Você está na página 1de 190

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

HUGO FREITAS DE MELO

“O OFÍCIO DE SACERDOTE”:
mediação cultural, atuação política e produção intelectual de padres no Maranhão

São Luís

2013
2

HUGO FREITAS DE MELO

“O OFÍCIO DE SACERDOTE”:
mediação cultural, atuação política e produção intelectual de padres no Maranhão

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Maranhão, para obtenção do Título de
Mestre em Ciências Sociais.
Orientadora: Profª. Drª. Eliana Tavares dos Reis

São Luís
2013
3

MELO, Hugo Freitas de.


“O ofício de sacerdote”: mediação cultural, atuação política e produção
intelectual de padres no Maranhão / Hugo Freitas de Melo. – 2013.
190 f.
Impresso por computador (Fotocópia)
Orientadora: Eliana Tavares dos Reis.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Maranhão, Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2013.
1. Sacerdote – Ofício – Aspectos sociais 2. Mediação cultural 3.
Atuação política. 4. Produção intelectual.
CDU 316: 2-725 (812.1)
4

HUGO FREITAS DE MELO

“O OFÍCIO DE SACERDOTE”:
mediação cultural, atuação política e produção intelectual de padres no Maranhão

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Maranhão, para obtenção do Título de
Mestre em Ciências Sociais.

Aprovada em / /

Banca Examinadora

_________________________________________________
Profª.Drª. Eliana Tavares dos Reis (Orientadora)
Professora e pesquisadora – DESOC e PPGCSO/UFMA

_______________________________________________
Prof. Dr. Igor Gastal Grill
Professor e pesquisador – DESOC e PPGCSO/UFMA

______________________________________________
Prof. Dr. Juarez Lopes
Professor – DESOC/UFMA
5

A Odarci e Hugo Raphaell, as razões de


minha existência.
6

AGRADECIMENTOS

Ao término de mais uma etapa, olhar retrospectivamente e avaliar a quantidade e


o grau de contribuições obtidas ao longo de um percurso marcado por inúmeros
percalços não é tarefa fácil de realizar, principalmente no que concerne ao aprendizado
do ofício de sociólogo, com seus rigores metodológico e analítico peculiares e
sensivelmente distintivos em relação às demais ciências humanas e sociais.

Por isso, o registro feito nestas maltraçadas linhas em hipótese alguma significa
um ato de predileção por um ou outro nome, apenas a manifestação honrosa àqueles que
se fizeram presentes de uma forma mais intensa para a conclusão deste trabalho.

Explicitadas as ressalvas, agradeço primeiramente à minha mãe, Odarci, cujo


incentivo foi fundamental para o resgate da motivação em findar mais esta fase da
minha vida, diante de tantas dificuldades e contratempos interpostos, e dar continuidade
à aprendizagem deste novo mètier.

Agradeço também a Rafaela, com quem o compartilhamento de momentos


felizes e descontraídos serviu como válvula de escape das tensões diárias de leitura e
escrita da dissertação. Seu carinho e auxílio foram imprescindíveis para que as
atividades do cotidiano não incidissem de forma prejudicial na tessitura do presente
trabalho.

A Hugo Raphaell, o oxigênio diário na busca por dias melhores. Os esforços


aqui empreendidos se multiplicavam em força e determinação a cada sorriso seu. A
todos os meus familiares, pelo carinho e apoio, meu muito obrigado!

Quero externar aqui um agradecimento especial à orientadora deste trabalho, a


professora doutora Eliana Tavares dos Reis, responsável pela sugestão de reformulação
do projeto inicial de investigação ora desdobrado no presente estudo, pelas valiosas
referências bibliográficas e pelos encaminhamentos dados que resultaram na formatação
final da dissertação. A atenção, o acompanhamento, o incentivo e o apoio dispensados,
bem como as proveitosas discussões teórico-metodológicas enredaram uma orientação
segura e competente, inesquecível pela forma e qualidade, se constituindo num dos
sólidos alicerces para que este momento se tornasse possível.
7

Agradeço à Capes pelo fornecimento de bolsa que possibilitou a realização da


pesquisa. Agradeço também a todos os professores do Departamento de Sociologia e
Antropologia da UFMA pela receptividade e acolhimento generosos, em especial aos
professores Igor Gastal Grill e Juarez Lopes, pelas valiosas sugestões e observações
críticas feitas na Banca de Defesa desta dissertação.

Registro ainda um agradecimento aos membros do Laboratório de Estudos de


Elites Políticas e Culturais (Leepoc), representado nas figuras dos professores Eliana
dos Reis e Igor Grill, organizadores do referido grupo, pelas ricas discussões, reflexões
e apresentação de trabalhos variados. Essa experiência foi de grande valia para o
enriquecimento do conhecimento sociológico e para uma compreensão mais ampla
sobre os pressupostos que nortearam este estudo.

A todos os amigos da turma do Mestrado de Ciências Sociais da UFMA de


2011, meu muito obrigado pelos bons momentos de descontração e compartilhamento
de ideias e perspectivas, em especial ao irmão e compadre Romário Barros, cuja
amizade, companheirismo e cumplicidade se solidificaram para além dos muros da
Universidade.

Aos funcionários da Cúria Metropolitana da Arquidiocese de São Luís pela


atenção e cooperação, meu muito obrigado. À Dona Creuza, guardiã do Memorial do
Padre Brandt, em Arari, meus sinceros agradecimentos pelo apoio, informações e
disponibilização de livros.

Fundamental ainda registrar o agradecimento à escritora Arlete Nogueira da


Cruz Machado, cujo trabalho sobre a vida e a obra de João Mohana foi de suma
importância para a consecução do capítulo dedicado ao mesmo. Material este gentil e
generosamente cedido a mim. Agradeço também ao irmão do referido padre, Ibrahim
Mohana, pelas conversas e fornecimento de informações sobre a vida de João Mohana.

Por fim, estendo meus agradecimentos a todos e a todas que ajudaram a tornar
mais suaves e prazerosos os passos dados ao longo dessa difícil empreitada,
contribuindo, cada um a seu modo, direta e indiretamente, para que as pedras no meio
do caminho não se constituíssem em barreiras intransponíveis, mas em obstáculos
passíveis de serem ultrapassados, tal como os espinhos que não obnubilam a beleza das
rosas.
8

A concretização deste momento tornou-se possível graças à resultante do


carinho, do auxílio e da amizade de todos os que se fizeram presentes em minha vida
durante o transcurso dessa etapa acadêmica, aqui consubstanciados em nomos
inesquecíveis.
9

“O ato de ler situa-se estrategicamente no ponto


de aplicação onde o universo do texto encontra-se
com o do leitor, onde a interpretação da obra
termina na interpretação do eu.”
Roger Chartier
10

RESUMO

Análise dos condicionantes que presidiram a hibridização da atuação de padres no


Maranhão, tanto na capital quanto no “interior”, particularmente nas esferas da religião,
da política e da cultura, exercendo papéis de mediadores culturais e políticos, de
intérpretes da história e da sociedade e de porta-vozes de causas coletivas tidas como
legítimas. O estudo tem como recorte histórico e espacial as dinâmicas sociopolíticas
representadas pelo Maranhão durante as décadas de 1950 e 1980. Para tanto, recorreu-se
ao mapeamento e catalogação de dados e informações sobre os casos investigados das
mais variadas fontes, destacando-se a consulta a trabalhos acadêmicos, textos e livros
produzidos pelos sacerdotes analisados, bibliotecas pertencentes a organizações ligadas
à Igreja, bem como a sites e páginas pessoais disponíveis na internet. Fazendo-se uso
desse material, intentou-se descortinar os poderes sociais que incidem sobre a
diversificação do ofício sacerdotal no Maranhão, tomando-se a escrita como um dos
principais instrumentos de luta acionados pelos agentes no espaço de concorrência
simbólica.
Palavras-chave: Ofício de sacerdote. Mediação cultural. Atuação política. Produção
intelectual.
11

ABSTRACT

Analyze of the conditions that governed the hybridization of the performance of priests
in Maranhão, in the capital and on the “inside”, particularly in the spheres of religion,
politics and culture, performing roles of cultural mediators and politicians, interpreters
of history and society and spokespersons of collective causes regarded as legitimate.
The study is historical overview and spatial dynamics sociopolitical represented by
Maranhão during the 1950s and 1980s. Therefore, we resorted to the mapping and
cataloging of data and information on the cases investigated in a variety of sources,
especially the query to academic papers, books and texts produced by the priests
examined, libraries belonging to church-related organizations, as well as the websites
and personal blogs. Making use of this material, brought to unveil social powers that
focus on the diversification of the priestly office in Maranhão, taking up writing as a
major instrument of struggle triggered by agents within symbolic competition.
Keywords: Craft priest. Cultural measure. Political action. Intellectual production.
12

LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Algumas propriedades dos 14 agentes investigados......................................60


Quadro 2: Dados sobre a atuação profissional e a participação em distintos espaços de
socialização e de intervenção dos 14 casos investigados................................................67
Quadro 3: Distribuição de livros por gêneros de escrita referente aos 14 casos
investigados.....................................................................................................................78
Quadro 4: Frequência das modalidades de escrita..........................................................79
Quadro 5: Distribuição dos livros por décadas...............................................................81
13

SUMÁRIO

RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE QUADROS

INTRODUÇÃO.............................................................................................................15
“Intelectuais”, mediação e política: aportes conceituais.................................................24
Obstáculos e procedimentos de pesquisa........................................................................35
Capítulo 1: A REESTRUTURAÇÃO DO ESPAÇO RELIGIOSO E A
DIVERSIFICAÇÃO DA ATIVIDADE SACERDOTAL: apontamentos sócio-
históricos.........................................................................................................................45

Capítulo 2: PADRES ESCRITORES EM PERSPECTIVA: propriedades sociais,


recursos culturais e múltiplos registros de inscrição.......................................................58

2.1 Descrição geral dos agentes investigados.................................................................59


2.2 Gêneros de escrita e recursos culturais.....................................................................77
Capítulo 3: CLODOMIR BRANDT E AS DISPUTAS POLÍTICAS EM PAUTA: a
trajetória de um padre político e escritor.........................................................................84
3.1 Do Mearim a Arari: origens, formação cultural e chegada ao “novo lar”................85
3.1.1 Perfil social dos pais.........................................................................................86
3.1.2 O “tio Cláudio” e a centralização das relações de parentesco..........................88
3.1.3 Entrando no mundo eclesiástico: formação seminarística e cultural................90
3.1.4 O vigário de Arari: aspectos sociais, culturais e religiosos da cidade..............93
3.2 Em nome da Igreja: “projetos” sociais e mediação cultural no interior do
Maranhão.......................................................................................................................102
3.2.1 Educação e cultura como base da obra religiosa............................................103
3.2.2 Comunicação social e projeção político-religiosa..........................................107
3.3 A escrita como luta política: posições, posicionamentos e embates políticos........109
3.3.1 Um padre político...........................................................................................111
3.3.2 A guerra política na imprensa........................................................................119
3.4 Da ação política ao reconhecimento “intelectual”..................................................126
Capítulo 4: JOÃO MOHANA E A AFIRMAÇÃO INTELECTUAL DO
SACERDOTE: os usos sociais da escrita ...................................................................130
4.1 O nascimento do escritor: origem social e formação escolar..................................133
4.1.1 Características sociais dos pais.......................................................................137
4.1.2 A “opção” pela Medicina...............................................................................144
14

4.2 Um intelectual a serviço da Igreja...........................................................................148


4.2.1 A consagração literária de um escritor católico.............................................150
4.2.2 O ingresso na Academia Maranhense de Letras............................................154
4.3 Da “batina branca” à “batina preta”: a “vocação” do sacerdócio...........................157
4.4 O “ministério da palavra escrita” e a dissolução do religioso................................160
4.4.1 Um padre na disputa pela definição do que é literatura.................................162
4.4.2 Em nome da “libertação”: a JUAC e o recrutamento das elites.....................165
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................171
ANEXOS......................................................................................................................176
REFERÊNCIAS..........................................................................................................179
15

INTRODUÇÃO

O presente estudo se inscreve na linha investigativa de trabalhos sobre a


formação e a afirmação de elites políticas e culturais, particularmente de “elites
letradas” na esfera religiosa, e suas múltiplas relações com o espaço de poder mais
amplo, propondo-se a analisar os condicionantes e as lógicas sócio-históricas que
incidem sobre os investimentos de aquisição de saberes e competências por parte de
sacerdotes católicos e sua reconversão voltada para a produção e reprodução de
representações sobre o mundo social. Especificamente, ancorando-se na perspectiva
relacional e disposicional proposta por Pierre Bourdieu, trata-se de uma dissertação que
analisa as lógicas de incorporação e de utilização de saberes específicos por agentes da
Igreja Católica em diferentes esferas sociais, com foco especial na modalidade de
manipulação de bens simbólicos (BOURDIEU, 2004), particularmente de escrita,
objetivada na produção intelectual de padres (notadamente de livros), nos gêneros de
escrita aos quais se dedicam e nas temáticas que abordam em seus escritos, num
contexto representado pelas dinâmicas sociopolíticas e culturais no Maranhão entre as
décadas de 1950 e 1980.

Objetivamente, o estudo focaliza as multidimensionalidades (cultural, social,


político, etc.) e multiposicionalidades assumidas por clérigos católicos que transitam
nas “difusas e móveis fronteiras” do trabalho intelectual, da “política” (GRILL; REIS,
2012), da “cultura” e da religião, através da análise de sua produção escrita em
consonância com seus registros biográficos e outras variáveis que permitiram a
apreensão de suas características, propriedades e recursos sociais. Dentre estes, o estudo
privilegiou a origem familiar, a formação escolar, os postos ocupados na estrutura
hierárquica da Igreja Católica no Maranhão, as funções e atividades profissionais
seculares exercidas ao longo de seus itinerários, bem como os cargos assumidos na
esfera político-burocrática, concepções de política, “projetos” de sociedade, valores e
“visões” de mundo, dados estes que, em conjunto, explicitam os perfis sociais dos
agentes em foco e animam os encaminhamentos da temática proposta ao longo do
trabalho.

A partir do exame de trajetórias específicas que se diferenciaram dos demais


agentes inseridos no espaço religioso “local” precisamente pelo trânsito fluido entre
16

distintos domínios e a aquisição de recursos distintivos, a investigação contempla, de


forma sincrônica e diacrônica, a análise das múltiplas experiências clericais dos padres
investigados, o cotejamento das disposições adquiridas e a delimitação dos
condicionantes que presidiram os investimentos (mais ou menos conscientes) no tocante
à dedicação para a produção de trabalhos escritos (poemas, crônicas, memórias,
romances, peças de teatro, ensaios, textos jornalísticos, artigos acadêmicos, etc.)
publicados em formato de livro, em paralelo às suas atividades sacerdotais cotidianas.

Além disso, intenta-se relativizar o peso de tais investimentos “intelectuais” na


composição de carreiras eclesiais, delimitando-se o foco espacial do estudo à
participação de clérigos na esfera político-partidária, à atuação na esfera cultural e no
mercado de bens simbólicos, à inserção em instâncias de representação de frações
sociais e em organizações eclesiásticas caritativas e de cunho militante (Comissão
Pastoral da Terra, Conselho Indigenista Missionário, Cáritas, sindicatos, associações,
etc.), bem como ao pertencimento e ao desempenho de atividades circunscritas ao
âmbito das instâncias secularizadas de consagração e reconhecimento “intelectual”
(academias de letras, faculdades, universidades e institutos de pesquisa).

Com efeito, o cerne da investigação incide sobre os usos sociais da produção


escrita de padres que se arvoram na posse de determinados tipos de saberes, escolar e
prático (savoir-faire), para legitimar sua atuação e intervenção nos domínios cultural,
político e religioso no Maranhão, dentro do recorte em pauta. Investidos do poder
institucional delegado e autorizado pela Igreja, os sacerdotes investigados apresentam
ao longo de seus trajetos individuais e coletivos o acúmulo de uma multifacetada cultura
escolar e de variadas experiências profissionais de seu ofício religioso, as quais
relacionadas em confluência com os prestígios sociais conquistados em distintos e
imbricados domínios enredam seus repertórios de mobilização e sinalizam para a
diversificação de suas formas de atuação em suas interconexões com as demais esferas
sociais.

Desse modo, evidencia-se a possibilidade de análise dos trânsitos, vínculos,


relações de reciprocidade e de interdependência (ELIAS, 2001), amizades instrumentais
e interações de parentesco (WOLF, 2003), bem como as disputas, clivagens e
bricolagens pela conquista e manutenção dos bens simbólicos e materiais disponíveis e
pela ocupação de posições relativamente bem alocadas no espaço considerado, além da
17

relação entre os recursos acumulados e acionados como “trunfos” e a valorização dada


pelos agentes a esses “troféus”, que caracterizam a constituição de antagonismos e
concorrências, de alianças e associações (mais ou menos duradouras) denegatórias dos
posicionamentos assumidos, influenciando assim, significativamente, a opção por
determinadas modalidades de intervenção intelectual, particularmente a da escrita, com
maior ou menor incidência no espaço em disputa (REIS; GRIL, 2008; REIS, 2010,
2007).

A escolha pela referida temática processou-se a partir do interesse em ampliar e


aprofundar algumas questões tratadas e defendidas na monografia (MELO, 2010),
intitulada Entre rosas e armas: atuação política da Igreja Católica e ditadura
militar no Maranhão1, quando procurou-se analisar a participação de clérigos católicos
no trato de questões que envolviam a lide com movimentos sociais, entidades
representativas de trabalhadores rurais e operários, associações comunitárias, etc., e nos
conflitos advindos dessas relações com os militares das forças de segurança, tomando
como foco principal as representações discursivas produzidas por membros eclesiásticos
veiculadas pelo periódico oficial da Igreja Católica no estado, denominado “JORNAL
DO MARANHÃO” (1968-1971).

De um modo geral, tratava-se naquela oportunidade de analisar as


representações elaboradas por agentes religiosos ao sabor da conjuntura sociopolítica
dos eventos conflituosos envolvendo padres e militares no Maranhão, tanto na capital
quanto no continente (“interior”), observando-se: a) os usos dos textos jornalísticos
pelos sacerdotes como trincheira de “luta contra a ditadura” e b) o poder político que o
periódico foi adquirindo, como “porta-voz oficial” da Igreja, à medida que aumentava a
intervenção dos agentes católicos na “política local”, mediante o processo de
recrudescimento da repressão e violência do regime militar no estado.

A partir disso, a proposta inicial de análise, que tomava os textos em si mesmos,


deslocou-se para os seus produtores, bem como para os condicionantes que
influenciaram e legitimaram a produção escrita desses padres, estendendo-se à presente

1
Fruto da graduação em História pela Universidade Estadual do Maranhão, o trabalho analisa os
principais eventos sociopolíticos publicados pelo periódico católico “JORNAL DO MARANHÃO”,
particularmente os fatos conflituosos envolvendo padres e militares, que evidenciaram um
estremecimento nas relações bilaterais entre Igreja e Estado, exigindo da instituição eclesiástica, em
âmbito local, a reformulação de suas estratégias de atuação perante o regime e a adoção de novas práticas
pastorais.
18

temática. A atenção a alguns processos e dinâmicas específicas dos investimentos aqui


realizados permitiu o tratamento de algumas questões de outrora e o aprofundamento de
outras aventadas ao longo da investigação, constituindo-se o presente estudo numa
espécie de desdobramento do anterior, reformulado em torno de um instrumental
conceitual construído a partir da confluência de contribuições provenientes da História,
da Sociologia, da Ciência Política e da Antropologia Política que, somadas, permitiram:
1) a análise dos recursos mobilizados pelos agentes como “trunfos” distintivos de suas
atuações em diferentes domínios; 2) a explicitação dos valores, concepções, “causas”,
repertórios, lógicas de justificação e modalidades de engajamento dos sacerdotes
católicos; 3) a identificação das estratégias, discursos, formulações e reprodução de
representações sobre o mundo social; e 4) a análise da relação entre a origem social e o
itinerário dos agentes, objetivados nos títulos, premiações, cargos ocupados e funções
exercidas.

A resultante da construção desse ferramental analítico ajudou a entender que os


poderes sociais adquiridos por sacerdotes católicos investigados dentro do recorte da
pesquisa, para além de suas atividades confessionais, de alguma forma, estão
relacionados às transformações no espaço religioso do Maranhão de meados do século
passado e ao (re)posicionamento institucional da Igreja Católica no estado, em paralelo
com as reformulações propostas pelo Vaticano, especialmente no tocante às questões e
problemáticas sociais locais em pauta.

O que implica pensar que, de certo modo, os multiposicionamentos assumidos


pelos clérigos em foco não estão deslocados das dinâmicas exógenas impostas ao
universo católico, assim como remetem às próprias especificidades do ambiente local de
suas ações originárias, num processo oblíquo e transversal de simultaneidades
conjunturais que se combinam e se reprocessam, não necessariamente de modo
contínuo, exigindo da Igreja, pois, uma reavaliação de seus “projetos”, a reestruturação
de seus quadros e postos hierárquicos e a reconfiguração de suas estratégias de
mobilização e intervenção frente às convulsivas transformações do mundo moderno.

Pode-se pensar ainda que essa mescla processual de condicionantes conjunturais


incide no estabelecimento e atualização de uma agenda de problemáticas sociais tidas
como “legítimas” pelos agentes eclesiásticos e no fornecimento de um aditivo em seus
repertórios de mobilização, quer seja através da elaboração e aplicação de novas ações
19

pastorais, que implicam numa forma diferente dos sacerdotes de interpretar e atuar na
sociedade, tendo no engajamento militante de padres nessas “lutas sociais” um de seus
principais exemplos, quer na confecção de novas rotas e esferas de atuação sacerdotal,
onde a escrita se constitui num de seus primazes baluartes.

Convém ressaltar que o nascimento do presente trabalho assim como a


abordagem analítica que o norteia estão calcados na edificação de uma agenda comum
de debates, leituras e estudos realizados por pesquisadores que integram o Laboratório
de Estudos sobre Elites Políticas e Culturais (Leepoc), vinculado ao Departamento de
Sociologia e Antropologia e ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Maranhão, sob orientação e coordenação dos professores
Eliana Tavares dos Reis e Igor Gastal Grill.

Parte-se do estabelecimento de uma matriz teórica comum que direciona uma


pluralidade de pesquisas sobre seleção, hierarquização e princípios de afirmação e
legitimação de “elites” e grupos dirigentes em diversificados domínios, cujas
investigações focalizam múltiplas dinâmicas sociais em distintas localidades
geográficas (nacionais e internacionais) e as injunções daí derivadas e espraiadas para
diferentes esferas, seja a religião (MICELI, 1985; SEIDL, 2003, 2007a, 2007b, 2009a,
2009b), a “política”, a “cultura” (CORADINI, 2003; GRILL; REIS, 2012; REIS;
GRILL, 2008; REIS, 2010, 2008, 2007, 2007b; SAPIRO, 2012; SIGAL, 2012;
SIMIONI, 2008), o sistema escolar, a medicina (CORADINI, 2005; NUNES, 2000), o
judiciário (GRILL; REIS, 2010), as forças armadas (SEIDL, 2008).

Algumas problemáticas impostas pela abordagem proposta nos estudos


supracitados suscitam a observação percuciente de sua aplicabilidade em outras
realidades distintas da qual foi elaborada. A utilização neste trabalho do arcabouço
analítico bourdiano requer a explicitação de que não se trata aqui de uma “importação”
de uma lógica científica europeizante de uma sociedade central para uma dinâmica
periférica, baseada numa relação “centro-periferia” (CORADINI, 2003), muito menos
de uma postura de “aplicação de conceitos” (SIGAL, 2012) que renegam ou
secundarizam aspectos pertinentes às dinâmicas observadas. Mas sim de adaptação e de
absorção de uma proposta investigativa que se mescla com os elementos específicos do
espaço geográfico analisado e com as dinâmicas sócio-históricas evidenciadas, e que,
20

portanto, “não assume as condições periféricas como mera manifestação de ausências”


(SIGAL, 2012, p. 52).

Diversos estudos já apontaram que a generalização de conceitos para outras


realidades distintas dos “centros” ocidentais onde foram concebidos se mostraram
intransferíveis (BADIE; HERMET, 1993), uma vez que diferentes regiões geográficas,
como a América Latina, o continente africano e países do leste europeu, com suas
particularidades e dinâmicas específicas, não puderam simplesmente ser negligenciadas
(HERMET, 1973), principalmente em suas formas de organização religiosa, cujas
implicações continuaram intervindo nos diferentes domínios sociais, especialmente nas
respectivas arenas políticas.

Com isso, entretanto, não se quer atingir aqui a fundamentação teórica adotada
ou seus princípios analíticos, nem redirecionar as abordagens investigativas, mas antes
adequar a proposta bourdiana para contextos “periféricos” como o Maranhão,
reafirmando a sua validade e abrangência enquanto esquema analítico que evidencia a
relevância das especificidades estudadas, num processo de ajustamento das ferramentas
conceituais para distintas localizações geográficas, conforme apontaram Coradini e Reis
(2012). Segundo os autores, a compreensão do que é “política”, por exemplo, deve estar
cimentada nas “lógicas autóctones” dos espaços investigados, e não nas definições por
analogia importadas dos “centros” ocidentais. Ainda que haja um elo consistente de
intermediação entre estes centros e os cientistas sociais de diferentes nacionalidades que
advogam e se apropriam do esquema analítico bourdiano, operacionalizando-o em seus
respectivos países de atuação, faz-se necessário “priorizar o caráter relacional dos
mecanismos de estruturação e hierarquização dos domínios sociais nos limites fluidos
das fronteiras nacionais” (CORADINI; REIS, 2012, p. 13).

Com efeito, a relativização de tais fronteiras nacionais, que exige a observação


da configuração específica de cada espaço e localidade pesquisada, acaba também por
atualizar a discussão em torno dos limites entre diferentes domínios, colocando em
evidência a fluidez dos liames entre cultura, religião e política, a imbricação entre
espaço público e esfera privada (BURITY, 2001). Pode-se mesmo dizer que assim
como o religioso informa o político e o político estrutura o religioso (COUTROT, 2003,
p. 335), dando-se ênfase num menor grau de autonomização (sempre relativa) entre os
diferentes “campos”, os múltiplos registros de inscrição de agentes católicos em
21

diversificados domínios de atuação, os diferentes postos e posições ocupados ao longo


de seus trajetos de vida, bem como a cultura escolar multifacetada que apresentam, para
além de sua formação “tradicional”, salientam a hibridização de sua atividade
sacerdotal, a reconfiguração do espaço religioso e a redefinição da própria “excelência
religiosa” (SEIDL, 2009a) e do que significa “ser católico”.

De fato, o conjunto de práticas adotadas pela Igreja face às convulsões do


mundo moderno (MAINWARING, 2004; SERBIN, 2002) ensejou um processo de
recomposição e de reformulação das estratégias de dominação do poder religioso,
produzindo como principal efeito a legitimação da atuação de seus sacerdotes em
distintas esferas, fomentando ainda a participação de membros da Igreja em assuntos e
debates não necessariamente de cunho espiritual e ampliando a diversificação de suas
modalidades de intervenção no mundo social, inclusive no âmbito da produção e escrita
de livros, constituindo-se tal atividade como um plus na luta pela imposição de sentidos
e representações no espaço de manipulação simbólica.

Nessa perspectiva, a disposição de sacerdotes para a produção de bens


simbólicos, especialmente de bens culturais (artísticos, literários, filosóficos,
científicos), evidencia o poder da escrita nas sociedades de “letrados” (CORADINI,
2003, 2010; GRILL; REIS, 2012; REIS; GRILL, 2008; REIS, 2010, 2007),
particularmente entre as “elites eclesiásticas” (MICELI, 1988; SEIDL, 2007b, 2003),
que ao se revestirem desse tipo de reconhecimento “intelectual” traduzem o valor social
desse trunfo para o interior do espaço religioso, acionando-o enquanto instrumento de
luta na disputa pela ocupação de posições relativamente privilegiadas e de papéis
estratégicos no espaço de concorrência. Como bem frisou Pierre Bourdieu (2004, p.
121-122), agentes dedicados à atividade da escrita, portanto inseridos num campo de
concorrência de manipulação simbólica, por vezes,

são pessoas que se esforçam para manipular as visões de mundo (e, desse modo, para
transformar as práticas) manipulando a estrutura da percepção do mundo (natural e
social), manipulando as palavras, e, através delas, os princípios de construção da
realidade social.

De fato, o uso da escrita por agentes (ou conjunto de agentes) inscritos no espaço
de manipulação simbólica e, por conseguinte, de dominação cultural – onde o acesso à
cultura escolar é amplamente controlado e desigual –, diferentemente de uma percepção
22

centrada no ego do escritor, cujo reconhecimento “intelectual” pauta-se numa lógica de


justificação e de reciprocidade que enaltece certas habilidades técnicas em detrimento
das teias sociais às quais o autor está enredado, se constitui num instrumento de luta
simbólica, de conquista de posições e de afirmação de posicionamentos no jogo em
disputa. Segundo a lógica que perpassa a produção escrita de determinados agentes, “em
condições de excessiva monopolização da cultura erudita legítima [...], o mero recurso à
palavra escrita ou publicada pode promover reputações e legitimidades” (CORADINI;
REIS, 2012, p. 15).

No tocante à investigação sobre os condicionantes que influem nos


investimentos (mais ou menos conscientes) de especialização na produção de bens
simbólicos e de reprodução de representações sobre o mundo social por clérigos
católicos, ainda há uma escassez de estudos que aprofundem discussões e analisem as
especificidades de uma configuração recortada pelo Maranhão de meados do século
XX, o que dificultou sobremaneira a execução deste trabalho, sobretudo pela ausência
de interlocução no âmbito da referida temática.

No Maranhão, as investigações já realizadas (e outras ainda em curso) que


identificam dinâmicas, processos, relações, práticas e discursos de agentes eclesiásticos
operadores de um determinado tipo de catolicismo, cujo eixo central é nascituro de uma
configuração institucional de “crise”, de instabilidade política e de conflito social
(LAGROYE, 2006; SERBIN, 2008), dedicam-se ao estudo de dimensões analíticas
centradas na “politização do engajamento religioso”, na constituição de “causas
coletivas” e “problemáticas legítimas”, no ativismo de sacerdotes em associações,
sindicatos, movimentos populares e lutas estudantis, além da inserção desses agentes no
ambiente acadêmico-universitário e nas instâncias de consagração “intelectual”, que
demarcam uma significativa atuação clerical no polo cultural do espaço religioso
maranhense (BORGES, 1998; MACHADO, 2012; NERIS, 2011; PEREIRA, 2011,
REIS, 2010).

Dos trabalhos acima arrolados, destaca-se o artigo desenvolvido por Wheriston


Neris (2011) no tocante às relações entre catolicismo e instâncias de reconhecimento
intelectual no Maranhão, onde o autor, seguindo a perspectiva adotada por Ernesto Seidl
(2008), tateia sobre os condicionantes que levaram à formação de mediadores culturais
socialmente reconhecidos para legitimar uma interpretação católica sobre a história e a
23

cultura maranhense (NERIS, 2011, p. 11-14). No entanto, no referido trabalho, o


pesquisador não aprofunda suas observações analíticas, muito menos toca na questão
dos usos sociais da escrita feitos pelos agentes investigados, detendo-se à constituição
de uma espécie de agenda de pesquisas sobre as diversas inter-relações tecidas por
membros da Igreja em diferentes domínios sociais, privilegiando a dimensão do
“militantismo político-religioso”.

Outro trabalho que também aborda a questão da mediação cultural no Maranhão,


porém enfocando agentes da esfera política, é o artigo produzido por Eliana dos Reis
(2010), intitulado Em nome da cultura, no qual a autora desenvolve uma análise sobre
as práticas e os recursos acionados por porta-vozes que disputam a autoridade legítima
para definir o que é a “cultura” no Estado. Realçando as concepções e representações
produzidas por estes mediadores, a pesquisadora lança luz sobre as bases de sustentação
do prestígio social destes e do papel do mediador na definição de políticas públicas e na
construção de identidades regionais por meio da “cultura”. A importância deste estudo
para o presente trabalho deve-se, primordialmente, ao seu aspecto metodológico, uma
vez que também se faz uso do exame dos “repertórios de mobilização, espaços de
inserção e os perfis sociais de agentes” situados em posições estratégicas nos domínios
de produção cultural e política no Maranhão (REIS, 2010, p. 499), a fim de se analisar o
papel de mediação política e cultural desenvolvido por sacerdotes da Igreja Católica no
estado.

Assim, diante dos escassos estudos sobre a atuação de agentes católicos como
mediadores nos domínios da política e da cultura no Maranhão, bem como sobre a
relevância ou não de seu trabalho “intelectual” enquanto produtores culturais,
autorizados pela instituição eclesiástica e legitimados socialmente, de representações do
mundo social sob o olhar da Igreja, e ressalvadas as problemáticas que perpassam a
operacionalização de conceitos importados de “centros” ocidentais para regiões
“periféricas”, conforme já foi apontado, intentou-se articular no presente trabalho as
significativas contribuições das pesquisas já citadas e de outras recentes que sinalizam
para a análise do peso relacional da origem social, do capital escolar, da produção
escrita e de redes de relações mais ou menos privilegiadas na composição de carreiras
de religiosos católicos em diferentes eixos de formação e atuação profissional,
transplantando-se as contribuições destacadas para a esfera religiosa local.
24

A pluralidade de modalidades de intervenção de sacerdotes católicos inscritos


em diferentes domínios ensejou ainda alguns questionamentos subjacentes à
investigação em foco: O que leva um padre a se dedicar à atividade da escrita em
paralelo ao exercício do sacerdócio? Que tipo de retribuições ele obtém pelo
desempenho de tal atividade? O que informa a produção intelectual de padres no
Maranhão? Quais as correspondências existentes entre os tipos de escrita e as posições
ocupadas pelos clérigos no espaço em disputa? Em nome de que esses agentes
legitimam sua inserção em diversificados espaços de atuação? Quais os trunfos
mobilizados que permitem esses agentes fazer o que fazem, dizer o que dizem e
escrever o que escrevem? Qual o repertório disponibilizado por este tipo de catolicismo
que possibilita aos seus agentes assumirem posições e tomar posição em determinadas
situações sócio-históricas? Qual a lógica subjacente que define esses papéis e quem está
na disputa por tais definições?

Sem pretender oferecer respostas a todas essas questões, formuladas em


conjunto, e tomando-as muito mais como linhas-mestras do itinerário traçado para a
edificação do presente estudo, intenta-se o cotejamento das dimensões ensejadas ao
longo do trabalho que segue.

“Intelectuais”, mediação e política: aportes conceituais

A corrente teórica que se debruça sobre o estudo de “elites” e grupos dirigentes


remete a uma cristalizada tradição sociológica com base numa árvore genealógica
consagrada em torno de seus “pais fundadores” no campo das Ciências Sociais,
evidenciando uma matriz geracional de autores – Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e
Robert Michels – amplamente referenciados no processo de constituição deste campo de
estudo (CORADINI, 2008; GRYNSZPAN, 1996, 1999; GRILL, 2008). O foco inicial
desses pesquisadores aportara sobre o “caráter inexorável” de toda e qualquer
organização política, strictu sensu, o de “governo de uma minoria exercido sobre uma
maioria” (GRILL, 2008, p. 13). O escopo de definição do termo “elites” assentava-se
sobre as noções de grupos minoritários e socialmente “superiores”, possuidores de
atributos valorizados no mundo social, que se impunham perante a “maioria”, cujas
25

disputas pela manutenção do poder se davam entre as velhas e novas forças emergentes,
especialmente concentradas na análise sobre os burocratas de Estado (esfera político-
administrativa), donos de empresas, bancos, etc. (esfera econômica), oficiais de alta
patente das forças armadas, etc. (GRYNSPAN, 1996, 1999; GRILL, 2008).

A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, a composição de uma “teoria das


elites” moldada nos termos propostos por Mosca, Pareto e Michels recebeu uma série de
críticas de outras correntes teóricas que irrompiam no cenário acadêmico mundial,
principalmente através das abordagens metodológicas oriundas dos Estados Unidos,
propostas por Wright Mills e Robert Dahl2. Contudo, com o advento da sociologia
política francesa, ancorada nos trabalhos desenvolvidos por Pierre Bourdieu e
pesquisadores inseridos em seus grupos de estudos, a partir do final da década de 1960,
processou-se uma renovação no campo de investigações sobre as “elites”.

