreja sobre o ensino


universitário se corporifica na inserção de sacerdotes nas demais instituições de
“letrados” no Maranhão, ao passo que sinaliza para o desenvolvimento de um corpo de
“intelectuais e lideranças católicos” constituídos para pautar e animar os debates em
defesa dos pressupostos do catolicismo na esfera pública brasileira (MAINWARING,
2004; DELGADO; PASSOS, 2003). Tais ações evocam um esforço da Igreja em ocupar
posições estratégicas em áreas tidas como fundamentais para a manutenção de seu poder
simbólico junto à sociedade, como a produção cultural e o sistema de ensino (primário,
secundário e superior), num processo chamado por Sérgio Miceli (1979, p. 51) de
“enquadramento institucional dos intelectuais”.

Outra atividade desempenhada pelos agentes em foco é a de “pesquisador”,


função descrita pelas fontes consultadas, onde a maioria dos casos era dedicada ao
âmbito de produção de conhecimento científico/acadêmico, sob o custeio financeiro das
72

próprias instituições às quais pertenciam. 5/14 casos investigados desenvolveram, em


algum momento de seus itinerários, o trabalho de “pesquisador” como segundo ofício.
Depois da função de professor, na maior parte dos casos correlata à de produtor de
conhecimento, esta é a atividade mais recorrente entre os clérigos analisados.

Destaca-se ainda a atuação de poetas (3), ensaístas (3), romancistas (3) e


teatrólogos (2), o que implica numa observação de forte atuação de padres no cenário
cultural do estado, como produtores e/ou “intérpretes” da história e da cultura (SEIDL,
2007b). Pertencer às instâncias de reconhecimento acadêmico era uma forma de dar
legitimidade e musculatura social às representações produzidas pelos agentes da Igreja
sobre a política, a cultura, a história e a sociedade maranhense.

Cabe destacar ainda que outras profissões que apresentam alguma recorrência
entre os casos arrolados são a de jornalista (3/14) e a de advogado (2/14). Há uma ampla
gama de textos produzidos por aqueles que atuam no âmbito do jornalismo maranhense,
publicados em diversos jornais de significativa circulação no estado, aspecto não
contemplado no presente estudo devido às dificuldades de sua localização, porém
passível de ser salientado para a mobilização de investimentos em pesquisas futuras. Já
no caso dos dois padres advogados, suas atuações profissionais estão diretamente
ligadas às instâncias onde registram presença frequente, particularmente na Comissão
Pastoral da Terra, entidade vinculada à Igreja Católica no Maranhão, atuando no âmbito
do Direito do Trabalho, do Direito Agrário e do Direito Penal.

Pontualmente, aparecem registros de padres que atuaram como médico (1),


militar (1), militante de CEBs e causas sociais (2) e, eventualmente, participando da
esfera político-partidária, o que evidencia a hibridização de suas atividades sacerdotais,
imiscuídas com funções e formações “mundanas” que compõem a heterogeneidade de
seu ofício religioso.

No caso do ofício de médico, este foi exercido anteriormente ao ingresso no


sacerdócio por João Mohana, que clinicou e participou de diversos movimentos e
campanhas de saúde em São Luís. O caso do registro de militar trata-se de Xavier
Gilles, que combateu pelo exército francês na Guerra de Independência da Argélia
(1956). A atuação de “padre político” fora identificada no itinerário de Clodomir Brandt
e Silva, que liderou um grupo de oposição aos defensores de Vitorino Freire no
município de Arari. Chegou a apoiar uma candidatura que venceu as eleições na cidade
73

e a se candidatar, por duas vezes, para a disputa pelo cargo de Prefeito de Arari, tendo
sido derrotado em ambas.

No tocante aos clérigos que tiveram suas funções identificadas apenas no âmbito
confessional, destaca-se o registro de sua participação como “militantes” em
associações de moradores e comunidades eclesiais de base, e que fizeram de seu ofício
sacerdotal o sentido maior de suas vidas. Sua experiência profissional, no entanto, é
registrada apenas no âmbito das instituições engajadas da Igreja, com destaque para a
CPT18. Os dois casos foram coordenadores da instituição em Goiás (1979) e no
Maranhão (1982). São eles, respectivamente, os padres Josimo Tavares e Cláudio
Bergamashi. Observa-se ainda que nenhum dos dois possui registro de inscrição em
instâncias de consagração intelectual, nem universitária e nem de “letrados”, o que não
impede que sejam percebidos e se percebam como tal.

De um modo geral, tais registros indicam que a propensão dos agentes em se


dedicar ao exercício de escrever está indissociavelmente ligada às atividades que
exerceram ao longo de suas carreiras, haja vista que todas elas engendram a escrita
como ferramenta indispensável e presente em suas rotinas de trabalho. Em outras
palavras, o fato de padres escreverem livros provém da aquisição dessa competência
legatária de suas experiências cotidianas com a escrita.

Outra característica interessante a ser ressaltada é a de pertencimento ou de


inscrição dos agentes investigados em outras instâncias de consagração intelectual, além
do âmbito universitário, especialmente como integrantes da Academia Maranhense de
Letras (AML). Dos casos analisados, 5/14 se enquadram nesse tipo de reconhecimento
intelectual, constando como membros efetivos e/ou “pais fundadores” de academias de
letras espalhadas pelo Maranhão. Destes 5 casos, 3 são membros da AML, com sede em
São Luís, e os outros 2, pertencentes a instâncias de letrados no interior do estado,
sendo 1 da Academia Vianense, onde ocupa a Cadeira Nº 02, e 1 da Academia
Imperatrizense, onde consta como fundador e primeiro presidente.

18
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi instituída no Maranhão em 1975 como parte de “um intenso
programa de ação social junto às populações rurais”, iniciado por D. José de Medeiros Delgado, então
Arcebispo de São Luís. Dentre os principais objetivos da CPT no Maranhão, destaca-se a tentativa da
Igreja de fazer frente ao crescimento dos conflitos no campo, promovendo assim a organização dos
trabalhadores rurais na condução de suas lutas pela conquista de direitos sociais (ALMEIDA, 1981;
COSTA, 1994).
74

Observa-se ainda um caso específico de um sacerdote que acumula esse tipo de


reconhecimento em duas instâncias de consagração. É o caso do padre Hélio Maranhão,
membro da AML, onde ocupa a Cadeira Nº 21, e também membro da Academia de
Ciências, Artes e Letras de Tutóia, tendo sido seu primeiro presidente e ocupante da
Cadeira Nº 01. Hélio Maranhão é autor de 15 livros, dos quais obteve diversos prêmios.
Foi perseguido, preso e interrogado inúmeras vezes durante o período do regime militar
no estado. Atualmente, exerce a função honorífica de Capitão da Capitania Militar do
Maranhão, honraria concedida em 1993, durante o Governo de Edison Lobão.

Até aqui, verificou-se a existência de uma grande pluralidade de profissões,


funções e atividades desempenhadas por padres que vão além da mera celebração
eucarística e da realização de confissões. Tais esforços se concentram basicamente nas
esferas da política e da cultura, com forte incidência nas áreas da educação e das “lutas
populares”, com abertura para atuações na esfera burocrático-administrativa de órgãos
públicos e de instituições privadas, de perfil caritativo, assistencialista ou mesmo de
difusor e promotor de direitos humanos e de justiça social.

Contudo, cabe ainda pontuar os trânsitos realizados pelos agentes em outros


espaços de socialização, cujas relações propiciaram a aquisição de disposições e de
saberes práticos reconvertidos para uma esfera de atuação militante e de disputas
políticas pela conquista e/ou manutenção de posições dentro de um espaço de poder
mais amplo. Alguns desses espaços são marcados pela presença de organizações e
instituições vinculadas à Igreja, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), a regional da Cáritas no Maranhão, a Associação de
Saúde da Periferia (ASP), dentre outros, além dos movimentos promovidos, gestados e
geridos por membros da hierarquia eclesiástica, como a Ação Católica no estado, e os
movimentos da juventude, com suas ramificações em diversos domínios, especialmente
no mundo agrário (JAC), no âmbito do operariado (JOC) e na esfera universitária
(JUC)19.

19
O surgimento da JAC, JEC, JIC, JOC e JUC é um esforço da Ação Católica Brasileira em promover a
renovação das práticas pastorais na Igreja, com foco especial nos movimentos de juventude, numa
tentativa de cooptar futuros quadros e líderes católicos junto a setores específicos da sociedade. Conforme
assinala Salem (1981, p. 22), “o primeiro grupo ‘especializado’ que se constitui é a Juventude Operária
Católica (JOC). Em 1950, funda-se a JAC (Juventude Agrária), a JEC (Juventude Estudantil, composta
por estudantes secundaristas), JUC (Juventude Universitária) e JIC (Juventude Independente), agrupando
os que não se encaixavam nas outras categorias”.
75

Sobre esse aspecto, observa-se a presença de padres (6/14) atuando como


assessores e formadores de lideranças da juventude católica em suas distintas
ramificações, particularmente na JIC (1), na JOC (3) e na JUC (3), sendo um deles com
acúmulo de experiências nas três esferas, o cônego Ribamar Carvalho. No que se refere
especificamente ao âmbito de atuação da JUC, os 3 casos identificados exercem funções
de assistentes e de formadores de lideranças. São eles Hélio Maranhão, João Mohana e
Ribamar Carvalho. Estes 3 casos são representativos do tipo de intervenção política
realizada pelos “intelectuais católicos” no Maranhão, muito mais próximos do centro de
poder e da alta hierarquia da Igreja.

Como é sabido, os membros da JUC estavam diretamente ligados a inúmeras


ações políticas no estado no período abordado, principalmente no que tange ao
engajamento político em sindicatos e associações, à organização de movimentos,
passeatas, protestos, apoio a greves, reivindicação por políticas públicas, dentre outros,
tais como o Movimento Contra a Carestia, que nasceu na seara das atividades
desenvolvidas pelas CEBs (BORGES, 1998, p. 80-81). O perfil dos 3 agentes que
trabalhavam com formação de líderes católicos no âmbito da juventude universitária
corresponde aos tipos de investimentos (mais ou menos conscientes) realizados em sua
formação escolar e ao prestígio social obtido por seu reconhecimento “intelectual”. Ao
estabelecerem-se como mediadores das relações políticas entre o público acadêmico e
os órgãos de Estado acabam por garantir a manutenção de suas posições de poder
perante seus representados.