Deslocando-se o foco das análises determinísticas sobre “quem governa”, que


concebia as “elites” como objeto objetivado em si, os estudos de Pierre Bourdieu
privilegiaram os princípios de estruturação, legitimação e hierarquização das práticas e
das relações sociais, explicitando os processos e condicionantes que caracterizam os
modos de dominação e as estruturas responsáveis por garantir a sua manutenção e
reprodução (BOURDIEU, 2002, p. 1-2). Não se trata mais de pesquisar os grupos nem
os indivíduos, tomados em si, mas os recursos e princípios estruturantes que legitimam
práticas e estabelecem relações de poder no espaço social (CORADINI, 2008).

O que passa a pesar e a definir, portanto, os tipos de relações objetivas e práticas


sociais entre agentes situados em posições de dominantes e dominados são a
distribuição e o volume de capital acumulado no “campo de poder”, concebido como o
espaço das relações de força entre agentes ou instituições detentores de poderes (ou de
espécies de capital) necessários para a ocupação de posições dominantes (BOURDIEU,
2010, p. 244). No tocante ao “campo religioso”, uma espécie de sub-campo dentro do
campo de poder mais amplo, Bourdieu (2004, p. 120) assevera que se trata de um
“espaço”, no qual os agentes “lutam pela imposição da definição legítima não só do
religioso, mas também das diferentes maneiras de desempenhar o papel religioso”,
lutando inclusive pela imposição dos princípios de dominação religiosa.

2
Sobre as contribuições dessa sociologia norte-americana para a atualização das significações do conceito
de “elites” e sua proposta teórica, ver: GRILL, Igor Gastal. Elites, profissionais e lideranças na política:
esboço de uma agenda de pesquisas. In: Ciências Humanas em Revista, v. 4, n. 2, 2008.
26

Vários estudos desenvolvidos por Pierre Bourdieu (2002a, 2002b, 2008, 2010,
2011) e por pesquisadores que circulam nos seus grupos3 ressaltam essa perspectiva de
luta entre dominantes e dominados no campo de poder e de conquista e manutenção dos
meios que garantam tal relação de dominação, da qual o presente trabalho está
embebido, com especial destaque para As regras da arte (2010), onde o sociólogo
analisa os princípios que regem escritores e instituições literárias na elaboração e
manipulação de bens simbólicos. Neste trabalho, Bourdieu retira toda a áurea singular
que recobre os escritores como “geniais”, reconstituindo-lhes os vetores e os
condicionantes que perpassam suas produções, além de analisá-los relacionalmente em
seus espaços de concorrência com outros agentes, explicitando as regras que permitem o
surgimento de “produtores culturais” em diferentes e múltiplos domínios de
manipulação simbólica, não se restringindo apenas aos “literatos”, mas estendendo-se
também à produção de artistas, filósofos, cientistas, políticos, religiosos.

Nessa perspectiva, a abordagem aqui adotada direciona-se para as condições de


emergência da figura do “produtor cultural” enquanto formulador de formas identitárias
(DUBAR, 1998) que conferem organicidade a um conjunto de indivíduos. Concebe-se
esse “produtor cultural” como mediador que define o nomos da “política” e do
“político” e, por conseguinte, da “religião”, do “religioso” e da “cultura”,
desenvolvendo um trabalho intelectual que inventa e reafirma papéis, posições, epítetos,
“missões” e “causas legítimas” em contextos periféricos (CORADINI, 2003; REIS,
2010; SEIDL, 2007b; SIMIONI, 2008). A explicitação desses condicionantes possibilita
o entendimento do próprio ato de “mediar” ou de “representar” dos agentes, que se
legitimam e se posicionam como porta-vozes de determinadas pessoas ou grupo de
pessoas, conferindo existência e legitimidade a si e aos próprios representados
(BOURDIEU, 2004, p. 189).

Outros estudos de Bourdieu (1998) evidenciam as dimensões das relações de


reciprocidade como elementos não negligenciáveis no estudo sobre a afirmação de elites
em posições de dominação no espaço de poder mais amplo. A operacionalização de tal
perspectiva é feita através do conceito de capital social, definido como “o conjunto de
recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações

3
Duas coletâneas organizadas por Odaci Luiz Coradini (2008) e outra contando com a colaboração de
Eliana Tavares dos Reis (2012) identificam os pesquisadores que circulam nos grupos de estudos
bourdianos.
27

mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento”


(BOURDIEU, 1998, p. 67). Em sociedades periféricas, como no caso do Brasil, onde
não houve um relativo processo de autonomização dos diferentes “campos”
(CORADINI, 2003, p. 126), a lógica das redes de relações pessoalizadas irrompe como
uma louvável dimensão de análise dos condicionantes que hierarquizam as relações
entre estruturas de capital, posições, disposições e tomadas de posição dos agentes.

Por esse intermédio, compreende-se a importância das contribuições fornecidas


pelos trabalhos de pesquisadores como Carl Landé (1977) e Eric Wolf (2003), cujas
formulações teóricas salientam as “relações diádicas”, as “alianças como addenda”, a
influência do “parentesco”, da “amizade”, do “clientelismo” na sedimentação de lógicas
que estruturam as práticas sociais. Segundo Landé (1997, p. 1-4), uma relação diádica
envolve alguma forma de interação entre dois indivíduos, que “visam à troca e à ajuda
mútua quando necessário”. Contudo, ressalta o autor, uma relação diádica não se
sustenta de modo suficiente precisamente por sua intermitência e voluntariedade,
necessitando, portanto, de uma “estrutura de relações institucionalizadas”, que são
contínuas e inclusivas, “pois determinam formas de interação substancial e
processualmente padronizadas”. Nesta relação de interdependência, tanto as alianças
diádicas quanto as relações institucionalizadas, conforme o peso e a estrutura de cada
uma no espaço considerado, podem ser estabelecidas como um addendum, isto é, como
um aditivo no conjunto das relações observadas, modificando assim sua configuração e
suscitando a formação de novas alianças.

Por sua vez, as noções elaboradas por Eric Wolf (2003) referentes às relações de
“parentesco”, de “amizade” e de “patrono-cliente” fundamentam as possibilidades de
análise das teias sociais gestadas a partir da “interação dialética entre estruturas formais
e os diferentes tipos de associações informais”. Segundo o autor, muitas vezes, “as
relações sociais informais são responsáveis pelos processos metabólicos necessários
para que se mantenha a instituição formal em operação” (WOLF, 2003, p. 94). Nesse
sentido, ponderar o peso das funções desempenhadas pela família e pelos parentes, pelas
relações de amizade e sua variante “instrumental” e pelas relações “patrono-cliente” é
fundamental para se analisar o grau de importância de laços de “lealdade”, ajuda mútua,
redes de reciprocidade e de auto-consagração entre pares para o direcionamento de
carreiras eclesiais, sedimentação de posições estratégicas no espaço religioso e para a
afirmação política e intelectual de sacerdotes no Maranhão.
28

As formulações teóricas estabelecidas por Landé (1977) e Wolf (2003),


enquanto conjunto de estruturas existentes em sociedades complexas, funcionam ainda
como elementos norteadores da abordagem adotada neste estudo no tocante à apreensão
das relações interpessoais, dos trânsitos e vínculos tecidos pelos agentes eclesiásticos
em suas interconexões com outras esferas sociais, conferindo-se assim uma maior
dimensão de análise sobre os recursos acumulados por cada sacerdote e o peso desse
tipo de capital na constituição de suas carreiras e trajetos pessoais.

Com efeito, as perspectivas apresentadas até aqui evidenciam, em seu conjunto,


a importância do trabalho “intelectual” realizado pelos mediadores, particularmente na
definição de papéis políticos, culturais e religiosos, observando-se, assim, a existência
de uma espécie de complexificação da função de mediação, exigindo-se dessa atividade
de “invenção das posições” e papéis sociais cada vez mais um elevado grau de relativa
especialização dos agentes responsáveis pela manipulação de bens simbólicos, de onde
surge o poder dos “intelectuais”, os fundamentos de sua legitimidade e o
estabelecimento de suas problemáticas como “legítimas”, que se inscrevem em níveis
menos abrangentes e englobam instituições específicas, como a igreja, as forças
armadas, o sistema escolar, dentre outras (CORADINI, 2003, p. 126).

Constituídos como agentes intermediários culturalmente favorecidos e


estabelecidos entre os grupos dirigentes e o “povo”, exercendo a função de “porta-
vozes”, os “intelectuais” se diferenciam dos demais agentes no espaço de manipulação
simbólica pelo desempenho de papéis que exprimem sua “capacidade de definir o social
e de explicar as condições de sua organização” (PECAULT, 1990, p. 33). Nos primeiros
decênios do século XX, estudos apontavam a relevância do trabalho desenvolvido pelos
“intelectuais” no tocante à elaboração e organização das formas de pensar, observar e
compreender os fenômenos sociopolíticos e culturais. Esse trabalho “intelectual” ficou
ainda mais evidenciado na questão da formulação das bases teóricas do “Estado
Nacional”, de onde se pôde depreender que os “intelectuais”, por sua capacidade social
e culturalmente favorecida, possuíam uma “vocação” para elite dirigente, detentores de
saberes e habilidades que os legitimavam para a “organização do político” (ibid.,1990,
p. 39).

A partir de novos estudos, evidenciou-se que o trabalho de definição e de


nomeação das coisas do mundo social não se sustentava apenas pelo acúmulo de
29

habilidades individuais e pela “intelectualidade” dos mediadores, mas primordialmente


pela posição ocupada no espaço de poder mais amplo. Como bem apontou Pierre
Bourdieu (2008), em seu trabalho sobre A economia das trocas linguísticas, no qual
produz sua crítica ao estruturalismo e aos seus renomados advogados, dentre eles
Saussure e Michel Foucault, o poder dos “intelectuais” que exercem a função de “porta-
voz” depende de sua posição social no espaço de concorrência e não meramente do teor
de seus escritos. Para o sociólogo, “o poder das palavras é apenas o poder delegado do
porta-voz”, que enseja a observação de outras dimensões, como o reconhecimento e o
desconhecimento, fatores estruturantes da delegação da autoridade da fala (e da escrita)
e, por conseguinte, da produção e reprodução do discurso autorizado do porta-voz
(BOURDIEU, 2008, p. 87-91).

Constituídos desses poderes sociais que sedimentam a autoridade delegada do


“porta-voz” que, no estudo em questão, são combinados com o poder institucional
eclesiástico que lhes recobre as vestes e os gestos, as práticas e as representações que
produzem sobre o mundo social, bem como com as relações sociais (amizade,
parentesco, “patrono-cliente”, etc.) que perpassam seus trajetos, os sacerdotes católicos
instituem seu lugares de fala legitimada e autorizada por um tipo de reconhecimento
(social, intelectual, político) advindo dos domínios exógenos à esfera religiosa, relativos
às múltiplas inscrições e associações (mais ou menos estáveis) tecidas e mantidas a
partir do fluxo estabelecido com outras esferas sociais.

Daí pode-se entender que a atividade da escrita (consubstanciada na publicação


de livros) exercida por esses agentes configura-se como fator de distinção, como
atributo de “notoriedade” em relação aos demais agentes, como um tipo de capital
amplamente valorizado no espaço em disputa à medida que o exercício de escrever é
concebido como um dos principais atributos passíveis de reconhecimento “intelectual”
(GRILL; REIS, 2012), ao mesmo tempo em que se constitui e é reivindicado como
recurso legítimo para a ocupação de determinadas posições e tomadas de posição no
espaço de concorrência simbólica.

No que se refere à “formação da cultura” e da “organização do político”


(PECAULT, 1990), a observação das posições ocupadas pelos mediadores no momento
de suas produções culturais, principalmente de escrita, é de fundamental importância
para se compreender que seu poder de nomeação e de definição reside na combinação
30

de seu trabalho intelectual com o reconhecimento social que lhe é conferido, isto é, na
delegação da autoridade de onde provém seu discurso autorizado.

Essa imbricação entre cultura e política, efetuada pelo trabalho de mediação dos
“intelectuais”, obteve como resultado por parte destes um estado de saída da teoria ao
engajamento. Diversos estudos já enfatizaram que a passagem desses agentes do campo
teórico para a práxis social se processou por meio da constituição e diferenciação de
“modelos de intervenção”, espraiados para diferentes domínios e espaços sociais (REIS,
2010; SAPIRO, 2012; SEIDL, 2007b; SIGAL, 2012). Gisèle Sapiro (2012) identifica
algumas modalidades de intervenção dos intelectuais na política4 a partir do exame do
caso francês, levando em conta o capital simbólico, a autonomia em relação às
demandas externas e o grau de especialização dos agentes. Para a autora, “os
intelectuais ocupam uma posição dominada no seio das classes dominantes como
detentores de um capital cultural que se diferenciou do capital econômico com a
institucionalização do sistema escolar” (SAPIRO, 2012, p. 22), tal como ponderou
Coradini (2003) em estudo anterior.

A partir desse entendimento, levando-se em consideração que a emergência e


afirmação da figura do “intelectual” perpassam pelo processo de expansão do sistema
escolar e pela institucionalização do ensino universitário no Brasil, o que propiciou o
surgimento de um mercado editorial interno e, simultaneamente, consumidor de bens
simbólicos (SORÁ, 2010), os “intelectuais” são concebidos como “produtores e agentes
de circulação de noções comuns, concernentes à ordem social” (SIGAL, 2012, p. 56).
Fundamentando sua análise no contexto representado pela Argentina, Sigal assevera que
os “intelectuais” são detentores de um saber que autoriza os investimentos no sentido de
intervenção no mundo social, de onde parte para analisar “o lugar dos intelectuais na
política e o lugar do político para os intelectuais”.

Convém observar, no entanto, que analisar os “intelectuais” enquanto


“produtores de noções” numa dinâmica periférica como a do Maranhão de meados do
século XX implica ponderar o peso das peculiaridades existentes e contrastantes entre

4
Analisados numa perspectiva sócio-histórica e construídos de modo ideal-típico, Sapiro identifica e
esmiúça oito tipos de intervenção política dos intelectuais: o intelectual crítico universalista; o guardião
da ordem moralizador; o grupo intelectual contestador ou a “vanguarda”; o intelectual de instituição ou de
organização política; o especialista consultado pelos dirigentes ou o “expert”; o intelectual crítico
especializado ou o “intelectual específico”; e o grupo contestador especializado ou o “intelectual
coletivo”.
31

distintas regiões geográficas. Isso acaba por revelar que, a nível local, no que tange à
definição de “intelectual”, com sua ramificação católica, não há como se precisar uma
conceituação nestes termos, principalmente levando-se em consideração o fato de
muitos “intelectuais católicos” do Maranhão serem assim identificados através de um
processo de consagração baseado no “auto-reconhecimento” e em relações de
reciprocidade, nascido e fomentado entre seus próprios pares e nos círculos sociais aos
quais pertencem.

Além disso, as especificidades da atuação de sacerdotes no Maranhão, que


apresentam uma gama de elementos e condicionantes exógenos ao universo religioso
incidindo sobre sua intervenção intelectual no mundo social, apontam para a própria
disputa pela definição do que é “intelectual” ou “ser intelectual”. Tais observações
ajudam a pensar que a participação de padres em espaços de socialização de “letrados” e
“literatos” se dá por conta das retribuições simbólicas advindas desses espaços, como a
conquista do reconhecimento de “intelectual”, justificando assim, em linhas gerais, a
inserção de sacerdotes católicos nas academias de letras, universidades, institutos de
pesquisa, jornais, bem como nos círculos de jornalistas, poetas, romancistas,
historiadores e escritores maranhenses já estabelecidos.

Em verdade, não há como negligenciar duas dimensões analíticas fundamentais


que evidenciam um menor grau de institucionalização do espaço religioso maranhense
e, por isso mesmo, uma maior heteronomia da produção intelectual de padres dedicados
à atividade da escrita e à publicação de livros: a primeira diz respeito a uma maior
valorização e importância das instâncias e dos critérios externos de consagração; e a
outra, de um elevado grau de dependência à esfera política (CORADINI, 2003, p. 126),
particularmente pelo desapossamento dos bens materiais que se constituem como
impeditivos de primeira ordem à produção e veiculação de trabalhos escritos (contatos
com editoras e editores) e suscitam a recorrência às redes de relações pessoalizadas de
cada agente5 (busca por apoios, patrocínios, financiadores e apadrinhamentos políticos).
Em outras palavras, o “campo de produção cultural” analisado apresenta-se duplamente
dominado pelo poder político e pelo poder econômico (posse dos bens materiais de

5
Sobre a formação do mercado editorial brasileiro e as redes de relações pessoais que definem a
possibilidade de publicação e de pertencimento ao panteão dos literatos no país, obliterando assim a
“genialidade” dos escritores, ver Sorá (2010). Tal perspectiva pode ser apreciada ainda no âmbito das
artes plásticas, através da construção de “epítetos” que glorificam artistas “ilustres” e silenciam
profissionais “anônimas”, presente no trabalho de Simioni (2008).
32

produção), mediado por redes de relações sociais que acabam condicionando os


assuntos abordados e limitando a inventividade dos escritores.

Nesse sentido, cabe realçar aqui a importância de dois estudos centrais para a
elaboração da presente pesquisa. O primeiro deles foi desenvolvido em conjunto por
Eliana dos Reis e Igor Grill (2012), intitulado O que escrever quer dizer na política?
Carreiras políticas e gêneros de produção escrita, onde são analisados os
significados e o peso que a atividade da escrita pode adquirir, mediante o
reconhecimento “intelectual”, na carreira de agentes dedicados profissionalmente ao
trabalho político, apreendendo-se especificamente “as relações entre a diversidade de
gêneros de escrita e as modalidades de atuação privilegiadas por profissionais da
política” (GRILL; REIS, 2012, p. 102).

Os autores partem de um trabalho anterior mais específico (REIS; GRILL,


2008), no qual tecem um quadro comparativo entre duas distintas localidades
geográficas, Maranhão e Rio Grande do Sul, para analisar as vinculações entre saber
intelectual e potencial de elegibilidade, contemplando diferentes momentos históricos e
dinâmicas específicas de concorrência. Na pesquisa que se toma como referência para
esta dissertação, cuja tessitura investigativa ampliou-se em termos geográficos e
restringiu-se à produção de livros escritos por políticos que alcançaram o ápice da
hierarquia de postos eletivos (Deputado Federal e Senador), os pesquisadores
evidenciam a importância da intervenção de produtores culturais sobre o mundo da
política, na contramão de inúmeros estudos que evocam apenas a influência da
“política” no mundo da “cultura”, salientando a imbricação entre reconhecimento
“intelectual” e “comprometimento político”, particularmente na realização do “trabalho
social de invenção das posições e dos papéis políticos”, empenhando-se na definição do
que é ou deveria ser a “política”, o “político”, a “sociedade”, em determinadas
condições histórico-sociais (ibid., 2012, p. 103).

No tocante ao presente estudo, a perspectiva adotada pelos autores supracitados


foi retraduzida para a esfera religiosa maranhense, com foco especial nas suas
dinâmicas internas e nas múltiplas interações estabelecidas por agentes católicos em
distintos espaços de inscrição, quer seja no polo cultural do catolicismo local, quer na
vida política das regiões onde se concentraram suas experiências clericais, permitindo
assim o desvelamento das lógicas que influem na produção escrita de agentes
33

eclesiásticos e nas modalidades de escrita às quais se dedicam, relacionando-as aos


postos assumidos e às temáticas abordadas ao longo de seus itinerários.

Além disso, foca-se na mensuração do peso relativo que o exercício de escrever


adquire no desenvolvimento de carreiras de religiosos, na conquista de posições
relativamente bem situadas e na demarcação de posicionamentos no interior do espaço
em disputa, dimensões de análise que, de algum modo, dialogam com a lógica de
reestruturação do poder religioso do catolicismo mundial, evidenciando a interferência
de condicionantes exógenos na estrutura interna da Igreja e os elementos teológicos
intervindo no mundo social.

Tal abordagem não seria aqui possível, contudo, sem a incorporação das
contribuições presentes em diversos estudos desenvolvidos por Ernesto Seidl (2003,
2007a, 2007b, 2009a, 2009b), especialmente no tocante à constituição de intérpretes da
história e da cultura, onde o autor articula as homologias entre carreiras religiosas e
mediação cultural no Rio Grande do Sul, outra importante dimensão analítica
contemplada na composição desta dissertação. Na citada pesquisa, o cientista social
desenvolve uma linha investigativa que analisa a constituição de agentes sociais,
vinculados à Igreja Católica, investidos do papel de “especialistas” ou “intérpretes” da
cultura e da história do Rio Grande do Sul, provenientes dos processos de imigração
alemã e italiana ocorrido na metade do século XX naquela região do país. O
pesquisador destaca ainda que a formação e a afirmação de mediadores culturais
oriundos da Igreja se operam pela “combinação de recursos acumulados
simultaneamente através de carreiras religiosas e acadêmico-intelectuais” (SEIDL,
2007b, p. 79), evidenciando assim o acúmulo de capital necessário para que os agentes
imponham seus princípios de hierarquização e de definição das posições e dos papéis no
espaço religioso em disputa.

Cabe ressaltar que, no Maranhão do período em foco, houve um significativo


processo de envolvimento de religiosos católicos (particularmente de padres e bispos)
em distintos domínios de atuação, quer na produção de bens simbólicos, nas “lutas
populares”, ou no enfrentamento contra a “ditadura militar”, tanto no aspecto militante
quanto no de formação educacional, cultural e política de diferentes segmentos sociais
(camponeses, trabalhadores rurais, operários urbanos, representantes de entidades
estudantis e sindicais, movimentos quilombolas e sem-terra, além de comunidades
34

indígenas), quer no âmbito universitário e nas instâncias de consagração intelectual


laicizadas pela separação entre Estado e Igreja no alvorecer da República (BORGES,
1998; MACHADO, 2012; MELO, 2010; NERIS, 2011; PEREIRA, 2011).

Aliás, não são raros os casos de agentes eclesiásticos que acionam dispositivos
de reconhecimento social exógenos à esfera religiosa para legitimarem sua atuação
evangelizadora e ocupar posições relativamente bem alocadas na estrutura interna da
Igreja. Da mesma forma, mas no sentido inverso, não é desconhecido o fato de muitos
padres usufruírem da autoridade delegada pela instituição eclesiástica para intervir no
mundo social. Inúmeros são os sacerdotes atuantes no Maranhão que possuem formação
de nível superior além das tradicionalmente estabelecidas (teologia e filosofia),
destacando-se padres que se formaram e atuaram como médicos, advogados, jornalistas,
psicólogos, historiadores, sociólogos, professores universitários, e que também atuaram
como “intérpretes da história e da cultura” maranhenses, respaldados pelo poder
simbólico da Igreja Católica no estado, ao produzirem obras calcadas nos princípios
científicos do mundo universitário ou nas regras artísticas que entremeiam as produções
literárias, bem como ao se inscreverem em diversos debates públicos locais, ao
ocuparem cargos públicos e exercerem funções administrativas em governos municipais
e estaduais, e ao participarem ativamente nas lutas político-partidárias regionais e na
organização de movimentos sociais e culturais.

O somatório de tais fatores e condicionantes evidencia, pois, aquilo o que


Bourdieu (2004) chamou de a “dissolução do religioso”, de onde provém a
diversificação de ofertas de bens de salvação e a ampliação da produção de sentidos
sobre o mundo social por clérigos católicos que, ancorados em elementos externos ao
âmbito religioso, engendram uma “redefinição dos limites” da esfera religiosa
(BOURDIEU, 2004, p. 122), bem como uma ressignificação da própria atividade
religiosa (SEIDL, 2009a), ressaltando-se o intercruzamento entre as lógicas distintas de
funcionamento nas esferas da política, da religião, da cultura e do social (BURITY,
2001; SEIDL, 2007a, 2009b).

Desse modo, a intervenção de clérigos católicos nos espaços secularizados da


“política” e da “cultura”, proveniente de uma tentativa de dominação ou de imposição
dos princípios e regras religiosos sobre o mundo social, evidencia as “intersecções da
esfera religiosa com o espaço universitário e intelectual e as formas de acúmulo da
35

autoridade necessária ao exercício legítimo do papel de mediador socialmente


reconhecido” (SEIDL, 2007b, p. 80). Através do exame dos condicionantes que
permitiram a afirmação desses papéis por agentes católicos, o presente enfoque incide
sobre a dimensão das condições sociais de pertencimento institucional desses
“intelectuais católicos” e as articulações por eles tecidas com outros “produtores
culturais” e instâncias exógenas ao mundo religioso, para fins de identificação e análise
dos recursos acumulados e refratados para a esfera religiosa, possibilitando a
constituição de “intérpretes culturais” (ibid, 2007b, p. 81).

A análise pretendida neste estudo, no entanto, se distingue das acima


mencionadas por investigar um grupo de agentes católicos que não figuram nas
posições mais altas da hierarquia eclesiástica. Com efeito, o enfoque proposto incide
sobre uma espécie de “agentes intermediários” que não se constituem efetivamente num
grupo uno e coeso, mas que estão mais ou menos bem situados em posições dominadas
no espaço dominante de produção cultural. Na maioria dos casos analisados, como se
verá mais à frente, os sacerdotes que se dedicam à atividade da escrita ocupam cargos e
funções que passam longe dos altos postos hierárquicos da Igreja Católica no Maranhão,
bem como das posições dominantes no mercado editorial local, sendo, portanto,
duplamente dominados, tanto na esfera eclesiástica quanto no espaço mais amplo de
concorrência de produção e de manipulação simbólicas, o que não significa uma
diminuição de sua influência nestes espaços, mas sim a possibilidade de uma análise
simbiótica dos usos sociais que fazem da escrita e do peso relacional que esta adquire
no desenvolvimento de suas carreiras religiosas.

Obstáculos e procedimentos de pesquisa

Pontua-se neste trabalho que o processo de construção do universo de agentes


investigados teceu-se no decurso da própria pesquisa, o que implicou num movimento
contínuo de reflexão e controle sobre as escolhas realizadas. Inicialmente, o trabalho
englobava uma população de dez padres identificados em recente pesquisa com um tipo
de perfil social característico: o de engajamento militante, cujas “missões” pastorais
eram desenvolvidas baseadas em estratégias de afirmação “em nome do povo”,
36

privilegiando a dimensão da “politização do engajamento religioso” (MACHADO,


2012, p. 112). A tentativa original era de analisar a produção intelectual desses agentes,
a fim de perceber as temáticas que abordavam, os gêneros de escrita a que mais se
dedicavam, além de observar o modo como construíam suas representações sobre o
mundo social, suas concepções de sociedade, da religião e da política.

Contudo, à medida que as primeiras pesquisas foram realizadas, percebeu-se


uma escassez de escritos publicados por esse perfil de padres. A se levar em
consideração uma esparsa quantidade de textos produzidos por agentes da Igreja e
veiculados em jornais de razoável circulação na capital e no interior do Maranhão – e,
por isso mesmo, difícil de mobilizar em um curto espaço de tempo – uma reduzida
produção livresca de autoria de sacerdotes “militantes” não passava de um ou outro
ensaio ou artigo que se tornou capítulo de livro.

Diante desse quadro inexpressivo de publicações que permitisse uma maior


consistência da análise então proposta, procedeu-se ao alargamento do universo de
agentes pesquisados, porém mantendo-se o mesmo recorte operado. Passou-se a
considerar os casos de padres que tiveram significativa e volumosa produção escrita,
particularmente de livros, reveladora dos recursos acumulados, das competências e
saberes adquiridos, das redes de sociabilidades construídas e dos reconhecimentos
sociais obtidos por estes, e não apenas aqueles com perfil militante. Dessa forma,
chegou-se a catorze casos elencados como característicos de padres que apresentam em
seus itinerários registros de produção escrita em consonância com o exercício de seu
ofício de sacerdote.

Dos catorze agentes selecionados, procedeu-se à escolha de dois casos


específicos para a operacionalização de uma análise ancorada na composição de suas
carreiras religiosas socialmente reconhecidas, de par com sua participação em diferentes
domínios e sua destacada produção intelectual. Padres como João Mohana, com mais de
40 publicações e com relevante intervenção no polo cultural da Igreja em São Luís, e
Clodomir Brandt, que registra um total de 26 livros escritos, além de ser uma das
referências religiosas mais ricas em particularidades e fatos marcantes na vida política e
cultural da cidade de Arari-MA, foram elencados como representativos e distintivos em
relação aos demais agentes inseridos no mundo social recortado pela pesquisa, não só
pela quantidade de textos publicados, o que evidencia o grau de associações e relações
37

sociais estabelecidas com os detentores dos bens de produção simbólica (donos de


editoras, parques gráficos, jornais, etc.), possibilitando-lhes gozar de certo prestígio
social e intelectual (SORÁ, 2010), mas principalmente pela heteronomia e alcance de
suas atividades clericais, cuja pluralidade de participação em diferentes domínios
sociais revela a hibridização do ofício de sacerdote no Maranhão.

Através de suas carreiras religiosas plurais e distintivas, privilegiando-se o


estudo dos condicionantes que presidiram suas reconhecidas atuações nos domínios
sociais em que estavam inseridos, tornou-se possível estabelecer uma análise
comparativa entre o modus operandi de sacerdotes na capital e no “interior”
(continente) do Maranhão, de onde se pôde observar o acionamento das relações
parentais e de amizade, a tessitura dos trânsitos e dos vínculos sociais, o
estabelecimento de conexões e de redes de interdependência entre as difusas e móveis
fronteiras das diversificadas esferas sociais (GRILL; REIS, 2012), os tipos de recursos
disponíveis em disputa e o peso relacional de investimentos “intelectuais” dentro da
esfera religiosa.

Além disso, através da composição dos trajetos dos padres Brandt e Mohana, é
possível conhecer e analisar os condicionantes históricos e sociais que incidem na
reprodução da “vocação” religiosa e na formação de padres no Maranhão, as distintas
motivações que direcionam agentes para a ordenação sacerdotal, bem como as
disposições de clérigos para a produção de interpretações sobre o mundo social, além de
similitudes e discrepâncias, aproximações e distanciamentos entre os feitos de cada um.

Padre Brandt é oriundo de um berço familiar, com raízes alemãs, que encontrou
na Igreja a oportunidade de dar continuidade aos estudos e de seguir uma carreira
religiosa, em detrimento das escassas alternativas que se apresentavam-lhe. Já o
sacerdote Mohana provém de uma família libanesa de forte tradição católica, mas que
só se torna padre depois de já ter obtido uma formação superior e de atuar
profissionalmente como médico, e de ter se consagrado literariamente através de
premiações recebidas por seus escritos. Os dois personagens, além dos troféus sociais
conquistados, ocuparam posições e assumiram posicionamentos que evidenciam
também a diversificação das modalidades de intervenção de “intelectuais católicos” nos
domínios da política e da cultura no Maranhão (não somente militantes de “causas
sociais”), para além das atividades confessionais cotidianas.
38

Contudo a pesquisa, em diversos momentos de levantamento dos dados


sociográficos referentes aos catorze casos investigados, deparou-se com uma série de
obstáculos e dificuldades. Isto devido à constatação de que não há no Maranhão nenhum
tipo de catalogação sistemática dos registros sociais de padres e clérigos católicos que
apresentam em seus itinerários publicação de escritos, muito menos de tal produção
intelectual. A priori, partiu-se da ideia de que os dados sociográficos que ajudariam a
compor um perfil mais geral sobre sacerdotes que se dedicaram à atividade da escrita e
que possuem livros ou textos (artigos, crônicas, poemas, ensaios, etc.) publicados em
formato de livros estariam contidos em acervos guardados e preservados nas mais
diversas instâncias e instituições vinculadas à Igreja Católica no Maranhão, dentre
outras a Arquidiocese de São Luís, o Seminário de Santo Antônio, Iesma, CPT, CIMI.

Na contramão dessa linha investigativa, após a visita a tais lugares, observou-se


uma precariedade muito significativa da Igreja no tocante à preservação da memória
histórica de suas organizações e de seus agentes. Em termos práticos, não foi localizado
nenhum tipo de documentação ou de acervo que contivesse registros mais gerais sobre
os dados biográficos dos sacerdotes pesquisados, nem uma sistematização de
informações referentes às suas obras, como se pensou inicialmente no que diz respeito
aos anuários publicados pela Igreja Católica no Maranhão.

Originalmente, pensava-se que estes anuários contivessem um significativo


volume de informações sobre sacerdotes destacados por sua atividade religiosa. Assim,
procedeu-se à pesquisa em busca de dados referentes aos catorze padres elencados e à
sua produção livresca, no tocante aos locais geográficos de concentração desses
escritos, os gêneros de escrita produzidos e os investimentos feitos pelos agentes nessa
modalidade de atuação, intentando-se encontrar ainda nestes anuários informações sobre
a existência de possíveis fichários ou espécies de currículos dos sacerdotes, ou ainda a
catalogação de dados mais específicos, como funções e cargos ocupados pelos agentes
dentro e fora do âmbito da Igreja.

No entanto, para a surpresa do pesquisador, tais dados não foram catalogados


nos citados anuários. Os poucos encontrados no acervo da biblioteca do Instituto de
Ensino Superior do Maranhão (Iesma) continham apenas informações de ordem mais
técnica sobre as dioceses espalhadas pelo território estadual (ano de fundação,
39

localização geográfica, densidade populacional, etc.) e os bispos que as comandavam


(nome completo, ano de chegada e período de permanência).

Ao contrário do que se poderia supor, as constatações obtidas in loco, isto é, no


desenvolvimento da pesquisa de campo, apontaram para um processo de privatização
das fontes e das obras dos padres destacados. Muitos dos textos publicados não estão
disponíveis em locais públicos de preservação histórica, nem nas bibliotecas das
instituições da própria Igreja, mas sim pertencentes a acervos particulares, em sua
maioria de propriedade dos próprios padres ou de seus familiares, cujo acesso é bastante
restrito.

Alguns destes escritos ainda figuram em páginas especializadas na venda de


livros antigos na internet, porém sem apresentar dados introdutórios sobre as obras,
detendo-se somente no detalhamento de suas condições físicas (presença ou não de
rabiscos, rasgos, carimbos, dentre outros elementos). Diante da inviabilidade de
aquisição de todos esses livros, o mapeamento então efetuado na pesquisa contemplou
somente as obras que continham algum tipo de descrição sobre seus conteúdos e seus
autores, o que implicou na exclusão de muitas outras publicações e de outros escritores,
a exemplo do bispo D. Felipe Condurú Pacheco, que dentre outras obras escreveu a
História Eclesiástica do Maranhão, uma das principais referências consultadas por
pesquisadores sobre o estudo da Igreja Católica no Maranhão, cuja publicação se deu no
ano de 1969 e sobre o qual não foi possível reunir um conjunto de dados suficientes
para o presente trabalho. Certamente, o estudo de sua trajetória e de sua produção
intelectual ajudaria a compreender um pouco mais sobre a atuação híbrida de clérigos
católicos no Estado, bem como a autoridade e o reconhecimento conferidos a agentes da
Igreja para legitimarem representações católicas sobre a história e a cultura
maranhenses.

Em verdade, no Maranhão, raros são os acervos de propriedade privada que


disponibilizam seus conteúdos a um público maior. No caso do presente estudo, as
informações disponíveis sobre as duas trajetórias específicas analisadas, além das
demais fontes consultadas, foram obtidas junto aos organizadores das próprias “casas de
memória” dos referidos padres, por meio das figuras de Dona Creuzinha, organizadora
do “Memorial do Padre Clodomir Brandt e Silva”, situado na cidade de Arari-MA,
aberto à visitação pública, e de Ibrahim Mohana, um dos responsáveis pela “Casa João
40

Mohana”, localizada no centro histórico de São Luís, cujo acesso só foi possível
mediante a satisfação de exigências prévias dos familiares do padre, como a não
concessão de entrevistas e o envio, por escrito, do roteiro de pesquisa para o
levantamento dos dados biográficos.

Cabe ressaltar ainda que, sobre a guarda da memória destes dois padres
específicos, enquanto no Memorial do Padre Brandt todos os livros de sua autoria estão
disponíveis para a venda, salvo raras exceções por esgotamento editorial, na Casa
Mohana não foi permitido o acesso à sua produção livresca, sob o argumento de que
esta está disponível no mercado para a venda, o que implica asseverar que a referida
casa de guarda da memória do padre Mohana não possui acervo disponível para a
comercialização ou mesmo para a consulta local do público interessado. Daí o porquê
da importância da escritora Arlete Nogueira da Cruz Machado para este trabalho, que
gentilmente forneceu ao pesquisador um rico material jornalístico contendo muitas
fotos, dados e informações sobre a vida e a produção intelectual do padre João Mohana.

Dentro desse contexto de poucos avanços e frequentes recuos, foram frustradas


as inúmeras tentativas de levantamento do maior número possível de dados biográficos
pela via das fontes “oficiais” produzidas pela Igreja Católica no Maranhão referente aos
catorze padres investigados. O fato de nem mesmo as bibliotecas de algumas das
mencionadas instituições possuírem acervos contendo tais registros sociais ou de suas
obras suscita pontuar-se duas observações: primeiro, tornam-se evidentes a precarização
desses exíguos espaços de guarda da memória e a negligência de setores da hierarquia
eclesiástica no estado em catalogar e preservar, de forma sistemática, se não os dados
sociográficos de seus sacerdotes, minimamente sua produção escrita. Segundo, aponta
para um certo tipo de controle da Igreja sobre a vida de seus membros, uma vez que o
acesso aos dados sociais de padres implica uma inserção maior do pesquisador tanto na
esfera administrativa eclesiástica quanto nos círculos de socialização onde se inseriam.

De um modo geral, as informações biográficas e os dados relativos aos livros


publicados, contidos nos quadros apresentados neste estudo, foram coletados de
diferentes e variadas fontes. As obras que foram possíveis serem mapeadas figuram em
citações presentes em produções acadêmicas (monografias, dissertações, teses, artigos e
relatórios de pesquisa), em sites da internet com conteúdo religioso, em suplementos
literários e culturais de jornais e em livros adquiridos junto a amigos e a padres
41

consultados. Contou-se ainda com o apoio dos administradores das bibliotecas


frequentadas, que contribuíram com sugestões e informações sobre escritos e escritores
católicos.

Além do mapeamento dessa esparsa produção intelectual, procedeu-se a uma


leitura preliminar sobre os seus conteúdos, a fim de se compreender as lógicas de
construção de representações e de sentidos sobre o mundo social pelos membros da
Igreja, seus posicionamentos perante assuntos exógenos à esfera religiosa, bem como
seu olhar sobre o papel desempenhado por agentes católicos nos diferentes domínios
sociais, na tentativa de se perceber o processo de construção de si mesmos enquanto
produtores de interpretações “legítimas” da vida social.

De posse desses dados, ainda que escassos, tornou-se possível a composição de


um mosaico sobre o perfil de padres que não se restringiram apenas à esfera de atuação
confessional, nem tampouco se dedicaram exclusivamente ao engajamento militante na
defesa de “causas sociais”. Com efeito, os agentes investigados apresentam diversos
registros de inscrição em outras esferas e ramos de atividade, quer seja no âmbito da
política, da literatura, da imprensa, da acadêmico/científica, da “cultura” e da educação,
atuando como “políticos”, médicos, advogados, romancistas, teatrólogos, poetas,
jornalistas, historiadores, sociólogos, além de professores e pesquisadores em
instituições de ensino superior, conferindo-lhes certo prestígio e reconhecimento
“intelectual” e social que os legitima e os autoriza a ocuparem determinadas posições e
a intervirem nestes mesmos espaços.

A inscrição de religiosos católicos (particularmente de padres e bispos) em


domínios sociais tão variados e distintos de sua esfera cotidiana de atuação confessional
suscitou, por fim, o cotejamento dos condicionantes que ensejaram o processo de
inculcação de propriedades sociais responsáveis pela definição dos limites de atuação
dos casos investigados, bem como pelo delineamento dos perfis sociais de sacerdotes
que, em algum momento de seus itinerários religiosos, buscaram na atividade da escrita
a “fuga da rotina” do cotidiano, a materialização de suas concepções de mundo e de
“projetos” de sociedade (GRILL; REIS, 2012, p. 3-4), a externalização de suas
ideologias sobre a religião, a cultura e a política, além de demarcarem sua posição
distintiva em relação aos demais agentes no espaço em disputa.
42

Com isso, considera-se que as orientações teórico-metodológicas que norteiam o


presente estudo, conforme exposto anteriormente, possibilitam a análise sobre a
distribuição das posições e dos papéis definidores que estruturam a ação católica de
determinados agentes e/ou grupos sociais, ao mesmo tempo em que se a operacionaliza
como instrumento revelador das estratégias de dominação adotadas pela hierarquia
eclesiástica e das lógicas que engendram a produção intelectual desses agentes, dos
quais são exigidas certas habilidades e competências técnicas, além de conhecimentos
específicos e saberes práticos que, somados aos títulos escolares e às redes de relações
sociais, definem o tipo, o volume e o peso do capital que os autorizam e os legitimam a
ocupar determinadas posições e a assumirem posicionamentos no espaço de poder mais
amplo.

Assim, diante do somatório dos dados e registros levantados, aliados ao exame


dos perfis sociais dos sacerdotes pesquisados, seus recursos, concepções, práticas e
representações, além de seus repertórios variados de mobilização e de intervenção no
mundo social, têm-se a noção do peso relacional da atividade da escrita no tocante ao
desenvolvimento de carreiras religiosas no Maranhão e na constituição, definição,
legitimação e hierarquização de papéis sociais protagonizados por membros da Igreja
nos domínios da cultura e da política maranhenses.

***

Considerando as observações e ponderações supracitadas, tem-se a presente


dissertação arquitetada e enredada em quatro capítulos. No Capítulo 1, apontam-se os
principais aspectos históricos, sociais, políticos e culturais que presidiram a híbrida
atuação de sacerdotes católicos no Maranhão, no período de 1950 a 1980. Além disso,
busca-se situar historicamente os condicionantes que possibilitaram a emergência da
figura do “intelectual católico”, tomando como exemplo o caso francês, e apresentar
analiticamente as contribuições teóricas que norteiam o presente trabalho, explicitando e
ponderando conceitos fundamentais e ajustando-os às dinâmicas periféricas
investigadas.
43

No Capítulo 2, analisam-se as características sociais dos 14 sacerdotes


pesquisados, na tentativa de compor um mosaico geral sobre o perfil social de padres
que se dedicam à atividade da escrita no Maranhão em paralelo com as suas atividades
eclesiásticas cotidianas. Para isso, foram mobilizadas algumas variáveis que permitiram
uma análise mais frutífera sobre os casos elencados, como a nacionalidade, formação
escolar, ano de nascimento, idade de ordenação, atuação profissional e pertencimento a
outros espaços de socialização, como academias de letras, universidades, institutos de
pesquisa, cargos ocupados em órgãos públicos e entidades ligadas à Igreja Católica no
Maranhão (CPT, CIMI, Cáritas, etc.). Os dados, registros e informações coletados para
a composição deste capítulo foram obtidos em diversas e distintas fontes, entre
consultas a jornais e livros pertencentes às bibliotecas das entidades visitadas, em
trabalhos acadêmicos (artigos, monografias, dissertações e teses) e em alguns escritos
produzidos pelos próprios sacerdotes analisados.

No Capítulo 3, parte-se para o estudo da trajetória do padre Clodomir Brandt e


Silva, que teve uma significativa e diversificada atuação no “interior” do Maranhão,
mais precisamente na cidade de Arari, localidade onde desenvolveu suas funções
eclesiais de modo expressivo e distintivo em relação aos demais agentes católicos, cujas
práticas e discursos reverberaram na história cultural e política da cidade. Para a
confecção deste capítulo, lançou-se mão de obras produzidas por aqueles que viveram
no município e conviveram com o sacerdote, muitas vezes combatendo-o nas trincheiras
da luta política e midiática. Além disso, os livros escritos pelo próprio padre Brandt
serviram como indispensável plataforma para a composição de seu itinerário,
salientando-se criticamente, contudo, o aspecto autobiográfico e a tendência de
“glorificação” de suas ações presentes em seus textos.

Por fim, no Capítulo 4, analisam-se as dinâmicas e os condicionantes que


presidiram a trajetória de João Mohana, sacerdote de destacada atuação no cenário
sociocultural de São Luís. Parte-se do rico trabalho desenvolvido pela escritora Arlete
Nogueira da Cruz Machado que catalogou registros, informações, dados e fotos em
comemoração ao aniversário de 70 anos do padre Mohana para um suplemento cultural
do jornal “O IMPARCIAL”, publicado em junho de 1995. Além disso, utilizam-se os
dados fornecidos em entrevista por um dos irmãos do sacerdote, o também escritor
Ibrahim Mohana, cujas informações foram obtidas por escrito através de um
questionário previamente elaborado que privilegiou questões concernentes à origem
44

familiar do padre Mohana (escolaridade e profissão dos pais e avós), recursos


acumulados antes da “entrada oficial” na Igreja, como a formação e o exercício da
Medicina no Maranhão, e a inserção nos círculos “intelectuais” da capital.

Com a espinha dorsal da dissertação assim delineada, intenta-se compreender e


analisar as lógicas e os condicionantes que incidem sobre a atuação híbrida de
sacerdotes católicos no Maranhão. Os 14 casos investigados foram elencados tomando-
se em apreço as características e os vetores que lhes permitiram falar, escrever e agir de
modo distintivo, particularmente nas esferas da política e da cultura, em relação aos
demais padres que atuaram no Estado entre as décadas de 1950 e 1980.

O exame das trajetórias dos dois padres investigados nos capítulos 3 e 4,


respectivamente Clodomir Brandt e João Mohana, exemplificam a hibridização que
perpassa a atuação de sacerdotes no Maranhão que, para além de suas atividades
eclesiais cotidianas, investiram (de modo mais ou menos consciente) no acúmulo de
saberes e no estabelecimento de relações sociais que os possibilitaram ocupar
determinadas posições e intervir significativamente nas difusas e fluidas “fronteiras”
entre os domínios religioso, cultural e político, fazendo da escrita um de seus principais
trunfos na conquista e manutenção destas posições e na demarcação de seus
posicionamentos.
45

CAPÍTULO 1:

A REESTRUTURAÇÃO DO ESPAÇO RELIGIOSO E A DIVERSIFICAÇÃO


DA ATIVIDADE SACERDOTAL: apontamentos sócio-históricos

O recorte temporal escolhido neste estudo justifica-se pelas múltiplas dinâmicas


em curso que remetem às transformações políticas e culturais ocorridas dentro e fora da
esfera religiosa e à diversificação dos espaços de atuação eclesiástica experimentadas
pela Igreja Católica a nível nacional e internacional, particularmente num estado
periférico como o Maranhão que, em meados do século XX, apresentava uma
significativa singularidade em relação a outros contextos, seja pelo afastamento do eixo
central dos estados federativos, seja pelos exemplos sintomáticos de crescente
desfiliação religiosa e dos baixos índices de renovação de seus quadros clericais
(MELO, 2010; SEIDL, 2003).

Dentro do mercado de interpretações disponíveis sobre as transformações


historicamente processadas nas relações entre Igreja e Estado no Brasil, têm-se diversos
estudos que apontam para um estado de “crise” da instituição eclesiástica, mediante o
reordenamento de suas dinâmicas internas específicas e o aumento das pressões
exógenas de condicionantes sócio-históricos em voga (ALVES, 1979; BRUNEAU,
1974; DELLA CAVA, 1975; MAINWARING, 2004).

Tais estudos apontam as estratégias que a Igreja utilizou para o enfrentamento


das turbulências que ameaçavam desmoronar os alicerces de sustentação do seu
prestígio e poder no seio da sociedade brasileira, principalmente com a Proclamação da
República (1889) e a promulgação da Constituição de 1891, quando se estabelece a
separação entre Estado e Igreja e a laicização dos diversos setores estruturantes da
sociedade, cujos valores católicos entram em concorrência com o advento de novas
formas de pensamento, de organização política e de religiosidade, principalmente o
protestantismo6. A partir daí, houve uma limitação dos espaços de atuação católica que,
entre outras coisas, significou a perda de influência e de poder da Igreja no Brasil,

6
No Maranhão, a presença de grupos religiosos protestantes, tais como Anglicanos, Presbiterianos,
Batistas, Pentecostais, dentre outros, data das primeiras décadas do século XIX, com forte incidência já
no início do século XX. Sobre este assunto, ver Santos (2004).
46

exigindo da instituição eclesiástica a recomposição de suas estratégias e a diversificação


dos espaços de sua atuação.

No final do século XIX e início do século XX, a Igreja passava por um processo
interno denominado de romanização7 e o Estado brasileiro reorganizava-se sob os
auspícios da República. Dessas transformações políticas e religiosas, que se espraiaram
também para os domínios do “social” e da “cultura”, gestou-se o fim do regime do
Padroado, em cujo bojo estabeleceu-se a separação, em termos político-administrativos,
entre as esferas política e religiosa e a laicização da sociedade brasileira.

Com o divórcio republicano entre Estado e Igreja e a promulgação da


Constituição de 1891, o catolicismo sofreu uma espécie de “abalo” em seu poderio
material e simbólico no país, especialmente pela “abertura” propiciada por tal
rompimento para a emergência e afirmação de novos credos no cenário religioso e para
o advento de correntes filosóficas e políticas concorrentes, que não tinham na instituição
eclesiástica suas referências estruturantes. Além disso, a Igreja experimentou a perda de
certas funções que antes eram de sua exclusiva competência e responsabilidade, e que a
partir de então foram chanceladas ao domínio do Estado. Segundo Hermann (2007, p.
123),

o projeto da nova Constituição (...) apresentava propostas evidentes de


limitação da esfera de ação da Igreja e de religiosos: reconhecimento e
obrigatoriedade do casamento civil, laicização do ensino público, secularização
dos cemitérios, proibições de subvenções oficiais a qualquer culto religioso,
impedimento para abertura de novas comunidades religiosas, especialmente da
Companhia de Jesus, inelegibilidade para o Congresso de clérigos e religiosos
de qualquer confissão.

Como se observa, diante das dinâmicas sociais e dos processos políticos em


curso, a Igreja perdeu espaço e poder no Brasil do alvorecer do século passado. Funções
e atividades de grande abrangência na sociedade, até então desenvolvidos e pertencentes
exclusivamente ao domínio católico, como o ensino público, o casamento e os
sepultamentos, passaram a ser administrados pelo estado laico brasileiro.

7
Conforme aponta Rodrigues (2003, p. 11), entre 1889 e 1922, “a Santa Igreja Católica Apostólica
Romana passava por um processo de centralização do poder em torno da autoridade papal, conhecido por
romanização”, uma espécie de ajustamento das diretrizes doutrinárias produzidas pelo Vaticano, em
Roma.
47

Mas, se por um lado, a ruptura dos laços institucionais com o Estado significou
uma redução de poderes e benefícios, por outro a Igreja pôde gozar de um relativo
aumento de sua autonomia, sobretudo no que concerne à ampliação e estruturação de
seus postos (paróquias e dioceses, a priori), aos princípios de recrutamento e seleção de
seu corpo de agentes e à reformulação e redefinição de sua competência religiosa
(MICELI, 1988; SEIDL, 2003).

É nesse período que ganha força no país, principalmente nas esferas da cultura e
da política, a figura do “intelectual católico” e a valorização da atividade da escrita
como trunfo distintivo da atuação de sacerdotes. A sociogênese desse tipo de agente,
que representa um reordenamento da Igreja perante o mundo social, remete, contudo, ao
início do século XIX, mais precisamente ao ano de 1802, quando é publicado Génie du
christianisme, de François-René de Chateaubriad, autor que propõe uma nova
legitimidade ao catolicismo no campo da literatura. Em contraposição aos “filósofos das
Luzes” e aos princípios da Revolução Francesa de 1789, que colocaram o homem no
centro do universo e desapossaram as obras literárias francesas da metafísica religiosa,
Chateaubriand reaproxima literatura e religião (católica), selando uma aliança entre
ambas e, ao mesmo tempo, se interpondo contra a ascensão do poder científico
(SERRY, 2004, p. 131-132).

No decurso do século XIX, o abade Felicité de Lamennais propõe, no entanto, a


necessidade de uma linha de pensamento católico precisamente em comunhão com o
avanço das descobertas científicas de então, numa tentativa de “superação das filosofias
individualistas em favor da tradição cristã”, reafirmando a autoridade da Igreja perante
o mundo social. Em seu Essai sur l’indifférence em matiére de religion (1820),
Lamennais busca orientar a “formação de uma elite clerical capaz de enfrentar os
desafios intelectuais do tempo”, reconciliando fé e ciência e reafirmando a necessidade
da presença de intelectuais católicos nos debates científicos (ibid, 2004, p. 133-134).

Já no final do século XIX, assiste-se a uma “crise” entre clero e laicato que,
dentre outros subprodutos daí provenientes, acaba por criar as condições de valorização
e reconhecimento dos “intelectuais católicos”, não necessariamente “ungidos” pela
ordenação sacerdotal. A partir da atuação de Louis Veuillot, jornalista a serviço de
Roma, se estabelece as “modalidades de um engajamento intelectual leigo em nome do
48

catolicismo”8. Veuillot, que não se ordenou padre, alcança prestígio e poder junto ao
papado de Pio IX, tornando-se “porta-voz” de Roma e estimulando a produção
intelectual de escritores leigos sobre o catolicismo, orientando a opinião do clero,
intervindo nos debates internos da Igreja e servindo de ponte entre a hierarquia
eclesiástica e a “opinião pública” francesa, que adquire nova importância com o
desenvolvimento da imprensa (SERRY, 2004, p. 138).

A partir desse esforço de restauração do poder do catolicismo no domínio


intelectual, a Igreja francesa começa a reunir em torno de si pensadores e escritores
(entre clérigos e leigos) bem situados socialmente para sistematizar o pensamento
católico sobre os campos da literatura, das artes e das ciências, legitimando e
promovendo a intervenção desses agentes no campo de produção cultural. A Igreja
parece pôr em prática, nesse momento de início do século XX, uma espécie de projeto
político-cultural que visa contrabalançar as críticas advindas do positivismo e do
modernismo, que atacavam os alicerces de sustentação da autoridade eclesiástica e do
monopólio do discurso sobre o religioso.

Com a “crise modernista” e o alvorecer da República, em 1905, houve uma


maior valorização e afirmação do laicato frente aos sacerdotes católicos. Estes foram
obrigados, a partir da publicação da encíclica Rerum Novarum (1891), do papa Leão
XIII, a se retirarem dos debates intelectuais e científicos e a direcionarem suas forças
para o terreno social, dando início à chamada “era militante” na Igreja, e assim, abriu-se
espaço para a valorização da figura do escritor leigo (não filiado ao catolicismo).
Conforme observou Hervé Serry (2004, p. 142), “ao obrigar seus clérigos envolvidos no
trabalho intelectual a se retirar dos debates científicos com os não-católicos, a alta
hierarquia católica abre aos escritores possibilidades de se colocarem a seu serviço”.

A partir desse processo de retirada dos clérigos dos debates intelectuais, houve
um aumento no espaço de atuação e de autonomia para os leigos, especialmente para os
escritores, que não mais se encontravam num estado de submissão e obediência estrita
ao clero. Contudo, sua valorização e reconhecimento no campo de produção cultural
tornaram-se possível justamente pelo fato de atuarem e escreverem em defesa da Igreja,

8
Para saber mais sobre as relações entre literatura e religião e a gênese social dos intelectuais católicos,
consultar Literatura e Catolicismo na França (1880-1914): contribuição a uma sociohistória da
crença, de Hervé Serry (2004), que esmiúça as especificidades de cada um desses momentos históricos e
as motivações que levaram à edificação teórica dessas linhas de pensamento católico sobre o “campo
intelectual”, particularmente sobre o domínio das letras e das artes em geral.
49

contra o avanço das ciências e dos fenômenos políticos e sociais que questionavam os
fundamentos de sua autoridade religiosa.

Com efeito, o advento da República, que estabeleceu a laicização entre Estado e


Igreja, tanto na França quanto no Brasil, forneceu os condicionantes que ajudaram a
recompor e a diversificar os espaços de atuação religiosa, uma vez que a intervenção de
agentes católicos não se restringiu única e exclusivamente no domínio confessional e
nos assuntos internos da Igreja, se irradiando fortemente para as esferas da cultura e da
política.

Em consonância com os novos ditames doutrinários emanados de Roma, a Igreja


Católica no Brasil alinha-se aos postulados do processo em voga de romanização
mundial do catolicismo. Em retribuição, obtém do Vaticano o subsidiamento da
ampliação de sua estrutura de postos e carreiras. Paralelamente a isso, as elites
hierárquicas da Igreja no Brasil buscam uma reaproximação com os centros nacionais
de poder e com os grupos dirigentes regionais da chamada “República Velha”, como
forma de reinserir-se estrategicamente nos espaços de decisão política do país, dos quais
havia sido obliterada (DELLA CAVA, 1975; MICELI, 1988).

De acordo com Bruneau (1974, p. 28), “até 1930 a Igreja se utilizou de várias
táticas para ser readmitida no que ela considerava ser a posição política que lhe
competia por direito”. Acreditando assim na necessidade de ancorar-se no Estado como
forma de reaver seus privilégios outrora perdidos, a alta hierarquia eclesiástica buscou
aproximar-se dos novos agentes políticos que comandavam a máquina administrativa
brasileira de então, quer pelo estabelecimento de relações de reciprocidade e de
manifestações públicas de apoio mútuo, realização de atividades religiosas e
cerimoniais cívicos em conjunto, ou pela participação de membros da Igreja no
exercício de funções e cargos de competência política e burocrática (BRUNEAU, 1974;
DELLA CAVA, 1975, AZZI, 2008, MICELI, 1988, SEIDL, 2003). Assim, desfrutando
de certa autonomia e estreitando cada vez mais os laços com as elites dirigentes do país,
a Igreja adentra a Era Vargas (1930-1945) gozando do relativo sucesso propiciado pelo
advento da “Neocristandade”9 (BEOZZO, 1986).

9
Conforme define José Oscar Beozzo (1986, p. 322), a Neocristandade era “uma ordem econômica,
social e política sob a direção dos princípios cristãos definidos pela Igreja”, que visava “reconduzir a
sociedade brasileira aos valores morais e culturais do cristianismo católico”. Em outras palavras, tratava-
se da (re)adoção e (re)incorporação de princípios e valores católicos na definição de programas e projetos
50

É no seio do período Vargas que a Igreja responde às novas situações impostas


pelas transformações políticas, sociais e institucionais em curso, através da criação de
movimentos como a Ação Católica (AC), em 1932, que em seu conjunto visava
cimentar a ampliação dos quadros clericais, formar leigos para auxiliarem bispos e
sacerdotes no trabalho de ensino dos cristãos e dar um novo ânimo às práticas
evangelizadoras através de um conjunto de ações de cunho caritativo e humanitário
(DELGADO e PASSOS, 2003; RIDENTI, 2002). Aliás, o estudo sobre a importância, a
influência e a autonomia do laicato no auxílio do exercício das funções eclesiais e no
desenvolvimento das atividades evangelizadoras, que ajudaram a recompor e a
reoxigenar o poder do catolicismo e, por conseguinte, da própria Igreja, sem a
intervenção direta da hierarquia eclesiástica, se constitui num campo de investigação
ainda pouco explorado.

É no transcurso da década de 1930 que tem início uma disputa pelo controle do
sistema educacional e pela produção cultural no país, onde a Igreja articula e desenvolve
estratégias com vistas a um processo de ideologização do ensino primário e secundário,
assim como o âmbito universitário, o qual Sérgio Miceli (1979, p. 51) chamou de
“enquadramento institucional dos intelectuais”. Em 1935, são criadas a Juventude
Universitária Católica (JUC) e a Ação Universitária Católica como uma tentativa de
circunscrever dentro da esfera de influência religiosa da Igreja as novas lideranças
“intelectuais” do país provenientes das universidades (MAINWARING, 2004; MICELI,
1979).

No Maranhão, a principal responsável pelo fomento e organização de novas


práticas evangelizadoras, e também pela obtenção de maior prestígio e reconhecimento
da Igreja junto à sociedade, às elites dirigentes e aos grupos de “intelectuais”, foi a Ação
Católica, criada em 1936 pelo padre Sebastião Fernandes que, juntamente com a Liga
Eleitoral Católica (LEC)10, fundada em 1932, promoveu uma difusão maior dos
princípios sociais católicos junto à população, dentre os quais destacam-se a assistência
religiosa às Forças Armadas, o fortalecimento dos laços matrimoniais, a liberdade de

políticos para o país, propiciada pelo estreitamento dos laços entre membros da hierarquia eclesiástica e
elites dirigentes, durante o período governamental de Getúlio Vargas.
10
A LEC tinha como função congregar o eleitorado católico e selecionar candidatos que se
comprometessem com os princípios sociais da Igreja. O trabalho da Liga consistia no alistamento de
eleitores, na apresentação de propostas aos candidatos e na divulgação via imprensa dos nomes
consignados com tais propostas (NERIS, 2012, p. 43). A título de exemplo de seu relativo sucesso,
muitos projetos elaborados pela LEC foram contemplados na Constituição de 1934 (PACHECO, 1969).
51

associação sindical, a defesa irrestrita da vida e da propriedade privada e o ensino


religioso obrigatório nas séries de formação fundamental e secundária (PACHECO,
1969, p. 588).

No tocante ao ensino universitário, a criação da JUC no Maranhão exemplifica


bem as tentativas da Igreja Católica em manter e expandir seu domínio nas esferas
cultural e educacional, como forma de recrutar os futuros “intelectuais” e lideranças
religiosas junto às elites locais para compor os novos quadros da instituição eclesiástica
no Estado.

Inicialmente, a JUC tinha apenas esse caráter conservador, clerical, voltado para
a “cristianização das futuras elites”. Contudo, após a reorganização da Ação Católica no
Brasil, entre 1946 e 1950, o movimento leigo adquire maior autonomia em relação à
hierarquia eclesiástica passando a ter maior envolvimento nas questões sociais
específicas do mundo dos universitários e se aproximando da chamada “esquerda”
brasileira, chegando a uma “rápida radicalização que a levou a um contundente conflito
com a hierarquia”, assumindo assim uma “responsabilidade explícita pela ação política
como parte de seu compromisso evangélico” (MAINWARING, 2004, p. 84).

Como fruto direto dessa “radicalização” religiosa e de aproximação dos


membros da JUC com a ideologia de “esquerda”, pautada nos pressupostos teóricos do
marxismo e suas diversas ramificações, tem-se o surgimento da Ação Popular (AP),
influenciada por “conjunturas de fechamento e repressão política, por manifestações de
diferentes porta-vozes do catolicismo e pelo impacto da revolução cubana e da
revolução cultural chinesa”, ao mesmo tempo em que sofreu interferências tanto dos
“empreendimentos de teólogos e intelectuais brasileiros como de agentes de outras
nacionalidades e com posicionamentos ideológicos diferenciados, que vinham
disseminar novas interpretações sobre o papel da Igreja e dos seus “seguidores” nesse
contexto” (REIS, 2007, p. 164-165). Convém ressaltar ainda que a criação da AP foi
precursora das bases teóricas da Teologia da Libertação e de importantes movimentos
do catolicismo que surgiriam posteriormente, como as comunidades eclesiais de base
(RIDENTI, 2002, p. 214; SALEM, 1981).

Não obstante, como veremos no exame da trajetória do padre Mohana, esse


“conflito com a hierarquia” clerical não se processou de forma unânime e global. Pelo
contrário, os enlaces sociais envolvendo o referido padre e membros do alto clero
52

maranhense semearam um terreno de atuação evangelizadora bastante fértil, de


cumplicidade e de ajuda mútua entre o laicato e a hierarquia eclesiástica.

O processo de estruturação e de controle do ensino universitário pela Igreja no


Maranhão alcança seu fulgor no início da década de 1960, com a fundação da
Universidade “Católica” do Maranhão que, posteriormente, se transformou na
Universidade Federal do Maranhão (UFMA)11, em 1966, tendo em seu comando inicial,
como reitor por dois mandatos consecutivos, o cônego Ribamar Carvalho (1963-1967 e
1968-1972), um dos destacados “intelectuais” eclesiásticos maranhenses. Conforme
assinala Regina Faria (2005, p. 18),

a Universidade do Maranhão, instituição criada pela Arquidiocese de São Luís em 1961,


mais conhecida como Universidade Católica, congregava a Escola de Enfermagem São
Francisco de Assis, a Faculdade de Serviço Social do Maranhão, a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras e a Faculdade de Ciências Médicas, todas diretamente
ligadas à Igreja Católica.

Com a expansão do ensino universitário, houve também o processo de


institucionalização das ciências humanas e sociais que, em condições periféricas, serviu
como base teórica para a atuação de sacerdotes como mediadores políticos e culturais,
tanto no engajamento militante em defesa de causas coletivas quanto na inserção em
espaços de produção acadêmico/científica, onde estas ciências “são postas a serviço da
“empresa de salvação” e de seus novos princípios de legitimação e práticas religiosas”
(CORADINI, 2012, p. 69).

Desse modo, evidencia-se o surgimento de “novas condições de oposição nas


relações centro/periferia e, mais especificamente, dos confrontos associados às novas
heterodoxias”, como a própria teologia da libertação, que se apropria destas ciências
para “incluir novas problemáticas legítimas” e, assim, legitimar a intervenção de
sacerdotes em outros domínios sociais, reafirmando sua capacidade de mediação (ibid.,
2012, p. 73-80).

Nesse rol de estratégias e ações da Igreja articuladas junto aos setores influentes
da sociedade, particularmente no domínio “intelectual”, destacando-se as relações
institucionais estabelecidas com a imprensa, cabe elencar a instituição do “Dia da Boa
Imprensa”, a fundação da “Associação de Jornalistas Católicos” (1937) e até a

11
Sobre este assunto, consultar Faria; Montenegro (2005), Neris (2011).
53

realização da “Páscoa dos Intelectuais” (NERIS, 2012, p. 45). Merece destaque também
a fundação do periódico “JORNAL DO MARANHÃO”12, o veículo de comunicação
oficial da Igreja Católica no estado, que congregava diversos “intelectuais” (católicos e
não-católicos) na confecção das interpretações da instituição eclesiástica sobre o que
ocorria em âmbito local, nacional e internacional.

Mesmo diante de tantas estratégias e iniciativas por parte da Igreja de melhor


realocar-se no espaço de poder e, assim, tentar restabelecer seu poderio e influência
perante a população, já no início da década de 1950 os clérigos católicos enfrentavam
uma forte concorrência religiosa – principalmente das seitas protestantes e das religiões
de origem africana e suas múltiplas manifestações culturais –, relativa diminuição do
número de ordenações sacerdotais e uma crise financeira advinda da escassez de
recursos mediante a queda de fiéis nas celebrações eucarísticas. Disputavam ainda o
filão desse mercado salvacionista em estado de “crise” as organizações ateístas e os
movimentos políticos que tinham como base um marxismo ortodoxo que considerava a
religião como “o ópio do povo” (ALVES, 1979; BRUNEAU, 1974; MAINWARING,
2004).

Essa tendência de forte concorrência à hegemonia do catolicismo no Brasil


mantém-se também durante o limiar da década de 1960, forjando na Igreja a adoção de
novas práticas que irão abalar ainda mais seus alicerces de sustentação ideológica e
desembocar numa maior interferência de seus agentes nos assuntos relativos à esfera
política, com a diferença de que agora os vínculos não seriam costurados junto aos
“poderosos”, mas sim através da aproximação perante o “povo oprimido”. Para muitos
estudiosos, essa mudança de postura da Igreja reflete a crise que a instituição enfrentava
por ter se mantido, historicamente, ao lado das elites e dos grupos dirigentes do país.
Segundo Bruneau (1979, p. 159), “na origem da crise da qual surge uma reorientação da
Igreja Católica no Brasil, encontramos uma tomada de consciência de sua perda de
influência entre a população mais pobre”.

12
O periódico chamava-se inicialmente de “CORRESPONDENTE”; depois foi batizado de “O
MARANHÃO”, até receber o nome definitivo de “JORNAL DO MARANHÃO”. Fundado em 1930 pela
Arquidiocese de São Luís, o jornal tornou-se o canal oficial de publicação da visão da Igreja sobre os
acontecimentos no Maranhão, no Brasil e no mundo. Teve suas atividades suspensas no auge da repressão
da “ditadura militar”, em meados da década de 1960, voltando a circular somente em 2009. Para saber
mais sobre esse assunto, ver Melo (2010).
54

Diversos relatórios encomendados pelos bispos quanto à expansão das religiões


concorrentes ao catolicismo e ao advento de novas organizações políticas que não
tinham na Igreja suas referências, durante as décadas de 50 e 60 do século XX,
evidenciavam certo declínio de seu “monopólio religioso”, que propiciou aos membros
da hierarquia eclesiástica maior consciência da necessidade de reformular as práticas
pastorais em voga e de “tratar com circunspecção os problemas sociais”
(MAINWARING, 2004, p. 53-54).

Tal concepção, contudo, não envolvia a Igreja como uma unidade compósita.
Pelo contrário, havia disputas internas entre correntes teológicas que divergiam quanto à
aproximação e/ou distanciamento da “doutrina social” preconizada pelo Vaticano.
Ainda segundo Mainwaring (2004, p. 55), enquanto alguns segmentos do clero (os ditos
“tradicionalistas”) reprovavam a aproximação com os movimentos populares por
acreditarem constituírem-se numa “ameaça”, à medida que adquiriam um enfoque “anti-
católico” e questionador da “hierarquia social”, para os “moderados” e “progressistas”
tal aproximação ajudou a fomentar uma nova consciência dos problemas fundamentais
da sociedade brasileira, modificando assim a forma com que muitos líderes eclesiásticos
percebiam a sociedade.

Ao mesmo tempo em que sofria mutações em sua visão sobre os problemas do


mundo, a própria Igreja estava inserida num contexto também de profundas
transformações. Vivia-se o tempo da Guerra Fria, o bipolarismo mundial entre
comunistas soviéticos e capitalistas ocidentais, exemplificado principalmente na
Revolução Cubana (1959), na Guerra do Vietnã (1959-1975) e no Muro de Berlim
(1961-1989). Cabe destacar ainda nesse contexto convulsivo a deposição de governos
democráticos, o advento de regimes militares em quase toda a América Latina e no
continente asiático e a explosão de movimentos sociais na Europa, particularmente na
França. No Brasil, o surgimento de sindicatos, associações comunitárias, organização
do movimento estudantil e do campesinato, além da mobilização de grupos armados de
resistência ao regime militar, constituíam o pano de fundo que circunscrevia as
mudanças em curso no seio da Igreja (SERBIN, 2002, p. 9-10).
55

A realização do Concílio Vaticano II13 (1962-1965) acabou sendo uma espécie


de “resposta” da instituição eclesiástica para o mundo em ebuliente mutação e serviu de
mote para a própria reestruturação de suas bases doutrinárias. Foi a partir do Concílio
que a Igreja oficializou certas práticas e medidas já em vigência por parte da Ação
Católica, como a adoção do método do “ver, julgar e agir”, criado pelo belga monsenhor
Cardjin no interior da Juventude Operária Católica (JOC), que aproximava os instruídos
sacerdotes da realidade vivida pelos “pobres e oprimidos” (SALEM, 1981, p. 22-23),
em sua ampla maioria despossuídos de uma formação educacional básica.

Observa-se, assim, que as mudanças preconizadas neste Concílio não partiram


de uma tomada de posição exclusivamente da hierarquia eclesiástica, de cima para
baixo, mas sim de uma imbricação com a vanguarda leiga católica atuante em alguns
países, principalmente no Brasil, cujas práticas inovadoras de aproximação junto à
realidade dos fiéis suscitavam um remodelamento das antigas. Em outras palavras, a
observação das transformações à luz da realidade histórica que se apresentava refletia-se
nas ações empreendidas pelos grupos católicos de vanguarda, ora influenciando as
decisões da Igreja, ora sendo influenciada por ela. Tal perspectiva se alinha ao
pensamento de Michel Lowy (2000, p. 241), para quem “a combinação ou convergência
de mudanças internas e externas à igreja (...) se desenvolveu da periferia em direção ao
centro”. Na tentativa de acompanhar e de responder às transformações do mundo
moderno, o autor afirma que a Igreja Católica sofreu influências e refletiu as convulsões
sociais em desenvolvimento.