Tal perspectiva apresenta-se como passível de ser direcionada também para o


âmbito da juventude operária. 4/14 dos casos atuaram como assistentes e formadores de
lideranças na JOC. Além do maranhense Ribamar Carvalho, compõem o quarteto o
canadense Victor Asselin, o francês Xavier Gilles e o português Alípio de Freitas. Os
dois primeiros tiveram atuação mais incisiva no aspecto pedagógico e educacional dos
membros da JOC, enquanto os demais apresentam registros de funções desempenhadas
como assistentes, caracterizando suas posições num plano mais periférico em relação à
estrutura hierárquica da Igreja. Destes dois últimos, Alípio de Freitas chegou ainda a ser
integrante do Secretariado Nacional das Ligas Camponesas, órgão de atuação
eclesiástica tido como pertencente ao polo mais “radical” da Igreja brasileira durante o
regime militar.
76

Além destes casos específicos, 5/14 apresentam registros de atuação na


organização e execução das atividades das CEBs, tanto na capital (03) quanto no
interior (02), ocupando posições de “lideranças” e de “porta-vozes” no seio das
comunidades onde atuam. No que se refere ao trânsito em instituições de perfil engajado
(ver coluna 3 do quadro 2), observa-se o registro de 7/14 dos casos investigados que
atuaram como fundadores e/ou coordenadores estaduais da CPT (06) e do CIMI (01) no
estado, exercendo ainda outras funções no interior das mesmas instâncias como
advogados, jornalistas, assessores teológicos e educacionais. Pontua-se ainda a
passagem de sacerdotes pelo âmbito administrativo de outras instituições correlatas
quanto ao perfil de “porta-vozes de causas legítimas”, como diretor da Cáritas (01),
assistente da Associação da Saúde da Periferia – ASP (01) e presidente do Instituto de
Colonização de Terras no Maranhão – Iterma (01).

No tocante à participação na esfera das instituições políticas e de postos


administrativos de governo, 5/14 registram ocupação de cargos e funções em órgãos
distintos, sendo 1 Secretário de Governo de Newton Bello, 1 Chefe de Gabinete na
Prefeitura de Balsas-MA (1995-2000) e também consultor da Secretaria de Segurança
do Governo Jackson Lago (2007-2009), 1 presidente do Iterma (1982), e 1 membro do
Conselho de Assistência Social do Maranhão e assistente da ASP. Tais registros
evidenciam a tendência da heteronomia da carreira de religiosos católicos no estado, o
que aponta também para a fluidez, cada vez maior, das invisíveis fronteiras e da forte
imbricação entre os distintos domínios da religião, da cultura e da política.

Convém ressaltar que as relações de sociabilidade tecidas nestes espaços


ofertaram as condições propícias para a produção e publicação de livros por sacerdotes,
uma vez que, como veremos mais à frente, o teor dos escritos produzidos por estes
agentes correspondem, em certa medida, ao acúmulo das experiências vividas e das
posições exercidas ao longo de seus itinerários, com poucas brechas para a
inventividade do escritor.
77

1.2. Gêneros de escrita e recursos culturais

Não se pode negar que o ato de escrever implica numa distinção do autor em
relação aos demais indivíduos, pois ainda ocupa uma “posição de excelência” dentro
das sociedades de letrados. Seja como for, quem escreve não apenas registra seu nome e
suas ações na história, mas também demarca sua posição de poder perante os demais
agentes. De um modo geral, aqueles que atuam como mediadores culturais
consubstanciam suas posições, disposições e posicionamentos na publicação de textos,
especialmente de livros, legitimando assim a manutenção do próprio papel social que
assumem em diferentes momentos e domínios.

Com foco nesta perspectiva, passa-se à identificação dos gêneros de escrita aos
quais os agentes dedicaram-se com maior incidência, numa tentativa de correlacioná-los
às posições que ocuparam ao longo de seus trajetos de vida. O objetivo é demonstrar
que o grau de concentração dos escritos e das temáticas abordadas está
irremediavelmente conectado aos recursos acumulados (saberes, habilidades,
conhecimento) e às experiências vividas (cargos, atividades, funções, profissões).

Concatenada com o perfil social dos agentes, com a formação adquirida e as


posições assumidas, a atividade da escrita enseja a aquisição de certas competências e
habilidades que se expressam variavelmente conforme os gêneros se apresentam com
maior incidência. Nesse sentido, dos dados levantados sobre a produção intelectual dos
14 casos investigados, verificaram-se algumas frequências de determinadas temáticas e
tipos de escrita, tais como trabalhos de ordem técnica, que ensejam saberes específicos,
particularmente na esfera acadêmico/científica; de cunho religioso, voltado para a
doutrina e a disseminação do evangelho; escritos de militância, destinados à
mobilização social e intervenção nos diferentes domínios; textos ideológicos, de caráter
mais contemplativo e filosófico, que expressam “projetos” de sociedade, visões de
mundo, concepções, noções e ideologias; produções literárias (romances, peças de
teatro, contos, crônicas e poesias); memórias e autobiografias; e até mesmo textos
manualísticos, de caráter psicológico, com vistas à orientação da sexualidade e do
comportamento de jovens e adultos.
78

Em face a tais descrições, talhadas com fulcro numa primeira leitura sobre os
dados e registros das publicações mapeadas, procedeu-se à confecção do Quadro 3
baseado nos tipos de escritos que aparecem com maior recorrência, agrupados e
classificados da seguinte forma: religiosidade (textos teológicos e doutrinários, que
versem sobre orações, salmos, exaltação à fé cristã, espiritualidade); generalista (artigos
jornalísticos, escritos de militância, “visões” de mundos obre a história, a cultura, a
política, a sociedade, comportamento, família, casamento, sexualidade, etc.); literários
(romances, peças de teatro, contos, crônicas e poesias); além dos textos memorialísticos,
incluindo-se as autobiografias. Os demais livros não inclusos nesta taxonomia, devido
às poucas recorrências evidenciadas, foram listados como “não-classificados”.

Quadro 3
Distribuição de livros por gêneros de escrita referente aos 14 casos investigados

Não-
Religiosidade Generalista Literatura Memórias TOTAL
classificado
13 14 8 1 1 37
- 8 5 - 13 26
6 3 5 1 - 15
1 3 2 2 1 9
- 1 - - - 1
1 - - - - 1
- - - 1 - 1
- 1 - - - 1
- - 1 - - 1
- 1 - - - 1
- 3 - 1 3 7
- 1 - - - 1
- 3 - - 4 7
7 - 3 - - 10
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.
79

Depreende-se do Quadro 3, organizado na ordem dos padres apresentados no


Quadro 1 e de acordo com a quantidade de textos publicados em livros, uma tendência
maior dos padres a escreverem dentro do gênero “generalista”, o que implica inferir que
tais publicações estão muito mais vinculadas às experiências sociais, à formação escolar
e cultural e às “visões” de mundo adquiridas por cada agente, relativas aos seus
respectivos itinerários, que lhes conferiu a aquisição de competências e habilidades
específicas reconvertidas para esse tipo de publicação que, em suma, reflete a
modalidade de escrita com que mais se identificam e para a qual possuem maior
disposição propiciada pelos condicionantes que a presidem, haja vista que outros
gêneros como a literatura, por exemplo, suscitam um conhecimento e domínio de regras
mais complexas, muitas vezes dissonantes de suas atividades cotidianas.

Contudo, é curioso observar que escritos inseridos no gênero “religiosidade” não


figuram na primeira colocação, o que significa uma dedicação maior à confecção de
publicações que alcancem uma clientela mais abrangente e diversificada – como o são
os textos generalistas, de ordem mais panorâmica sobre o mundo social –, e não apenas
os próprios fiéis religiosos, demonstrando assim uma forte tendência de escritos que
abordem assuntos para além do âmbito confessional católico.

Para se precisar melhor a frequência de tais dados, pode-se mesclar os vários


gêneros de escrita que apresentaram alguma regularidade. Tem-se, assim, um quarto
quadro oriundo do quadro acima:

Quadro 4
Frequência das modalidades de escrita

Gêneros Quantidade %
Religiosidade 28 23,7
Generalista 38 32,2
Literatura 24 20,3
Memórias 6 5,08
Não-classificados 22 18,6
Total 118 100%
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.
80

A ordenação por gêneros das obras catalogadas revela uma variedade de usos da
escrita em seus diferentes formatos e as estratégias ativadas através dos recursos
disponíveis de cada agente para legitimação de seus textos. Observa-se, assim, que dos
14 casos investigados há uma incidência de 38 títulos (32,2%) publicados dentro da
classificação de textos generalistas, isto é, textos escritos sobre diversas áreas e
assuntos. A categoria de publicações religiosas registra frequência de 28 casos (23,7%).
24 registros (20,3%) são de textos literários e apenas 6 casos (5,08%) tratam-se de
memórias e autobiografias. Dos livros não inseridos em nenhuma dessas classificações,
constam 22 títulos (18,6%).

As frequências apresentadas fornecem alguns indicadores sobre a tendência de


consolidação do gênero generalista, que não necessariamente enseja a ativação de
saberes e conhecimentos técnicos especializados, mas antes a explicitação de
habilidades de escrita, maior nível de leitura de um modo geral e de um certo grau de
“politização” perante os assuntos temporais, o que implica uma tomada de
conscientização e de posicionamento sobre questões de cunho histórico, filosófico,
político, cultural, psicológico, comportamental, ideológico, etc.

Por outro lado, percebe-se que mesmo diante da prevalência de escritos mais
gerais, assuntos da esfera religiosa ocupam o segundo lugar com uma diferença não tão
ampla assim (apenas 8,5%). Ocorre ainda que o gênero religiosidade também ocupa
uma posição de proximidade com o gênero literário, havendo assim um certo
paralelismo entre investimentos feitos pelos agentes clericais em escritos de vertente
mais religiosa e literária, ambos correspondendo a 23,7% e 20,3%, respectivamente.
Dos casos analisados, pontua-se ainda uma tendência na redução de textos
memorialísticos, que registraram o percentual de 5,08%.

Levando-se em consideração essa classificação por gêneros, procedeu-se à


ordenação dos escritos conforme as décadas em que foram publicados. Contudo, dos 14
casos elencados, não foi possível a identificação precisa do ano de publicação de todos
os seus textos. Por conta disso, no quadro a seguir, tem-se uma amostra de 50 dos 124
livros catalogados que puderam ser mapeados conforme o período em que foram
publicados, evidenciando assim as décadas em que os agentes tiveram maior atuação.
81

Quadro 5
Distribuição dos livros por décadas

Décadas Quantidade
1950 1
1960 6
1970 9
1980 15
1990 13
2000 6
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.

Conforme se pode observar, há uma maior concentração de textos publicados


entre as décadas de 1980 e 1990, com 15 e 13 títulos escritos, respectivamente. Na
década de 1960, os dados apontam para 6 livros publicados. Já na década seguinte,
aparecem 9 títulos. Registra-se ainda que na primeira década dos anos 2000, aparecem 6
escritos publicados.

Dos números expostos, depreende-se que houve um aumento significativo na


publicação de livros entre as décadas de 1960 e 1980 e uma redução nas décadas
seguintes. Isto ocorre justamente durante o período histórico de maior atuação e
intervenção de padres da Igreja Católica na vida política, cultural e social do país,
particularmente circunscritos pelas transformações estruturais em curso na esfera
eclesiástica mundial, exemplificadas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) e pelas
conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979), eventos católicos que ocorreram no
calor de um contexto convulsivo marcado por ebulientes dinâmicas culturais e
sociopolíticas, que evidenciaram a intensificação das atividades de sacerdotes e leigos
na defesa de valores e direitos concebidos como lutas populares legítimas.

O ápice dos escritos aparece na década de 1980, com 15 títulos registrados, sinal
de que o processo de reabertura política entra em cena, promovendo a ampliação do
acesso a editoras e a novas publicações. Um dado curioso, contudo, e por isso mesmo, é
que quando se poderia supor um acréscimo na quantidade de livros publicados entre as
décadas de 1990 e 2000, precisamente por conta da abertura e do acesso a espaços de
82

publicação, registra-se 13 publicações no último decênio do século XX e apenas 6


títulos na primeira década do século XXI.