Se antes do Golpe de 1964, a Igreja no Brasil marchava ao lado da classe média


urbana, dos políticos e das elites empresariais a favor da destituição de um presidente
eleito pelas vias legais vigentes e em defesa da tomada do poder pelos militares,
realçando assim as engrenagens do regime liberal nos países capitalistas (CODATO e
OLIVEIRA, 2004, p. 273), a partir do Concílio II e, mais à frente, com a realização da
Conferência de Medellín (1968), o pensamento social da Igreja e do laicato modifica-se
irremediavelmente, passando à defesa dos direitos humanos, reivindicação das
liberdades democráticas, luta pelos direitos dos trabalhadores rurais e citadinos,

13
O Concílio Vaticano II (1962-1965) “representou para a Igreja do Brasil a oportunidade de reafirmar e
renovar a sua presença na sociedade, empreendendo um percurso de aggiornamento em diversos planos,
na teologia, nas estruturas eclesiais e nas práticas pastorais, para responder e se posicionar diante os
desafios da modernidade” (BONATO, 2009, p. 15). A palavra italiana aggiornamento pode ser traduzida,
em português, como “atualização”, e é nessa perspectiva que o autor a compreende.
56

enfrentamento contra a repressão do regime militar, além da dedicação à formação


cultural e política dos militantes engajados nas “causas sociais” defendidas pela
instituição eclesiástica. Segundo alguns estudiosos, tal formação tinha que proporcionar
uma visão crítica aos agentes das pastorais e às classes populares, cujo aprendizado
implicasse numa atuação cristã na sociedade e numa tomada de posição na esfera
política, contemplando reflexão, orientação, adaptação e ação (DELGADO e PASSOS,
2007, p. 109).

No plano das ideias, as encíclicas Mater et Magistra, de 1961 e Pacen in Terris,


de 1963, publicadas durante o papado de João XXIII (1958-1963), exerceram enorme
influência sobre a população católica brasileira, a partir das quais um grupo de bispos
organizados em torno da CNBB14 se manifestaria para tratar de temas de caráter social e
de promoção dos direitos humanos, principalmente nas áreas rurais do país, suscitando a
criação de movimentos como o MEB - Movimento de Educação de Base15, que teve
atuações marcantes por todo o país, especialmente no Nordeste.

A II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano16- CELAM, realizada


entre 26 de agosto e 06 de setembro de 1968, e a Conferência de Puebla (1979)
marcaram também uma nova etapa do catolicismo na América Latina, uma vez que as
doutrinas emanadas pelos “eventos político-religiosos” (BEOZZO, 2005, p. 147-156)
serviam como contraponto aos inúmeros acontecimentos que colocavam em xeque a
influência da Igreja na região, onde se registra com maior intensidade o avanço
sistemático de novas crenças e um exponencial crescimento de desfiliação religiosa
(MELO, 2010).

No plano teológico, a emergência da Teologia da Libertação sistematizou, em


termos teórico-doutrinários, as propostas oriundas no Vaticano II, em Medellín e em
Puebla, tendo nas figuras de Leonardo Boff e Roberto Gutierrez os principais

14
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil foi fundada em 1952 pelo, então, monsenhor Hélder
Câmara, com a aprovação da Secretaria de Estado do Vaticano. O objetivo era instituir uma coordenação
nacional para as dioceses que estavam em plena expansão (GONÇALVES, 2004, p. 50).
15
O Movimento de Educação de Base foi criado pela Igreja Católica em 1961, a partir de encontros de
bispos nordestinos. Utilizando-se do método de alfabetização do pedagogo de orientação marxista, Paulo
Freire, sua proposta estava fincada nas bases de “educar para transformar”, isto é, politizar, conscientizar
e mobilizar socialmente as comunidades alcançadas (ibid).
16
A primeira reunião do episcopado no continente ocorreu em 1959, na cidade do Rio de Janeiro. Na
ocasião, a prioridade dos debates residia nas questões internas da Igreja. Já nesta segunda conferência,
realizada em Medellín, na Colômbia, as discussões giraram em torno dos problemas enfrentados
especificamente pelos povos da América Latina (DELGADO e PASSOS, 2007, p. 113).
57

defensores de uma teologia que prega a “libertação política e religiosa” dos cristãos.
Segundo Boff (2012, p. 34-35), o sujeito histórico dessa libertação deve ser o “povo
oprimido”, a partir da tomada de consciência deste de sua “condição de oprimido”,
consequência direta do “tipo de organização elitista, de acumulação privada, enfim, da
própria estrutura econômico-social do sistema capitalista”.

Leonardo Boff (ibidem) elabora algo que poderia se chamar aqui de a construção
religiosa da dimensão do político, vez que o teólogo estabelece que a fé cristã deva ser a
responsável pelo “despertar” da consciência do povo oprimido que, ao se dar conta das
injustiças, “passa para a compreensão das estruturas reais que produzem as injustiças”.
Concluindo assim que, a partir de tal compreensão, faz-se necessário “mudá-las [as
estruturas] para que não produzam mais o pecado social”.

No entanto, os esforços intelectuais dos “teólogos da libertação” não foram


suficientes para que a Igreja colocasse em prática os compromissos assumidos. As
dificuldades financeiras e materiais, as disputas teológicas internas, a falta de
organicidade e unidade da hierarquia eclesiástica em diversos países católicos, bem
como as ingerências dos contextos histórico-sociais marcados por situações de crise que
enredaram os eventos religiosos do Concílio e das Conferências e suas reverberações,
especialmente no Brasil, obstacularizaram a operacionalização das prerrogativas pós-
conciliar e acabaram por perder ares de “prioridade” com o processo de reabertura
política e a emergência de novas “pautas” religiosas e sociais.

Diante desse cenário de crescente mobilização de sacerdotes e leigos em torno


dos novos preceitos católicos e de um certo “esvaziamento prático” dos mesmos diante
das dificuldades supracitadas, observa-se que a confluência de fatores de “crise”
condicionou uma atuação militante bastante híbrida dos agentes eclesiásticos, ao mesmo
tempo que possibilitou a diversificação das modalidades de intervenção dos
“intelectuais católicos”, destacando-se o campo de produção escrita como espaço de luta
simbólica pela imposição de representações sobre o mundo social, cuja reverberação
pôde ser identificada em diferentes domínios, particularmente nas esferas da política e
da cultura, complexificando ainda mais as relações entre Estado e Igreja no Brasil.
58

CAPÍTULO 2:

PADRES ESCRITORES EM PERSPECTIVA: propriedades sociais, recursos


culturais e múltiplos registros de inscrição

O objetivo deste capítulo é analisar o perfil social dos catorze casos elencados
através do maior número possível das variáveis disponíveis sobre os agentes católicos
que atuam como mediadores culturais, investindo na produção de bens simbólicos, e
que acionam tais recursos em diferentes momentos de suas trajetórias, a fim de
apreender seus trânsitos, vínculos, relações de reciprocidade, o peso de investimentos
mais ou menos conscientes e os tipos de capital de que dispõem (social, cultural,
político, etc.), enfim, suas amálgamas e distintas interações sociais, cujos registros de
inscrição os colocam numa posição de poder relacionalmente privilegiada no espaço
social mais amplo.

Analisa-se ainda as lógicas que engendram a produção intelectual desses


agentes, que se utilizam da ação de escrever como instrumento de entrada e de luta nos
diferentes domínios em disputa. Com isso, busca-se pontuar os gêneros de escrita aos
quais se dedicam e as temáticas que dão a tônica de seus textos, bem como investiga-se
a correlação desta produção com a composição sócio-histórica de suas carreiras
religiosas.

A operacionalização da análise se corporifica através da descrição dos perfis


sociais de sacerdotes que se dedicam à atividade da escrita em paralelo com suas
atividades eclesiais cotidianas. Com isso, passa-se à explicitação de variáveis como
origem familiar, nacionalidade, formação escolar, cargos e postos ocupados dentro e
fora da Igreja, exercício de profissões não clericais e pertencimento a instâncias de
consagração “intelectual” e a espaços de socialização relativamente privilegiados.

Em suma, o presente capítulo trata de analisar os usos da produção escrita no


que tange às posições, às disposições e às tomadas de posição que esses sacerdotes
assumem em suas interconexões com outras esferas sociais, dentro de uma lógica que,
de alguma forma, dialoga com o processo de reestruturação dos espaços de atuação
católica e de redefinição da “excelência religiosa” (SEIDL, 2009a).
59

1.1 Descrição geral dos agentes investigados

A composição dos quadros a seguir mostra algumas das variáveis tomadas como
ponto de análise e de composição do perfil social de catorze agentes católicos que
apresentam registros de atividade de escrita em suas carreiras religiosas no período
recortado (1950-1980), consubstanciados na publicação de textos em formato de livros.
Parte-se da análise da formação escolar, dos títulos, da atuação profissional, dos
trânsitos e reconhecimentos adquiridos em espaços sociais mais heterônomos, como
esferas de atuação de “letrados” (faculdades, universidades, academias de letras, jornais,
institutos de pesquisa), de participação política e de ação militante, além de dados gerais
sobre as obras (ano de publicação, gêneros de escrita, temáticas, etc.) para se estabelecer
as relações sincrônica e diacrônica entre formação escolar e modalidades de escrita e
entre posição social e produção intelectual no tocante às trajetórias dos padres
investigados, percebendo as representações que elaboram sobre o mundo social, sobre si
mesmos e sobre as “questões” que se dispõem a abordar em seus escritos.

A escolha dos catorze casos elencados justifica-se pela sua significativa e


reconhecida atuação como mediadores culturais em distintas esferas e pela consistência
das propriedades sociais levantadas sobre os sacerdotes que, em determinados
momentos de suas carreiras, se dedicaram à escrita como marco distintivo em relação
aos demais agentes, como forma de luta política dentro dos espaços onde estavam
inseridos, como “fuga da rotina” de suas atividades confessionais cotidianas (GRILL;
REIS, 2012), além da demarcação e manutenção de suas posições no espaço de poder
mais amplo. Desta forma, os casos arrolados na pesquisa são representativos das
principais características que ajudam na elaboração analítica sobre as regularidades e as
discrepâncias, aproximações e distanciamentos, que se formulam na apreensão das
propriedades e dos recursos sociais de cada agente em questão.

Pontua-se ainda que não foi possível, durante a pesquisa dos dados biográficos,
o levantamento de variáveis como escolaridade e profissão dos pais de todos os agentes,
por dois motivos principais: a) o primeiro pela escassez de dados referentes aos agentes
investigados, cuja apreensão se deu, de forma limitada, pelas informações contidas em
alguns de seus escritos (as raras vezes que os textos tratam da origem social do escritor
referem-se a um aspecto geral de “origem humilde”, porém, não em todos os casos), em
60

produções acadêmicas já publicadas ou ainda em curso, e em páginas na internet


(blogues pessoais e sites que contém informações esparsas sobre os casos pesquisados);
b) e o segundo pela difícil localização dos familiares dos padres (muitos destes já
falecidos), impossibilitando assim uma análise comparativa satisfatória sobre a sua
origem social. Desta forma, procedeu-se à análise desses condicionantes apenas nas
trajetórias dos casos específicos, uma vez que a precariedade de informações sobre os
catorze casos se tornou um impeditivo de uma análise mais geral dos dados sobre a
família, parentes, amigos próximos de cada agente.

Em contrapartida, compreende-se que as demais variáveis levantadas (idade de


ordenação, nacionalidade, escolaridade, atividade profissional e instâncias de inserção)
atendem perfeitamente à proposta de se analisar a delimitação dos tipos de engajamento
incorporados pelos agentes, o seu âmbito de atuação, os tipos de investimentos feitos, os
reconhecimentos obtidos e as posições ocupadas ao longo de seus trajetos, como forma
de se explicitar os condicionantes que presidiram escolhas e caminhos trilhados e a
relevância da atividade da escrita no desenvolvimento de suas carreiras religiosas.

Quadro 1
Algumas propriedades sociais dos 14 agentes investigados

Ano de Idade/Ano de
Padre Nacionalidade/Origem Formação superior
Nascimento Ordenação

Eider
1916 33 Brasileiro/Viana-MA Teologia, Filosofia
Furtado
(1949)
Clodomir
Teologia, Filosofia,
Brandt e 1917 26 Brasileiro/Colinas-MA
Humanidades
Silva (1943)
Cônego
Ribamar 1923 21 Brasileiro/Codó-MA Teologia, Filosofia
Carvalho (1944)

João Medicina, Teologia,


1925 35 Brasileiro/Bacabal-MA
Mohana Filosofia
(1960)
Alípio de 24 Teologia, Filosofia,
1929 Português
Freitas (1953) História
61

Hélio Brasileiro/Barra do Corda-


1930 26 Teologia, Filosofia
Maranhão MA
(1956)

Teologia,
Vito Milesi 1931 24 Italiano
Filosofia, Sociologia
(1955)

Xavier Teologia, Filosofia,


1935 27 Francês
Gilles Direito
(1962)

Cláudio
1937 29 Italiano Teologia, Filosofia
Bergamashi
(1966)
Letras, Teologia,
Victor Filosofia, Sociologia,
1938 26 Canadense
Asselin Direito, Mestrado em
(1964)
Teologia

Carlo Teologia, Filosofia,


1939 25 Italiano
Ubbiali Antropologia
(1964)
Teologia, Filosofia,
Especialização em
Jean Marie-
Educação de Jovens
Van 1947 28 Belga
e Adultos, Mestrado
Damme (1975)
em Ciências Éticas e
Religiosas

Josimo
1953 26 Brasileiro/Marabá-PA Teologia, Filosofia
Tavares
(1979)

Cláudio Teologia, Filosofia,


1953 26 Italiano
Zannoni História, Sociologia
(1979)
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.

Com foco nos dados expostos no quadro acima, cujos agentes estão ordenados
conforme o ano de nascimento, de modo crescente, tem-se a exposição das principais
características dos perfis sociais que ajudam a construir, comparativamente, um perfil
mais geral de padres que escrevem. Através de tais dados, intenta-se estabelecer uma
correlação entre o volume de recursos acumulados e a lógica operada na definição
62

objetiva dos múltiplos registros de inscrição e dos tipos de modalidades de intervenção


no mundo social.

O primeiro aspecto a ser salientado trata da idade e do ano de ordenação


sacerdotal dos agentes. São jovens que iniciaram sua vida clerical com idade variando
de 21 a 35 anos. Quanto a essa característica, 12/14 dos casos pesquisados foram
ordenados padres com menos de 30 anos, com média de idade de 25 anos. O mais
jovem desses casos, com idade de entrada na esfera eclesiástica com apenas 21 anos, diz
respeito ao cônego Ribamar Carvalho, cuja atuação se concentrou em atividades tidas
como de “intelectuais”, principalmente as de escritor e professor universitário. Já o mais
velho dos sacerdotes ordenados foi João Mohana, que se tornou padre aos 35 anos.

É interessante observar que a “entrada oficial” de Mohana no mundo da Igreja


de modo “tardio” em relação aos demais agentes investigados suscita o acúmulo de
outras experiências vividas por ele, inclusive de formação profissional e de
pertencimento a círculos sociais fora do âmbito religioso, como foi o seu caso, que se
formou e atuou como médico e foi premiado a nível nacional por sua produção literária
antes de se tornar padre, cujos conhecimentos e reconhecimentos foram acionados no
transcorrer de sua carreira religiosa, levando-o à ocupação de posições relativamente
bem alocadas no espaço religioso maranhense dentro de um campo de poder mais
amplo, o que justifica um exame específico e detalhado de sua trajetória, como veremos
mais adiante, no terceiro capítulo.

Em relação ao ano de ordenação dos 14 casos analisados, tem-se variação entre


as décadas de 1940 a 1970, com concentração nos anos de 1960 (5/14). Vivia-se neste
período as ingerências do regime militar brasileiro e os auspícios das prerrogativas
emanadas do Concílio Vaticano II (SERBIN, 2002), condicionantes que, dentre outras
coisas, influíram sobremaneira no engajamento militante de padres num contexto
periférico como o Maranhão (MELO, 2010; NERIS, 2011; PEREIRA, 2011), uma vez
que os padres recém-saídos dos seminários formavam uma espécie de plantel
eclesiástico à disposição dos líderes da Igreja Católica, que os direcionavam para os
locais onde a “necessidade” por sacerdotes era mais acentuada (MELO, 2010, p. 54).

Além disso, registra-se uma constante proporcional na ordenação de padres nas


décadas de 1940, 1950 e 1970 (3 em cada período apontado). Destes, dois casos são
sintomáticos: os padres ordenados com mais de 30 anos, Eider Furtado e João Mohana,
63

com 33 e 35 anos, respectivamente, apresentam uma bipolarização em seus trajetos no


que concerne à atividade militante do sacerdote engajado e à publicação de escritos.

Padre Eider registra forte atuação militante na CEB de Viana, em meados da


década de 60, através de “lutas” pela conquista de direitos e “justiça social”, exemplos
do variado repertório ofertado pelo catolicismo vigente (MAINWARING, 2004;
BEOZZO, 2005). No entanto, sua produção intelectual restringiu-se muito mais à
escrita de artigos em jornais, registros estes não contemplados neste trabalho pelas
dificuldades de localização e de acesso aos mesmos. Ainda assim, foi possível a
catalogação de um de seus muitos textos, publicado como capítulo em um livro escrito
conjuntamente com outros padres, no qual padre Eider elabora uma análise sobre O
Evangelho segundo Viana.

Já o sacerdote João Mohana, que apresenta intensa atividade no polo intelectual


do catolicismo maranhense, exemplificada em sua vasta publicação de livros (mais de
quarenta obras escritas), não possui o mesmo vigor in loco na luta pelas “causas
sociais”. Apesar de ter presidido a Ação Católica no Maranhão, principal movimento de
aggiornamento da instituição eclesiástica em âmbito local, Mohana dedica grande parte
de sua força vital ao trabalho de formação de líderes e à escrita de livros dos mais
variados gêneros, sempre “em nome da Igreja”, atuando muito mais como um tipo de
“intelectual católico” que idealiza e formata ações pastorais e produz representações
sobre a importância da religião na vida dos fiéis.

No que concerne à nacionalidade dos agentes, tem-se 6/14 nascidos no Brasil e


8/14 com nascimento em território estrangeiro. Dos brasileiros, contam-se 5
maranhenses e 1 paraense. A concentração dos nascidos no Maranhão dá-se
caracteristicamente no interior do estado (Bacabal, Colinas, Barra do Corda, Viana e
Codó). Quanto aos estrangeiros, contam-se 4/8 italianos e 4/8 de distintas
nacionalidades (1 canadense, 1 francês, 1 português, 1 belga).

A presença e atuação de padres estrangeiros no Maranhão no período estudado,


tanto no engajamento militante em “causas sociais” quanto na dedicação à produção de
representações católicas sobre o mundo social, sinaliza para um processo mais amplo de
importação de sacerdotes sob a regência do Vaticano para países periféricos, onde a
escassez de padres é mais sintomática. Números divulgados em pesquisa realizada
64

anteriormente, assim foram apresentados aos católicos maranhenses no final da década


de 1960:

dados sociológicos de 1955 revelam que a Igreja do Maranhão dispunha de 130


sacerdotes de ambos os cleros [regular e secular]: 67 eram brasileiros e 63 estrangeiros.
Hoje, em 1968, há no Maranhão 212 sacerdotes seculares e religiosos, sendo 58
brasileiros e 154 estrangeiros (“JORNAL DO MARANHÃO”, apud MELO, 2010, p.
44).

Os dados acima evidenciam que a participação de padres estrangeiros na vida


cultural do estado, particularmente na produção de livros, não está dissociada de um
movimento macro de imigração de sacerdotes de diversas nacionalidades para o
Maranhão, o que lhes confere outro aspecto distintivo em relação aos demais padres de
origem “local”. O fato de dos 14 casos investigados, 8 ocuparem posições de destaque
no cenário de produção escrita no estado revela, entre outros fatores, o peso relativo que
as relações “centro/periferia” conferem aos agentes “vindos de fora”.

Há que se levar em consideração também o fato de muitos destes agentes


pertencerem a círculos sociais relativamente privilegiados e terem estabelecido relações
de poder (mais ou menos estáveis) que lhes permitiram a produção e a publicação de
livros em âmbito regional, constituindo-se assim em “intérpretes” da história, da
“cultura”, da “política” (SEIDL, 2007) e da “sociedade” maranhense. Certamente, um
estudo mais aprofundado sobre a presença e atuação de padres estrangeiros no
Maranhão se constitui num frutífero campo para pesquisas futuras.

Em relação ao caso do padre nascido no Pará, trata-se de Josimo Moraes


Tavares, um dos principais nomes na esfera de atuação militante da Igreja Católica no
estado, coordenador da Comissão Pastoral da Terra e presença marcante em questões de
conflitos de terras no interior do Maranhão, particularmente na cidade de Imperatriz,
cuja intervenção nas esferas social e política estava indissociável de seu ofício de
sacerdote, suscitando um “engajamento total” (MATONTI; POUPEAU, 2006). Por
conta de sua expressiva atividade de luta em defesa dos direitos dos trabalhadores
rurais, foi morto por pistoleiros da região e transformado pela Igreja em símbolo de
“resistência” contra os latifundiários e exemplo de “sacrifício pessoal” em nome dos
trabalhadores do campo, cuja imagem está estampada na sala de visitas da sede da CPT
em São Luís. Pouco tempo antes de sua morte, sob o calor das ameaças sofridas em
65

detrimento de suas ações, redigiu seu “testamento espiritual”, onde assevera suas
convicções política e religiosa:

Tenho que assumir. Agora estou empenhado na luta pela causa dos pobres lavradores
indefesos, povo oprimido nas garras dos latifúndios. Se eu me calar, quem os
defenderá? Quem lutará a seu favor? [...] Eu pelo menos nada tenho a perder. Não tenho
mulher, filhos e nem riqueza sequer... Só tenho pena de uma coisa: de minha mãe, que
só tem a mim, e não mais ninguém por ela. Pobre. Viúva. Mas vocês ficam aí e cuidarão
dela. Nem o medo me detém. É hora de assumir. Morro por uma justa causa. Agora
quero que vocês entendam o seguinte: tudo isto que está acontecendo é uma
consequência lógica resultante do meu trabalho, na luta e defesa dos pobres, em prol do
Evangelho que me levou a assumir até as últimas consequências. A minha vida nada
vale em vista da morte de tantos pais lavradores assassinados, violentados, despejados
de suas terras. Deixando mulheres e filhos abandonados, sem carinho, sem pão e sem
lar. (TAVARES, apud COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, 1986, p. 17-18. Grifo
nosso).

O “testamento espiritual” de padre Josimo Tavares é um importante registro


sobre o grau de “sacrifício” a que determinados padres da Igreja Católica no Maranhão
se submetiam “em prol de um Evangelho” que os conduziram “a assumir até as últimas
consequências”, chegando ao ponto de não se temer as frequentes ameaças de morte
feitas por latifundiários e grileiros de terras em função de uma “justa causa”. Observa-se
que a lógica que perpassa toda a construção do discurso “heroico” e “glorificador” de
padre Josimo está assentada no seu “trabalho” enquanto evangelizador, qual seja a “luta
e defesa dos pobres”. O martírio de Josimo, pois, é a constatação nítida de que a
incorporação dos pressupostos conciliares do Vaticano II despertaram nele e em outros
agentes da Igreja, como o caso dos padres Xavier Gilles e Antonio Monteiro (MELO,
2010, p. 76), uma espécie de conscientização sobre uma inequívoca indistinção entre a
ação de evangelizar e o de colocar o evangelho em ação.

Retomando a descrição dos casos destacados, no que se refere ao nível de


instrução superior, além dos estudos obrigatórios para o exercício do ofício de sacerdote
(Filosofia e Teologia), 9/14 apresentam formação escolar diversificada. Deste montante,
a predominância é do bacharelado em Sociologia (3), seguido pelos cursos de História
(2) e Direito (2), além de Medicina (1), Letras (1), Antropologia (1) e “Humanidades”
(1), curso assim mencionado nas fontes consultadas sobre a formação do padre
Clodomir Brandt. Dos 9 casos de escolarização híbrida, 2 registram acúmulo de
formação em Sociologia e Direito concomitantemente, o que explica a correspondência
numérica entre a quantidade de agentes com múltipla formação superior (9) e o
quantitativo de cursos preponderantes (5).
66

Nos testes realizados para se verificar se havia ou não correspondência entre as


variáveis apresentadas, é possível observar algumas regularidades entre nacionalidade e
diversificação da instrução superior. Dos 9 casos que apresentam formação além de
Teologia e Filosofia, 2 são brasileiros e 7 estrangeiros. Mais uma vez, os padres
estrangeiros apresentam atributos que lhes conferem maiores distinções em relação aos
sacerdotes de origem local o que, de certa forma, sinaliza para o entendimento das
posições ocupadas e das tomadas de posição assumidas por estes agentes ao longo de
seus trajetos específicos, conforme já dito anteriormente.

Os padres de nacionalidade brasileira são os maranhenses João Mohana


(bacharel em Medicina) e Clodomir Brandt (licenciado em “Humanidades”, curso
apresentado pelas fontes consultadas como uma interdisciplinaridade entre História,
Geografia e Letras). Tal distinção em relação aos demais brasileiros, que não
apresentam uma formação superior além da tradicional, vem reforçar a especificidade
dessas duas trajetórias como representativas do universo pesquisado, haja vista que a
heterogeneidade de uma instrução superior habilita e legitima os agentes a uma
diversificação das atividades exercidas, para além de seu ofício de sacerdote e, muitas
vezes, exógenas ao próprio âmbito religioso.

Isso não justifica, contudo, a ausência de algum estrangeiro na escolha dos casos
específicos. Nesse aspecto, a inclusão de padres de diferentes nacionalidades implicaria
a observação de outras dimensões de análise, por ora não contempladas no presente
estudo, principalmente no que se refere à importação de “ideias vindas de fora” e à
circulação internacional dos agentes, como no trabalho desenvolvido por Seidl (2007b).

Ainda assim, no caso dos padres estrangeiros (7) que se encaixam nesta
formação escolar híbrida, 3 são italianos, 1 canadense, 1 francês, 1 português e 1 belga.
Deste montante, predomina a formação em Sociologia (3), seguida pelo Direito (2),
História (2) e Letras (1). A predominância de tais cursos é reveladora das definições do
processo de aquisição de disposições em torno das modalidades de engajamento dos
padres estrangeiros com formação multifacetada. Não por acaso, os agentes que
apresentam em seus registros biográficos participação em espaços de atuação mais
próximos de um perfil militante, como veremos mais adiante, possuem predominância
de formação na área das ciências sociais e do Direito.
67

Pode-se depreender disso a tessitura de uma configuração na qual não é rara a


utilização de determinados saberes por parte dos agentes, adquiridos de um modo geral
em espaços de formação superior, na formulação de estratégias, práticas e intervenções
sobre as dinâmicas do mundo social, sendo possível correlacionar o uso desses
conhecimentos com o acionamento de certas modalidades de engajamento (REIS, 2008;
SAPIRO, 2012), que em seu conjunto condicionam as ações dos sacerdotes nas
diferentes esferas das quais participam e que são, também por isso, valorizadas como
pré-requisitos para a definição e ocupação de posições relativamente bem alocadas no
espaço de poder mais amplo.

Nesse sentido, os dados sobre a formação escolar dos casos elencados oferecem
pistas significativas sobre o tipo de perfil de agentes que se dedicam em algum
momento à atividade de escrita, indissociavelmente conectados às posições que ocupam
e às causas que defendem. São estes casos que, mais à frente, participam da organização
de atividades concernentes ao âmbito de ação de instituições vinculadas à Igreja, onde a
defesa de “causas sociais” se constitui em pauta legítima de reivindicação no repertório
de mobilização tanto dos sacerdotes e leigos quanto da própria Igreja.

Quadro 2
Dados sobre a atuação profissional e a participação em distintos espaços de
socialização e de intervenção dos 14 casos investigados

Atuação profissional, funções Pertencimento a instâncias de Participação em outros


e atividades consagração intelectual espaços de socialização
Fundador e presidente da
Médico, poeta, teatrólogo, Juventude Universitária
Membro da AML (1970),
romancista, ensaísta, professor, Autêntica Cristã (JUAC);
Cadeira Nº 03
pesquisador Presidente Arquidiocesano da
Ação Católica no Maranhão
Candidato à prefeitura de Arari
Educador, teatrólogo, (1959); vereador por três
Editor dos jornais “Notícias” e
romancista, ensaísta, mandatos (PSD); fundador de
“A Cruzada Maranhense”
pesquisador, jornalista, político escolas, teatros, jornais, postos
de saúde
Professor do Seminário de Santo Fundador e organizador da CEB
Professor, poeta, ensaísta
Antônio; Sócio-titular da de Tutoia (1965); fundador de
68

Academia Barracordense de escolas, organizações sociais,


Letras (1997); Membro da AML, movimentos rurais e entidades
Cadeira Nº 21 (1998); Presidente religiosas; Assistente eclesial da
da Academia de Ciências, Artes Juventude Universitária Católica
e Letras de Tutoia (2002), (JUC); primeiro Presidente do
Cadeira Nº 01 Instituto de Colonização e Terras
do Maranhão – Iterma (1982);
Capitão da Capelania Militar do
Maranhão desde 1993
Professor de Filosofia e
Sociologia nos cursos de Direito,
Pedagogia e Ciências Contábeis
Professor, romancista da UFMA (1983-1994); __________
fundador e Presidente da
Academia Imperatrizense de
Letras (1991-1999)
Coordenador Estadual das CEBs
no Maranhão (1973-1975);
Fundador da CPT Nacional
(1975); fundador e primeiro
Presidente da CPT-MA (1976-
1980); Diretor da Cáritas-MA
(1980); Chefe de Gabinete na
Professor no Seminário de Santo
Professor, advogado Prefeitura de Balsas (1995-
Antônio
2000); consultor da Secretaria de
Segurança do Governo Jackson
Lago (2006-2009); formação de
lideranças da Juventude Operária
Católica (JOC); advogado nas
esferas do Direito Agrário e do
Direito Penal
Assistente eclesial da JOC;
Reitor do Seminário de Santo Coordenador Estadual da CPT e
Militar, professor, advogado Antônio (1989-1994), além de das CEBs do Maranhão (1980-
professor da mesma instituição 1982); advogado na esfera do
Direito do Trabalho
Professor da Faculdade de Escreveu para “Jornal do Povo”
Filosofia do Maranhão; e “Jornal do Maranhão”, além de
Professor, jornalista
Professor de História e Filosofia ter sido editor do jornal das
da Universidade do Maranhão Ligas Camponesas, “A Liga”;
69

(hoje UFMA) militante da Ação Operária


Católica e da JOC; Membro do
Secretariado Nacional das Ligas
Camponesas
Membro da Academia Vianense Organizador e militante da CEB
Educador popular
de Letras, Cadeira Nº 02 de Viana
Coordenador Estadual da CPT-
__________ __________
MA (1982)
Fundador da CPT-MA (1976);
Fundador e primeiro
Fundador da Escola de
Coordenador do Conselho
Professor, pesquisador Antropologia Aplicada à
Indigenista Missionário (CIMI)
distância em São Luís-MA
do Maranhão; Vice-Presidente
Nacional do CIMI
Assessor teológico e educacional
da CPT-MA;
organizador da CEB do bairro do
Professor de Filosofia, História e
Professor, pesquisador, Anjo da Guarda, em São Luís
Sociologia do Seminário de
educador popular (1975); Educador popular da
Santo Antônio
Associação da Saúde da Periferia
(ASP); Membro do Conselho de
Assistência Social do Maranhão
Professor do Departamento de Coordenador Regional do CIMI-
Professor, pesquisador
História da UFMA MA (1985-1993)
Diretor da Faculdade de
Filosofia do Maranhão (1957);
Secretário de Educação do
Membro da AML (1959),
Professor, jornalista, poeta, Governo Newton Bello;
Cadeira Nº 19; Vice-Reitor
romancista Assistente eclesial da JIC, JOC e
(1962-1966) e Reitor da
JUC
Universidade do Maranhão
(1963-1967 e 1968-1972)
Coordenador da CPT-GO
__________ __________ (1979); militante nas questões de
conflitos de terras no Maranhão
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.

Sobre os registros profissionais desempenhados pelos agentes ao longo de seus


itinerários, pontua-se uma profusão de profissões, funções e atividades que mantêm
estreita relação com o universo de sua instrução superior, assim como a participação em
outros espaços de socialização e de intervenção. Dessa forma, observa-se uma
70

miscelânea de atividades exercidas por clérigos católicos que extrapolam o ambiente


confessional, concernentes ao âmbito de atuação de médicos, advogados, jornalistas,
professores, pesquisadores e “literatos”.

Dos 14 casos investigados, 12 registram atuação como professores e/ou


educadores de escolas, seminários, institutos de pesquisa, faculdades e universidades.
Desta soma específica, 3/12 apresentam registros como educadores, sendo dois atuantes
nas Comunidades Eclesiais de Base de suas respectivas regiões, identificados como
“educadores populares”, e um com participação marcante em escolas das séries iniciais
do ensino fundamental no interior do estado. O caso em questão trata-se da cidade de
Arari, onde se registra a significativa atuação do padre Clodomir Brandt como fundador
de escolas e de entidades religiosas, a exemplo da Escola Arariense e do Instituto Nossa
Senhora das Graças, instituições estas que contribuíram para a formação escolar de
muitas gerações de ararienses.

Do montante dos casos que atuaram como professores de formação superior


(9/12), observa-se uma certa equivalência entre os que lecionaram no âmbito de
formação seminarística e os que atuaram em faculdades e na universidade. 4/9 se
dedicaram ao magistério no Seminário de Santo Antônio17, principal local de formação
de padres do Maranhão, com sede na capital São Luís, enquanto que 5/9 exerceram a
função de professores universitários e/ou de institutos de pesquisa. Nota-se que a
incidência de agentes que transitam no espaço de ensino superior é bastante
significativa, o que oferece pistas sobre os tipos de produção escrita aos quais se
dedicaram, tais como artigos (de cunho religioso ou não) e pesquisas científicas
publicadas em livros, o que se observará mais adiante.

Dos que atuaram nessa esfera de produção de conhecimento, 3 alcançaram o


ápice da hierarquia administrativa das instituições de ensino superior onde lecionaram,
sendo um fundador da Escola de Antropologia Aplicada à Distância em São Luís, um
reitor do Seminário de Santo Antônio, entre os anos de 1989 e 1994, e um diretor da
Faculdade de Filosofia do Maranhão, em 1957. Caso do cônego Ribamar Carvalho, o

17
O Seminário diocesano de Santo Antônio foi fundado em 1838, durante o bispado de D. Marcos
Antonio de Sousa (1827-1842). O Seminário tinha por função iniciar os futuros padres recrutados junto às
elites maranhenses nos estudos da fé e da doutrina cristã, ofertando-lhes uma formação educacional
religiosa, moral e literária (SILVA, 2012, p. 155). Com o tempo, tornou-se o único Seminário no
Maranhão dedicado exclusivamente à formação do sacerdócio (PACHECO, 1969).
71

mesmo que, alguns anos depois, assumiria a reitoria da Universidade Federal do


Maranhão por dois mandatos consecutivos (1963-1967 e 1968-1972).

O comando de instituições de ensino superior no Maranhão sob a batuta de


agentes católicos evidencia a tentativa da Igreja de controlar e manter sua influência
sobre a produção cultural e a formação educacional no país como um todo. Isso se
coaduna com o predomínio exercido historicamente pela instituição eclesiástica no
Brasil, particularmente nestas duas esferas, cultura e educação, quando os estudos
iniciais e secundários eram promovidos e geridos pela Igreja e as interpretações sobre a
história do país eram produzidas por padres (MICELI, 1979; PACHECO, 1969).

No Maranhão, isso não foi diferente. Mesmo após a laicização promovida pelo
advento da República, a Igreja continuou disputando o controle ideológico do ensino
junto ao Estado. A partir da década de 1930, as disputas se arrefecem quando são
criadas, em âmbito local, a Juventude Universitária Católica e a Ação Universitária
Católica, que a nível nacional estavam direcionadas para o recrutamento das futuras
elites representadas pelos universitários (RIDENTI, 2002). A nível regional, este
processo acabou desembocando na fundação da Universidade Federal do Maranhão,
onde se registrou a participação efetiva de membros da hierarquia eclesiástica que
comandavam a Arquidiocese de São Luís e dos “literatos” que integravam a Academia
Maranhense de Letras (FARIA; MONTENEGRO, 2005, p. 18-19).

Concomitante a isso, a expansão da influência da Igreja sobre o ensino


universitário se corporifica na inserção de sacerdotes nas demais instituições de
“letrados” no Maranhão, ao passo que sinaliza para o desenvolvimento de um corpo de
“intelectuais e lideranças católicos” constituídos para pautar e animar os debates em
defesa dos pressupostos do catolicismo na esfera pública brasileira (MAINWARING,
2004; DELGADO; PASSOS, 2003). Tais ações evocam um esforço da Igreja em ocupar
posições estratégicas em áreas tidas como fundamentais para a manutenção de seu poder
simbólico junto à sociedade, como a produção cultural e o sistema de ensino (primário,
secundário e superior), num processo chamado por Sérgio Miceli (1979, p. 51) de
“enquadramento institucional dos intelectuais”.