A explicação para a redução de tais registros em formato de livro repousa na


constatação de óbito de uma “geração” de padres que tiveram maior atuação entre as
décadas de 60 e 80, cuja produção escrita aparece não apenas como registro de suas
atividades, mas como trincheira de lutas políticas travadas com a exposição de
posicionamentos e de representações sobre o mundo social à luz do repertório
disponibilizado pelo tipo de catolicismo vigente à época. Além disso, pode-se inferir
que a própria conjuntura política e cultural do período em foco suscitou a necessidade
de fabricações de escritos que explicitassem o posicionamento da Igreja sobre os
assuntos em voga, particularmente aqueles que atingiam suas bases de sustentação
ideológica e de poderio simbólico (manifestações culturais de afrodescendentes, formas
de pensamento desvinculado da religião, etc.).

Compreende-se, portanto, que o perfil geral dos padres que se dedicam à


atividade da escrita no Maranhão é bastante heterogêneo e multifacetado,
correspondendo assim à própria hibridização de sua atividade sacerdotal cotidiana. Em
geral, são padres que se diferenciaram dos demais agentes no espaço de concorrência
pelo acúmulo de títulos escolares raros (principalmente de formação superior em outras
áreas distintas das tradicionais – teologia e filosofia), cujos saberes foram acionados em
momentos oportunos na demarcação de posições estratégicas e na confecção de
posicionamentos sobre o mundo social, evidenciado na publicação de seus escritos em
livros.

A conquista de títulos superiores valorizados no espaço em disputa também


abriu portas para a tessitura de relações sociais privilegiadas que, ao serem mobilizadas,
alçaram os padres a postos relativamente bem alocados, especialmente nas áreas do
ensino superior e de produção de pesquisas acadêmico/científicas, além da inserção em
outras instâncias de reconhecimento intelectual, como academias de letras e espaços em
jornais.

Portanto, sacerdotes que escrevem e que tiveram acesso a canais de divulgação


de seus escritos estão enredados por teias sociais que remetem desde a círculos
familiares ao pertencimento a novos espaços de socialização de “letrados”, onde a
habilidade da escrita é um trunfo bastante valorizado.
83

Em suma, a resultante dos títulos escolares com o pertencimento a círculos


sociais relativamente privilegiados confere ao perfil geral dos casos investigados o
reconhecimento de “intelectuais católicos”. Valor social este que se consubstancia na
produção de escritos, notadamente de livros, cujas temáticas abordadas estão
indissociavelmente conectadas às experiências vividas, às formações adquiridas e aos
postos, cargos e posições ocupados ao longo de seus itinerários, com escassas aberturas
para a criatividade dos escritores.

Conforme se verá nos casos específicos dos padres Clodomir Brandt e João
Mohana, nos capítulos seguintes, os usos sociais da escrita por sacerdotes maranhenses
são exemplos distintivos dos poderes simbólicos que incidem sobre a produção de livros
de “intelectuais católicos”, acionada como trunfo não apenas para demarcar posições e
adotar posicionamentos, mas efetivamente como trincheira de luta pela imposição de
representações “legítimas” sobre o mundo social. Tanto Brandt quanto Mohana, cada
um a seu modo e com as especificidades das dinâmicas de concorrência às quais
estavam enredados, quer seja na capital ou no interior do Maranhão, representam a
importância creditada ao papel de mediadores católicos nas esferas da cultura e da
política, cujas atuações revelam as fluidas fronteiras entre esses diferentes domínios e as
bases de legitimação de “intérpretes” e “porta-vozes” dos problemas sociais, sob a
chancela da Igreja.
84

CAPÍTULO 3:

CLODOMIR BRANDT E AS DISPUTAS POLÍTICAS EM PAUTA: a trajetória de


um padre político e escritor

Neste terceiro capítulo, abordar-se-á a trajetória20 (BOURDIEU, 2010) política


e cultural do padre Clodomir Brandt e Silva, um dos mais destacados sacerdotes da
Igreja Católica no Maranhão, que se notabilizou por sua reconhecida e prestigiada
atuação no município de Arari. "Padre Brandt”, como era celebremente conhecido (e até
hoje o é, mesmo depois de sua morte, em 23 de abril de 1998, aos 81 anos), atuou e
interviu de forma marcante em vários segmentos da vida social arariense. Foi fundador
de escolas, teatro, cinema, jornais, editora, biblioteca, associações religiosas, além de ter
sido um significativo personagem na história política da cidade, liderando grupos
políticos, exercendo mandatos de parlamentar municipal e chegando mesmo a
candidatar-se a prefeito.

Além disso, registra em seu trajeto a autoria de vinte e seis livros, a maioria
publicada de forma independente por sua própria editora (Editora Notícias de Arari),
sendo um dos mais produtivos clérigos da Igreja no tocante à produção “intelectual”.
Seus escritos, além de refletirem a síntese de seus pensamentos e concepções sobre o
mundo social, externalizam seus ideais, “projetos” de sociedade, visão política,
habilidades literárias, enfim, uma gama de competências e saberes que remetem a uma
forte hibridização de sua atuação, para além do âmbito confessional, e apontam para o
grau de heteronomização entre os diferentes domínios sociais, particularmente entre as
esferas política, cultural e religiosa.

Dentre as fontes utilizadas para a confecção deste capítulo, estão alguns livros
escritos pelo próprio padre Brant, que fornecem inúmeros dados e informações sobre
sua origem familiar e o percurso que trilhou até chegar ao exercício do sacerdócio e aos
fatos daí decorrentes, principalmente no livro A família Brandt, onde produz uma
narrativa memorialística de “glorificação” de sua própria história e a de seus familiares.

20
Segundo definição apresentada por Bourdieu (2004, p. 81), a noção de trajetória é cunhada como “uma
série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo), em um espaço
ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes. Tal noção é construída criticamente em
relação à ideia de “narrativa histórica”, que produz uma “ilusão biográfica” do agente pesquisado ao
abordá-lo como um ponto fixo e imutável que tem sua história de vida contada com início, meio e fim,
cuja única constância é a nominação, isto é, o nome que identifica a pessoa no decurso do tempo.
85

Nesse sentido, problematiza-se aqui tais escritos à medida que a narrativa


histórica e a reflexão sociológica vão avançando pari passu com outras “obras” escritas
por pesquisadores que, de alguma forma, estiveram inseridos nas dinâmicas de
concorrência que englobam nosso personagem, quer seja no campo da disputa político-
partidária, na luta pelo controle de canais de comunicação em Arari, ou nas batalhas
ideológicas entre protestantes e católicos. Os trabalhos utilizados como fontes são,
particularmente, livros escritos por membros das famílias que disputavam a hegemonia
sociopolítica no município e que, posteriormente, conquistaram posições em espaços de
divulgação literária no Maranhão, conforme expressam as obras Um passeio pela
história de Arari, de João Francisco Batalha, e O universo do padre Brandt, uma
biografia escrita por José Fernandes, ambas patrocinadas por instituições de “letrados”
no estado, como a Academia Maranhense de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico
do Maranhão.

Portanto, diante desses dados descritivos apresentados de modo sucinto, cuja


análise está calcada nas informações fornecidas e nas formulações elaboradas pelos
“intérpretes” da vida do sacerdote, incluindo-se as próprias interpretações feitas por
padre Brandt em relação à sua atuação político-religiosa-cultural em Arari, acredita-se
que o estudo de seu itinerário ajuda a entender de que forma os diferentes
condicionantes históricos, sociais, políticos, culturais, incidiram sobre seu ofício
sacerdotal e transformaram, significativamente, as práticas e os discursos produzidos
por este personagem, que passou a registrar, no recorte em questão, uma constante
atuação na esfera pública e a intervir incisivamente nos rumos que os grupos e as elites
dominantes definiam para a cidade, acionando o recurso da escrita como principal
instrumento de luta simbólica pela imposição de concepções e interpretações sobre a
política e a cultura no espaço em disputa.

Como se verá nas páginas seguintes, o grau de envolvimento na vida política de


Arari rendeu ao padre Brandt muitos admiradores de seus feitos, como também muitos
inimigos poderosos dispostos a não perderem tal poderio, simbólico e material, seja no
âmbito político-partidário ou na própria esfera de dominação religiosa, onde as
estratégias da Igreja para manter a hegemonia do catolicismo na região, particularmente
em face à crescente concorrência do protestantismo, surtiram efeitos mais sintomáticos
e plurais.
86

2.1 Do Mearim a Arari: origens, formação cultural e chegada ao “novo lar”

Clodomir Brandt e Silva nasceu em 22 de novembro de 1917, num pequeno


povoado chamado Pucumã, pertencente ao então município de Conceição dos Picos,
atual cidade de Colinas, situada na microrregião do Alto Itapecuru, a 385 quilômetros
da capital São Luís. Filho de Sebastião Gonçalves Silva e Carolina Brandt, era o quinto
de uma prole de nove irmãos (sete homens e duas mulheres).

O sobrenome “Brandt” é de origem alemã, herdado do patriarca da família no


Brasil, Fritz Brandt, seu avô. Fritz nasceu em Blankenese, próximo à cidade de
Hamburgo, na Alemanha, em 1861. Após a conclusão de seus estudos superiores em
Farmácia, recebeu um prêmio: uma viagem para estudar a fauna e a flora brasileiras. Foi
assim que desembarcou no país, em busca das florestas amazônicas, aportando
primeiramente em Recife e atravessando os estados de Pernambuco, Ceará e Piauí, até
chegar ao Maranhão pelo povoado conhecido hoje como cidade de Nova Iorque.

Já em solo maranhense, Fritz Brandt, de religião protestante (ele era luterano),


residiu por algum tempo no vilarejo, onde prestou serviços de farmacêutico e de
enfermeiro por não haver ali atendimento público dessa natureza nem gente instruída
que realizasse tais atividades. Tentando dar cabo dos objetivos iniciais de sua viagem,
os estudos sobre a Amazônia, deslocou-se para o povoado de Canto das Pedras,
próximo ao município de Mirador, atual Presidente Dutra, cidade onde conheceu e se
casou com Andreina de Almeida e Silva, filha de lavrador e de costureira. Dessa união,
nasceram-lhe os cinco filhos (quatro mulheres e um homem): Carozina, a mais velha;
Cláudio; Carolina; Claudine e Diana, a caçula da família; todos registrados apenas com
o primeiro nome e o sobrenome germânico “famoso”.

Dessa primeira geração “brandtiana” no Brasil, mais precisamente no Maranhão,


cabe destacar duas pessoas: Carolina e Cláudio Brandt, mãe e tio, respectivamente, de
Clodomir, nosso personagem. Sobre a mãe, Clodomir registra em seu livro, que remonta
a árvore genealógica da Família Brandt, apenas algumas informações sobre
nascimento, casamento e a morte, aos 94 anos. Pouco, se comparado às mais de
quarenta páginas dedicadas à memória de seu tio, cuja espessura textual sinaliza,
simbólica e materialmente, para a importância devotada por Clodomir aos feitos,
87

realizações, cargos, funções, relações e prestígios conquistados por Cláudio Brandt.


Com efeito, o tio de Clodomir Brandt foi o membro da família que mais influenciou sua
vida e a de seus irmãos. Porém, antes de explicitarmos o trajeto do bem-sucedido tio,
passemos ao delineamento do perfil social de seus pais.

2.1.1 Perfil social dos pais

A mãe de Clodomir Brandt e Silva, Carolina Brandt, nasceu no dia 26 de junho


de 1892, na cidade de Mirador. O pai, Sebastião Gonçalves Silva, nasceu no dia 21 de
dezembro de 1887, na cidade de Pastos Bons. Porém, sua união com Carolina se deu na
cidade de Picos, atual município de Colinas, onde se casaram e tiveram nove filhos.

Carolina era de religião católica e exercia a atividade de costureira. Quando de


seu casamento, ainda não havia completado 18 anos; Sebastião, seu marido, tinha 23
anos de idade completos. Homem humilde, negro e de poucas posses, filho de
lavradores, Sebastião exercia a profissão de alfaiate, mas teve de enfrentar os
preconceitos da época, tanto o social quanto o racial, por sua cor de pele e pela pobreza
material, em decorrência de sua união com Carolina, mulher branca e “de família”.
Segundo relato do próprio padre Brandt, o casamento desagradou os familiares de
Carolina, especialmente seus irmãos, porque “consideravam o rapaz muito preto e
pobre, um simples alfaiate” (SILVA, 1993, p. 57).

Apesar dos relatos de extrema pobreza, a profissão de alfaiate chegou a render a


Sebastião “uma vasta freguesia, dando-lhe possibilidade de manter um salão [ou
oficina] onde vários profissionais da tesoura trabalhavam sob sua direção”. Somente a
partir da doença (ostiomielite aguda), que o acometeu durante vinte longos anos e que o
levou a óbito, é que seu estado de pobreza foi se instalando e se agravando, fazendo
com que se “esgotasse todos os recursos até à extrema penúria” (ibid., 1993, p. 59).

Com a perda da oficina e, consequentemente, da freguesia, Sebastião ainda


juntou forças para se dedicar à atividade da agricultura e do roçado, de onde retirou
precariamente seu sustento e de sua família a partir de então. Nessa empreitada, ele
contou com a ajuda da esposa, que lucrava com o trabalho de costureira, e com o envio
88

de dinheiro de seu cunhado, o próspero comerciante Cláudio Brandt, que residia em


Caxias. A ajuda financeira de Cláudio aos seus irmãos e sobrinhos foi apenas uma das
formas de intervenção e influência na vida de seus entes familiares.

Ao todo, foram nove os filhos do casal Sebastião e Carolina: Adiles, Frederico,


Oscar, Judite, Clodomir, José, Antonio, Maria de Lourdes e Cláudio Sobrinho.
Sebastião Gonçalves Silva morreu no dia 5 de março de 1943, aos 55 anos, na Santa
Casa de Misericórdia, em São Luís, obtendo o regozijo de ter visto o filho Clodomir
ordenado padre dois meses antes do apagar das luzes de seus olhos. Sua esposa,
Carolina Brandt, vivendo anos de viuvez em Arari e, posteriormente, na capital
maranhense, faleceu no dia 2 de junho de 1987, no Conjunto Residencial Cohab Anil,
próximo de completar 95 anos.

Observa-se neste mosaico social dos genitores de Clodomir Brandt que a


escassez de recursos levou-os a uma vida simples, com muitas dificuldades. Não
bastasse isso, a falta de apoio de seus respectivos familiares contribuiu para que as
opções a serem apresentadas aos filhos fossem as mais próximas de sua realidade
humilde, onde as alternativas de sucesso eram bastante escassas, porém existentes e de
difícil acesso. Neste ponto, entra em cena a figura do tio de Clodomir, Cláudio Brandt,
de significativa ascensão social devido à bem sucedida atividade de comerciante,
através da qual pôde exercer o papel principal de “chefe da família”, no tocante à ajuda
material que devotava aos parentes e na mediação que permitia seus entes familiares
transitarem entre diversas cidades, à procura de melhores oportunidades de trabalho e
estudo.

Com efeito, a escolha de Clodomir Brandt pela vida sacerdotal parece ter sido
motivada e condicionada pelas precárias condições de existência de seus pais,
constituindo-se para ele uma das escassas oportunidades de vencer as dificuldades
materiais de sua família e adquirir uma formação e seguir a carreira religiosa, que ainda
gozava de algum prestígio social, para a qual a influência e o apoio de seu tio Cláudio
foram decisivos em sua formatação e concretização.
89

2.1.2 O “tio Cláudio” e a centralização das relações de parentesco

Cláudio Brandt nasceu em 15 de julho de 1890, na cidade de Mirador. Era o


segundo dos cinco filhos do casal Fritz Brandt e Andreina de Almeida e Silva, sendo
apenas ele do sexo masculino. Aos 10 anos de idade, com a morte do pai, teve de
assumir a responsabilidade pela família, por ser o único “homem da casa” onde morava
com a mãe e as quatro irmãs.

Aos 16 anos, empregou-se numa pequena casa de comércio na cidade de Colinas


(antiga Picos). À época, chamavam-se as casas de comércio de “quitandas”. Não
obtendo um ordenado considerado satisfatório junto ao seu empregador, decidiu sair do
serviço e montar seu próprio negócio. O relativo sucesso e prosperidade alcançados
como comerciante fizeram com que Cláudio expandisse suas relações sociais e políticas
e ficasse “conhecido” na cidade, a tal ponto de ter sido eleito vereador de Colinas para o
biênio 1922-1924, tendo obtido 440 votos (SILVA, 1993, p. 15-16). Antes disso, em
outubro de 1917, já havia sido nomeado pelo Governador do Estado para o cargo de 1º
Suplente de Delegado de Polícia do Município.

Dispondo desse capital político e do sucesso obtido no desenvolvimento de sua


atividade de comerciante, Cláudio mudou-se para a cidade de Caxias, onde
potencializou ainda mais a crescente prosperidade econômica da qual usufruía. Tal
enriquecimento material andava de par com sua atuação e participação na esfera política
caxiense, o que lhe conferia maior penetração nos principais círculos sociais da cidade,
especialmente entre as elites políticas e econômicas. Em Caxias, Cláudio foi um dos
líderes da Revolução de 193021, além de ter chefiado um movimento para a manutenção
do padre Astolfo Serra como Interventor Federal no Maranhão, exemplos de atuação
que consubstanciam o protagonismo que vinha adquirindo no município, inclusive junto
aos membros da Igreja Católica.

Após algumas oscilações no comércio caxiense, Cláudio Brandt decide fixar-se


em São Luís, onde se torna proprietário de dois prédios, localizados na Rua Grande e na

21
Consagrado na historiografia como o evento que marca o fim do período conhecido como “República
Velha” (1889-1930), a Revolução de 1930 significou, em termos gerais, a ascensão da classe industrial ao
poder político no país através do movimento tenentista. No entanto, tal definição é bastante criticada
pelos novos estudos e abordagens sobre o tema. Para saber mais, ver Fausto (1997).
90

Rua da Horta, no Centro, que passaram a ser sua principal fonte de renda. Em junho de
1939, foi nomeado conselheiro e vice-presidente do Departamento Administrativo do
Estado pelo Interventor Federal Paulo Martins de Sousa Ramos, com quem manteve
estreitas relações de amizade e de colaboração durante todo seu governo
intervencionista. Em março de 1941, decide pedir exoneração do cargo para assumir o
posto de Diretor-Presidente do Banco do Estado do Maranhão (antigo BEM, já extinto),
onde permaneceu por 10 anos.

Sua destacada atuação no BEM despertou ainda mais os olhos da Igreja para si.
A convite de D. José de Medeiros Delgado, Arcebispo Metropolitano de São Luís, de
quem era amigo e colaborador, após sua renúncia ao cargo bancário em decorrência do
pedido de demissão de Paulo Ramos ao presidente Getúlio Vargas, em março de 1951,
Cláudio Brandt aceitou ocupar a função de diretor da recém-criada Cooperativa Banco
Rural do Maranhão, uma instituição financeira de crédito popular administrada pela
Igreja Católica. Depois disso, assumiu a função de Tesoureiro da Santa Casa de
Misericórdia de São Luís e de Delegado Regional do Instituto de Aposentadoria e
Pensões da Estiva Transportes e Cargas (IAPETC). Cláudio foi ainda um dos
responsáveis pela organização e fundação do Partido Trabalhista Brasileiro no
Maranhão (PTB/MA), onde atuou em parceria com seu estimado amigo, o interventor
Paulo Ramos. Cláudio Brandt faleceu no Rio de Janeiro, no dia 19 de junho de 1968,
aos 78 anos de idade, vítima de um edema pulmonar.

Gozando de enorme prestígio e sendo o membro da família que mais prosperou


em termos econômicos, políticos e sociais, Cláudio materializou em torno de si as
chances de ascensão social para quase todos os seus sobrinhos, dentre eles o padre
Brandt. A importância de “tio Cláudio” para a família de origem alemã é relatada pelo
próprio sacerdote quando aborda alguns feitos e movimentos de seus irmãos que
tiveram decisiva participação de Cláudio, principalmente no que diz respeito ao trânsito
entre Colinas, Caxias e São Luís22, à oferta de emprego e hospedagem e à influência no
direcionamento das carreiras profissionais dos familiares.

Foi Cláudio Brandt o responsável por encaminhar e prover seu sobrinho


Clodomir para a vida clerical. Segundo o pesquisador José Fernandes (2012), tio

22
Sobre este assunto, ver SILVA, Clodomir Brand e. A Família Brandt. Arari: Editora Notícias de Arari,
1993, p. 61-73.
91

Cláudio, católico fervoroso, havia tomado para si a incumbência de prover a educação


de Clodomir. Sendo para este como um pai, “dotando-o das provisões necessárias,
tratou de encaminhá-lo para o enfrentamento da longa caminhada em busca da
ordenação sacerdotal” (FERNANDES, 2012, p. 31).

Como se pode observar, o trajeto de Cláudio Brandt propiciou a ele, em termos


materiais e simbólicos, a condição real de “chefe de família”, que começou na tenra
idade e se estendeu ao longo de sua vida, através de auxílio financeiro e da oferta de
moradia temporária aos demais parentes que desejassem consolidar os estudos iniciais e
adquirir os primeiros ordenados. Cláudio corporifica aquilo o que Eric Wolf (2003, p.
98) chamou de “regiões de parentesco”, agrupamentos que tendem a se formar em torno
de círculos parentais [ou de um membro da família], onde os laços familiares
constituem um conjunto de recursos para um indivíduo ou para toda a família.

Além do mais, pesa sobre o papel assumido por Cláudio Brandt, adquirido pela
prosperidade econômica, pelos destacados cargos políticos e funções administrativas
que desempenhou e pelas redes de relações que teceu e expandiu, a tendência de
manutenção de uma pretensa “reputação” familiar (WOLF, 2003, p. 100). Tal
perspectiva está identificada nos juízos de valores e nas ações da família sobre o
“destino” de alguns entes, seja no “desgosto” dos parentes pelo casamento da irmã
Carolina com um homem “muito preto e pobre”, na “desordem emocional e psíquica”
de um dos irmãos de Clodomir, o único que viveu uma “vida desajustada” e cheia de
problemas, segundo relato do próprio padre Brandt (SILVA, 1993, p. 64-67) ou na
tentativa de Cláudio de oferecer melhores condições de educação e de emprego para
todos os seus sobrinhos, os futuros responsáveis pela perpetuação do nome da “família
Brandt” na história da cidade de Arari.