Outra atividade desempenhada pelos agentes em foco é a de “pesquisador”,


função descrita pelas fontes consultadas, onde a maioria dos casos era dedicada ao
âmbito de produção de conhecimento científico/acadêmico, sob o custeio financeiro das
72

próprias instituições às quais pertenciam. 5/14 casos investigados desenvolveram, em


algum momento de seus itinerários, o trabalho de “pesquisador” como segundo ofício.
Depois da função de professor, na maior parte dos casos correlata à de produtor de
conhecimento, esta é a atividade mais recorrente entre os clérigos analisados.

Destaca-se ainda a atuação de poetas (3), ensaístas (3), romancistas (3) e


teatrólogos (2), o que implica numa observação de forte atuação de padres no cenário
cultural do estado, como produtores e/ou “intérpretes” da história e da cultura (SEIDL,
2007b). Pertencer às instâncias de reconhecimento acadêmico era uma forma de dar
legitimidade e musculatura social às representações produzidas pelos agentes da Igreja
sobre a política, a cultura, a história e a sociedade maranhense.

Cabe destacar ainda que outras profissões que apresentam alguma recorrência
entre os casos arrolados são a de jornalista (3/14) e a de advogado (2/14). Há uma ampla
gama de textos produzidos por aqueles que atuam no âmbito do jornalismo maranhense,
publicados em diversos jornais de significativa circulação no estado, aspecto não
contemplado no presente estudo devido às dificuldades de sua localização, porém
passível de ser salientado para a mobilização de investimentos em pesquisas futuras. Já
no caso dos dois padres advogados, suas atuações profissionais estão diretamente
ligadas às instâncias onde registram presença frequente, particularmente na Comissão
Pastoral da Terra, entidade vinculada à Igreja Católica no Maranhão, atuando no âmbito
do Direito do Trabalho, do Direito Agrário e do Direito Penal.

Pontualmente, aparecem registros de padres que atuaram como médico (1),


militar (1), militante de CEBs e causas sociais (2) e, eventualmente, participando da
esfera político-partidária, o que evidencia a hibridização de suas atividades sacerdotais,
imiscuídas com funções e formações “mundanas” que compõem a heterogeneidade de
seu ofício religioso.

No caso do ofício de médico, este foi exercido anteriormente ao ingresso no


sacerdócio por João Mohana, que clinicou e participou de diversos movimentos e
campanhas de saúde em São Luís. O caso do registro de militar trata-se de Xavier
Gilles, que combateu pelo exército francês na Guerra de Independência da Argélia
(1956). A atuação de “padre político” fora identificada no itinerário de Clodomir Brandt
e Silva, que liderou um grupo de oposição aos defensores de Vitorino Freire no
município de Arari. Chegou a apoiar uma candidatura que venceu as eleições na cidade
73

e a se candidatar, por duas vezes, para a disputa pelo cargo de Prefeito de Arari, tendo
sido derrotado em ambas.

No tocante aos clérigos que tiveram suas funções identificadas apenas no âmbito
confessional, destaca-se o registro de sua participação como “militantes” em
associações de moradores e comunidades eclesiais de base, e que fizeram de seu ofício
sacerdotal o sentido maior de suas vidas. Sua experiência profissional, no entanto, é
registrada apenas no âmbito das instituições engajadas da Igreja, com destaque para a
CPT18. Os dois casos foram coordenadores da instituição em Goiás (1979) e no
Maranhão (1982). São eles, respectivamente, os padres Josimo Tavares e Cláudio
Bergamashi. Observa-se ainda que nenhum dos dois possui registro de inscrição em
instâncias de consagração intelectual, nem universitária e nem de “letrados”, o que não
impede que sejam percebidos e se percebam como tal.

De um modo geral, tais registros indicam que a propensão dos agentes em se


dedicar ao exercício de escrever está indissociavelmente ligada às atividades que
exerceram ao longo de suas carreiras, haja vista que todas elas engendram a escrita
como ferramenta indispensável e presente em suas rotinas de trabalho. Em outras
palavras, o fato de padres escreverem livros provém da aquisição dessa competência
legatária de suas experiências cotidianas com a escrita.

Outra característica interessante a ser ressaltada é a de pertencimento ou de


inscrição dos agentes investigados em outras instâncias de consagração intelectual, além
do âmbito universitário, especialmente como integrantes da Academia Maranhense de
Letras (AML). Dos casos analisados, 5/14 se enquadram nesse tipo de reconhecimento
intelectual, constando como membros efetivos e/ou “pais fundadores” de academias de
letras espalhadas pelo Maranhão. Destes 5 casos, 3 são membros da AML, com sede em
São Luís, e os outros 2, pertencentes a instâncias de letrados no interior do estado,
sendo 1 da Academia Vianense, onde ocupa a Cadeira Nº 02, e 1 da Academia
Imperatrizense, onde consta como fundador e primeiro presidente.

18
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi instituída no Maranhão em 1975 como parte de “um intenso
programa de ação social junto às populações rurais”, iniciado por D. José de Medeiros Delgado, então
Arcebispo de São Luís. Dentre os principais objetivos da CPT no Maranhão, destaca-se a tentativa da
Igreja de fazer frente ao crescimento dos conflitos no campo, promovendo assim a organização dos
trabalhadores rurais na condução de suas lutas pela conquista de direitos sociais (ALMEIDA, 1981;
COSTA, 1994).
74

Observa-se ainda um caso específico de um sacerdote que acumula esse tipo de


reconhecimento em duas instâncias de consagração. É o caso do padre Hélio Maranhão,
membro da AML, onde ocupa a Cadeira Nº 21, e também membro da Academia de
Ciências, Artes e Letras de Tutóia, tendo sido seu primeiro presidente e ocupante da
Cadeira Nº 01. Hélio Maranhão é autor de 15 livros, dos quais obteve diversos prêmios.
Foi perseguido, preso e interrogado inúmeras vezes durante o período do regime militar
no estado. Atualmente, exerce a função honorífica de Capitão da Capitania Militar do
Maranhão, honraria concedida em 1993, durante o Governo de Edison Lobão.

Até aqui, verificou-se a existência de uma grande pluralidade de profissões,


funções e atividades desempenhadas por padres que vão além da mera celebração
eucarística e da realização de confissões. Tais esforços se concentram basicamente nas
esferas da política e da cultura, com forte incidência nas áreas da educação e das “lutas
populares”, com abertura para atuações na esfera burocrático-administrativa de órgãos
públicos e de instituições privadas, de perfil caritativo, assistencialista ou mesmo de
difusor e promotor de direitos humanos e de justiça social.

Contudo, cabe ainda pontuar os trânsitos realizados pelos agentes em outros


espaços de socialização, cujas relações propiciaram a aquisição de disposições e de
saberes práticos reconvertidos para uma esfera de atuação militante e de disputas
políticas pela conquista e/ou manutenção de posições dentro de um espaço de poder
mais amplo. Alguns desses espaços são marcados pela presença de organizações e
instituições vinculadas à Igreja, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), a regional da Cáritas no Maranhão, a Associação de
Saúde da Periferia (ASP), dentre outros, além dos movimentos promovidos, gestados e
geridos por membros da hierarquia eclesiástica, como a Ação Católica no estado, e os
movimentos da juventude, com suas ramificações em diversos domínios, especialmente
no mundo agrário (JAC), no âmbito do operariado (JOC) e na esfera universitária
(JUC)19.

19
O surgimento da JAC, JEC, JIC, JOC e JUC é um esforço da Ação Católica Brasileira em promover a
renovação das práticas pastorais na Igreja, com foco especial nos movimentos de juventude, numa
tentativa de cooptar futuros quadros e líderes católicos junto a setores específicos da sociedade. Conforme
assinala Salem (1981, p. 22), “o primeiro grupo ‘especializado’ que se constitui é a Juventude Operária
Católica (JOC). Em 1950, funda-se a JAC (Juventude Agrária), a JEC (Juventude Estudantil, composta
por estudantes secundaristas), JUC (Juventude Universitária) e JIC (Juventude Independente), agrupando
os que não se encaixavam nas outras categorias”.
75

Sobre esse aspecto, observa-se a presença de padres (6/14) atuando como


assessores e formadores de lideranças da juventude católica em suas distintas
ramificações, particularmente na JIC (1), na JOC (3) e na JUC (3), sendo um deles com
acúmulo de experiências nas três esferas, o cônego Ribamar Carvalho. No que se refere
especificamente ao âmbito de atuação da JUC, os 3 casos identificados exercem funções
de assistentes e de formadores de lideranças. São eles Hélio Maranhão, João Mohana e
Ribamar Carvalho. Estes 3 casos são representativos do tipo de intervenção política
realizada pelos “intelectuais católicos” no Maranhão, muito mais próximos do centro de
poder e da alta hierarquia da Igreja.

Como é sabido, os membros da JUC estavam diretamente ligados a inúmeras


ações políticas no estado no período abordado, principalmente no que tange ao
engajamento político em sindicatos e associações, à organização de movimentos,
passeatas, protestos, apoio a greves, reivindicação por políticas públicas, dentre outros,
tais como o Movimento Contra a Carestia, que nasceu na seara das atividades
desenvolvidas pelas CEBs (BORGES, 1998, p. 80-81). O perfil dos 3 agentes que
trabalhavam com formação de líderes católicos no âmbito da juventude universitária
corresponde aos tipos de investimentos (mais ou menos conscientes) realizados em sua
formação escolar e ao prestígio social obtido por seu reconhecimento “intelectual”. Ao
estabelecerem-se como mediadores das relações políticas entre o público acadêmico e
os órgãos de Estado acabam por garantir a manutenção de suas posições de poder
perante seus representados.

Tal perspectiva apresenta-se como passível de ser direcionada também para o


âmbito da juventude operária. 4/14 dos casos atuaram como assistentes e formadores de
lideranças na JOC. Além do maranhense Ribamar Carvalho, compõem o quarteto o
canadense Victor Asselin, o francês Xavier Gilles e o português Alípio de Freitas. Os
dois primeiros tiveram atuação mais incisiva no aspecto pedagógico e educacional dos
membros da JOC, enquanto os demais apresentam registros de funções desempenhadas
como assistentes, caracterizando suas posições num plano mais periférico em relação à
estrutura hierárquica da Igreja. Destes dois últimos, Alípio de Freitas chegou ainda a ser
integrante do Secretariado Nacional das Ligas Camponesas, órgão de atuação
eclesiástica tido como pertencente ao polo mais “radical” da Igreja brasileira durante o
regime militar.
76

Além destes casos específicos, 5/14 apresentam registros de atuação na


organização e execução das atividades das CEBs, tanto na capital (03) quanto no
interior (02), ocupando posições de “lideranças” e de “porta-vozes” no seio das
comunidades onde atuam. No que se refere ao trânsito em instituições de perfil engajado
(ver coluna 3 do quadro 2), observa-se o registro de 7/14 dos casos investigados que
atuaram como fundadores e/ou coordenadores estaduais da CPT (06) e do CIMI (01) no
estado, exercendo ainda outras funções no interior das mesmas instâncias como
advogados, jornalistas, assessores teológicos e educacionais. Pontua-se ainda a
passagem de sacerdotes pelo âmbito administrativo de outras instituições correlatas
quanto ao perfil de “porta-vozes de causas legítimas”, como diretor da Cáritas (01),
assistente da Associação da Saúde da Periferia – ASP (01) e presidente do Instituto de
Colonização de Terras no Maranhão – Iterma (01).

No tocante à participação na esfera das instituições políticas e de postos


administrativos de governo, 5/14 registram ocupação de cargos e funções em órgãos
distintos, sendo 1 Secretário de Governo de Newton Bello, 1 Chefe de Gabinete na
Prefeitura de Balsas-MA (1995-2000) e também consultor da Secretaria de Segurança
do Governo Jackson Lago (2007-2009), 1 presidente do Iterma (1982), e 1 membro do
Conselho de Assistência Social do Maranhão e assistente da ASP. Tais registros
evidenciam a tendência da heteronomia da carreira de religiosos católicos no estado, o
que aponta também para a fluidez, cada vez maior, das invisíveis fronteiras e da forte
imbricação entre os distintos domínios da religião, da cultura e da política.

Convém ressaltar que as relações de sociabilidade tecidas nestes espaços


ofertaram as condições propícias para a produção e publicação de livros por sacerdotes,
uma vez que, como veremos mais à frente, o teor dos escritos produzidos por estes
agentes correspondem, em certa medida, ao acúmulo das experiências vividas e das
posições exercidas ao longo de seus itinerários, com poucas brechas para a
inventividade do escritor.
77

1.2. Gêneros de escrita e recursos culturais

Não se pode negar que o ato de escrever implica numa distinção do autor em
relação aos demais indivíduos, pois ainda ocupa uma “posição de excelência” dentro
das sociedades de letrados. Seja como for, quem escreve não apenas registra seu nome e
suas ações na história, mas também demarca sua posição de poder perante os demais
agentes. De um modo geral, aqueles que atuam como mediadores culturais
consubstanciam suas posições, disposições e posicionamentos na publicação de textos,
especialmente de livros, legitimando assim a manutenção do próprio papel social que
assumem em diferentes momentos e domínios.

Com foco nesta perspectiva, passa-se à identificação dos gêneros de escrita aos
quais os agentes dedicaram-se com maior incidência, numa tentativa de correlacioná-los
às posições que ocuparam ao longo de seus trajetos de vida. O objetivo é demonstrar
que o grau de concentração dos escritos e das temáticas abordadas está
irremediavelmente conectado aos recursos acumulados (saberes, habilidades,
conhecimento) e às experiências vividas (cargos, atividades, funções, profissões).

Concatenada com o perfil social dos agentes, com a formação adquirida e as


posições assumidas, a atividade da escrita enseja a aquisição de certas competências e
habilidades que se expressam variavelmente conforme os gêneros se apresentam com
maior incidência. Nesse sentido, dos dados levantados sobre a produção intelectual dos
14 casos investigados, verificaram-se algumas frequências de determinadas temáticas e
tipos de escrita, tais como trabalhos de ordem técnica, que ensejam saberes específicos,
particularmente na esfera acadêmico/científica; de cunho religioso, voltado para a
doutrina e a disseminação do evangelho; escritos de militância, destinados à
mobilização social e intervenção nos diferentes domínios; textos ideológicos, de caráter
mais contemplativo e filosófico, que expressam “projetos” de sociedade, visões de
mundo, concepções, noções e ideologias; produções literárias (romances, peças de
teatro, contos, crônicas e poesias); memórias e autobiografias; e até mesmo textos
manualísticos, de caráter psicológico, com vistas à orientação da sexualidade e do
comportamento de jovens e adultos.
78

Em face a tais descrições, talhadas com fulcro numa primeira leitura sobre os
dados e registros das publicações mapeadas, procedeu-se à confecção do Quadro 3
baseado nos tipos de escritos que aparecem com maior recorrência, agrupados e
classificados da seguinte forma: religiosidade (textos teológicos e doutrinários, que
versem sobre orações, salmos, exaltação à fé cristã, espiritualidade); generalista (artigos
jornalísticos, escritos de militância, “visões” de mundos obre a história, a cultura, a
política, a sociedade, comportamento, família, casamento, sexualidade, etc.); literários
(romances, peças de teatro, contos, crônicas e poesias); além dos textos memorialísticos,
incluindo-se as autobiografias. Os demais livros não inclusos nesta taxonomia, devido
às poucas recorrências evidenciadas, foram listados como “não-classificados”.

Quadro 3
Distribuição de livros por gêneros de escrita referente aos 14 casos investigados

Não-
Religiosidade Generalista Literatura Memórias TOTAL
classificado
13 14 8 1 1 37
- 8 5 - 13 26
6 3 5 1 - 15
1 3 2 2 1 9
- 1 - - - 1
1 - - - - 1
- - - 1 - 1
- 1 - - - 1
- - 1 - - 1
- 1 - - - 1
- 3 - 1 3 7
- 1 - - - 1
- 3 - - 4 7
7 - 3 - - 10
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.
79

Depreende-se do Quadro 3, organizado na ordem dos padres apresentados no


Quadro 1 e de acordo com a quantidade de textos publicados em livros, uma tendência
maior dos padres a escreverem dentro do gênero “generalista”, o que implica inferir que
tais publicações estão muito mais vinculadas às experiências sociais, à formação escolar
e cultural e às “visões” de mundo adquiridas por cada agente, relativas aos seus
respectivos itinerários, que lhes conferiu a aquisição de competências e habilidades
específicas reconvertidas para esse tipo de publicação que, em suma, reflete a
modalidade de escrita com que mais se identificam e para a qual possuem maior
disposição propiciada pelos condicionantes que a presidem, haja vista que outros
gêneros como a literatura, por exemplo, suscitam um conhecimento e domínio de regras
mais complexas, muitas vezes dissonantes de suas atividades cotidianas.

Contudo, é curioso observar que escritos inseridos no gênero “religiosidade” não


figuram na primeira colocação, o que significa uma dedicação maior à confecção de
publicações que alcancem uma clientela mais abrangente e diversificada – como o são
os textos generalistas, de ordem mais panorâmica sobre o mundo social –, e não apenas
os próprios fiéis religiosos, demonstrando assim uma forte tendência de escritos que
abordem assuntos para além do âmbito confessional católico.

Para se precisar melhor a frequência de tais dados, pode-se mesclar os vários


gêneros de escrita que apresentaram alguma regularidade. Tem-se, assim, um quarto
quadro oriundo do quadro acima:

Quadro 4
Frequência das modalidades de escrita

Gêneros Quantidade %
Religiosidade 28 23,7
Generalista 38 32,2
Literatura 24 20,3
Memórias 6 5,08
Não-classificados 22 18,6
Total 118 100%
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.
80

A ordenação por gêneros das obras catalogadas revela uma variedade de usos da
escrita em seus diferentes formatos e as estratégias ativadas através dos recursos
disponíveis de cada agente para legitimação de seus textos. Observa-se, assim, que dos
14 casos investigados há uma incidência de 38 títulos (32,2%) publicados dentro da
classificação de textos generalistas, isto é, textos escritos sobre diversas áreas e
assuntos. A categoria de publicações religiosas registra frequência de 28 casos (23,7%).
24 registros (20,3%) são de textos literários e apenas 6 casos (5,08%) tratam-se de
memórias e autobiografias. Dos livros não inseridos em nenhuma dessas classificações,
constam 22 títulos (18,6%).

As frequências apresentadas fornecem alguns indicadores sobre a tendência de


consolidação do gênero generalista, que não necessariamente enseja a ativação de
saberes e conhecimentos técnicos especializados, mas antes a explicitação de
habilidades de escrita, maior nível de leitura de um modo geral e de um certo grau de
“politização” perante os assuntos temporais, o que implica uma tomada de
conscientização e de posicionamento sobre questões de cunho histórico, filosófico,
político, cultural, psicológico, comportamental, ideológico, etc.

Por outro lado, percebe-se que mesmo diante da prevalência de escritos mais
gerais, assuntos da esfera religiosa ocupam o segundo lugar com uma diferença não tão
ampla assim (apenas 8,5%). Ocorre ainda que o gênero religiosidade também ocupa
uma posição de proximidade com o gênero literário, havendo assim um certo
paralelismo entre investimentos feitos pelos agentes clericais em escritos de vertente
mais religiosa e literária, ambos correspondendo a 23,7% e 20,3%, respectivamente.
Dos casos analisados, pontua-se ainda uma tendência na redução de textos
memorialísticos, que registraram o percentual de 5,08%.

Levando-se em consideração essa classificação por gêneros, procedeu-se à


ordenação dos escritos conforme as décadas em que foram publicados. Contudo, dos 14
casos elencados, não foi possível a identificação precisa do ano de publicação de todos
os seus textos. Por conta disso, no quadro a seguir, tem-se uma amostra de 50 dos 124
livros catalogados que puderam ser mapeados conforme o período em que foram
publicados, evidenciando assim as décadas em que os agentes tiveram maior atuação.
81

Quadro 5
Distribuição dos livros por décadas

Décadas Quantidade
1950 1
1960 6
1970 9
1980 15
1990 13
2000 6
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.

Conforme se pode observar, há uma maior concentração de textos publicados


entre as décadas de 1980 e 1990, com 15 e 13 títulos escritos, respectivamente. Na
década de 1960, os dados apontam para 6 livros publicados. Já na década seguinte,
aparecem 9 títulos. Registra-se ainda que na primeira década dos anos 2000, aparecem 6
escritos publicados.

Dos números expostos, depreende-se que houve um aumento significativo na


publicação de livros entre as décadas de 1960 e 1980 e uma redução nas décadas
seguintes. Isto ocorre justamente durante o período histórico de maior atuação e
intervenção de padres da Igreja Católica na vida política, cultural e social do país,
particularmente circunscritos pelas transformações estruturais em curso na esfera
eclesiástica mundial, exemplificadas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) e pelas
conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979), eventos católicos que ocorreram no
calor de um contexto convulsivo marcado por ebulientes dinâmicas culturais e
sociopolíticas, que evidenciaram a intensificação das atividades de sacerdotes e leigos
na defesa de valores e direitos concebidos como lutas populares legítimas.

O ápice dos escritos aparece na década de 1980, com 15 títulos registrados, sinal
de que o processo de reabertura política entra em cena, promovendo a ampliação do
acesso a editoras e a novas publicações. Um dado curioso, contudo, e por isso mesmo, é
que quando se poderia supor um acréscimo na quantidade de livros publicados entre as
décadas de 1990 e 2000, precisamente por conta da abertura e do acesso a espaços de
82

publicação, registra-se 13 publicações no último decênio do século XX e apenas 6


títulos na primeira década do século XXI.

A explicação para a redução de tais registros em formato de livro repousa na


constatação de óbito de uma “geração” de padres que tiveram maior atuação entre as
décadas de 60 e 80, cuja produção escrita aparece não apenas como registro de suas
atividades, mas como trincheira de lutas políticas travadas com a exposição de
posicionamentos e de representações sobre o mundo social à luz do repertório
disponibilizado pelo tipo de catolicismo vigente à época. Além disso, pode-se inferir
que a própria conjuntura política e cultural do período em foco suscitou a necessidade
de fabricações de escritos que explicitassem o posicionamento da Igreja sobre os
assuntos em voga, particularmente aqueles que atingiam suas bases de sustentação
ideológica e de poderio simbólico (manifestações culturais de afrodescendentes, formas
de pensamento desvinculado da religião, etc.).

Compreende-se, portanto, que o perfil geral dos padres que se dedicam à


atividade da escrita no Maranhão é bastante heterogêneo e multifacetado,
correspondendo assim à própria hibridização de sua atividade sacerdotal cotidiana. Em
geral, são padres que se diferenciaram dos demais agentes no espaço de concorrência
pelo acúmulo de títulos escolares raros (principalmente de formação superior em outras
áreas distintas das tradicionais – teologia e filosofia), cujos saberes foram acionados em
momentos oportunos na demarcação de posições estratégicas e na confecção de
posicionamentos sobre o mundo social, evidenciado na publicação de seus escritos em
livros.

A conquista de títulos superiores valorizados no espaço em disputa também


abriu portas para a tessitura de relações sociais privilegiadas que, ao serem mobilizadas,
alçaram os padres a postos relativamente bem alocados, especialmente nas áreas do
ensino superior e de produção de pesquisas acadêmico/científicas, além da inserção em
outras instâncias de reconhecimento intelectual, como academias de letras e espaços em
jornais.

Portanto, sacerdotes que escrevem e que tiveram acesso a canais de divulgação


de seus escritos estão enredados por teias sociais que remetem desde a círculos
familiares ao pertencimento a novos espaços de socialização de “letrados”, onde a
habilidade da escrita é um trunfo bastante valorizado.
83

Em suma, a resultante dos títulos escolares com o pertencimento a círculos


sociais relativamente privilegiados confere ao perfil geral dos casos investigados o
reconhecimento de “intelectuais católicos”. Valor social este que se consubstancia na
produção de escritos, notadamente de livros, cujas temáticas abordadas estão
indissociavelmente conectadas às experiências vividas, às formações adquiridas e aos
postos, cargos e posições ocupados ao longo de seus itinerários, com escassas aberturas
para a criatividade dos escritores.

Conforme se verá nos casos específicos dos padres Clodomir Brandt e João
Mohana, nos capítulos seguintes, os usos sociais da escrita por sacerdotes maranhenses
são exemplos distintivos dos poderes simbólicos que incidem sobre a produção de livros
de “intelectuais católicos”, acionada como trunfo não apenas para demarcar posições e
adotar posicionamentos, mas efetivamente como trincheira de luta pela imposição de
representações “legítimas” sobre o mundo social. Tanto Brandt quanto Mohana, cada
um a seu modo e com as especificidades das dinâmicas de concorrência às quais
estavam enredados, quer seja na capital ou no interior do Maranhão, representam a
importância creditada ao papel de mediadores católicos nas esferas da cultura e da
política, cujas atuações revelam as fluidas fronteiras entre esses diferentes domínios e as
bases de legitimação de “intérpretes” e “porta-vozes” dos problemas sociais, sob a
chancela da Igreja.
84

CAPÍTULO 3:

CLODOMIR BRANDT E AS DISPUTAS POLÍTICAS EM PAUTA: a trajetória de


um padre político e escritor

Neste terceiro capítulo, abordar-se-á a trajetória20 (BOURDIEU, 2010) política


e cultural do padre Clodomir Brandt e Silva, um dos mais destacados sacerdotes da
Igreja Católica no Maranhão, que se notabilizou por sua reconhecida e prestigiada
atuação no município de Arari. "Padre Brandt”, como era celebremente conhecido (e até
hoje o é, mesmo depois de sua morte, em 23 de abril de 1998, aos 81 anos), atuou e
interviu de forma marcante em vários segmentos da vida social arariense. Foi fundador
de escolas, teatro, cinema, jornais, editora, biblioteca, associações religiosas, além de ter
sido um significativo personagem na história política da cidade, liderando grupos
políticos, exercendo mandatos de parlamentar municipal e chegando mesmo a
candidatar-se a prefeito.

Além disso, registra em seu trajeto a autoria de vinte e seis livros, a maioria
publicada de forma independente por sua própria editora (Editora Notícias de Arari),
sendo um dos mais produtivos clérigos da Igreja no tocante à produção “intelectual”.
Seus escritos, além de refletirem a síntese de seus pensamentos e concepções sobre o
mundo social, externalizam seus ideais, “projetos” de sociedade, visão política,
habilidades literárias, enfim, uma gama de competências e saberes que remetem a uma
forte hibridização de sua atuação, para além do âmbito confessional, e apontam para o
grau de heteronomização entre os diferentes domínios sociais, particularmente entre as
esferas política, cultural e religiosa.

Dentre as fontes utilizadas para a confecção deste capítulo, estão alguns livros
escritos pelo próprio padre Brant, que fornecem inúmeros dados e informações sobre
sua origem familiar e o percurso que trilhou até chegar ao exercício do sacerdócio e aos
fatos daí decorrentes, principalmente no livro A família Brandt, onde produz uma
narrativa memorialística de “glorificação” de sua própria história e a de seus familiares.

20
Segundo definição apresentada por Bourdieu (2004, p. 81), a noção de trajetória é cunhada como “uma
série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo), em um espaço
ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes. Tal noção é construída criticamente em
relação à ideia de “narrativa histórica”, que produz uma “ilusão biográfica” do agente pesquisado ao
abordá-lo como um ponto fixo e imutável que tem sua história de vida contada com início, meio e fim,
cuja única constância é a nominação, isto é, o nome que identifica a pessoa no decurso do tempo.
85

Nesse sentido, problematiza-se aqui tais escritos à medida que a narrativa


histórica e a reflexão sociológica vão avançando pari passu com outras “obras” escritas
por pesquisadores que, de alguma forma, estiveram inseridos nas dinâmicas de
concorrência que englobam nosso personagem, quer seja no campo da disputa político-
partidária, na luta pelo controle de canais de comunicação em Arari, ou nas batalhas
ideológicas entre protestantes e católicos. Os trabalhos utilizados como fontes são,
particularmente, livros escritos por membros das famílias que disputavam a hegemonia
sociopolítica no município e que, posteriormente, conquistaram posições em espaços de
divulgação literária no Maranhão, conforme expressam as obras Um passeio pela
história de Arari, de João Francisco Batalha, e O universo do padre Brandt, uma
biografia escrita por José Fernandes, ambas patrocinadas por instituições de “letrados”
no estado, como a Academia Maranhense de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico
do Maranhão.

Portanto, diante desses dados descritivos apresentados de modo sucinto, cuja


análise está calcada nas informações fornecidas e nas formulações elaboradas pelos
“intérpretes” da vida do sacerdote, incluindo-se as próprias interpretações feitas por
padre Brandt em relação à sua atuação político-religiosa-cultural em Arari, acredita-se
que o estudo de seu itinerário ajuda a entender de que forma os diferentes
condicionantes históricos, sociais, políticos, culturais, incidiram sobre seu ofício
sacerdotal e transformaram, significativamente, as práticas e os discursos produzidos
por este personagem, que passou a registrar, no recorte em questão, uma constante
atuação na esfera pública e a intervir incisivamente nos rumos que os grupos e as elites
dominantes definiam para a cidade, acionando o recurso da escrita como principal
instrumento de luta simbólica pela imposição de concepções e interpretações sobre a
política e a cultura no espaço em disputa.

Como se verá nas páginas seguintes, o grau de envolvimento na vida política de


Arari rendeu ao padre Brandt muitos admiradores de seus feitos, como também muitos
inimigos poderosos dispostos a não perderem tal poderio, simbólico e material, seja no
âmbito político-partidário ou na própria esfera de dominação religiosa, onde as
estratégias da Igreja para manter a hegemonia do catolicismo na região, particularmente
em face à crescente concorrência do protestantismo, surtiram efeitos mais sintomáticos
e plurais.
86

2.1 Do Mearim a Arari: origens, formação cultural e chegada ao “novo lar”

Clodomir Brandt e Silva nasceu em 22 de novembro de 1917, num pequeno


povoado chamado Pucumã, pertencente ao então município de Conceição dos Picos,
atual cidade de Colinas, situada na microrregião do Alto Itapecuru, a 385 quilômetros
da capital São Luís. Filho de Sebastião Gonçalves Silva e Carolina Brandt, era o quinto
de uma prole de nove irmãos (sete homens e duas mulheres).

O sobrenome “Brandt” é de origem alemã, herdado do patriarca da família no


Brasil, Fritz Brandt, seu avô. Fritz nasceu em Blankenese, próximo à cidade de
Hamburgo, na Alemanha, em 1861. Após a conclusão de seus estudos superiores em
Farmácia, recebeu um prêmio: uma viagem para estudar a fauna e a flora brasileiras. Foi
assim que desembarcou no país, em busca das florestas amazônicas, aportando
primeiramente em Recife e atravessando os estados de Pernambuco, Ceará e Piauí, até
chegar ao Maranhão pelo povoado conhecido hoje como cidade de Nova Iorque.

Já em solo maranhense, Fritz Brandt, de religião protestante (ele era luterano),


residiu por algum tempo no vilarejo, onde prestou serviços de farmacêutico e de
enfermeiro por não haver ali atendimento público dessa natureza nem gente instruída
que realizasse tais atividades. Tentando dar cabo dos objetivos iniciais de sua viagem,
os estudos sobre a Amazônia, deslocou-se para o povoado de Canto das Pedras,
próximo ao município de Mirador, atual Presidente Dutra, cidade onde conheceu e se
casou com Andreina de Almeida e Silva, filha de lavrador e de costureira. Dessa união,
nasceram-lhe os cinco filhos (quatro mulheres e um homem): Carozina, a mais velha;
Cláudio; Carolina; Claudine e Diana, a caçula da família; todos registrados apenas com
o primeiro nome e o sobrenome germânico “famoso”.

Dessa primeira geração “brandtiana” no Brasil, mais precisamente no Maranhão,


cabe destacar duas pessoas: Carolina e Cláudio Brandt, mãe e tio, respectivamente, de
Clodomir, nosso personagem. Sobre a mãe, Clodomir registra em seu livro, que remonta
a árvore genealógica da Família Brandt, apenas algumas informações sobre
nascimento, casamento e a morte, aos 94 anos. Pouco, se comparado às mais de
quarenta páginas dedicadas à memória de seu tio, cuja espessura textual sinaliza,
simbólica e materialmente, para a importância devotada por Clodomir aos feitos,
87

realizações, cargos, funções, relações e prestígios conquistados por Cláudio Brandt.


Com efeito, o tio de Clodomir Brandt foi o membro da família que mais influenciou sua
vida e a de seus irmãos. Porém, antes de explicitarmos o trajeto do bem-sucedido tio,
passemos ao delineamento do perfil social de seus pais.

2.1.1 Perfil social dos pais

A mãe de Clodomir Brandt e Silva, Carolina Brandt, nasceu no dia 26 de junho


de 1892, na cidade de Mirador. O pai, Sebastião Gonçalves Silva, nasceu no dia 21 de
dezembro de 1887, na cidade de Pastos Bons. Porém, sua união com Carolina se deu na
cidade de Picos, atual município de Colinas, onde se casaram e tiveram nove filhos.

Carolina era de religião católica e exercia a atividade de costureira. Quando de


seu casamento, ainda não havia completado 18 anos; Sebastião, seu marido, tinha 23
anos de idade completos. Homem humilde, negro e de poucas posses, filho de
lavradores, Sebastião exercia a profissão de alfaiate, mas teve de enfrentar os
preconceitos da época, tanto o social quanto o racial, por sua cor de pele e pela pobreza
material, em decorrência de sua união com Carolina, mulher branca e “de família”.
Segundo relato do próprio padre Brandt, o casamento desagradou os familiares de
Carolina, especialmente seus irmãos, porque “consideravam o rapaz muito preto e
pobre, um simples alfaiate” (SILVA, 1993, p. 57).

Apesar dos relatos de extrema pobreza, a profissão de alfaiate chegou a render a


Sebastião “uma vasta freguesia, dando-lhe possibilidade de manter um salão [ou
oficina] onde vários profissionais da tesoura trabalhavam sob sua direção”. Somente a
partir da doença (ostiomielite aguda), que o acometeu durante vinte longos anos e que o
levou a óbito, é que seu estado de pobreza foi se instalando e se agravando, fazendo
com que se “esgotasse todos os recursos até à extrema penúria” (ibid., 1993, p. 59).

Com a perda da oficina e, consequentemente, da freguesia, Sebastião ainda


juntou forças para se dedicar à atividade da agricultura e do roçado, de onde retirou
precariamente seu sustento e de sua família a partir de então. Nessa empreitada, ele
contou com a ajuda da esposa, que lucrava com o trabalho de costureira, e com o envio
88

de dinheiro de seu cunhado, o próspero comerciante Cláudio Brandt, que residia em


Caxias. A ajuda financeira de Cláudio aos seus irmãos e sobrinhos foi apenas uma das
formas de intervenção e influência na vida de seus entes familiares.

Ao todo, foram nove os filhos do casal Sebastião e Carolina: Adiles, Frederico,


Oscar, Judite, Clodomir, José, Antonio, Maria de Lourdes e Cláudio Sobrinho.
Sebastião Gonçalves Silva morreu no dia 5 de março de 1943, aos 55 anos, na Santa
Casa de Misericórdia, em São Luís, obtendo o regozijo de ter visto o filho Clodomir
ordenado padre dois meses antes do apagar das luzes de seus olhos. Sua esposa,
Carolina Brandt, vivendo anos de viuvez em Arari e, posteriormente, na capital
maranhense, faleceu no dia 2 de junho de 1987, no Conjunto Residencial Cohab Anil,
próximo de completar 95 anos.

Observa-se neste mosaico social dos genitores de Clodomir Brandt que a


escassez de recursos levou-os a uma vida simples, com muitas dificuldades. Não
bastasse isso, a falta de apoio de seus respectivos familiares contribuiu para que as
opções a serem apresentadas aos filhos fossem as mais próximas de sua realidade
humilde, onde as alternativas de sucesso eram bastante escassas, porém existentes e de
difícil acesso. Neste ponto, entra em cena a figura do tio de Clodomir, Cláudio Brandt,
de significativa ascensão social devido à bem sucedida atividade de comerciante,
através da qual pôde exercer o papel principal de “chefe da família”, no tocante à ajuda
material que devotava aos parentes e na mediação que permitia seus entes familiares
transitarem entre diversas cidades, à procura de melhores oportunidades de trabalho e
estudo.