2.1.3 Entrando no mundo eclesiástico: formação seminarística e cultural

Os estudos primários de Clodomir Brandt e Silva foram iniciados ainda em sua


cidade-natal, Picos, hoje Colinas, vindo a serem concluídos em Caxias, sob a tutela de
tio Cláudio, no Instituto Municipal Gonçalves Dias. Foi nesse colégio, um dos mais
referenciados pelas elites locais, onde estudavam os filhos de comerciantes e dos
92

proprietários de terras na cidade, que ele desenvolveu o hábito da leitura e a dedicação à


escrita, cujos vértices começaram a adquirir contornos mais nítidos em suas ações e
atividades, resultando na elaboração de um pequeno texto literário que, posteriormente,
viria a ser publicado num folhetim fundado por ele mesmo, denominado de “A
TERRA”, dedicado aos assuntos escolares de então.

O fato da criação de um pequeno jornal dentro de um ambiente escolar de ensino


fundamental reflete a dinâmica e os estímulos à vida cultural no Instituto Gonçalves
Dias, de onde provém o “gosto” pela leitura e pela escrita de nosso personagem. Além
disso, o contato na escola com os filhos das classes mais abastadas da região, de onde
sairia uma leva de alunos que enveredariam pelas profissões de padres, médicos e
bacharéis em Direito legou a Clodomir um aspecto de distinção e um acúmulo de capital
social (BOURDIEU, 1998) que seria acionado em diferentes momentos no transcurso
de seu itinerário.

Concluído o curso primário e influenciado pelas professoras de escola e do


catecismo, ainda em Caxias, o jovem Clodomir manifestou ao tio Cláudio o desejo de se
tornar padre, que logo tratou de atendê-lo, conforme dito anteriormente. Assim,
contando com o apoio material do bem-sucedido tio, Clodomir Brandt entra para o
Seminário de Santo Antônio, em São Luís, em fevereiro de 1932, aos 15 anos de idade,
onde permaneceria por onze anos. Sobre sua estadia no Seminário, assim descreve o
pesquisador José Fernandes (2012, p. 33):

Aquele centro de ensino religioso imprimiu, com certeza, uma marca de acentuado
dinamismo naqueles jovens reclusos, notadamente em Clodomir, sagaz e especulativo,
adquirente de uma sólida base intelectual, destacando-se em várias matérias –
português, francês, retórica e redação (exercitada esta última ao fundar e redigir o jornal
de uso interno “A CRUZADA”), sem se descurar dos livros pertinentes à cultura geral.

De fato, o Seminário de Santo Antônio era o principal centro formador de padres


no Maranhão, onde se instruía os alunos sobre os ensinamentos da doutrina e da moral
religiosa, mas também sobre cultura geral, artes, ciências e literatura (PACHECO,
1969). Tal educação seminarística estava ancorada ainda nos valores tridentinos
(SILVA, 2012, p. 154), cujas diretrizes foram estabelecidas em meados do século XIX,
ressoando durante o bispado de D. Marcos de Sousa, no Maranhão, período em que foi
instituído o Seminário de Santo Antônio, sob a justificativa do referido bispo de que os
93

ensinamentos ali prestados auxiliariam os sacerdotes em sua vocação e disciplina, assim


como seriam versados também nas artes e nas ciências

que aperfeiçoaõ a razão humana, e regulaõ os sentimentos do coraçaõ, o que muito


concorre para haverem ministros illustrados, dignos das sublimes funcçoens do
Santuario, e cidadaons habilitados para administrar os negocios publicos (SILVA,
1922, p. 211-212. Apud SILVA, 2012, p. 155. Grifo nosso).

Com efeito, a vida no seminário tinha por função não apenas garantir a
ordenação sacerdotal e a reprodução dos quadros clericais da Igreja, mas também
contribuir para a formação cultural daqueles que deveriam ser, além de “ministros
ilustrados”, “cidadãos habilitados para administrar os negócios públicos”. Pode-se
observar que esta tendência de intervenção sacerdotal na esfera pública, cunhada legal e
institucionalmente ainda no século XIX, reverbera no século seguinte e torna-se mais
evidente no caso em questão, quando, já com nove anos de seminário, Clodomir Brandt
assim se manifesta sobre uma campanha de arrecadação de fundos, que ele mesmo
dirigia, para a manutenção do estabelecimento vocacional situado em São Luís:

Se não houver recursos para sustentar o Seminário, não haverá um clero atuante, sadio e
santo para estender sua ação evangelizadora cada vez mais longe, indo às fábricas
levar o conforto religioso ao tugúrio do pobre para consolá-lo e santificar-lhe a
humildade, indo ao palácio do rico cheio de luzes e sons, indo em busca das crianças e
dos jovens, e pelo sertão longínquo buscar almas e trazê-las para a redenção
(FERNANDES, 2012, p. 33. Grifo nosso).

A questão de “estender a ação evangelizadora cada vez mais longe”, de ir às


fábricas e de levar consolo à vida do “pobre”, assim como ao “palácio do rico” e pelo
“sertão longínquo”, ainda que esculpida pelo viés religioso, começa a aparecer como
uma problemática constante na vida de Clodomir. A passagem pelo seminário confere
ao nosso personagem, além de uma elevada cultura geral, uma espécie de capital
militante23 (MATONTI; POUPEAU, 2006), cujo engajamento nascituro do
envolvimento nas questões que vão além do ambiente confessional parece se solidificar
à medida que a hierarquia eclesiástica toma ciência da “crise” que assola suas bases de

23
Conforme o define Matonti e Poupeau (2006, p. 130), trata-se de um tipo de capital incorporado sob a
forma de técnicas e de disposições a agir e a intervir, abrangendo um conjunto de saberes (teóricos e
práticos) “mobilizáveis no momento das ações coletivas, das lutas inter ou intrapartidárias, mas também
exportáveis, passíveis de conversão para outros universos, e, assim, suscetíveis de facilitar certas
reconversões”.
94

sustentação ideológica e de falência de seus serviços de produção e reprodução da


“vocação” religiosa (AZZI, 2008; MAINWARING, 2004).

Outro aspecto importante a ser destacado é a utilização da escrita pelo jovem


Clodomir Brandt como instrumento de manipulação simbólica (BOURDIEU, 2008) e
de distinção nos espaços que ocupa em relação aos demais agentes. Ainda nos estudos
primários, funda um pequeno folhetim para veicular seus escritos literários, referente à
própria vida escolar. Já no seminário, funda novamente um canal informativo para
divulgar, ainda que para um público reduzido e restrito ao âmbito seminarístico, suas
ideias e concepções sobre a ação evangelizadora do catolicismo vigente à época e suas
representações sobre o mundo social, quer se trate do “pobre” ou do “rico”, das
“fábricas” ou do “sertão”.

Percebe-se neste aspecto a formatação institucional embrionária da hibridização


do ofício sacerdotal (SEIDL, 2003; 2007b), legatária desde o final do século XIX,
quando a Igreja formula através de seus destacados agentes (bispos com forte atuação
política no Maranhão, caso de D. Marcos de Sousa) as bases legais que legitimam a
intervenção de seus sacerdotes em diferentes domínios, onde a atividade da escrita se
constitui como uma das principais modalidades de atuação intelectual dos clérigos
católicos, além de se constituir num fator distintivo e de demarcar a posição e os
posicionamentos do agente em foco. Tais observações evidenciam uma tentativa da
instituição eclesiástica em abranger e influenciar as discussões públicas, as questões
sociais, a atividade cultural, e a autorizar, ampliar e pautar a publicação de escritos
diversos através da criação e manutenção de novos canais midiáticos no Maranhão.

2.1.4 O vigário de Arari: aspectos sociais, culturais e religiosos da cidade

Em 1º de janeiro de 1943, Clodomir Brandt e Silva é ordenado sacerdote pelo


arcebispo metropolitano de São Luís, D. Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota. A partir
de então, padre Brandt dá início oficialmente à sua missão evangelizadora no Maranhão.
Permanecendo por algum tempo em São Luís, onde atuou em algumas paróquias
situadas nos bairros da capital, Brandt percorre alguns municípios maranhenses como
95

Caxias, Buriti Bravo, Passagem Franca e Colinas, onde celebrou a primeira missa
cantada do Maranhão, denominada de “Missa Nova” (FERNANDES, 2012, p. 45).

Dando cumprimento à sua função religiosa, foi assistente diocesano de bispos


em visita a Coroatá e Anajatuba, antes de ser nomeado vigário de Cururupu, destinação
que não chegou a assumir. Todo esse percurso por algumas cidades maranhenses fez
com que padre Brandt se tornasse ainda mais “sensível à realidade das populações”
mais afastadas dos centros urbanos, desprovidas de educação básica e tratamento de
saúde (ibidem). Observa-se como a descrição das atividades religiosas de Brandt é
talhada pelas “fontes” buscando-se sempre a justificação para sua intervenção no mundo
social. Isso evidencia, ainda que mais ou menos conscientemente, o aspecto
“consagrador” dos escritos que servem de base para a discussão proposta.

Exatamente um ano após ter percorrido essas plagas “interioranas”, quando


completou seu primeiro aniversário de ordenação sacerdotal, em 1º de janeiro de 1944,
padre Brandt foi nomeado vigário de Arari, assumindo seu posto no dia 9 do mesmo
mês, aí residindo de forma fixa. As circunstâncias em que ocorreu tal nomeação são, no
mínimo, curiosas, e foram descritas pelo próprio sacerdote, no sexto volume dos seus
Escritos sem ordem, - coletânea de textos publicada em 1996 que versam sobre
diversos assuntos abordados pelo sacerdote, tanto históricos quanto contemporâneos,
mas todos sob a ótica do catolicismo que defendia, - onde em visita ao arcebispo do
Maranhão, D. Carlos Mota, teceu com ele o seguinte diálogo:

- Foi bom você ter vindo hoje aqui. Precisava mesmo falar com você, para lhe
comunicar que não vais mais para Cururupu. Deixei de novo lá o padre Papp. Dom Luiz
pediu-me para ceder-lhe novamente. Caso queira, está dada a permissão. Ele alega que
você é filho de Colinas...
- Dom Carlos, não quero mais ir para Caxias. Gostaria de ir trabalhar numa paróquia do
interior.
- Está certo. Eu só lhe ofereci essa oportunidade de ir trabalhar com Dom Luiz porque
pensei que isso era de seu agrado. Mas a sua diocese é aqui.
O chefe da Igreja maranhense entrou no seu gabinete e trouxe um papel na mão,
retomando a conversa com o padre.
- Aqui está a relação das paróquias vagas da Arquidiocese. Escolha entre essas
paróquias uma para nela ir trabalhar.
- Mas, senhor arcebispo, vossa Excelência é quem deve fazer a indicação da paróquia e
eu aceitarei. Ordenei-me para padre para obedecer.
- É, mas eu não costumo fazer assim com meus padres. No entanto, como você alegou a
obediência, eu ordeno que escolha.
O padre não teve mais argumento, nem alternativa. Começou a ler o listão de paróquias
vagas, algumas localizadas em cidades que estavam em pleno desenvolvimento. E logo,
sem muito pensar:
- Senhor arcebispo, escolho Arari.
- Arari, não! Escolha outra. Há várias paróquias boas vagas. Arari, não!
- Então, agora, vossa Excelência indica. Já obedeci escolhendo Arari.
96

- Mas Arari não serve para você. No entanto, vamos fazer uma coisa: você tem três dias
para pensar. Vá e volte daqui a três dias. Há uma pessoa que pode ajudar-lhe. É o padre
Pedro Verneullen, a quem você conhece. Fale com ele. É experiente e já passou dias em
Arari (SILVA, 1996, p. 26-28).