Com efeito, a escolha de Clodomir Brandt pela vida sacerdotal parece ter sido
motivada e condicionada pelas precárias condições de existência de seus pais,
constituindo-se para ele uma das escassas oportunidades de vencer as dificuldades
materiais de sua família e adquirir uma formação e seguir a carreira religiosa, que ainda
gozava de algum prestígio social, para a qual a influência e o apoio de seu tio Cláudio
foram decisivos em sua formatação e concretização.
89

2.1.2 O “tio Cláudio” e a centralização das relações de parentesco

Cláudio Brandt nasceu em 15 de julho de 1890, na cidade de Mirador. Era o


segundo dos cinco filhos do casal Fritz Brandt e Andreina de Almeida e Silva, sendo
apenas ele do sexo masculino. Aos 10 anos de idade, com a morte do pai, teve de
assumir a responsabilidade pela família, por ser o único “homem da casa” onde morava
com a mãe e as quatro irmãs.

Aos 16 anos, empregou-se numa pequena casa de comércio na cidade de Colinas


(antiga Picos). À época, chamavam-se as casas de comércio de “quitandas”. Não
obtendo um ordenado considerado satisfatório junto ao seu empregador, decidiu sair do
serviço e montar seu próprio negócio. O relativo sucesso e prosperidade alcançados
como comerciante fizeram com que Cláudio expandisse suas relações sociais e políticas
e ficasse “conhecido” na cidade, a tal ponto de ter sido eleito vereador de Colinas para o
biênio 1922-1924, tendo obtido 440 votos (SILVA, 1993, p. 15-16). Antes disso, em
outubro de 1917, já havia sido nomeado pelo Governador do Estado para o cargo de 1º
Suplente de Delegado de Polícia do Município.

Dispondo desse capital político e do sucesso obtido no desenvolvimento de sua


atividade de comerciante, Cláudio mudou-se para a cidade de Caxias, onde
potencializou ainda mais a crescente prosperidade econômica da qual usufruía. Tal
enriquecimento material andava de par com sua atuação e participação na esfera política
caxiense, o que lhe conferia maior penetração nos principais círculos sociais da cidade,
especialmente entre as elites políticas e econômicas. Em Caxias, Cláudio foi um dos
líderes da Revolução de 193021, além de ter chefiado um movimento para a manutenção
do padre Astolfo Serra como Interventor Federal no Maranhão, exemplos de atuação
que consubstanciam o protagonismo que vinha adquirindo no município, inclusive junto
aos membros da Igreja Católica.

Após algumas oscilações no comércio caxiense, Cláudio Brandt decide fixar-se


em São Luís, onde se torna proprietário de dois prédios, localizados na Rua Grande e na

21
Consagrado na historiografia como o evento que marca o fim do período conhecido como “República
Velha” (1889-1930), a Revolução de 1930 significou, em termos gerais, a ascensão da classe industrial ao
poder político no país através do movimento tenentista. No entanto, tal definição é bastante criticada
pelos novos estudos e abordagens sobre o tema. Para saber mais, ver Fausto (1997).
90

Rua da Horta, no Centro, que passaram a ser sua principal fonte de renda. Em junho de
1939, foi nomeado conselheiro e vice-presidente do Departamento Administrativo do
Estado pelo Interventor Federal Paulo Martins de Sousa Ramos, com quem manteve
estreitas relações de amizade e de colaboração durante todo seu governo
intervencionista. Em março de 1941, decide pedir exoneração do cargo para assumir o
posto de Diretor-Presidente do Banco do Estado do Maranhão (antigo BEM, já extinto),
onde permaneceu por 10 anos.

Sua destacada atuação no BEM despertou ainda mais os olhos da Igreja para si.
A convite de D. José de Medeiros Delgado, Arcebispo Metropolitano de São Luís, de
quem era amigo e colaborador, após sua renúncia ao cargo bancário em decorrência do
pedido de demissão de Paulo Ramos ao presidente Getúlio Vargas, em março de 1951,
Cláudio Brandt aceitou ocupar a função de diretor da recém-criada Cooperativa Banco
Rural do Maranhão, uma instituição financeira de crédito popular administrada pela
Igreja Católica. Depois disso, assumiu a função de Tesoureiro da Santa Casa de
Misericórdia de São Luís e de Delegado Regional do Instituto de Aposentadoria e
Pensões da Estiva Transportes e Cargas (IAPETC). Cláudio foi ainda um dos
responsáveis pela organização e fundação do Partido Trabalhista Brasileiro no
Maranhão (PTB/MA), onde atuou em parceria com seu estimado amigo, o interventor
Paulo Ramos. Cláudio Brandt faleceu no Rio de Janeiro, no dia 19 de junho de 1968,
aos 78 anos de idade, vítima de um edema pulmonar.

Gozando de enorme prestígio e sendo o membro da família que mais prosperou


em termos econômicos, políticos e sociais, Cláudio materializou em torno de si as
chances de ascensão social para quase todos os seus sobrinhos, dentre eles o padre
Brandt. A importância de “tio Cláudio” para a família de origem alemã é relatada pelo
próprio sacerdote quando aborda alguns feitos e movimentos de seus irmãos que
tiveram decisiva participação de Cláudio, principalmente no que diz respeito ao trânsito
entre Colinas, Caxias e São Luís22, à oferta de emprego e hospedagem e à influência no
direcionamento das carreiras profissionais dos familiares.

Foi Cláudio Brandt o responsável por encaminhar e prover seu sobrinho


Clodomir para a vida clerical. Segundo o pesquisador José Fernandes (2012), tio

22
Sobre este assunto, ver SILVA, Clodomir Brand e. A Família Brandt. Arari: Editora Notícias de Arari,
1993, p. 61-73.
91

Cláudio, católico fervoroso, havia tomado para si a incumbência de prover a educação


de Clodomir. Sendo para este como um pai, “dotando-o das provisões necessárias,
tratou de encaminhá-lo para o enfrentamento da longa caminhada em busca da
ordenação sacerdotal” (FERNANDES, 2012, p. 31).

Como se pode observar, o trajeto de Cláudio Brandt propiciou a ele, em termos


materiais e simbólicos, a condição real de “chefe de família”, que começou na tenra
idade e se estendeu ao longo de sua vida, através de auxílio financeiro e da oferta de
moradia temporária aos demais parentes que desejassem consolidar os estudos iniciais e
adquirir os primeiros ordenados. Cláudio corporifica aquilo o que Eric Wolf (2003, p.
98) chamou de “regiões de parentesco”, agrupamentos que tendem a se formar em torno
de círculos parentais [ou de um membro da família], onde os laços familiares
constituem um conjunto de recursos para um indivíduo ou para toda a família.

Além do mais, pesa sobre o papel assumido por Cláudio Brandt, adquirido pela
prosperidade econômica, pelos destacados cargos políticos e funções administrativas
que desempenhou e pelas redes de relações que teceu e expandiu, a tendência de
manutenção de uma pretensa “reputação” familiar (WOLF, 2003, p. 100). Tal
perspectiva está identificada nos juízos de valores e nas ações da família sobre o
“destino” de alguns entes, seja no “desgosto” dos parentes pelo casamento da irmã
Carolina com um homem “muito preto e pobre”, na “desordem emocional e psíquica”
de um dos irmãos de Clodomir, o único que viveu uma “vida desajustada” e cheia de
problemas, segundo relato do próprio padre Brandt (SILVA, 1993, p. 64-67) ou na
tentativa de Cláudio de oferecer melhores condições de educação e de emprego para
todos os seus sobrinhos, os futuros responsáveis pela perpetuação do nome da “família
Brandt” na história da cidade de Arari.

2.1.3 Entrando no mundo eclesiástico: formação seminarística e cultural

Os estudos primários de Clodomir Brandt e Silva foram iniciados ainda em sua


cidade-natal, Picos, hoje Colinas, vindo a serem concluídos em Caxias, sob a tutela de
tio Cláudio, no Instituto Municipal Gonçalves Dias. Foi nesse colégio, um dos mais
referenciados pelas elites locais, onde estudavam os filhos de comerciantes e dos
92

proprietários de terras na cidade, que ele desenvolveu o hábito da leitura e a dedicação à


escrita, cujos vértices começaram a adquirir contornos mais nítidos em suas ações e
atividades, resultando na elaboração de um pequeno texto literário que, posteriormente,
viria a ser publicado num folhetim fundado por ele mesmo, denominado de “A
TERRA”, dedicado aos assuntos escolares de então.

O fato da criação de um pequeno jornal dentro de um ambiente escolar de ensino


fundamental reflete a dinâmica e os estímulos à vida cultural no Instituto Gonçalves
Dias, de onde provém o “gosto” pela leitura e pela escrita de nosso personagem. Além
disso, o contato na escola com os filhos das classes mais abastadas da região, de onde
sairia uma leva de alunos que enveredariam pelas profissões de padres, médicos e
bacharéis em Direito legou a Clodomir um aspecto de distinção e um acúmulo de capital
social (BOURDIEU, 1998) que seria acionado em diferentes momentos no transcurso
de seu itinerário.

Concluído o curso primário e influenciado pelas professoras de escola e do


catecismo, ainda em Caxias, o jovem Clodomir manifestou ao tio Cláudio o desejo de se
tornar padre, que logo tratou de atendê-lo, conforme dito anteriormente. Assim,
contando com o apoio material do bem-sucedido tio, Clodomir Brandt entra para o
Seminário de Santo Antônio, em São Luís, em fevereiro de 1932, aos 15 anos de idade,
onde permaneceria por onze anos. Sobre sua estadia no Seminário, assim descreve o
pesquisador José Fernandes (2012, p. 33):

Aquele centro de ensino religioso imprimiu, com certeza, uma marca de acentuado
dinamismo naqueles jovens reclusos, notadamente em Clodomir, sagaz e especulativo,
adquirente de uma sólida base intelectual, destacando-se em várias matérias –
português, francês, retórica e redação (exercitada esta última ao fundar e redigir o jornal
de uso interno “A CRUZADA”), sem se descurar dos livros pertinentes à cultura geral.

De fato, o Seminário de Santo Antônio era o principal centro formador de padres


no Maranhão, onde se instruía os alunos sobre os ensinamentos da doutrina e da moral
religiosa, mas também sobre cultura geral, artes, ciências e literatura (PACHECO,
1969). Tal educação seminarística estava ancorada ainda nos valores tridentinos
(SILVA, 2012, p. 154), cujas diretrizes foram estabelecidas em meados do século XIX,
ressoando durante o bispado de D. Marcos de Sousa, no Maranhão, período em que foi
instituído o Seminário de Santo Antônio, sob a justificativa do referido bispo de que os
93

ensinamentos ali prestados auxiliariam os sacerdotes em sua vocação e disciplina, assim


como seriam versados também nas artes e nas ciências

que aperfeiçoaõ a razão humana, e regulaõ os sentimentos do coraçaõ, o que muito


concorre para haverem ministros illustrados, dignos das sublimes funcçoens do
Santuario, e cidadaons habilitados para administrar os negocios publicos (SILVA,
1922, p. 211-212. Apud SILVA, 2012, p. 155. Grifo nosso).

Com efeito, a vida no seminário tinha por função não apenas garantir a
ordenação sacerdotal e a reprodução dos quadros clericais da Igreja, mas também
contribuir para a formação cultural daqueles que deveriam ser, além de “ministros
ilustrados”, “cidadãos habilitados para administrar os negócios públicos”. Pode-se
observar que esta tendência de intervenção sacerdotal na esfera pública, cunhada legal e
institucionalmente ainda no século XIX, reverbera no século seguinte e torna-se mais
evidente no caso em questão, quando, já com nove anos de seminário, Clodomir Brandt
assim se manifesta sobre uma campanha de arrecadação de fundos, que ele mesmo
dirigia, para a manutenção do estabelecimento vocacional situado em São Luís:

Se não houver recursos para sustentar o Seminário, não haverá um clero atuante, sadio e
santo para estender sua ação evangelizadora cada vez mais longe, indo às fábricas
levar o conforto religioso ao tugúrio do pobre para consolá-lo e santificar-lhe a
humildade, indo ao palácio do rico cheio de luzes e sons, indo em busca das crianças e
dos jovens, e pelo sertão longínquo buscar almas e trazê-las para a redenção
(FERNANDES, 2012, p. 33. Grifo nosso).

A questão de “estender a ação evangelizadora cada vez mais longe”, de ir às


fábricas e de levar consolo à vida do “pobre”, assim como ao “palácio do rico” e pelo
“sertão longínquo”, ainda que esculpida pelo viés religioso, começa a aparecer como
uma problemática constante na vida de Clodomir. A passagem pelo seminário confere
ao nosso personagem, além de uma elevada cultura geral, uma espécie de capital
militante23 (MATONTI; POUPEAU, 2006), cujo engajamento nascituro do
envolvimento nas questões que vão além do ambiente confessional parece se solidificar
à medida que a hierarquia eclesiástica toma ciência da “crise” que assola suas bases de

23
Conforme o define Matonti e Poupeau (2006, p. 130), trata-se de um tipo de capital incorporado sob a
forma de técnicas e de disposições a agir e a intervir, abrangendo um conjunto de saberes (teóricos e
práticos) “mobilizáveis no momento das ações coletivas, das lutas inter ou intrapartidárias, mas também
exportáveis, passíveis de conversão para outros universos, e, assim, suscetíveis de facilitar certas
reconversões”.
94

sustentação ideológica e de falência de seus serviços de produção e reprodução da


“vocação” religiosa (AZZI, 2008; MAINWARING, 2004).

Outro aspecto importante a ser destacado é a utilização da escrita pelo jovem


Clodomir Brandt como instrumento de manipulação simbólica (BOURDIEU, 2008) e
de distinção nos espaços que ocupa em relação aos demais agentes. Ainda nos estudos
primários, funda um pequeno folhetim para veicular seus escritos literários, referente à
própria vida escolar. Já no seminário, funda novamente um canal informativo para
divulgar, ainda que para um público reduzido e restrito ao âmbito seminarístico, suas
ideias e concepções sobre a ação evangelizadora do catolicismo vigente à época e suas
representações sobre o mundo social, quer se trate do “pobre” ou do “rico”, das
“fábricas” ou do “sertão”.

Percebe-se neste aspecto a formatação institucional embrionária da hibridização


do ofício sacerdotal (SEIDL, 2003; 2007b), legatária desde o final do século XIX,
quando a Igreja formula através de seus destacados agentes (bispos com forte atuação
política no Maranhão, caso de D. Marcos de Sousa) as bases legais que legitimam a
intervenção de seus sacerdotes em diferentes domínios, onde a atividade da escrita se
constitui como uma das principais modalidades de atuação intelectual dos clérigos
católicos, além de se constituir num fator distintivo e de demarcar a posição e os
posicionamentos do agente em foco. Tais observações evidenciam uma tentativa da
instituição eclesiástica em abranger e influenciar as discussões públicas, as questões
sociais, a atividade cultural, e a autorizar, ampliar e pautar a publicação de escritos
diversos através da criação e manutenção de novos canais midiáticos no Maranhão.

2.1.4 O vigário de Arari: aspectos sociais, culturais e religiosos da cidade

Em 1º de janeiro de 1943, Clodomir Brandt e Silva é ordenado sacerdote pelo


arcebispo metropolitano de São Luís, D. Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota. A partir
de então, padre Brandt dá início oficialmente à sua missão evangelizadora no Maranhão.
Permanecendo por algum tempo em São Luís, onde atuou em algumas paróquias
situadas nos bairros da capital, Brandt percorre alguns municípios maranhenses como
95

Caxias, Buriti Bravo, Passagem Franca e Colinas, onde celebrou a primeira missa
cantada do Maranhão, denominada de “Missa Nova” (FERNANDES, 2012, p. 45).

Dando cumprimento à sua função religiosa, foi assistente diocesano de bispos


em visita a Coroatá e Anajatuba, antes de ser nomeado vigário de Cururupu, destinação
que não chegou a assumir. Todo esse percurso por algumas cidades maranhenses fez
com que padre Brandt se tornasse ainda mais “sensível à realidade das populações”
mais afastadas dos centros urbanos, desprovidas de educação básica e tratamento de
saúde (ibidem). Observa-se como a descrição das atividades religiosas de Brandt é
talhada pelas “fontes” buscando-se sempre a justificação para sua intervenção no mundo
social. Isso evidencia, ainda que mais ou menos conscientemente, o aspecto
“consagrador” dos escritos que servem de base para a discussão proposta.

Exatamente um ano após ter percorrido essas plagas “interioranas”, quando


completou seu primeiro aniversário de ordenação sacerdotal, em 1º de janeiro de 1944,
padre Brandt foi nomeado vigário de Arari, assumindo seu posto no dia 9 do mesmo
mês, aí residindo de forma fixa. As circunstâncias em que ocorreu tal nomeação são, no
mínimo, curiosas, e foram descritas pelo próprio sacerdote, no sexto volume dos seus
Escritos sem ordem, - coletânea de textos publicada em 1996 que versam sobre
diversos assuntos abordados pelo sacerdote, tanto históricos quanto contemporâneos,
mas todos sob a ótica do catolicismo que defendia, - onde em visita ao arcebispo do
Maranhão, D. Carlos Mota, teceu com ele o seguinte diálogo:

- Foi bom você ter vindo hoje aqui. Precisava mesmo falar com você, para lhe
comunicar que não vais mais para Cururupu. Deixei de novo lá o padre Papp. Dom Luiz
pediu-me para ceder-lhe novamente. Caso queira, está dada a permissão. Ele alega que
você é filho de Colinas...
- Dom Carlos, não quero mais ir para Caxias. Gostaria de ir trabalhar numa paróquia do
interior.
- Está certo. Eu só lhe ofereci essa oportunidade de ir trabalhar com Dom Luiz porque
pensei que isso era de seu agrado. Mas a sua diocese é aqui.
O chefe da Igreja maranhense entrou no seu gabinete e trouxe um papel na mão,
retomando a conversa com o padre.
- Aqui está a relação das paróquias vagas da Arquidiocese. Escolha entre essas
paróquias uma para nela ir trabalhar.
- Mas, senhor arcebispo, vossa Excelência é quem deve fazer a indicação da paróquia e
eu aceitarei. Ordenei-me para padre para obedecer.
- É, mas eu não costumo fazer assim com meus padres. No entanto, como você alegou a
obediência, eu ordeno que escolha.
O padre não teve mais argumento, nem alternativa. Começou a ler o listão de paróquias
vagas, algumas localizadas em cidades que estavam em pleno desenvolvimento. E logo,
sem muito pensar:
- Senhor arcebispo, escolho Arari.
- Arari, não! Escolha outra. Há várias paróquias boas vagas. Arari, não!
- Então, agora, vossa Excelência indica. Já obedeci escolhendo Arari.
96

- Mas Arari não serve para você. No entanto, vamos fazer uma coisa: você tem três dias
para pensar. Vá e volte daqui a três dias. Há uma pessoa que pode ajudar-lhe. É o padre
Pedro Verneullen, a quem você conhece. Fale com ele. É experiente e já passou dias em
Arari (SILVA, 1996, p. 26-28).

A conversa com o referido padre holandês, pertencente à Congregação dos


Padres Lazaristas, missão fundada por São Vicente de Paulo, serviu para estimular ainda
mais o desejo de padre Brandt em prestar seus serviços religiosos à cidade de Arari.
Afinal, padre Pedro Verneullen era um “entusiasta” do município, onde já havia estado
por duas vezes como missionário visitante, nos anos de 1942 e 1943, a ponto de fazer
inúmeras amizades e conquistar a “admiração de quase toda a população”. Foi sob sua
influência que a paróquia de Arari veio a ser ocupada definitivamente pelo padre
Clodomir Brandt (FERNANDES, 2012, p. 57).

Convém, contudo, explicitarmos como estava delineada geográfica e


socialmente a cidade de Arari antes da chegada do padre Brandt, a fim de que se possa
entender o porquê da tentativa de dissuasão, a priori, do arcebispo D. Carlos Mota em
relação à escolha da cidade pelo nosso personagem, assim como lançar luz sobre os
condicionantes históricos, sociais, culturais e religiosos que realçaram e distinguiram a
atuação de Clodomir no município.

A vila de Arari emancipou-se administrativamente em 19 de abril de 1833.


Tratava-se, de fato, do segundo distrito da vila de Nossa Senhora de Nazaré do Mearim,
denominada de “Arari” devido à abundância de inúmeras “araris”, certa espécie de
sardinha que predominava nas águas do rio Mearim. Contudo, tal versão é bastante
discutida entre os historiadores24. O próprio padre Brandt admite uma outra versão para
a origem do nome do município25.

24
Existem quatro hipóteses que sustentam a origem do nome da cidade de Arari. A primeira se trata de
uma suposta predominância na região do Médio Mearim de um tipo raro de “araris”, araras vermelhas
com tons amarelados. A segunda hipótese gira também em torno da designação de uma espécie de arara,
porém relativa à sua baixa estatura, onde “arari” significaria “pequena arara”. A terceira versão trata da
denominação dada a certo tipo de árvore de terra firme e à tinta vermelha extraída de sua casca. Já a
quarta hipótese refere-se ao tipo de sardinha de bastante abundância nas barrancas do rio Mearim, versão
mais aceita entre os historiadores precisamente pelo fato da cidade ter nascido às margens do famoso rio e
ter na pesca uma das suas principais atividades econômicas (BATALHA, 2011, p. 51-52). É interessante
observar, no entanto, que as diversas versões sobre a origem de Arari refletem, em última instância, o
grau da disputa travada em torno dos princípios de legitimação e de imposição de uma “versão oficial”
sobre a história e a memória da cidade.
25
Para o sacerdote, a designação “Arari” teria sido originada de um diálogo entre um marinheiro e um
dono de embarcação, que teria de ancorá-la num lugar chamado “arariba” quando a maré fosse vazante.
97

Por certo, diante da falta de consenso entre os historiadores que se propuseram a


investigar a origem do nome “Arari”, não sem algum grau de relativo interesse na
disputa pela memória e pela história da cidade, o que se tem de concreto é que a vila foi
elevada à condição de município em 27 de junho de 1864 (BATALHA, 2011, p. 42).
Em 1938, o Decreto-Lei nº 45, de 29 de março, tirou Arari da condição de menor
município do Maranhão, estendendo seu território por toda a margem direita do rio
Mearim, compreendendo a trizidela do Ubatuba, Macaquiçá e a trizidela de Vitória do
Mearim, o que gerou inúmeras divergências entre as elites políticas e rurais das regiões
incorporadas26. Tais disputas só aumentaram com o Decreto-Lei estadual nº 159, de 6
de dezembro de 1938, assinado pelo interventor federal no Maranhão, Paulo Martins de
Sousa Ramos, que concedeu ao município de Arari a maior extensão territorial de sua
história, indo “desde as margens do rio Mearim, passando pela foz do Grajaú, atingindo
as bordas do rio Pindaré, seguindo pelo divisor das águas Mearim-Itapecuru, até
alcançar a linha geodésica, que parte da foz do rio Peritoró (ibid., 2011, p. 43-44).

As primeiras levas de povoadores a se instalarem na cidade datam do período


colonial. No decorrer dos séculos XVIII e XIX, Arari sofre novo processo de correntes
migratórias, particularmente de franceses, holandeses e portugueses. Já no início do
século XX, a cidade recebe imigrantes de origem sírio-libanesa, que tem significativa
atuação no desenvolvimento do comércio local, na navegação fluvial e na conjuntura
política do município. Todo esse movimento migratório de povos vindos do continente
europeu e da região do Oriente Médio mesclando-se com as etnias indígenas e
afrodescendentes que lá já estavam situadas desde a Colônia, confere a Arari um
aspecto social de bastante miscigenação e de sincretismo religioso.

Em relato do padre Pedro Verneullen, que estivera na cidade dois anos antes da
chegada do padre Brandt, em 1944, tendo sido o maior influenciador sobre a decisão de
nosso personagem em fixar-se na região – o qual não deixou nada escrito que contivesse
maiores detalhes sobre sua chegada ao local –, é possível observar alguns aspectos
específicos sobre a vida social, cultural e religiosa de Arari, além de colhermos as

Nas palavras do padre Brandt, “de arariba para Arari, a transformação não foi difícil. A lei do menor
esforço, que é uma economia fisiológica na pronúncia das palavras, iria produzir a transformação
metaplástica do vocabulário, pela perda da sílaba ‘ba’” (SILVA, 1985, p. 19).
26
Sobre as disputas territoriais entre as elites políticas e rurais em virtude da redefinição dos limites
municipais decretados pelo interventor Paulo Ramos, ver Batalha (2011, p. 40-46).
98

primeiras impressões de um sacerdote da Igreja Católica que chega a um município do


interior do Maranhão ainda sem padre residente e em visita missionária:

Viajando através dos campos enxutos, sob o sol causticante de meio-dia, cheguei ao
Arari pela Trizidela. À primeira vista, julguei que fosse um desses pequenos povoados
que já vira à beira do Itapecuru e do Pindaré. Só a largura do rio me impressionou. No
porto, não havia, naquela hora, nem lancha nem batelão. Na rua também não havia
ninguém. “Será – pensava comigo mesmo – que o padre Eliud me mandou enterrar
algum defunto morto?” Boa parte dessa primeira impressão foi devido ao meu estado
físico naquela hora: cheguei estropiado pela viagem, encandeado pelo sol do campo,
com a cabeça em fogo, vermelha que parecia lavada em sangue. No dia seguinte (...),
pude corrigir essas impressões. Logo vi uma igreja nova em construção! Havia,
portanto, vida nova nesse lugar: é um povo que quer ressurgir. Fui chamado logo no dia
seguinte para fazer uma confissão em Perimirim. Fui a pé. Vi ruas e mais ruas, cortadas
por travessas em direção ao campo. Para mim, era uma revelação. Para o povo parece
que também foi uma novidade, a julgar pelo furioso latido dos cães e pelo choro
espantado das crianças. Certamente, nunca tinham visto um padre de perto,
atravessando as ruas (FERNANDES, 2012, p. 57-58. Grifo nosso).

Percebe-se no relato do padre Verneullen o estranhamento que teve diante da


cidade e do povo em relação à sua pessoa, como se nunca tivessem “visto um padre de
perto”. De início, o padre de origem holandesa “sofreu” com o forte calor da região,
chegando a Arari “com a cabeça em fogo, vermelha que parecia lavada em sangue”, o
que só contribuiu para a formulação em seu pensamento de que estava num “deserto”,
no qual iria “enterrar defunto morto”, mediante a ausência de pessoas no porto para
recepcioná-lo e nas ruas da cidade, após seu desembarque. Seu sofrimento parece ter
sido amenizado somente ao avistar uma “Igreja nova em construção”, sinal de que o
povo arariense queria “ressurgir”.

O que não fica claro na descrição do padre europeu é quem era o responsável
pela construção da igreja e de onde o povo iria “ressurgir”, uma vez que a constatação
de uma nova edificação eclesiástica implica, minimamente, um certo grau de
organização religiosa presente no seio da população de Arari antes mesmo da chegada
do missionário holandês e, posteriormente, do padre Brandt.

Segundo o pesquisador João Batalha (2011, p. 124), a edificação à qual se refere


padre Verneullen é a Igreja-matriz de Arari, cujas obras de construção tiveram início em
28 de agosto de 1932, em substituição ao velho santuário do local, o qual datava sua
inauguração de agosto de 1811. A iniciativa de construção da nova igreja, que é
creditada ao padre Manuel Nunes Arouche, vigário de Viana e colaborador da vizinha
paróquia de Vitória do Mearim, dá-se justamente no ano em que o protestantismo chega
99

à cidade por meio da realização dos cultos da Assembleia de Deus. Nesse ano, já
existem em Arari dez templos religiosos, de maioria católica (ibid., 2011, p. 129).

Continuando a análise do relato de padre Verneullen, dividida aqui


arbitrariamente por questão de organização textual e com fins didáticos, atendendo aos
propósitos deste trabalho, o vigário holandês fala sobre a organização social, as
condições de moradia e as principais atividades econômicas da população de Arari.

(...) Fazia cada dia um passeio de manhã e à tarde; queria ouvir e ver. Passando pelas
ruas, notava a ausência de homens: explicaram-me que a maior parte da população
masculina ia campear ou era de embarcadiços. (...) Apesar das ausências prolongadas
dos pais, as famílias são numerosas e muito unidas. Cada chegada de lancha é uma
alegria para as famílias e para as casas de negócio, porque as provisões de boca para as
tripulações e os passageiros são renovadas em Arari, sobretudo o pão e a carne. (...) A
demora das lanchas torna possível o intercâmbio de outros produtos: chapéus de palha,
redes de dormir, artefatos de couro, todos de indústria caseira.
A população de Arari é muito laboriosa. As casas, em geral, trepadas em estacas (por
causa das inundações periódicas), são amplas e bem arejadas. (...) Ninguém fica ocioso.
Os homens estão ocupados no conserto de arreios para os cavalos, ou na confecção de
tarrafas para as próximas pescarias. As moças fazem chapéus, costuram ou fazem redes;
algumas mais adiantadas ensinam as primeiras letras a uma dúzia de crianças. (...)
Graças a tal operosidade, não há pobres miseráveis no lugar. Os que precisam de
assistência recebem-na de boa vontade na casa das famílias vizinhas. Infelizmente, não
há médico. (...) Os marítimos em geral mandam os seus doentes em casos mais graves
para a cidade de São Luís, porque há sempre transporte nas lanchas (FERNANDES,
2012, p. 59-60).

Conforme as observações do sacerdote, percebe-se que a vida em Arari tomava


ares de comunidade, onde todos podiam buscar ajuda mútua e contar com a “boa
vontade na casa das famílias vizinhas”, razão pela qual não havia “pobres miseráveis”
no lugar. Ainda assim, no que concerne às condições de moradia da população, as casas
“trepadas em estacas” dão uma dimensão da precária infraestrutura da cidade, onde o
problema das constantes inundações é solucionado pelos próprios moradores, que,
mesmo com tais adversidades, não descuidam de morar em habitações “amplas e bem
arejadas”. Infere-se, assim, que o relato de padre Verneullen sobre Arari se constitui, em
suma, numa espécie de “apresentação de impressões” da cidade ao seu futuro vigário,
padre Brandt, preparando-lhe o espírito sobre o que viria encontrar na cidade.

Seguindo o relato do padre europeu, observa-se que em meados da década de


1940 as principais atividades que movimentavam a economia do município eram a
pesca, a produção manufatureira e o comércio, ambas impulsionadas pelo transporte
fluvial que estimulava as trocas comerciais com as cidades vizinhas. O conjunto dessas
100

atividades restringia as ofertas de trabalho às funções de comerciante, vaqueiro,


costureira ou dona de casa. Sobre este aspecto socioeconômico, em outra passagem de
seu longo relato, padre Verneullen assevera que

(...) os meninos aprendiam as primeiras letras e as primeiras operações porque isso é


necessário para o comércio. Mas ninguém (ou quase), por falta de ideal mais elevado, se
preocupava em dar educação superior. Os rapazes e as moças não tinham nenhum
pendor para uma vocação que fosse além de comerciante, vaqueiro, costureira e dona de
casa. E quando se ouviam apreciações sobre os médicos, bacharéis e padres, eram
analisados apenas pelo dinheiro que supunham ser ganho em tais profissões
(FERNANDES, 2012, p. 64).

Contudo, convém salientar que havia outras profissões e atividades em jogo. De


um modo geral, circunscritas ao ensino, aos cargos administrativos, às forças de
segurança e ao setor de serviços. Segundo levantamento datado de 1924, na vila de
Arari já existiam

2 escolas, 2 igrejas católicas, 2 padarias, 6 oficinas de sapateiro, 3 alfaiates, 4


carpinteiros, 2 calafates, 2 ferreiros, 1 caldeiro, 2 olarias, 1 serraria, 2 ourives, 1
farmácia, 55 casas de comércio, 3 açougues, alguns vendedores de leite, 1 carcereiro, 2
oficiais de justiça, 2 tabeliães, 2 escrivães, um destacamento com dez praças,
comandados por um sargento (BATALHA, 2011, p. 116).

Por volta de 1937, já estavam registradas na cidade de Arari algumas firmas


importadoras de produtos industrializados, que levavam o nome das prósperas famílias
ararienses ou de seus ilustres filhos: Santos & Silva, Abraão Salomão, Jorge Salomão,
Cipriano Santos, Teodoro Antônio Batalha, Pedro Abas, Leão Santos, Venceslau
Ericeira, Leopoldo Melo e Inácio Batalha. Existiam ainda duas firmas exportadoras: a
Santos & Silva, empresa local; e a francesa Cotonnière Brésil Ltda., instalada em 1936,
que comercializava a produção de algodão do Mearim, prensava em Arari e exportava
para a Europa. Os serviços de transporte fluvial eram prestados pelas firmas Leandro
Nunes, Salomão, Raimundo Guimarães e Mearim S.A. E ainda havia uma desenvolvida
indústria açucareira local, contando-se 14 engenhos de açúcar em Arari, todos de
propriedade das abastadas famílias do município (BATALHA, 2011, 128).

Conforme se pode perceber, as atividades econômicas se aglutinavam em torno


do domínio econômico exercido pelos principais “grupos familiares” de Arari, sendo
estes proprietários de firmas, estabelecimentos comerciais e até engenhos de açúcar. A
ascensão social e a afirmação “intelectual” de membros dessas famílias são denegatórias
101

basicamente da prosperidade econômica que alcançaram, não só no “interior” como


também na capital do Estado, onde o trânsito e o pertencimento a instâncias de
socialização e de consagração “intelectual” e de produção de conhecimento
acadêmico/científico forneceram as bases de legitimação para que se constituíssem
enquanto “intérpretes” da sociedade arariense.

Os trabalhos acadêmicos utilizados como fontes neste capítulo, destacando-se


Batalha (2011), Sousa (2003), integrante da família “Ericeira”, e Fernandes (2012),
todos descendentes de grupos familiares estabelecidos em Arari, sugerem a dimensão do
poder simbólico e material conquistado por esses mesmos grupos familiares, da
ascensão social obtida e dos investimentos “intelectuais” que fizeram para intervir (mais
ou menos conscientemente) na disputa pela “história” e pela “memória” da cidade.

Outro ponto a ser observado ainda no relato do padre Verneullen é a divisão do


trabalho familiar e a distribuição dos papéis sociais entre homens e mulheres em Arari.
Aos homens cabiam as tarefas do campo, provavelmente pequenos roçados, e o manejo
das embarcações, efetuando o transporte fluvial, além da manutenção dos arreios dos
cavalos e das redes de pescaria. Já as mulheres dedicavam-se aos trabalhos domésticos,
à produção artesanal de tecidos e chapéus e ao ensino das primeiras letras aos filhos.

Esse foi o mosaico socioeconômico descrito pelo sacerdote holandês às vésperas


da chegada de padre Brandt à Arari, onde as mulheres possuíam papel de destaque na
divisão social do trabalho familiar, seja pela educação dos filhos ou pelo incremento na
renda da família através de sua produção artesanal, feito pelas trocas comerciais de
produtos manufatureiros de corte e costura.

No último trecho da descrição do padre Verneullen, observa-se as principais


manifestações culturais, o trato caseiro com as questões de saúde, alguns aspectos
políticos provocados pelas disputas religiosas e as impressões do sacerdote em relação
às crenças disseminadas entre a população arariense, que a seus olhos se constituíam em
verdadeiros “perigos” que deveriam ser combatidos pela Igreja.

Os lavradores (...) recorrem com facilidade aos remédios caseiros e indicações de


macumbeiros. A macumba no Arari era uma verdadeira instituição; duas ou três vezes
na semana ouviam-se os tambores e os gritos estridentes dos feiticeiros em transe,
ditando suas imposições aos pobres que recorriam a eles nas doenças, nos amores
infelizes, nas dúvidas sobre objetos perdidos ou roubados. (...) Entre o povo, mesmo
entre os que não os consultavam, existia um terror supersticioso diante das ameaças. O
mais atrevido dos feiticeiros, o Pio Fernandes, entrava até nas casas de famílias. (...)
102

Outros feiticeiros e curandeiros continuam explorando a boa fé e a bolsa dos pobres.


(...) Os feiticeiros têm todo interesse em afastar os sacerdotes, porque eles não hesitam
em denunciar a superstição e as práticas indecorosas que ocorrem nas sessões do baixo
espiritismo.
(...) Havia, porém, outro fruto de importação que causava grande estrago: era o
protestantismo, que em toda parte gosta de implantar-se, aproveitando a ausência
dos padres. Não fosse a devoção do povo a Bom Jesus e a Nossa Senhora da Graça
(rejeitada e ridicularizada pelos “crentes”), todo o povo teria virado protestante. Esse
perigo tornou-se mais sério quando alguns deles alcançaram certa projeção
política e puderam aliciar adeptos mediante promessas e favores. Teve o seu ponto
culminante quando, na inauguração do templo protestante, boa parte das
autoridades civis aceitou o convite de assistir a solenidade, por política!
(...) Sobretudo, está lá o seu grande crime: tiraram a santidade do matrimônio cristão,
substituindo-o pelo concubinato civil. Quando cheguei no Arari, em torno de mil
famílias, não havia trezentas com casamento religioso. O povo aceitava tal situação
como se fosse coisa normal. (...) Vim munido de todas as faculdades necessárias, mas
relativamente poucos aproveitaram. Diziam abertamente: “o padre pede muito
dinheiro”. E quando eu perguntava: “Quanto dinheiro pede o vigário”, nada
respondiam, porque nunca se deram ao trabalho de saber por si mesmos. Repetiam o
que se dizia entre o povo. Feiticeiros, protestantes e maçonizantes alimentavam
todas essas asneiras (FERNANDES, 2012, p. 62-63. Grifo nosso).

A questão do conflito religioso aparece neste trecho do relato de padre


Verneullen com maior acidez, demonstrando o quanto causava incômodo para a Igreja a
concorrência dos serviços salvíficos oferecidos por outras crenças, seja a das religiões
afro-brasileiras, das agremiações maçônicas ou do protestantismo. Todo esse olhar
direcionado pelo padre holandês aos aspectos culturais, socioeconômicos e religiosos da
cidade acabou influindo na atuação do vigário Clodomir Brandt, que para Arari se
deslocou sabendo, sob a ótica de um sacerdote da Igreja, dos problemas e das
dificuldades que iria enfrentar e das possibilidades de sua ação religiosa germinar e
colher frutos.

Assim, às oito horas da manhã do dia 8 de janeiro de 1944 desembarcou no


porto principal de Arari o padre Clodomir Brandt e Silva, que chegou para ser o vigário-
residente do município, função há muito reclamada por moradores do local e líderes da
Igreja no Maranhão. Padre Brandt tinha 26 anos de idade quando aportou na cidade,
sendo recebido pelo prefeito Antônio Anísio Garcia, autoridades, estudantes e pelas
principais famílias católicas, que trataram de sua acomodação e da realização de um
cerimonial de boas-vindas, com música, foguetes e cortejo de condução do pároco até a
Igreja (FERNANDES, 2012, p. 75), bem diferente do acolhimento dado ao seu
antecessor missionário no município, que não gozou de nenhum tipo de recepção
“calorosa” quando de sua chegada a Arari, salvo a do calor do sol, imaginando tratar-se,
à primeira vista, de uma “cidade desértica”.
103

No entanto, as “comemorações” por conta da chegada de padre Brandt a Arari


logo contrastariam com as efervescentes disputas travadas em torno da hegemonia
político-religiosa engendrada pelos demais agentes do espaço social em disputa, em
decorrência de sua significativa atuação e intervenção em diferentes esferas, deixando
marcas indeléveis na sua história de vida, na Igreja e na própria cidade.

2.2 Em nome da Igreja: “projetos” sociais e mediação cultural no interior do


Maranhão

A atuação do padre Brandt em Arari vai além de sua “missão” evangelizadora. É


no município que ele cria e organiza diversas instituições culturais, educacionais,
midiáticas e religiosas, além de atuar de forma incisiva e decisiva no cenário político-
partidário da cidade e de se dedicar à atividade literária a ponto de ser reconhecido
como um “intelectual católico”, realçando assim o processo de hibridização que
caracteriza seu ofício sacerdotal e, num nível macro, a necessidade da Igreja de intervir
e influir em outros domínios sociais como estratégia de recomposição de seu poder
simbólico e de reestruturação do espaço religioso local, visando à hegemonia do
catolicismo.

A abordagem neste tópico consiste no exame das principais ações de padre


Brandt e nos recursos acionados por ele para legitimar sua intervenção enquanto
mediador cultural na cidade de Arari, na tentativa de descortinar o caráter consagrador
de seu itinerário, muitas vezes apresentado por aqueles que constroem a “história” com
elementos de “empreendedorismo”, “pioneirismo” e até certo “heroísmo” social
(SEIDL, 2007, p. 81).

Além disso, analisa-se a interpenetração das esferas cultural e religiosa e as


injunções daí derivadas e refletidas na esfera política de Arari, o que provocou o
acirramento das disputas em torno da imposição de regras, limites e definições do
âmbito de atuação dos agentes envolvidos no espaço de poder mais amplo.
104

2.2.1 Educação e cultura como base da obra religiosa

No dia 15 de fevereiro de 1944, pouco mais de um mês após sua chegada ao


município de Arari, padre Clodomir Brandt funda o Instituto Nossa Senhora da Graça, a
primeira escola sob sua administração, tendo como sede inicial a casa em que residia.
Posteriormente, com o aumento da quantidade de alunos, alugou uma construção maior
e próxima à Igreja, onde morava com a mãe e um irmão e ensinava os alunos da cidade
e outros vindos de municípios vizinhos, todos do sexo masculino.

Já em junho de 1945, o vigário de Arari funda, em parceria com colaboradores


de sua confiança, aquilo o que viria a ser a pedra angular de sua ação missionária, a
Associação da Doutrina Cristã (ADC). Os principais objetivos dessa instituição de
cunho caritativo era debater, fomentar e organizar ações que visassem levar educação,
cultura, ensino religioso e assistência social para a população (BATALHA, 2011;
FERNANDES, 2012).

Para alcançar tal intento, a ADC dividia-se em quatro secretarias que tratavam
especificamente dos temas arrolados: secretarias de educação, de catequese, de cultura e
de assistência, tendo como diretor-geral o padre Brandt. Sob os cuidados da Secretaria
de Educação, ficaram o Instituto Nossa Senhora das Graças e a Fornecedora
Educacional, depois transformada em livraria; a Secretaria de Cultura destinava-se à
realização de encontros, palestras, conferências, encenação de peças teatrais,
desenvolvimento de um coral religioso e fundação de um “Boletim Paroquial”, que só
viria a circular na cidade em 1946, produzido e impresso primeiramente em São Luís e,
a partir de 1953, em Arari; a Secretaria de Catequese cuidava dos centros de catecismo,
mantinha os catequistas e vendia livros religiosos a domicílio; e a Secretaria de
Assistência dedicava-se a ações caritativas, especialmente na Páscoa e no Natal, além de
cuidar da educação de “crianças carentes”. Anos mais tarde, em meados da década de
1960, assim se expressava padre Brandt sobre a instituição filantrópica de orientação
católica: “A ADC, na verdade, quer atingir todas as manifestações da vida humana e
para isso foi organizada com estatuto de caráter polivalente” (FERNANDES, 2012, p.
84).
105

Com efeito, a organização institucional e estrutural dos serviços realizados pela


Associação da Doutrina Cristã, cujo estatuto possuía um “caráter polivalente”, se
constituiu num exemplo irrefutável da hibridização das ações da Igreja Católica no
Maranhão. Contudo, se por um lado a entidade filantrópica visava justamente a
intervenção em diferentes domínios sociais como forma de garantir o poder de
influência da Igreja perante os setores estruturantes da sociedade arariense, por outro a
ADC servia como um instrumento de captação, seleção e reprodução de mentes
voltadas para a execução dos serviços eclesiais. Segundo Fernandes (2012, p. 108),

uma das metas da ADC foi a de financiar os estudos de jovens inteligentes cujas
famílias não pudessem mantê-los estudando até o curso superior. Objetivava o
propósito de formar um médico, um advogado e uma assistente social mediante o
compromisso destes, depois de graduados, trabalharem para a comunidade arariense, em
parceria com a ADC. Pretendia, ainda, por meio de ajuda financeira, facilitar o acesso a
alguns vocacionados para o mister sacerdotal (Grifo nosso).

As dificuldades encontradas na concretização de tais objetivos foram muitas,


particularmente impostas pela própria ADC que, mesmo tendo encaminhado alguns
jovens para o Seminário de Santo Antônio, em São Luís, nenhum deles chegou a se
ordenar, deixando o recinto vocacional após a conclusão do denominado “seminário
menor”. As exigências impostas pela Associação aos estudantes por ela financiados
consistiam na realização de serviços prestados à Igreja como forma de “retribuição”,
exercendo atividades de professor, locutor do serviço de som “Voz de Arari”, operador
do cinema da cidade, instrutor de internato e outra tarefas determinadas pela entidade
com prazos previamente estabelecidos (ibid., 2012, p. 109).

Ainda assim, e talvez por isso mesmo, ou seja, pelas dificuldades em se garantir
a reprodução de uma classe de agentes voltados para o trabalho da ADC e da Igreja,
padre Brandt deu continuidade ao seu “projeto desenvolvimentista” da cidade. Em 15 de
março de 1947, com recursos oriundos das ações da entidade caritativa, é inaugurado o
Instituto Bom Jesus dos Aflitos, destinado exclusivamente para estudantes do sexo
feminino, a fim de se contrabalançar o peso educacional do Instituto Nossa Senhora das
Graças, escola destinada apenas para o público masculino.

Em julho do mesmo ano, o sacerdote inaugura a biblioteca da ADC,


posteriormente denominada de Biblioteca Justina Fernandes, em homenagem à prefeita
eleita sob a influência do vigário e que muito havia colaborado, durante sua gestão
106

municipal, com a ADC e os trabalhos de construção da igreja matriz. Inicialmente, o


espaço de leitura contava com um pequeno número de livros escolares, religiosos e de
formação infanto-juvenil, doados pela comunidade. Depois, o acervo fora acrescido
com recursos da ADC, que adquiriu obras científicas e literárias de conhecimento
universal, não demorando muito a colecionar mais de seis mil títulos, tornando-se assim
um dos principais centros de conhecimento para a população escolarizada da cidade.
Contudo, a referida biblioteca não era a única de Arari. Em novembro de 1940, o
prefeito Anísio Garcia já havia fundado a Biblioteca Pública Municipal, a primeira da
cidade (BATALHA, 2011, p. 130).

Em 1948, padre Brandt inaugura o serviço de alto-falante “Voz de Arari”,


primeiro veículo de comunicação social da cidade; no ano seguinte, funda o “Cine
Paroquial de Arari”, o primeiro cinema a ser instalado em todo o território do Estado do
Maranhão; já em 1951, ele funda a Escola de Música Carlos Gomes, referência na
região, que funcionou até o ano de 1958; em 1953, inaugura a Escola de Artes Gráficas
Belarmino de Matos, mesmo ano de fundação do jornal “NOTÍCIAS”; já depois da
metade dos anos 1950, inaugura o Teatro Experimental de Arari, onde atua como
professor de oratória; e, pela mesma época, organiza o Coral Santa Cecília, composto
por homens e mulheres da comunidade.

Após um período sem inaugurações, padre Brandt funda, em 1964, o “Ginásio


Arariense”, escola de curso secundário através da qual oferecia à população a
oportunidade de continuar os estudos na própria cidade. Já em 1968, com a necessidade
de dar formação de nível especializado aos alunos, o pároco funda a “Escola Normal”,
na qual se formam dezenas de professores. No ano seguinte, ainda inaugura o “Jardim
de Infância Menino Jesus”, sempre com recursos oriundos da ADC. No ano de 1984, as
escolas Instituto Nossa Senhora das Graças, Instituto Bom Jesus dos Aflitos, Ginásio
Arariense e Escola Normal foram unificadas e transformadas no “Colégio Arariense”,
que ainda funciona nos dias atuais.

As intervenções e interpenetrações entre cultura e religião são tão indistinguíveis


nas ações de Clodomir Brandt que ele, no calor do ano de 1963, a convite da União
Arariense dos Estudantes, participa da Semana da Cultura de Arari, para a qual elaborou
uma conferência denominada “Os cristãos e a arte”, onde são abordadas as
possibilidades de uma crítica literária produzida por um viés religioso, reivindicada pelo
107

sacerdote como legítima, e criticada a separação entre a escrita literária profana e a


produção “intelectual” de padres católicos, considerada pelo senso comum e entre os
“letrados” de nível “menor”.

Logo no prólogo de sua conferência, padre Brandt expõe, com nítida firmeza de
posicionamento, que discutir arte e catolicismo e a legitimidade de uma crítica literária
de cunho religioso é de “sumo interesse para os intelectuais católicos” e “nenhum deles
pode fugir ao problema”.

(...) Como sacerdote e representante da Igreja, Mãe de todas as culturas, não me ficava
bem ausentar-me de movimento tão belo, símbolo e prenúncio de uma nova era que se
inicia para esta terra a que já estamos vinculados por fortes e indestrutíveis laços de
amizade.
(...) Aqui, pois, estou para convosco compartilhar desses momentos de fino e deleitoso
discretear sobre arte e sobre cultura.
Propus-me, então, com certa ousadia, fazer um trabalho sobre a crítica literária e os
católicos, ou melhor, examinar se há alguma divergência ou incompatibilidade
entre o espirito católico, com seus dogmas e sua intransigência, e a legítima e boa
crítica literária.
O problema é de indiscutível complexidade e requer, de quem o enfrenta, qualidades
superiores de inteligência e de cultura que me são escassas.
Nem por isso, porém, julguei-me com direito a omitir-me em assunto de tanta
relevância e tão indispensável nos tempos de hoje (...). Cremos que há somente um
norte a seguir, na bússola do mundo, e é a reorganização de tudo em bases filosóficas,
mas filosóficas no legítimo sentido, isto é, no sentido cristão (...).
Não é a primeira vez que se equaciona o problema que motiva nossa palestra, nem tão
pouco sou o primeiro ou o último a procurar sua solução. Outros de mais cultura, e,
portanto, de mais equilíbrio em seus conhecimentos, já o estudaram e deram suas
respostas, que vão desde o afirmar a impossibilidade de uma crítica verdadeira feita por
católicos, até ao extremo oposto, de dizer-se ser a única a realmente poder considerar-se
como legítima e também a única em condições de aferir o valor das obras de arte.
Muitos também virão depois, e cada um irá colocando suas vigorosas inteligências a
serviço da causa que não deixa de ser de sumo interesse para os intelectuais católicos.
O assunto tem sido na realidade uma preocupação dos escritores católicos e
nenhum deles pode fugir ao problema.
(...) Os inimigos do pensamento católico fazem questão de frisar que nós, os que
cremos, os que temos dogmas e que somos intransigentes em matéria de Fé e de Moral,
jamais teremos serenidade bastante para manter imparcialidade perante uma obra,
mesmo de arte pura, mas que não se regule pelo estalão de nossa doutrina e de nossos
princípios (SILVA, 1983, p. 11-12. Grifo nosso).

Padre Brandt constrói um discurso justificando a necessidade da interferência


dos “intelectuais católicos” no mundo profano das artes e das letras em bases filosóficas
de orientação cristã, uma vez que “a Igreja é a Mãe de todas as culturas”. O sacerdote
esforça-se na tentativa de “examinar se há alguma divergência ou incompatibilidade
entre o espirito católico, com seus dogmas e sua intransigência, e a legítima e boa crítica
literária”, colocando o “problema” como de interesse de todos os escritores católicos e,
108

assim, legitimando a discussão proposta e direcionando seus argumentos para a


validação de uma crítica literária calcada em termos doutrinários da religião católica.

Na sequência de sua referida conferência, Clodomir Brandt expõe seu


pensamento sobre o que é crítica literária, sua importância e suas “qualidades”,
chegando ao ponto onde aborda a participação dos católicos e sua possibilidade de
intervenção crítica no campo da literatura.

Agora perguntamos: E os católicos, possuidores de dogmas e intransigentes na sua


doutrina, teriam, porventura, essa imparcialidade, tão necessária e mesmo indispensável
ao crítico literário?
Para termos a resposta a esta pergunta, comecemos por dizer em que consiste o belo
artístico que é o objeto das pesquisas do crítico. De passagem digamos que no
Catolicismo está concentrada toda a Beleza, toda a Verdade e ela só existe e só pode
existir onde há o belo e o verdadeiro. Fora da Beleza e da Verdade não se pode
encontrar o que possui a perfeição da Ordem que é o Catolicismo.
(...) E quando, além de tudo, o juiz é católico, e, logo, tem uma consciência, informada e
formada por princípios que nascem do Evangelho, é de exigir-se dele com maior razão,
critério e honestidade no ato de julgar as coisas.
Assim também o crítico literário católico, por sua própria qualidade de católico,
deve ter um julgamento muito mais sereno, imparcial e equilibrado, que os
agnósticos ou heterodoxos.
Não há, portanto, uma incompatibilidade entre o ser católico e o ser crítico literário,
mas, sim um aperfeiçoamento do crítico que também é católico. Isto se ele for
verdadeiro católico e verdadeiro crítico, pois de um e de outro há muitas vezes berrantes
falsificações que constituem legítima negação do que dizem ser (SILVA, 1983, p. 13-
14. Grifo nosso).

Segundo padre Brandt, a condição ou “qualidade de católico” deve conduzir o


crítico literário a “um julgamento muito mais sereno, imparcial e equilibrado, que os
agnósticos ou heterodoxos”, haja vista que é “no catolicismo onde está concentrada toda
a Verdade”. Para o sacerdote, a intervenção de agentes católicos na literatura não é uma
incompatibilidade, mas sim “um aperfeiçoamento do crítico que também é católico”. O
discurso de Brandt legitima e estimula a participação e intervenção de escritores
religiosos no campo “profano” da literatura, por assim dizer, constituindo-se, pois,
numa das estratégias da Igreja em recuperar seu prestígio e influência num domínio
social, qual seja a escrita literária, como contraponto ao amplo domínio exercido por
“intelectuais” que não comungavam dos preceitos do catolicismo, classificados pela
instituição eclesiástica de “agnósticos” ou “heterodoxos”.

O sacerdote finaliza sua conferência “Os cristãos e a arte”, resumindo seu


discurso numa espécie de apontamentos gerais e tecendo sua visão sobre “o afastamento
da Fé dos homens de letra”:
109

O verdadeiro católico, por ter uma consciência cristã, é o melhor juiz.


Logo, não há incompatibilidade entre o católico e o crítico, desde que haja nele o
verdadeiro espírito crítico. Aliás, os católicos não devem jamais tomar uma postura
de indiferença ou hostilidade ante o fato literário. A sua omissão provocou o
afastamento da Fé dos homens de letras e trancou a própria produção literária
católica em um verdadeiro círculo de ferro, que muito tem prejudicado e até
arruinado (SILVA, 1983, p. 15. Grifo nosso).

Desta forma, é possível perceber as disputas ideológicas pelo poder simbólico de


imposição dos pressupostos da definição legítima do que é “cultura”, do que é “arte” ou
do que é “religião”, sem descurar dos condicionantes sócio-históricos que incidem sobre
tais definições, haja vista que padre Brandt escreve no ano de 1963 enredado pelas
novas determinações doutrinárias emanadas de Roma por meio do Concílio Vaticano II
(1962-1965), que legitimaram a participação de católicos nos debates públicos. O
sacerdote constrói, assim, uma lógica de justificação na qual baseia suas ações e
cimenta o terreno para a operacionalização de estratégias de ocupação de posições de
poder por parte de agentes da Igreja.

2.2.2 Comunicação social e projeção político-religiosa do padre Brandt

A partir de fevereiro de 1946, começa a circular em Arari o primeiro número do


“BOLETIM PAROQUIAL”, cujo objetivo era divulgar os assuntos da igreja local e do
mundo católico. Contudo, com o tempo, a linha editorial do periódico, impresso na
capital, foi se “ajustando aos interesses do padre Brandt”, que era o responsável por sua
distribuição na cidade (FERNANDES, 2012, p. 87). Após um certo período sem
circular, o jornal retomou suas atividades em 1953 rebatizado de “NOTÍCIAS”, já
produzido, editado e impresso em Arari pelos alunos da “Escola de Artes Gráficas
Belarmino de Matos”, sob a direção de padre Brandt. Segundo José Fernandes (2012, p.
88),

o semanário desempenhou o seu papel de órgão esclarecedor das questões sociais,


políticas e religiosas do seu tempo, desencaminhando-se, aos poucos, para a defesa
desmesurada das ideias de seu dirigente e redator, por vezes estrambótica, sem se
preocupar com a autenticidade dos fatos.
110

Observa-se nessa descrição que o padre Brandt visualizou no jornal paroquial a


possibilidade de influenciar o debate político, cultural e religioso na cidade, sob a ótica
do catolicismo, abrangendo um público que não se restringia apenas ao âmbito
eclesiástico. Além disso, os usos sociais que faz desse jornal interferem decisivamente
nos rumos da vida política do município de Arari, onde a escrita acaba se constituindo
em sua principal arma na disputa simbólica (e que também descambou para agressões
físicas, quase trágicas) pela prevalência dos interesses de cada agente ou grupo em jogo.

O jornal “NOTÍCIAS”, contudo, não foi o único veículo midiático fundado por
padre Brandt para atingir seus propósitos. Dirigindo e redigindo praticamente sozinho
as mais de quinhentas edições do referido periódico impresso, ele ainda teve fôlego para
fundar e escrever no informativo “RELÂMPAGO”, “uma publicação esporádica, que
circulava quase sempre em tempos de campanha eleitoral de seu interesse” (ibid., 2012,
p. 173). Infelizmente, no transcurso da pesquisa, não foi possível o acesso a tais fontes
por falta de informações que levassem ao local exato onde estão guardadas.

Além disso, o vigário juntou forças para, no dia 11 de julho de 1948, inaugurar a
“Voz de Arari”, um serviço de alto-falantes que se constituiu no primeiro veículo de
comunicação social de alcance mais abrangente na cidade. O serviço contava com uma
amplificadora que possuía três potentes saídas de som instaladas na torre da igreja
matriz. Assim, a “Voz de Arari” era

ouvida por quase toda a população, transmitia variada programação – músicas clássicas
e populares, convites, avisos, programas de calouros, mensagens de congratulações aos
aniversariantes, principalmente quando o aniversariante era o próprio vigário, que cedo
se tornara um ídolo venerado pelos seus seguidores (FERNANDES, 2012, p. 107).

Como exemplo sintomático dos usos diversos que fazia de seu sistema de
comunicação falada, em dezembro de 1953 padre Brandt organizou um grande comício
político na Praça da Matriz e uma posterior passeata pelas principais ruas da cidade, em
apoio ao candidato Henrique de La Rocque Almeida27 que pleiteava uma cadeira no

27
Advogado e jornalista, Henrique de La Rocque se tornou uma das mais expressivas figuras políticas do
Maranhão. Natural de São Luís, nasceu em 8 de agosto de 1912, cursou o ginásio na Bahia e ingressou na
Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro (atual UFRJ). No início dos anos 1950,
consegue ocupar vários cargos na esfera burocrático-administrativa, através dos quais estabelece
determinadas relações sociais que acabam influenciando-o a atuar no domínio da política, vindo
candidatar-se ao Senado, em 1953, com o apoio de Getúlio Vargas, tendo sido derrotado pelo candidato
apoiado por Vitorino Freire. Contudo, seu poder político se consolida e se traduz nos cinco mandatos
consecutivos que exerceu como deputado federal pelo Maranhão: 1954-1958 (PTB), 1958-1962 e 1962-
1966 (PSP), 1966-1970 e 1970-1974 (Arena). Em 1974, conseguiu costurar alianças com diversas forças
111

Senado da República. Tanto o comício quanto a passeata foram transmitidos em tempo


integral pela “Voz de Arari”, causando grande repercussão política na cidade, tendo,
contudo, ao fim, La Rocque perdido a vaga para o candidato apoiado por Vitorino Freire
(personagem que será abordado mais adiante).

Tais acontecimentos evidenciam os usos políticos que o sacerdote fazia de seus


veículos de comunicação, não só de língua escrita, como também da verbalização por
meio da língua falada, ao passo que revelam o grau de alianças e redes de relações que
estabeleceu com as elites políticas maranhenses, tanto locais quanto regionais.

Outro exemplo significativo da utilização dos canais de comunicação em


detrimento dos interesses do vigário de Arari se deu durante a realização da 1ª Semana
Rural do Maranhão, ocorrida no município entre os dias 22 e 25 de agosto de 1953. O
evento, que contou com o apoio de organizações da Igreja Católica e foi patrocinado
pela Arquidiocese do Maranhão, pelos ministérios da Agricultura e da Educação, pelo
Governo do Maranhão e pela Prefeitura de Arari na gestão de Bembém Fernandes, teve
como principal coordenador logístico e operacional o padre Brandt. Foi ele quem
conseguiu trazer para Arari, com a ajuda do tio Cláudio (presidente do Banco Rural do
Estado, à época), membros da alta hierarquia eclesiástica, inclusive o arcebispo do
Maranhão e o representante do papa, vindo direto do Vaticano. Além disso, o evento
contou com a presença ilustre de ministros, bacharéis, médicos como o renomado João
Mohana (que ainda viria a ser padre, personagem do próximo capítulo da dissertação),
engenheiros agrônomos, zootecnistas, assistentes sociais, educadores e jornalistas de
várias regiões do país, estes últimos com a missão de difundir a realização do evento a
nível nacional e de exaltar a imagem do vigário de Arari, tornando-o ainda mais popular
na cidade e, consequentemente, em todo o Estado.

Assim, dispondo de reconhecido prestígio social e de um volumoso capital


simbólico, adquirido principalmente pela posse dos meios de dominação simbólica (os
canais midiáticos), padre Brandt começa a esboçar os primeiros contornos de sua
inserção na vida política do município, intervindo não mais apenas nas esferas cultural e

políticas maranhenses para lançar-se novamente ao Senado, conquistando e exercendo o mandato de 1974
a 1980, ano em que foi indicado para assumir o cargo vitalício de ministro do Tribunal de Contas da
União, vindo a falecer dois anos depois, em 1982. O prestígio conquistado junto às elites políticas do
Maranhão se reflete, como exemplo, na escolha de seu nome para batizar o palácio do Governo do
Estado, durante o governo de Edison Lobão (1991-1994), passando a chamar-se até os dias atuais de
Palácio Henrique de La Rocque. As informações sobre a carreira política deste personagem estão
disponibilizadas no site do Senado Federal, cujo endereço é www.senado.gov.br.
112

religiosa, com vistas a alavancar o poderio simbólico da Igreja na localidade e, ao


mesmo tempo, projetar-se em posições relativamente bem alocadas no jogo em disputa,
especialmente na definição dos rumos que as elites políticas e rurais da cidade iriam
decidir a partir de então.

A realização da Semana Rural, tão reverberada nos veículos locais e nacionais,


conforme se pode constatar em artigo publicado no “JORNAL DO MARANHÃO” pelo
arcebispo D. José Medeiros Delgado (FERNANDES, 2012, p. 125), se constituiu num
trampolim para a inserção definitiva e decisiva do pároco no cenário político de Arari,
onde a escrita (particularmente a veiculada nos canais de comunicação de sua
propriedade) será o seu principal instrumento de luta na conquista de posições e na
demarcação de posicionamentos no jogo em disputa.

2.3 A escrita como luta política: posições, posicionamentos e embates políticos

Clodomir Brandt e Silva entra na vida política de Arari pouco tempo depois de
assumir o posto de vigário-residente da cidade. Seu engajamento nas questões políticas
municipais está irremediavelmente associado à sua ação missionária católica, ao status
social adquirido perante a comunidade arariense e ao somatório de inúmeros processos e
condicionantes históricos, políticos, culturais e religiosos que, de certo modo, foram
corporificados em suas práticas e representações, nas modalidades de expressão verbal
falada e escrita.

Para se entender bem as nuances de sua atuação na esfera política de Arari, faz-
se necessário observar que as transformações macro e microssociais processadas
historicamente foram conferindo ao padre Brandt um repertório variável de mobilização
e de engajamento, desde sua entrada numa escola de ensino fundamental de grande
dinamismo cultural ao seu ingresso no Seminário de Santo Antônio (sob o
financiamento direto de seu abastado tio Cláudio), onde os estudos de conhecimento
geral e seu relativo “sucesso” como estudante, aliado às redes de contatos e alianças que
estabeleceu durante sua vida seminarística explicam, em parte, o seu envolvimento em
questões não necessariamente inscritas no domínio da espiritualidade e da atividade
sacerdotal.
113

À custa de investimentos (mais ou menos conscientes) que ensejaram as


possibilidades de aquisição e irrupção das disposições à vida pública, padre Brandt
consegue posicionar-se como um mediador cultural necessário no processo de
inculcação dos valores morais e religiosos entre a população arariense, além de ser um
efusivo fomentador das práticas culturais na cidade, ainda que pelo olhar “vigilante” da
Igreja Católica, seja na programação exibida em forma de teatro, pelo sistema de alto-
falante, no cinema, nos jornais impressos, nas escolas, enfim, em todas as esferas onde
atuou e interviu de forma decisiva e irrevogável.

Não se pode negligenciar, contudo, o fato de que os usos sociais da palavra


escrita e falada se constituíram para nosso personagem as principais ferramentas com as
quais ele lutou contra aqueles que ameaçavam seu poder e sua autoridade, delegados
pela Igreja e reconhecidos socialmente pela população. O acionamento de tais recursos
foi decisivo na edificação de práticas e representações que visavam à reformulação da
percepção dos demais agentes sobre o mundo social, suscitando nestes, assim, novas
práticas e representações, agora esculpidas sob a insigne da moral e dos valores
católicos.

Desta forma, só se pode compreender a atuação político-partidária de padre


Brandt na cidade de Arari se levarmos em consideração a resultante de todos esses
fatores que, em seu conjunto, resultaram num processo de disputas, concorrências,
clivagens e bricolagens que, em última instância, ultrapassaram as barreiras do discurso
ideológico e chegaram à consumação de práticas mais atinentes a um estado de
violência física, ensejando assim o grau de ativismo e de envolvimento a que chegaram
os agentes em foco, particularmente o sacerdote Clodomir Brandt.

2.3.1 Um padre político

Aqueles que se debruçaram sobre a história de vida de padre Brandt, cujas


pesquisas serviram de argamassa para a tessitura deste trabalho (BATALHA, 2011;
FERNANDES, 2012; SOUSA, 2003), sustentam que a entrada do sacerdote na vida
política de Arari se deu por conta da constatação de perda da influência da Igreja
Católica perante a sociedade arariense, em decorrência das quase oito décadas de
114

ausência de um sacerdote fixo naquelas plagas interioranas. O próprio padre Brandt


assevera uma outra condição para sua entrada na esfera político-partidária da cidade: a
de que o protestantismo estava imbricado na vida pública do local, haja vista que grande
parte das autoridades, quando de sua chegada, eram protestantes (SILVA, 1990, p. 42).

Seja lá como for, é importante observarmos que seu envolvimento direto nos
assuntos políticos de Arari provém de uma noção formulada e adquirida por um tipo de
catolicismo que deveria intervir nas diversas instâncias da sociedade para retomar o
poder da Igreja no local e garantir a realização da obra missionária católica, conforme
demonstrado na institucionalização e no desenvolvimento das ações empreendidas pela
Associação da Doutrina Cristã, a ADC, principal plataforma de sustentação das ações de
Brandt. Aliás, à medida que avançam as obras patrocinadas com recursos provenientes
da ADC, os conflitos político-religiosos vão se intensificando, principalmente nos
jornais de propriedade do padre, tendo em sua figura o principal redator e combatente.

Os adversários que vão se constituindo ao longo das ações implementadas por


Clodomir Brandt passam a ser cunhados pelos próprios adeptos à figura de nosso
personagem de “barriguistas”, em alusão ao principal líder da oposição aos feitos do
sacerdote católico, Antônio Anísio Garcia, que ostentava em sua região abdominal
protuberantes saliências.

Antônio Garcia chega ao cargo de prefeito de Arari em 1921, ao vencer a disputa


eleitoral contra o seu cunhado João da Mata Fernandes, com uma diferença de apenas
dezenove votos. Apesar das acusações que apontavam fraude em sua eleição, Garcia
consolida-se no poder como a principal liderança política da cidade (BATALHA, 2011,
p. 116), posição que ocupa por mais de trinta anos, até a chegada de padre Brandt ao
município.

Apesar disso, uma nova configuração política se estabelece no seio de sua gestão
municipal com a ascensão ao poder, no plano nacional, de Getúlio Vargas. A partir da
gestão varguista, especialmente com o advento do Estado Novo, em 1937, Arari passa a
ser administrada por interventores nomeados. Nesse mesmo ano, Paulo Martins de
Sousa Ramos é nomeado Interventor Federal no Maranhão, cuja administração segue
até o ano de 1945. Através de laços de amizade estabelecidos com o novo interventor,
Antônio Garcia volta a ocupar a cadeira na Prefeitura de Arari, agora não mais como
prefeito, e sim como interventor municipal (SOUSA, 2003, p. 21). Porém, sua posição
115

no posto sofreria inúmeras injunções e interferências por parte do novo sistema político
vigente no país, fazendo com que se instalasse um estado de intermitência política em
Arari, ora com a presença de Garcia no comando da Prefeitura da cidade, ora com o
advento de outros personagens políticos ocupando o referido cargo28.

Com o desembarque de Clodomir Brandt na cidade, o tabuleiro político vigente


se altera e passa a contar com um novo personagem em cena, cuja intervenção nos
assuntos e debates públicos irá projetar sua figura como elemento não negligenciável no
jogo em disputa. É nesse contexto que a oposição ao já denominado “barriguismo”
ganha o apoio de peso do padre Brandt, tendo seu envolvimento na política arariense em
favor dos opositores aos “barriguistas”, os chamados “padristas”.

Tais denominações jocosas, esculpidas em consonância à lógica vigente de


definição e identificação dos grupos de agentes pelo nome de um dos líderes ou pela
característica fenotípica que apresentavam com maior clarividência, remetem às
disputas entre os grupos que lhes antecederam, de quem são considerados herdeiros
políticos: os “lucilinistas” e os “marcelinistas”29.

A partir de então, essa disputa entre “padristas” e “barriguistas”30 começa a se


instituir como a principal clivagem política local, não se definindo apenas em torno da
conquista e manutenção da Prefeitura da cidade, mas também pela disputa da
hegemonia partidária local.

Em consonância com essas pelejas políticas, e de modo indistinguível, se


processaram também as lutas pelo monopólio religioso no município, tendo na
polarização conflituosa entre católicos e protestantes seu exemplo mais nítido e
sintomático, uma vez que Antônio Garcia havia sido convertido ao protestantismo e
reunido em torno de si as principais lideranças políticas de orientação religiosa
protestante, em concorrência direta aos seguidores católicos de padre Brandt.

28
Sobre esse “vai-e-vem” de Garcia no poder político-administrativo de Arari, consultar Batalha (2011, p.
130-136).
29
Os “padristas” sucederam os “lucilinistas”, e os “barriguistas”, os “marcelinistas” (BATALHA, 2011,
p. 148). Os “marcelinistas” foram assim chamados por conta de seu líder, Marcelino Eduardo Chaves. Já
os “lucilinistas” eram liderados por Lucílio Quintino Fernandes. Os dois grupos foram os protagonistas
das disputas pelo controle do poder político local nas eleições de 1912 para a Intendência Municipal.
Ambos os lados, contudo, eram pertencentes às famílias “tradicionais” de Arari, e ainda estavam ligados
por laços de parentescos entre si (SOUSA, 2003, p. 17-19).
30
Sobre a origem e os detalhes dos conflitos entre os seguidores de Antônio Garcia e de padre Brandt,
resumida na dicotomia “padristas e barriguistas”, ver Sousa (2003).
116

Dessa forma, política e religião se tornaram praticamente domínios


indissociáveis no exame dos embates políticos e dos conflitos religiosos no interior do
Maranhão, ora as lutas partidárias interferindo nas ações evangelizadoras, ora as
doutrinas religiosas intervindo na elaboração e implantação de “projetos” políticos,
evidenciando, por fim, a precária demarcação de fronteiras entre essas duas esferas.