A conversa com o referido padre holandês, pertencente à Congregação dos


Padres Lazaristas, missão fundada por São Vicente de Paulo, serviu para estimular ainda
mais o desejo de padre Brandt em prestar seus serviços religiosos à cidade de Arari.
Afinal, padre Pedro Verneullen era um “entusiasta” do município, onde já havia estado
por duas vezes como missionário visitante, nos anos de 1942 e 1943, a ponto de fazer
inúmeras amizades e conquistar a “admiração de quase toda a população”. Foi sob sua
influência que a paróquia de Arari veio a ser ocupada definitivamente pelo padre
Clodomir Brandt (FERNANDES, 2012, p. 57).

Convém, contudo, explicitarmos como estava delineada geográfica e


socialmente a cidade de Arari antes da chegada do padre Brandt, a fim de que se possa
entender o porquê da tentativa de dissuasão, a priori, do arcebispo D. Carlos Mota em
relação à escolha da cidade pelo nosso personagem, assim como lançar luz sobre os
condicionantes históricos, sociais, culturais e religiosos que realçaram e distinguiram a
atuação de Clodomir no município.

A vila de Arari emancipou-se administrativamente em 19 de abril de 1833.


Tratava-se, de fato, do segundo distrito da vila de Nossa Senhora de Nazaré do Mearim,
denominada de “Arari” devido à abundância de inúmeras “araris”, certa espécie de
sardinha que predominava nas águas do rio Mearim. Contudo, tal versão é bastante
discutida entre os historiadores24. O próprio padre Brandt admite uma outra versão para
a origem do nome do município25.

24
Existem quatro hipóteses que sustentam a origem do nome da cidade de Arari. A primeira se trata de
uma suposta predominância na região do Médio Mearim de um tipo raro de “araris”, araras vermelhas
com tons amarelados. A segunda hipótese gira também em torno da designação de uma espécie de arara,
porém relativa à sua baixa estatura, onde “arari” significaria “pequena arara”. A terceira versão trata da
denominação dada a certo tipo de árvore de terra firme e à tinta vermelha extraída de sua casca. Já a
quarta hipótese refere-se ao tipo de sardinha de bastante abundância nas barrancas do rio Mearim, versão
mais aceita entre os historiadores precisamente pelo fato da cidade ter nascido às margens do famoso rio e
ter na pesca uma das suas principais atividades econômicas (BATALHA, 2011, p. 51-52). É interessante
observar, no entanto, que as diversas versões sobre a origem de Arari refletem, em última instância, o
grau da disputa travada em torno dos princípios de legitimação e de imposição de uma “versão oficial”
sobre a história e a memória da cidade.
25
Para o sacerdote, a designação “Arari” teria sido originada de um diálogo entre um marinheiro e um
dono de embarcação, que teria de ancorá-la num lugar chamado “arariba” quando a maré fosse vazante.
97

Por certo, diante da falta de consenso entre os historiadores que se propuseram a


investigar a origem do nome “Arari”, não sem algum grau de relativo interesse na
disputa pela memória e pela história da cidade, o que se tem de concreto é que a vila foi
elevada à condição de município em 27 de junho de 1864 (BATALHA, 2011, p. 42).
Em 1938, o Decreto-Lei nº 45, de 29 de março, tirou Arari da condição de menor
município do Maranhão, estendendo seu território por toda a margem direita do rio
Mearim, compreendendo a trizidela do Ubatuba, Macaquiçá e a trizidela de Vitória do
Mearim, o que gerou inúmeras divergências entre as elites políticas e rurais das regiões
incorporadas26. Tais disputas só aumentaram com o Decreto-Lei estadual nº 159, de 6
de dezembro de 1938, assinado pelo interventor federal no Maranhão, Paulo Martins de
Sousa Ramos, que concedeu ao município de Arari a maior extensão territorial de sua
história, indo “desde as margens do rio Mearim, passando pela foz do Grajaú, atingindo
as bordas do rio Pindaré, seguindo pelo divisor das águas Mearim-Itapecuru, até
alcançar a linha geodésica, que parte da foz do rio Peritoró (ibid., 2011, p. 43-44).

As primeiras levas de povoadores a se instalarem na cidade datam do período


colonial. No decorrer dos séculos XVIII e XIX, Arari sofre novo processo de correntes
migratórias, particularmente de franceses, holandeses e portugueses. Já no início do
século XX, a cidade recebe imigrantes de origem sírio-libanesa, que tem significativa
atuação no desenvolvimento do comércio local, na navegação fluvial e na conjuntura
política do município. Todo esse movimento migratório de povos vindos do continente
europeu e da região do Oriente Médio mesclando-se com as etnias indígenas e
afrodescendentes que lá já estavam situadas desde a Colônia, confere a Arari um
aspecto social de bastante miscigenação e de sincretismo religioso.

Em relato do padre Pedro Verneullen, que estivera na cidade dois anos antes da
chegada do padre Brandt, em 1944, tendo sido o maior influenciador sobre a decisão de
nosso personagem em fixar-se na região – o qual não deixou nada escrito que contivesse
maiores detalhes sobre sua chegada ao local –, é possível observar alguns aspectos
específicos sobre a vida social, cultural e religiosa de Arari, além de colhermos as

Nas palavras do padre Brandt, “de arariba para Arari, a transformação não foi difícil. A lei do menor
esforço, que é uma economia fisiológica na pronúncia das palavras, iria produzir a transformação
metaplástica do vocabulário, pela perda da sílaba ‘ba’” (SILVA, 1985, p. 19).
26
Sobre as disputas territoriais entre as elites políticas e rurais em virtude da redefinição dos limites
municipais decretados pelo interventor Paulo Ramos, ver Batalha (2011, p. 40-46).
98

primeiras impressões de um sacerdote da Igreja Católica que chega a um município do


interior do Maranhão ainda sem padre residente e em visita missionária:

Viajando através dos campos enxutos, sob o sol causticante de meio-dia, cheguei ao
Arari pela Trizidela. À primeira vista, julguei que fosse um desses pequenos povoados
que já vira à beira do Itapecuru e do Pindaré. Só a largura do rio me impressionou. No
porto, não havia, naquela hora, nem lancha nem batelão. Na rua também não havia
ninguém. “Será – pensava comigo mesmo – que o padre Eliud me mandou enterrar
algum defunto morto?” Boa parte dessa primeira impressão foi devido ao meu estado
físico naquela hora: cheguei estropiado pela viagem, encandeado pelo sol do campo,
com a cabeça em fogo, vermelha que parecia lavada em sangue. No dia seguinte (...),
pude corrigir essas impressões. Logo vi uma igreja nova em construção! Havia,
portanto, vida nova nesse lugar: é um povo que quer ressurgir. Fui chamado logo no dia
seguinte para fazer uma confissão em Perimirim. Fui a pé. Vi ruas e mais ruas, cortadas
por travessas em direção ao campo. Para mim, era uma revelação. Para o povo parece
que também foi uma novidade, a julgar pelo furioso latido dos cães e pelo choro
espantado das crianças. Certamente, nunca tinham visto um padre de perto,
atravessando as ruas (FERNANDES, 2012, p. 57-58. Grifo nosso).

Percebe-se no relato do padre Verneullen o estranhamento que teve diante da


cidade e do povo em relação à sua pessoa, como se nunca tivessem “visto um padre de
perto”. De início, o padre de origem holandesa “sofreu” com o forte calor da região,
chegando a Arari “com a cabeça em fogo, vermelha que parecia lavada em sangue”, o
que só contribuiu para a formulação em seu pensamento de que estava num “deserto”,
no qual iria “enterrar defunto morto”, mediante a ausência de pessoas no porto para
recepcioná-lo e nas ruas da cidade, após seu desembarque. Seu sofrimento parece ter
sido amenizado somente ao avistar uma “Igreja nova em construção”, sinal de que o
povo arariense queria “ressurgir”.

O que não fica claro na descrição do padre europeu é quem era o responsável
pela construção da igreja e de onde o povo iria “ressurgir”, uma vez que a constatação
de uma nova edificação eclesiástica implica, minimamente, um certo grau de
organização religiosa presente no seio da população de Arari antes mesmo da chegada
do missionário holandês e, posteriormente, do padre Brandt.

Segundo o pesquisador João Batalha (2011, p. 124), a edificação à qual se refere


padre Verneullen é a Igreja-matriz de Arari, cujas obras de construção tiveram início em
28 de agosto de 1932, em substituição ao velho santuário do local, o qual datava sua
inauguração de agosto de 1811. A iniciativa de construção da nova igreja, que é
creditada ao padre Manuel Nunes Arouche, vigário de Viana e colaborador da vizinha
paróquia de Vitória do Mearim, dá-se justamente no ano em que o protestantismo chega
99

à cidade por meio da realização dos cultos da Assembleia de Deus. Nesse ano, já
existem em Arari dez templos religiosos, de maioria católica (ibid., 2011, p. 129).

Continuando a análise do relato de padre Verneullen, dividida aqui


arbitrariamente por questão de organização textual e com fins didáticos, atendendo aos
propósitos deste trabalho, o vigário holandês fala sobre a organização social, as
condições de moradia e as principais atividades econômicas da população de Arari.

(...) Fazia cada dia um passeio de manhã e à tarde; queria ouvir e ver. Passando pelas
ruas, notava a ausência de homens: explicaram-me que a maior parte da população
masculina ia campear ou era de embarcadiços. (...) Apesar das ausências prolongadas
dos pais, as famílias são numerosas e muito unidas. Cada chegada de lancha é uma
alegria para as famílias e para as casas de negócio, porque as provisões de boca para as
tripulações e os passageiros são renovadas em Arari, sobretudo o pão e a carne. (...) A
demora das lanchas torna possível o intercâmbio de outros produtos: chapéus de palha,
redes de dormir, artefatos de couro, todos de indústria caseira.
A população de Arari é muito laboriosa. As casas, em geral, trepadas em estacas (por
causa das inundações periódicas), são amplas e bem arejadas. (...) Ninguém fica ocioso.
Os homens estão ocupados no conserto de arreios para os cavalos, ou na confecção de
tarrafas para as próximas pescarias. As moças fazem chapéus, costuram ou fazem redes;
algumas mais adiantadas ensinam as primeiras letras a uma dúzia de crianças. (...)
Graças a tal operosidade, não há pobres miseráveis no lugar. Os que precisam de
assistência recebem-na de boa vontade na casa das famílias vizinhas. Infelizmente, não
há médico. (...) Os marítimos em geral mandam os seus doentes em casos mais graves
para a cidade de São Luís, porque há sempre transporte nas lanchas (FERNANDES,
2012, p. 59-60).

Conforme as observações do sacerdote, percebe-se que a vida em Arari tomava


ares de comunidade, onde todos podiam buscar ajuda mútua e contar com a “boa
vontade na casa das famílias vizinhas”, razão pela qual não havia “pobres miseráveis”
no lugar. Ainda assim, no que concerne às condições de moradia da população, as casas
“trepadas em estacas” dão uma dimensão da precária infraestrutura da cidade, onde o
problema das constantes inundações é solucionado pelos próprios moradores, que,
mesmo com tais adversidades, não descuidam de morar em habitações “amplas e bem
arejadas”. Infere-se, assim, que o relato de padre Verneullen sobre Arari se constitui, em
suma, numa espécie de “apresentação de impressões” da cidade ao seu futuro vigário,
padre Brandt, preparando-lhe o espírito sobre o que viria encontrar na cidade.

Seguindo o relato do padre europeu, observa-se que em meados da década de


1940 as principais atividades que movimentavam a economia do município eram a
pesca, a produção manufatureira e o comércio, ambas impulsionadas pelo transporte
fluvial que estimulava as trocas comerciais com as cidades vizinhas. O conjunto dessas
100

atividades restringia as ofertas de trabalho às funções de comerciante, vaqueiro,


costureira ou dona de casa. Sobre este aspecto socioeconômico, em outra passagem de
seu longo relato, padre Verneullen assevera que

(...) os meninos aprendiam as primeiras letras e as primeiras operações porque isso é


necessário para o comércio. Mas ninguém (ou quase), por falta de ideal mais elevado, se
preocupava em dar educação superior. Os rapazes e as moças não tinham nenhum
pendor para uma vocação que fosse além de comerciante, vaqueiro, costureira e dona de
casa. E quando se ouviam apreciações sobre os médicos, bacharéis e padres, eram
analisados apenas pelo dinheiro que supunham ser ganho em tais profissões
(FERNANDES, 2012, p. 64).

Contudo, convém salientar que havia outras profissões e atividades em jogo. De


um modo geral, circunscritas ao ensino, aos cargos administrativos, às forças de
segurança e ao setor de serviços. Segundo levantamento datado de 1924, na vila de
Arari já existiam

2 escolas, 2 igrejas católicas, 2 padarias, 6 oficinas de sapateiro, 3 alfaiates, 4


carpinteiros, 2 calafates, 2 ferreiros, 1 caldeiro, 2 olarias, 1 serraria, 2 ourives, 1
farmácia, 55 casas de comércio, 3 açougues, alguns vendedores de leite, 1 carcereiro, 2
oficiais de justiça, 2 tabeliães, 2 escrivães, um destacamento com dez praças,
comandados por um sargento (BATALHA, 2011, p. 116).

Por volta de 1937, já estavam registradas na cidade de Arari algumas firmas


importadoras de produtos industrializados, que levavam o nome das prósperas famílias
ararienses ou de seus ilustres filhos: Santos & Silva, Abraão Salomão, Jorge Salomão,
Cipriano Santos, Teodoro Antônio Batalha, Pedro Abas, Leão Santos, Venceslau
Ericeira, Leopoldo Melo e Inácio Batalha. Existiam ainda duas firmas exportadoras: a
Santos & Silva, empresa local; e a francesa Cotonnière Brésil Ltda., instalada em 1936,
que comercializava a produção de algodão do Mearim, prensava em Arari e exportava
para a Europa. Os serviços de transporte fluvial eram prestados pelas firmas Leandro
Nunes, Salomão, Raimundo Guimarães e Mearim S.A. E ainda havia uma desenvolvida
indústria açucareira local, contando-se 14 engenhos de açúcar em Arari, todos de
propriedade das abastadas famílias do município (BATALHA, 2011, 128).

Conforme se pode perceber, as atividades econômicas se aglutinavam em torno


do domínio econômico exercido pelos principais “grupos familiares” de Arari, sendo
estes proprietários de firmas, estabelecimentos comerciais e até engenhos de açúcar. A
ascensão social e a afirmação “intelectual” de membros dessas famílias são denegatórias
101

basicamente da prosperidade econômica que alcançaram, não só no “interior” como


também na capital do Estado, onde o trânsito e o pertencimento a instâncias de
socialização e de consagração “intelectual” e de produção de conhecimento
acadêmico/científico forneceram as bases de legitimação para que se constituíssem
enquanto “intérpretes” da sociedade arariense.

Os trabalhos acadêmicos utilizados como fontes neste capítulo, destacando-se


Batalha (2011), Sousa (2003), integrante da família “Ericeira”, e Fernandes (2012),
todos descendentes de grupos familiares estabelecidos em Arari, sugerem a dimensão do
poder simbólico e material conquistado por esses mesmos grupos familiares, da
ascensão social obtida e dos investimentos “intelectuais” que fizeram para intervir (mais
ou menos conscientemente) na disputa pela “história” e pela “memória” da cidade.

Outro ponto a ser observado ainda no relato do padre Verneullen é a divisão do


trabalho familiar e a distribuição dos papéis sociais entre homens e mulheres em Arari.
Aos homens cabiam as tarefas do campo, provavelmente pequenos roçados, e o manejo
das embarcações, efetuando o transporte fluvial, além da manutenção dos arreios dos
cavalos e das redes de pescaria. Já as mulheres dedicavam-se aos trabalhos domésticos,
à produção artesanal de tecidos e chapéus e ao ensino das primeiras letras aos filhos.

Esse foi o mosaico socioeconômico descrito pelo sacerdote holandês às vésperas


da chegada de padre Brandt à Arari, onde as mulheres possuíam papel de destaque na
divisão social do trabalho familiar, seja pela educação dos filhos ou pelo incremento na
renda da família através de sua produção artesanal, feito pelas trocas comerciais de
produtos manufatureiros de corte e costura.

No último trecho da descrição do padre Verneullen, observa-se as principais


manifestações culturais, o trato caseiro com as questões de saúde, alguns aspectos
políticos provocados pelas disputas religiosas e as impressões do sacerdote em relação
às crenças disseminadas entre a população arariense, que a seus olhos se constituíam em
verdadeiros “perigos” que deveriam ser combatidos pela Igreja.

Os lavradores (...) recorrem com facilidade aos remédios caseiros e indicações de


macumbeiros. A macumba no Arari era uma verdadeira instituição; duas ou três vezes
na semana ouviam-se os tambores e os gritos estridentes dos feiticeiros em transe,
ditando suas imposições aos pobres que recorriam a eles nas doenças, nos amores
infelizes, nas dúvidas sobre objetos perdidos ou roubados. (...) Entre o povo, mesmo
entre os que não os consultavam, existia um terror supersticioso diante das ameaças. O
mais atrevido dos feiticeiros, o Pio Fernandes, entrava até nas casas de famílias. (...)
102

Outros feiticeiros e curandeiros continuam explorando a boa fé e a bolsa dos pobres.


(...) Os feiticeiros têm todo interesse em afastar os sacerdotes, porque eles não hesitam
em denunciar a superstição e as práticas indecorosas que ocorrem nas sessões do baixo
espiritismo.
(...) Havia, porém, outro fruto de importação que causava grande estrago: era o
protestantismo, que em toda parte gosta de implantar-se, aproveitando a ausência
dos padres. Não fosse a devoção do povo a Bom Jesus e a Nossa Senhora da Graça
(rejeitada e ridicularizada pelos “crentes”), todo o povo teria virado protestante. Esse
perigo tornou-se mais sério quando alguns deles alcançaram certa projeção
política e puderam aliciar adeptos mediante promessas e favores. Teve o seu ponto
culminante quando, na inauguração do templo protestante, boa parte das
autoridades civis aceitou o convite de assistir a solenidade, por política!
(...) Sobretudo, está lá o seu grande crime: tiraram a santidade do matrimônio cristão,
substituindo-o pelo concubinato civil. Quando cheguei no Arari, em torno de mil
famílias, não havia trezentas com casamento religioso. O povo aceitava tal situação
como se fosse coisa normal. (...) Vim munido de todas as faculdades necessárias, mas
relativamente poucos aproveitaram. Diziam abertamente: “o padre pede muito
dinheiro”. E quando eu perguntava: “Quanto dinheiro pede o vigário”, nada
respondiam, porque nunca se deram ao trabalho de saber por si mesmos. Repetiam o
que se dizia entre o povo. Feiticeiros, protestantes e maçonizantes alimentavam
todas essas asneiras (FERNANDES, 2012, p. 62-63. Grifo nosso).

A questão do conflito religioso aparece neste trecho do relato de padre


Verneullen com maior acidez, demonstrando o quanto causava incômodo para a Igreja a
concorrência dos serviços salvíficos oferecidos por outras crenças, seja a das religiões
afro-brasileiras, das agremiações maçônicas ou do protestantismo. Todo esse olhar
direcionado pelo padre holandês aos aspectos culturais, socioeconômicos e religiosos da
cidade acabou influindo na atuação do vigário Clodomir Brandt, que para Arari se
deslocou sabendo, sob a ótica de um sacerdote da Igreja, dos problemas e das
dificuldades que iria enfrentar e das possibilidades de sua ação religiosa germinar e
colher frutos.

Assim, às oito horas da manhã do dia 8 de janeiro de 1944 desembarcou no


porto principal de Arari o padre Clodomir Brandt e Silva, que chegou para ser o vigário-
residente do município, função há muito reclamada por moradores do local e líderes da
Igreja no Maranhão. Padre Brandt tinha 26 anos de idade quando aportou na cidade,
sendo recebido pelo prefeito Antônio Anísio Garcia, autoridades, estudantes e pelas
principais famílias católicas, que trataram de sua acomodação e da realização de um
cerimonial de boas-vindas, com música, foguetes e cortejo de condução do pároco até a
Igreja (FERNANDES, 2012, p. 75), bem diferente do acolhimento dado ao seu
antecessor missionário no município, que não gozou de nenhum tipo de recepção
“calorosa” quando de sua chegada a Arari, salvo a do calor do sol, imaginando tratar-se,
à primeira vista, de uma “cidade desértica”.
103

No entanto, as “comemorações” por conta da chegada de padre Brandt a Arari


logo contrastariam com as efervescentes disputas travadas em torno da hegemonia
político-religiosa engendrada pelos demais agentes do espaço social em disputa, em
decorrência de sua significativa atuação e intervenção em diferentes esferas, deixando
marcas indeléveis na sua história de vida, na Igreja e na própria cidade.

2.2 Em nome da Igreja: “projetos” sociais e mediação cultural no interior do


Maranhão

A atuação do padre Brandt em Arari vai além de sua “missão” evangelizadora. É


no município que ele cria e organiza diversas instituições culturais, educacionais,
midiáticas e religiosas, além de atuar de forma incisiva e decisiva no cenário político-
partidário da cidade e de se dedicar à atividade literária a ponto de ser reconhecido
como um “intelectual católico”, realçando assim o processo de hibridização que
caracteriza seu ofício sacerdotal e, num nível macro, a necessidade da Igreja de intervir
e influir em outros domínios sociais como estratégia de recomposição de seu poder
simbólico e de reestruturação do espaço religioso local, visando à hegemonia do
catolicismo.

A abordagem neste tópico consiste no exame das principais ações de padre


Brandt e nos recursos acionados por ele para legitimar sua intervenção enquanto
mediador cultural na cidade de Arari, na tentativa de descortinar o caráter consagrador
de seu itinerário, muitas vezes apresentado por aqueles que constroem a “história” com
elementos de “empreendedorismo”, “pioneirismo” e até certo “heroísmo” social
(SEIDL, 2007, p. 81).

Além disso, analisa-se a interpenetração das esferas cultural e religiosa e as


injunções daí derivadas e refletidas na esfera política de Arari, o que provocou o
acirramento das disputas em torno da imposição de regras, limites e definições do
âmbito de atuação dos agentes envolvidos no espaço de poder mais amplo.
104

2.2.1 Educação e cultura como base da obra religiosa

No dia 15 de fevereiro de 1944, pouco mais de um mês após sua chegada ao


município de Arari, padre Clodomir Brandt funda o Instituto Nossa Senhora da Graça, a
primeira escola sob sua administração, tendo como sede inicial a casa em que residia.
Posteriormente, com o aumento da quantidade de alunos, alugou uma construção maior
e próxima à Igreja, onde morava com a mãe e um irmão e ensinava os alunos da cidade
e outros vindos de municípios vizinhos, todos do sexo masculino.

Já em junho de 1945, o vigário de Arari funda, em parceria com colaboradores


de sua confiança, aquilo o que viria a ser a pedra angular de sua ação missionária, a
Associação da Doutrina Cristã (ADC). Os principais objetivos dessa instituição de
cunho caritativo era debater, fomentar e organizar ações que visassem levar educação,
cultura, ensino religioso e assistência social para a população (BATALHA, 2011;
FERNANDES, 2012).

Para alcançar tal intento, a ADC dividia-se em quatro secretarias que tratavam
especificamente dos temas arrolados: secretarias de educação, de catequese, de cultura e
de assistência, tendo como diretor-geral o padre Brandt. Sob os cuidados da Secretaria
de Educação, ficaram o Instituto Nossa Senhora das Graças e a Fornecedora
Educacional, depois transformada em livraria; a Secretaria de Cultura destinava-se à
realização de encontros, palestras, conferências, encenação de peças teatrais,
desenvolvimento de um coral religioso e fundação de um “Boletim Paroquial”, que só
viria a circular na cidade em 1946, produzido e impresso primeiramente em São Luís e,
a partir de 1953, em Arari; a Secretaria de Catequese cuidava dos centros de catecismo,
mantinha os catequistas e vendia livros religiosos a domicílio; e a Secretaria de
Assistência dedicava-se a ações caritativas, especialmente na Páscoa e no Natal, além de
cuidar da educação de “crianças carentes”. Anos mais tarde, em meados da década de
1960, assim se expressava padre Brandt sobre a instituição filantrópica de orientação
católica: “A ADC, na verdade, quer atingir todas as manifestações da vida humana e
para isso foi organizada com estatuto de caráter polivalente” (FERNANDES, 2012, p.
84).
105

Com efeito, a organização institucional e estrutural dos serviços realizados pela


Associação da Doutrina Cristã, cujo estatuto possuía um “caráter polivalente”, se
constituiu num exemplo irrefutável da hibridização das ações da Igreja Católica no
Maranhão. Contudo, se por um lado a entidade filantrópica visava justamente a
intervenção em diferentes domínios sociais como forma de garantir o poder de
influência da Igreja perante os setores estruturantes da sociedade arariense, por outro a
ADC servia como um instrumento de captação, seleção e reprodução de mentes
voltadas para a execução dos serviços eclesiais. Segundo Fernandes (2012, p. 108),

uma das metas da ADC foi a de financiar os estudos de jovens inteligentes cujas
famílias não pudessem mantê-los estudando até o curso superior. Objetivava o
propósito de formar um médico, um advogado e uma assistente social mediante o
compromisso destes, depois de graduados, trabalharem para a comunidade arariense, em
parceria com a ADC. Pretendia, ainda, por meio de ajuda financeira, facilitar o acesso a
alguns vocacionados para o mister sacerdotal (Grifo nosso).

As dificuldades encontradas na concretização de tais objetivos foram muitas,


particularmente impostas pela própria ADC que, mesmo tendo encaminhado alguns
jovens para o Seminário de Santo Antônio, em São Luís, nenhum deles chegou a se
ordenar, deixando o recinto vocacional após a conclusão do denominado “seminário
menor”. As exigências impostas pela Associação aos estudantes por ela financiados
consistiam na realização de serviços prestados à Igreja como forma de “retribuição”,
exercendo atividades de professor, locutor do serviço de som “Voz de Arari”, operador
do cinema da cidade, instrutor de internato e outra tarefas determinadas pela entidade
com prazos previamente estabelecidos (ibid., 2012, p. 109).

Ainda assim, e talvez por isso mesmo, ou seja, pelas dificuldades em se garantir
a reprodução de uma classe de agentes voltados para o trabalho da ADC e da Igreja,
padre Brandt deu continuidade ao seu “projeto desenvolvimentista” da cidade. Em 15 de
março de 1947, com recursos oriundos das ações da entidade caritativa, é inaugurado o
Instituto Bom Jesus dos Aflitos, destinado exclusivamente para estudantes do sexo
feminino, a fim de se contrabalançar o peso educacional do Instituto Nossa Senhora das
Graças, escola destinada apenas para o público masculino.

Em julho do mesmo ano, o sacerdote inaugura a biblioteca da ADC,


posteriormente denominada de Biblioteca Justina Fernandes, em homenagem à prefeita
eleita sob a influência do vigário e que muito havia colaborado, durante sua gestão
106

municipal, com a ADC e os trabalhos de construção da igreja matriz. Inicialmente, o


espaço de leitura contava com um pequeno número de livros escolares, religiosos e de
formação infanto-juvenil, doados pela comunidade. Depois, o acervo fora acrescido
com recursos da ADC, que adquiriu obras científicas e literárias de conhecimento
universal, não demorando muito a colecionar mais de seis mil títulos, tornando-se assim
um dos principais centros de conhecimento para a população escolarizada da cidade.
Contudo, a referida biblioteca não era a única de Arari. Em novembro de 1940, o
prefeito Anísio Garcia já havia fundado a Biblioteca Pública Municipal, a primeira da
cidade (BATALHA, 2011, p. 130).

Em 1948, padre Brandt inaugura o serviço de alto-falante “Voz de Arari”,


primeiro veículo de comunicação social da cidade; no ano seguinte, funda o “Cine
Paroquial de Arari”, o primeiro cinema a ser instalado em todo o território do Estado do
Maranhão; já em 1951, ele funda a Escola de Música Carlos Gomes, referência na
região, que funcionou até o ano de 1958; em 1953, inaugura a Escola de Artes Gráficas
Belarmino de Matos, mesmo ano de fundação do jornal “NOTÍCIAS”; já depois da
metade dos anos 1950, inaugura o Teatro Experimental de Arari, onde atua como
professor de oratória; e, pela mesma época, organiza o Coral Santa Cecília, composto
por homens e mulheres da comunidade.

Após um período sem inaugurações, padre Brandt funda, em 1964, o “Ginásio


Arariense”, escola de curso secundário através da qual oferecia à população a
oportunidade de continuar os estudos na própria cidade. Já em 1968, com a necessidade
de dar formação de nível especializado aos alunos, o pároco funda a “Escola Normal”,
na qual se formam dezenas de professores. No ano seguinte, ainda inaugura o “Jardim
de Infância Menino Jesus”, sempre com recursos oriundos da ADC. No ano de 1984, as
escolas Instituto Nossa Senhora das Graças, Instituto Bom Jesus dos Aflitos, Ginásio
Arariense e Escola Normal foram unificadas e transformadas no “Colégio Arariense”,
que ainda funciona nos dias atuais.

As intervenções e interpenetrações entre cultura e religião são tão indistinguíveis


nas ações de Clodomir Brandt que ele, no calor do ano de 1963, a convite da União
Arariense dos Estudantes, participa da Semana da Cultura de Arari, para a qual elaborou
uma conferência denominada “Os cristãos e a arte”, onde são abordadas as
possibilidades de uma crítica literária produzida por um viés religioso, reivindicada pelo
107

sacerdote como legítima, e criticada a separação entre a escrita literária profana e a


produção “intelectual” de padres católicos, considerada pelo senso comum e entre os
“letrados” de nível “menor”.

Logo no prólogo de sua conferência, padre Brandt expõe, com nítida firmeza de
posicionamento, que discutir arte e catolicismo e a legitimidade de uma crítica literária
de cunho religioso é de “sumo interesse para os intelectuais católicos” e “nenhum deles
pode fugir ao problema”.

(...) Como sacerdote e representante da Igreja, Mãe de todas as culturas, não me ficava
bem ausentar-me de movimento tão belo, símbolo e prenúncio de uma nova era que se
inicia para esta terra a que já estamos vinculados por fortes e indestrutíveis laços de
amizade.
(...) Aqui, pois, estou para convosco compartilhar desses momentos de fino e deleitoso
discretear sobre arte e sobre cultura.
Propus-me, então, com certa ousadia, fazer um trabalho sobre a crítica literária e os
católicos, ou melhor, examinar se há alguma divergência ou incompatibilidade
entre o espirito católico, com seus dogmas e sua intransigência, e a legítima e boa
crítica literária.
O problema é de indiscutível complexidade e requer, de quem o enfrenta, qualidades
superiores de inteligência e de cultura que me são escassas.
Nem por isso, porém, julguei-me com direito a omitir-me em assunto de tanta
relevância e tão indispensável nos tempos de hoje (...). Cremos que há somente um
norte a seguir, na bússola do mundo, e é a reorganização de tudo em bases filosóficas,
mas filosóficas no legítimo sentido, isto é, no sentido cristão (...).
Não é a primeira vez que se equaciona o problema que motiva nossa palestra, nem tão
pouco sou o primeiro ou o último a procurar sua solução. Outros de mais cultura, e,
portanto, de mais equilíbrio em seus conhecimentos, já o estudaram e deram suas
respostas, que vão desde o afirmar a impossibilidade de uma crítica verdadeira feita por
católicos, até ao extremo oposto, de dizer-se ser a única a realmente poder considerar-se
como legítima e também a única em condições de aferir o valor das obras de arte.
Muitos também virão depois, e cada um irá colocando suas vigorosas inteligências a
serviço da causa que não deixa de ser de sumo interesse para os intelectuais católicos.
O assunto tem sido na realidade uma preocupação dos escritores católicos e
nenhum deles pode fugir ao problema.
(...) Os inimigos do pensamento católico fazem questão de frisar que nós, os que
cremos, os que temos dogmas e que somos intransigentes em matéria de Fé e de Moral,
jamais teremos serenidade bastante para manter imparcialidade perante uma obra,
mesmo de arte pura, mas que não se regule pelo estalão de nossa doutrina e de nossos
princípios (SILVA, 1983, p. 11-12. Grifo nosso).

Padre Brandt constrói um discurso justificando a necessidade da interferência


dos “intelectuais católicos” no mundo profano das artes e das letras em bases filosóficas
de orientação cristã, uma vez que “a Igreja é a Mãe de todas as culturas”. O sacerdote
esforça-se na tentativa de “examinar se há alguma divergência ou incompatibilidade
entre o espirito católico, com seus dogmas e sua intransigência, e a legítima e boa crítica
literária”, colocando o “problema” como de interesse de todos os escritores católicos e,
108

assim, legitimando a discussão proposta e d