As disputas político-partidárias em Arari concentraram-se em torno de apenas


dois partidos: PSP e PSD. Clodomir Brandt filiou-se ao Partido Social Progressista
(PSP) por volta do ano de 1946, logo assumindo a função de dirigente da sigla, que
fazia oposição ao Partido Social Democrático (PSD), legenda “situacionista”
comandada por Antônio Anísio Garcia. Este ainda exercia forte influência sobre os
demais partidos locais, congregando em suas fileiras especialmente dirigentes do
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e do Partido Social Trabalhista (PST), entre
vereadores, autoridades policiais, magistrados e funcionários da esfera burocrático-
administrativa (SOUSA, 2003, p. 22). No entanto, as facções partidárias do PSP e do
PSD conseguiram aglutinar em sua circunscrição de influência as principais forças
políticas em jogo na época, particularmente representantes (filhos, tios, netos,
sobrinhos, etc.) das famílias ararienses mais abastadas que disputavam entre si o poder
político municipal.

Em fins da década de 1940, o partido situacionista (PSD) era composto por três
distintos representantes: Antônio Garcia, ex-prefeito e ex-interventor municipal, um dos
líderes políticos mais antigos e atuantes da cidade; Teodoro Antônio Batalha, que já
havia sido presidente da Câmara Municipal e suplente de deputado estadual; e Cipriano
Ribeiro dos Santos, rico fazendeiro, ex-prefeito e ex-delegado de polícia (BATALHA,
2011, p. 152-153). Foi contra estes agentes que o vigário de Arari travou seus maiores
combates políticos, utilizando-se para tanto de todos os meios de que dispunha,
principalmente os seus veículos de comunicação.

Dessa forma, visando recompor o poder simbólico da Igreja Católica na cidade,


que enfrentava uma forte concorrência religiosa promovida por outras crenças, em
especial o protestantismo, e lutar pela conquista política da Prefeitura, a fim de sustentar
de forma mais efetiva o conjunto das obras iniciadas e patrocinadas com o limitado
capital financeiro da ADC, além de já dispor de certo prestígio e reconhecimento
conquistados pelas ações e projetos socioculturais postos em prática, padre Brandt
117

estreia na esfera político-partidária de Arari nas eleições municipais de 1947 – já findo o


Estado Novo varguista e restituído o sistema democrático eleitoral –, ao lançar, sem
êxito, a candidatura de José Soares para prefeito, tendo como concorrente o candidato
José Aureliano do Vale, nome indicado por Antônio Garcia que, ao fim do pleito, saiu-
se vitorioso.

Essa primeira experiência político-partidária, ainda que tenha resultado numa


derrota eleitoral, rendeu frutos e novos aprendizados a padre Brandt, pois na eleição
seguinte, em 1950, sob sua influência, é eleita a prefeita Justina Fernandes Rodrigues
(também conhecida como Dona Bembém ou Bembém Fernandes), sobrinha de Antônio
Garcia, seu adversário, que havia lançado como candidato o coronel Cipriano Ribeiro
dos Santos. Com a vitória eleitoral de Dona Bembém, pela primeira vez na história
política de Arari, levando-se em consideração o interregno da “Era Vargas” (1930-
1945), Garcia deixa de ter alguém de sua zona de influência no comando político-
administrativo da cidade, o que contribuiu, por outro lado, para a ascensão irrefreável de
Clodomir Brandt.

A administração da prefeita Justina Fernandes, dentre outras realizações,


“colaborou financeiramente para a conclusão das obras da igreja matriz e com os
empreendimentos da Associação da Doutrina Cristã” (FERNANDES, 2012, p. 135),
fortalecendo ainda mais o nome de padre Brandt no cenário político arariense. Contudo,
é interessante destacar as observações formuladas por Sousa (2003, p. 24), ao afirmar
que

em nenhum momento, a tomada da prefeitura pode ser vista como uma ruptura com as
práticas políticas do passado, nem muito menos com o poder econômico dominante. A
própria prefeita Justina Fernandes pertencia a uma família de grandes proprietários
rurais, que disputa o poder desde o início do século XX. Os embates permanentes entre
padristas e barriguistas mostraram a dimensão do interesse pelo poder e o nível de
envolvimento desses grupos com os mais altos escalões da política do Estado para se
sustentar ou readquirir o espaço perdido.

Tal perspectiva coaduna-se com a percepção de que, a partir da eleição de


Justina Fernandes, padre Brandt angaria uma série de sucessos eleitorais e vitórias em
disputas político-partidárias, ainda que sob fortes e casuísticas acusações de fraude,
sempre atuando como indicador dos nomes que iriam concorrer aos pleitos pelo lado
dos “padristas”, conforme ilustra a seguinte descrição no tocante às eleições de 1954:
118

Nessas eleições, ocorreu um fato inédito na política arariense: alegando que o juiz da
comarca, Dr. Nodson Jansen Penna de Melo, estava protegendo o Pe. Brandt, e seus
partidários, com uma incontestável fraude eleitoral, os políticos do PSD se recusaram a
votar e recomendaram aos seus partidários que não comparecessem às urnas, pois o
pleito seria nulo, pelo fato de o juiz ter entregue todo o material das eleições ao Pe.
Brandt e seus fiscais, e impedido os políticos do PSD de fiscalizarem a votação. Mesmo
assim, houve a eleição, denunciada e tida como fraudulenta, mas validada pelo juiz
eleitoral da comarca. Com essa decisão, o Pe. Brandt elegeu todos os nove vereadores
que compunham a Câmara Municipal (BATALHA, 2011, p. 142).

Observa-se no relato acima que o sacerdote Brandt mantinha estreitas relações


também com as elites político-burocráticas da cidade. Tais redes de contatos
transpassaram praticamente todas as obras públicas que fundou na cidade, pois sempre
contava com a presença de figuras ilustres dos altos escalões da hierarquia social e
política quando de suas inaugurações, não só municipais, mas também estaduais e
nacionais. Isso se deve, principalmente, ao fato de que sua inserção no cenário político
local o colocou em contato direto com os grupos dominantes de Arari e com as forças
que dirigiam o Governo Estadual, quer fossem as elites rurais, políticas, econômicas ou
administrativas.

Não se pode desconsiderar também o apoio decisivo de seu tio Cláudio, à época
presidente do Banco Rural do Maranhão, um dos maiores financiadores dos projetos
desenvolvidos por padre Brandt e mantidos através da ADC, que com seu prestígio
junto ao interventor Paulo Ramos facilitou os contatos do sacerdote com membros
dirigentes de diferentes segmentos e esferas sociais, regionais e nacionais (BATALHA,
2011; FERNANDES, 2012).

Dispondo desse capital social e de certo capital político acumulado por suas
experiências eleitorais, padre Brandt lança-se candidato à Prefeitura de Arari, em 1959,
disputando a preferência do eleitorado com o seu ex-aliado Benedito de Jesus Abas
(conhecido também como Biné Abas). Foi a primeira e única vez que os padristas se
dividiram. Aproveitando-se do afrouxamento dos laços entre os representantes do PSP,
os partidários do PSD decidiram apoiar Biné Abas, que venceu aquele pleito com
pequena margem de diferença de votos.

Padre Brandt ainda teria fôlego para disputar as eleições municipais de 1962,
onde foi eleito vereador de Arari com 320 votos. Este foi o primeiro mandato eletivo
conquistado pelo sacerdote. Com o advento do Golpe de 1964 e, em seu bojo, a
implantação do bipartidarismo no país e o sistema de eleições indiretas, padre Brandt e
119

seus seguidores, assim como seus outrora opositores barriguistas, cerram fileiras na
situacionista Arena, o partido do governo militar, sigla pela qual conquista seu segundo
mandato de vereador, no pleito de 1966, e o terceiro, já em 1970.

Observa-se que a movimentação política de Clodomir Brandt visa tão somente a


manutenção de seu poder e de sua influência no jogo político local, o que justifica
integrar um partido que apoia o recém instaurado regime militar (Arena) – que suprimiu
o pluralismo partidário e estabeleceu o bipartidarismo, concentrando as atividades
político-partidárias em torno da Arena e do MDB, partido de “oposição consentida”
pelo governo dos militares – e é composto pelos seus principais opositores de outrora.

Além disso, a conquista de dois novos mandatos de vereador por um sacerdote


que já exercia certo domínio político em Arari, numa conjuntura de “crise” política e de
“conflitos sociais”, sugere que as transformações históricas em curso no país não
incidiram de modo decisivo na ruptura de laços políticos estabelecidos nas regiões
periféricas entre as elites locais e os novos agentes políticos do governo federal. Pelo
contrário, pode-se mesmo inferir que houve um fortalecimento desses laços à custa de
rearranjos políticos que, em vez de apontar para um estado de reificações de cizânias
intra-faccionais, significou um realinhamento dos interesses das classes dominantes em
jogo, sob a chancela do regime de exceção.

Assim, no ano de 1972, padre Brandt disputa pela última vez um cargo eletivo e,
novamente, o de prefeito de Arari, contra o mesmo candidato que já o havia derrotado
em 1959, Biné Abas. Também nessa ocasião a disputa eleitoral pelo comando do Poder
Executivo municipal lhe imputou nova derrota, devido à desistência das candidaturas do
MDB, que decidiram em conjunto apoiar Biné. A partir dessa última desventura
eleitoral, o vigário de Arari decide não mais concorrer a nenhum cargo político e passa a
se dedicar de forma mais incisiva à literatura, mas seu protagonismo e influência na
vida política da cidade permaneceriam até o fim de seus dias (BATALHA, 2011, p.
175-178).

Apesar de ter dado continuidade à sua carreira política até o ano de 1972, consta
na edição de 6 de maio de 1965 do jornal “NOTÍCIAS” uma declaração do pároco sobre
o encerramento de sua interferência, a partir daquela data, no processo político de Arari,
a qual vale a pena reproduzir aqui:
120

O povo de Arari já se considera bastante amadurecido e já pode dispensar, na


solução dos seus problemas políticos internos, a minha orientação. Por isso, é
chegada a hora de afastar-me das coordenações de caráter eleitoral para dedicar-me
exclusivamente às obras de apostolado no sentido estrito.
Aliás, quero frisar: o que fiz, no plano político, sempre o fiz com a intenção de
servir a esse povo, sem nenhum interesse de caráter pessoal. Nossa gente precisava
ser politizada e meu esforço foi para conseguir tal efeito. Hoje, com a consciência
tranquila de quem cumpriu o dever, recolho-me ao silêncio. Se, mais tarde, o interesse
da comunidade o exigir, estarei pronto para colaborar para o bem coletivo
(FERNANDES, 2012, p. 195. Grifo nosso).

Com efeito, pode-se analisar a lógica do “interesse no desinteresse”


(BOURDIEU, 2010) manifesta na fala do sacerdote, que afirma ter intervido no plano
político de Arari “com a intenção de servir a esse povo, sem nenhum interesse de caráter
pessoal”. Tal perspectiva coaduna-se ainda com o fato de que ele acreditava ser
necessária sua intervenção na esfera político-partidária local para garantir “a politização
que sua gente precisava”, uma vez que ele julgava estar “apto” ou ser o único capaz de
reunir as condições mínimas para solucionar os problemas sociais que considerava
legítimos.

Em última análise, o texto do padre Brandt acaba reunindo em si uma


ambiguidade particular, pois ao mesmo tempo em que declara ter “cumprido o seu
dever” de politizar a população arariense, coloca-se uma vez mais à disposição “para
colaborar para o bem coletivo”, evidenciando assim certa “mágoa” com o povo que
dispensou sua “orientação” e não o elegeu prefeito quando de sua primeira candidatura
ao cargo municipal, porém deixando brechas para uma nova oportunidade, como de fato
ocorreu sete anos mais tarde, tendo sido derrotado novamente nas eleições para o
comando da Prefeitura da cidade.

Cabe destacar, no entanto, que embora no auge das obras de desenvolvimento


educacional e cultural promovidas em Arari, colocadas em prática pela ADC e sob a
supervisão imediata de padre Brandt, que contava então com os significativos recursos
oriundos de sua parceria com a Prefeitura, ainda na gestão de Bembém Fernandes, o que
rendeu ao município alguns anos de dinamismo econômico e social, a situação política
da cidade não se estabilizou em nenhum momento.

Pelo contrário, foi a partir da primeira vitória eleitoral do grupo liderado pelo Pe.
Brandt, no ano de 1955, que as disputas pelo controle hegemônico do poder político
municipal entraram numa fase de recrudescimento das hostilidades entre “padristas” e
121

“barriguistas”, inclusive em atos de violência armada, que tiveram nas forças de


segurança do Estado seus locupletados protagonistas31. Vivia-se o tempo de ascensão e
consolidação política da figura do senador Vitorino Freire, que emergiu no cenário
político nacional com o fim da “Era Vargas” e, consequentemente, com a saída de cena,
no âmbito regional, do interventor Paulo Ramos, amigo estreito de Cláudio Brandt, tio
do nosso personagem. As disputas políticas de então exigiriam de padre Brandt muito
mais disposição e tomadas de posição, seja nas lides diárias, dentro do partido ao qual
era filiado (PSP), ou nas batalhas simbólicas travadas em seus veículos de comunicação.

2.3.2 A guerra política na imprensa

As constantes vitórias políticas alcançadas por padre Brandt renderam-lhe a


elevação de seu prestígio junto aos seus seguidores, ao passo que resultaram no
acirramento dos ânimos por parte dos seus opositores. A euforia de um lado contrastava
com os ressentimentos do outro. E isso passou também a se refletir nos veículos
midiáticos existentes tanto no município quanto na capital, fazendo com que as disputas
e os conflitos entre padristas e barriguistas ficassem conhecidos praticamente em todo o
Estado do Maranhão. Segundo o historiador João Batalha (2011, p. 152),

o Boletim Paroquial, semanário composto e impresso em Arari e dirigido pelo Pe.


Brandt, era impiedoso com os adversários, que, no entanto, tinham no Diário Popular,
de São Luís, espaço para responder às investidas do Pe. Brandt, com a mesma
linguagem e no mesmo nível.

A guerra política travada na imprensa toma contornos mais nítidos quando se


observa o seguinte relato de padre Brandt sobre a “invasão” da Polícia Militar do
Maranhão em Arari, a respeito do conflito já mencionado, cujo título e subtítulo são:

31
O conflito armado que resultou na invasão da sede da ADC e no fuzilamento da Casa Paroquial, onde
estava a mãe de Clodomir, pelas forças policiais vindas da capital São Luís, foi motivado pela luta
corporal entre um policial e um vendedor do jornal “BOLETIM PAROQUIAL”, de propriedade do padre
Brandt, em meio ao clima de guerra política existente no município entre partidários do barriguismo e do
padrismo. Com a intervenção do sacerdote no caso, que contou ainda com o apoio da população, o
delegado local não conseguiu efetuar a prisão do jornaleiro, com o agravante de ter suas armas e as de
seus comandados tomadas pelos populares, que as entregaram à prefeita Justina Fernandes. Diante da
recusa desta em devolvê-las à autoridade policial local, foi designado um destacamento da capital para
Arari com a missão de reaver as armas. Mesmo com a devolução das mesmas, as forças policiais
promoveram atos de vandalismo e terrorismo na cidade. Para saber mais sobre este assunto, ver Sousa
(2003, p. 39-48) e Batalha (2011, p. 151-160).
122

“Um atentado inolvidável e covarde paralisou a vida de Arari por dois meses. Fechadas
todas as instituições paroquiais – Comércio reduzido – Um povo sob terror”.

No dia 24 de outubro [de 1955], a cidade de Arari foi inopinadamente invadida por
soldados da Polícia Militar do Estado, vindos em uma caminhonete do senhor José Frias
pela estrada que liga Arari a Miranda. Viajaram no mesmo transporte Otaviano Araújo,
vulgo Dedé, Coletor Estadual, e Hoendel Hayden Silva, Tabelião. Estes dois senhores,
segundo informações seguras, serviram de orientadores dos soldados na empreitada
infame que vinham realizar.
Hoje já não resta mais dúvida alguma sobre a finalidade do atentado. Era a morte
do pároco de Arari, Cônego Brandt e Silva, e a pilhagem dos bens da Paróquia.
Foram organizadores, em São Luís, o delegado de polícia Leovegildo Pinto e Theodoro
Antônio Batalha, que convenceram o coronel Amorim, chefe de Polícia, de que o
Cônego Brandt e a prefeita Justina Fernandes Rodrigues estavam com duzentos
homens armados para enfrentar a força pública.
O desejo do delegado Léo Pinto era chegar a Arari à meia noite de 23 para 24 quando
encontraria o Cônego Brandt dormindo em sua residência (...). Se tal houvera
acontecido, o Cônego Brandt teria sido morto, assim como sua veneranda mãe Carolina
Brandt e mais umas duas dezenas de crianças. Isto porque os soldados vinham armados
de fuzis e metralhadoras de mão e tinham ingerido muito álcool (FERNANDES, 2012,
p. 181-182. Grifo nosso).

Observa-se no relato sobre o violento episódio ocorrido em Arari que padre


Brandt acusa publicamente seu adversário político Theodoro Batalha de ter sido ele,
junto com o delegado e ex-vereador barriguista Léo Pinto, rico proprietário de terras e
dono de engenhos de açúcar (SOUSA, 2003, p. 31), os “organizadores” da invasão ao
município e de seu posterior atentado. Ao construir discursivamente o fato, o pároco
coloca-se na posição de “vítima” e seus adversários de “agressores”, aumentando assim
a dicotomia política reinante entre padristas e barriguistas e, consequentemente,
projetando positivamente sua imagem na cena política estadual.

Em outro texto de sua autoria, veiculado no seu “A Voz de Arari”, por volta de
dezembro de 1953, quando da organização de um comício em apoio à candidatura de
Henrique de La Roque para o Senado Federal, em concorrência ao candidato apoiado
por Vitorino Freire32, Clodomir Brandt não poupou palavras para expressar suas críticas
a este último:

32
Vitorino de Brito Freire foi o principal líder político combatido pelas forças políticas que se opunham
ao seu “mandonismo” na esfera política do Maranhão. Apesar de não ser maranhense (nasceu na cidade
de Pedra Buíque, em Pernambuco, em 28 de novembro de 1908), Vitorino foi eleito deputado federal pelo
Maranhão em 1946, abdicando do mandato para disputar uma vaga ao Senado Federal, tendo sido senador
por três mandatos consecutivos: 1947-1955, 1956-1963 e 1964-1971, todos pelo PSD, cargo a partir do
qual exerceu grande influência sobre a política e os políticos maranhenses até o ano de sua morte, em
1977. Dentre eles José Sarney, que foi “apadrinhado político” de Vitorino quando de sua entrada no
âmbito do Legislativo, tendo assumido um mandato de deputado federal em 1956, aos 26 anos, na
condição de terceiro suplente, adquirida dois anos antes quando disputou sua primeira eleição, sob as
123

O senhor Carvalho Guimarães possuía predicados que pudessem merecer os sufrágios


dos seus conterrâneos, mas vinha sua candidatura encapada por uma política
rebarbativa, tendo por chefe um indivíduo que além de não ser maranhense, ainda
pretendia infelicitar o Maranhão que o acolheu, corrompendo as nossas reservas de
dignidade, inteligência e civismo; pois de todos os meios se serve tal chefe para se
alçar ao poder, pelo suborno, pela fraude, pela violência e insultos soesses, enfim,
por costumes usados por elementos de uma civilização decadente e corrupta
(SOUSA, 2003, p. 29. Grifo nosso).

Convém salientar, contudo, que a reverberação, a nível estadual, dos conflitos


ocorridos em Arari foi disseminada pelos principais veículos de comunicação que
tinham interesses na contenda municipal, alinhados que estavam a algum dos lados na
disputa política arariense. O jornal “DIÁRIO POPULAR”, por exemplo, em meados da
década de 1950, era o órgão de comunicação de Vitorino Freire a serviço dos
barriguistas, enquanto que o “JORNAL DO POVO”, seu contemporâneo na capital,
veículo impresso das “Oposições Coligadas”33, estava a serviço dos padristas (ibid.,
2003, p. 25).

Isso demonstra, em um nível macropolítico, que as disputas travadas em Arari


representavam também os interesses dos grupos que se digladiavam pelo controle do
poder político a nível estadual, evidenciando assim que as relações tecidas pelos agentes
em conflito não se restringiam apenas ao âmbito da municipalidade. Como exemplo
disso, destaca-se a amizade tecida, no calor das pelejas, entre padre Brandt e o jornalista
Neiva Moreira34, figura prestigiada na imprensa e na política maranhenses e um dos
principais líderes oposicionistas à política praticada por Vitorino Freire no Estado.
Mesmo após o rompimento dos laços políticos entre eles, no início da década de 1960,
quando o jornalista adere ao Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o sacerdote une-

bênçãos do que os adversários chamaram de “vitorinismo”. Sarney foi o grande aliado e, posteriormente,
o principal adversário de Vitorino no jogo político maranhense. Sobre este assunto, ver Buzzar (1998).
33
Sobre as “Oposições Coligadas”, consórcio de figuras políticas de diferentes facções alinhados para
fazer frente ao poder político do senador Vitorino Freire no Maranhão, ver Buzzar (1998).
34
Nascido em Nova Iorque do Maranhão, a 10 de outubro de 1917, José Guimarães Neiva Moreira era
jornalista e foi presidente nacional do PDT, tendo sido um dos fundadores da legenda no Maranhão.
Ingressou na vida política no início dos anos de 1950, tendo conquistado os mandatos de deputado
estadual (1951-1955) e de deputado federal por duas legislaturas consecutivas (1955-1959 e 1960-1964),
todos pelo PSP. Pelo PDT maranhense, Neiva Moreira foi novamente deputado federal, de 1993 a 1994,
de 1997 a 2000 e de 2001 a 2004. Ao liderar a Frente Parlamentar Nacionalista na Câmara dos
Deputados, em 1961, se aproximou de Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, de cuja
relação e atuação política nasceu o Partido Democrático Trabalhista (PDT). No plano nacional, foi um
dos principais opositores políticos do regime militar, tendo sido opositor, a nível regional, à candidatura
de José Sarney nas eleições de 1965, que era apoiado pelo presidente general Castelo Branco, o que lhe
rendeu a prisão e o envio para o exílio na Bolívia, retornando ao Brasil somente com a decretação da Lei
n. 6.683, de 28 de agosto de 1979, a chamada “Lei da Anistia”, que concedeu o “perdão” a todos os que
cometeram “crimes políticos” no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de
1979. Neiva Moreira faleceu em 10 de maio de 2012, vítima de infecção respiratória pulmonar.
124

se ao novo partido “conversador”, a Arena, ambos mantiveram laços de amizade e


respeito recíproco, conforme se pode observar no seguinte trecho de artigo escrito por
Neiva Moreira:

Convivemos um longo período de nossas vidas e jamais encontrei nele, nem nas
confidências fraternas, no convívio social ou no tumulto e nos encontros das grandes
lutas, um momento de desânimo, de renúncia, mesquinhez e ódio racional. No meu
exílio de 15 anos, o perfil de sua atuação evangélica esteve sempre presente e quando
retornei ao Maranhão, logo nos reunimos para um balanço, sem a marca dos rancores,
daqueles anos de chumbo, que não demoliram as nossas convicções nem nos afastaram
da linha, em nossas vidas (FERNANDES, 2012, p. 151).

Outro episódio que explicita a guerra travada na imprensa pelos partidários de


padre Brandt e seus opositores barriguistas/vitorinistas refere-se à questão dos
cercamentos realizados ainda durante a gestão municipal da prefeita Justina Fernandes,
que teria ordenado fechar com arame farpado as terras griladas do ex-vereador e
delegado de política Leovegildo Pinto, o mesmo acusado de ter sido um dos mandantes
do suposto atentado contra a vida de padre Brandt. Sobre este assunto, assim se
expressou o sacerdote em seu jornal “NOTÍCIAS”:

Consumado o seu ato de depredação, deixando centenas de famílias abatidas pelo


desgosto de ver os filhos chorando a falta do necessário que obtinham pelo labor
agrícola dos seus pais, o senhor Leovegildo Pinto, responsável por esse ato desumano,
ficou à espreita de nova tentativa dos trabalhadores como um tigre saciado
espreguiçando-se, alapardado de sobreaviso sobre o resto de sua presa (SOUSA, 2003,
p. 32).

Como exemplo de uma resposta dada à altura da linguagem utilizada por padre
Brandt em seus ferozes relatos, o jornal “DIÁRIO POPULAR” publicou um texto
criticando a gestão da prefeita Justina Fernandes. Tais críticas estão circunscritas no
contexto de sucessivas vitórias e aumento de prestígio do vigário de Arari em
detrimento da perda de espaço e de poder político de seus opositores:

O que se tem visto em Arari causa nojo e revolta. Instalou-se naquele infeliz município
uma comandita ao serviço do mal, capitaneada precisamente por quem deveria antes,
pelos seus misteres profissionais, espalhar o bem e difundir a verdadeira doutrina da
fraternidade cristã. Arvorado de chefe político, Clodomir Brandt despiu-se das
vestes que lhe impunham a dignidade do sacerdócio cristão, trocando-a pela de
lobo faminto e voraz para atacar traiçoeiramente os que não lhe ouvem os uivos
aterrorizantes (ibid., 2003, p. 35. Grifo nosso)

Já no decorrer da década de 1960, padre Brandt viria a travar uma nova querela
política na imprensa, desta vez com os membros que integravam o “Grêmio Arariense
125

dos Estudantes” (GAE), fundado em junho de 1963 e, posteriormente, transformado na


Fundação Cultural de Arari. O grupo era composto por estudantes secundaristas e
universitários, todos filhos e filhas das famílias abastadas ararienses (proprietários de
terras, donos de engenhos de açúcar, comerciantes, etc.). Conforme descreve um dos
seus “pais-fundadores”, o historiador João Francisco Batalha (2011, 163), uma das
fontes utilizadas neste trabalho sobre a história de Arari,

inspirado por movimentos de esquerda que dominavam a juventude brasileira à época, o


GAE era uma instituição sem fins lucrativos, com o objetivo de pugnar pela evolução
econômica, política e social de Arari, provendo a preparação do jovem arariense para o
desempenho do seu papel na vida social e envidando esforços pela solução dos
problemas do estudante e da comunidade arariense (ibidem).

Assim constituídos, o GAE adquiriu no final de 1964 um serviço de alto-falante


chamado de “Voz Arariense dos Estudantes”, e em São Luís, um programa radiofônico,
batizado de “Panorama Estudantil”, transmitido pela Rádio Educadora do Maranhão.
Não obstante, foi fundado ainda um periódico impresso intitulado “VANGUARDA”,
principal canal de comunicação e de divulgação das ações dos jovens ararienses. Foi
através desses instrumentos que os estudantes começaram a rivalizar com os adeptos do
“padrismo” e a liderança política exercida por Pe. Brandt. Vale destacar que a soma
destes esforços na obtenção de tais canais midiáticos e na conquista de espaços
comunicacionais na capital do Estado é reveladora do capital político, social e
financeiro de que dispunham os integrantes do GAE, tecendo e mantendo laços de
amizade e de reciprocidade junto às elites políticas de nível estadual.

A título de exemplificação dessa nova disputa política travada por Brandt e os


estudantes ararienses, logo no editorial de estreia do “VANGUARDA”, em outubro de
1964, o periódico responde aos insultos do pároco que os havia chamado de
“subversivos” e “inimigos de Arari” por conta da exigência da gratuidade no uso do
ginásio fundado por Brandt: “lamenta o pensar de quem, querendo manter ali apenas o
seu ginásio pago, classifica os gremistas de inimigos de Arari, em virtude da entidade
pleitear um ginásio gratuito para a cidade” (FERNANDES, 2012, p. 158).

Em outro artigo, datado de julho de 1965, os articulistas do “VANGUARDA”


assim se expressam sobre padre Brandt e suas ações em Arari:

A par do seu acerto até certo tempo, de suas obras e realizações consideráveis e do valor
que representou para a sua época, responde hoje por uma soma infindável de pecados,
126

desde a educação autocrata, geradora de revolta e recalques até os modelos de corrupção


administrativa, observando-se uma descida vertiginosa e incontrolável em direção ao
nada (ibid., 2012, p. 159).

Não obstante, convém salientar ainda um trecho de um dos textos de maior


repercussão no município de Arari, também veiculado no jornal “VANGUARDA”, do
GAE, intitulado “A indústria da ignorância”, datado de agosto de 1965:

A politização do povo, que julgávamos vir sendo feita em Arari por quem à educação
dizia dedicar-se, chega a manifestar-se um mito. 20 anos vem sendo transmitida uma
instrução que longe está de educação e conscientização, chegando mesmo a haver um
interesse na manutenção da ignorância, pois à sua sombra suas ambições se articulam
melhor e repousam certas conveniências. (...) Fazer a indústria da ignorância é
convencer os seus adeptos que seus excessos são virtudes mesmo quando enxovalham,
com agressividade, a vida pública e particular de qualquer adversário, não conseguindo
esconder a sua vocação caudilha; é valer-se da discriminação, colaborando para que o
ódio e o fanatismo da gente arariense ande à flor da pele, abrindo fronteiras e distâncias;
é afastar da igreja os seus adversários políticos, sob a pecha de “inimigos da
religião”, após haver criado com a sua interferência política o problema que os
separou, gerando-lhes frustração espiritual e conflitos; fazer a indústria da ignorância
é confundir, deliberadamente, política e religião, misturando os dois planos,
permitindo o trucidamento dos valores maiores; é pregar entre os seus que os católicos
que se afastaram são homens e mulheres sem consciência, sem fé, sem religião e sem
moral, como se fora ele a medida da consciência, da fé, da religião e da moral; (...) é
ousar enfrentar em guerra os avanços, reformulações de conceitos e novas conquistas da
atualidade que venham de encontro aos seus interesses, pregando a discriminação
religiosa para salvaguardar a sua política (ibid., 2012, p. 161-162. Grifo nosso).

É nítido que as discrepâncias ideológicas e de visões de mundo sobressaem dos


textos do jornal do GAE com certa fluidez e acidez, uma vez que, de certo modo, boa
parte dos jovens secundaristas e universitários integrantes do Grêmio Arariense foram
alunos do padre Brandt ou tiveram contato com sua vasta produção cultural e
educacional na cidade. Curioso, no entanto, observarmos que à medida que o tempo
avança em seu curso, os novos agentes que vão se estabelecendo na vida política de
Arari ingressem nas fileiras daqueles que se posicionam contra a política desenvolvida
pelo pároco, seja pela sua postura “autocrata”, de viés “conservador”, ou pela sua
entrada no partido dos militares golpistas, a Arena, tendo nos jovens ararienses do GAE
membros e futuros membros integrantes do MDB, o outro partido permitido por lei
durante o regime militar, que fazia oposição ao partido situacionista.

Cabe mencionar ainda que os ataques e as defesas verbais do pároco em relação


às ações e aos posicionamentos de seus adversários políticos dimensionam o grau de
envolvimento do religioso na esfera político-partidária de Arari, onde “religião e
política se confundem deliberadamente”, constituindo-se, contudo, apenas uma das
127

“modalidades de intervenção” (SAPIRO, 2012) de que lançava mão naquele momento,


a língua escrita, revelando assim práticas e representações, discursos e ações que
remetem a um destemperamento não muito usual para um sacerdote da Igreja Católica,
que “pregava a discriminação religiosa para salvaguardar a sua política”.

O desapossamento de tais características passa a ser utilizado pelos adversários


do padre como o principal discurso de “deslegitimação” de sua intervenção na esfera
política da cidade, julgada incompatível com a figura imaginada de um sacerdote que
deveria disseminar “o bem”, mas que acaba afastando os adversários políticos da Igreja,
sob a pecha de “inimigos da religião”, misturando deliberadamente os dois planos.

O exame da imbricação entre essas duas esferas através da atuação do vigário de


Arari revela que a hibridização do ofício sacerdotal não se estabelece sem antes a
edificação de uma lógica de justificação que confira legitimidade a tais ações e
intervenções exógenas ao âmbito confessional. O que explica, em parte, o ardor das
palavras e a dedicação à escrita como instrumento de legitimação das ações híbridas do
pároco político e educador, escritor e militante partidário, cujos recursos acumulados
fornecem as disposições basilares de sua intervenção frente aos problemas oriundos da
política e do mundo social (SEIDL, 2009b).

Talvez, o texto que melhor expresse essa lógica de justificação elaborada e


difundida pelo nosso personagem através de seus escritos seja o descrito abaixo,
retirado do quarto volume de seus Escritos sem ordem e redigido no ano de 1967:

Sou político. Qual o homem normal, na época atual, e no mundo de hoje, e em regiões
como a nossa, que não o é? (...) Seria duro demais, e muito desumano, não participar do
processo que tem por finalidade a melhoria de vida do povo. Não só do espiritual, mas
também do material, que é igualmente sagrado. Não me conformo em ser só sacerdote
da alma. Penso também no que é do corpo. (...) Não sou de ferro ou de cimento
armado para não reagir diante da injustiça. Como poderia ver o meu vizinho lutando
e sofrendo, e ficar indiferente? (...) Estamos em guerra, numa guerra terrível onde o
sangue foi substituído pela fome que se alastra, pela falta de oportunidade, pela falta de
higiene e de saúde, pela falta, enfim, de tudo aquilo que dá ao homem um sentido
humano. E cruzar os braços, nesta hora e neste lugar, seria uma traição ao povo e a si
mesmo, como é uma traição o homem válido fugir ao dever de empunhar a arma
quando a Pátria está ameaçada. Estou certo? Estou errado? Não quero saber. Tomei a
atitude que me ditava a consciência, e aqui estou! (SILVA, 1992, p. 4-5. Grifo nosso).

Através destes escritos, padre Brandt tenta estabelecer uma correlação entre a
atividade sacerdotal e o “ser político”. Para o sacerdote, não é possível “não reagir
diante da injustiça”, pois “seria duro demais, e muito desumano, não participar do
128

processo que tem por finalidade a melhoria de vida do povo”. Assim, ao não se
conformar em ser apenas “sacerdote da alma”, Brandt cria, através dos usos sociais que
faz das heterodoxias que influenciam a atuação de padres no Maranhão de meados do
século passado, as bases de legitimação de sua intervenção religiosa na esfera política.

Observa-se nestas linhas traçadas pelo padre Brandt a influência dos


condicionantes teológicos em pleno processo de difusão, dentro e fora da Igreja,
sustentados pela “Teologia da Libertação” que, em 1967, pautava as discussões
religiosas pós-Concílio e animava os debates que antecederam a Conferência de
Medellín, realizada no ano seguinte (MAINWARING, 2004, p. 105).

Ainda que os princípios emanados por essa teologia não tenham sido suficientes
para impor uma espécie de “filiação” ao sacerdote escritor e que suas ações no campo
da “cultura” e da “política” possam ser interpretadas como “progressistas”,
minimamente forneceu-lhe subsídios ideológicos para legitimar sua intervenção e
compor suas interpretações sobre o mundo social num contexto em que estas discussões
teológicas e ideológicas estavam presentes, demonstrando, em última análise, o grau de
penetração do discurso da “libertação” entre os clérigos maranhenses, presente no
repertório de atuação de um sacerdote vinculado às elites locais e participante ativo das
disputas políticas entre os grupos dominantes ararienses.

2.4 Da ação política ao reconhecimento “intelectual”

Pe. Clodomir Brandt passou a ser reconhecido como “intelectual consagrado”


somente após anos a fio dedicados à vida pública, à política e ao desenvolvimento de
projetos sociais, educacionais, culturais e econômicos que julgava fundamentais para
sua ação missionária evangelizadora no município de Arari. Após a segunda derrota
eleitoral, no ano de 1972, quando disputava o comando da Prefeitura da cidade, o
pároco passou a se dedicar mais à atividade literária.

Todos os livros de sua autoria que vieram a ser publicados, computando um total
de vinte e seis títulos (ver lista completa no anexo I), a maioria sendo lançados por sua
própria editora “Notícias de Arari”, homônima do jornal com o qual ele havia travado
129

inúmeros combates políticos-midiáticos – ambos (jornal e editora) frutos do parque


gráfico que ele adquiriu através da ADC e a partir do qual ele fundou a Escola de Artes
Gráficas da cidade – foram escritos a partir da década de 1980. Seu primeiro livro, um
romance intitulado Folha miúda: minha dor, data do ano de 1983, quando o sacerdote
já computava 66 anos de idade.

A partir daí as honrarias recebidas, algumas póstumas e outras ainda em plena


existência, acabaram por consagrar a vida e a obra do sacerdote Clodomir Brandt e
Silva, reconhecido tanto por sua destacada atuação evangelizadora quanto por sua
marcante participação na esfera política da cidade, consubstanciada nas centenas de
textos veiculados em seus canais de comunicação impressa e falada, bem como por sua
ampla produção escrita e literária.

No âmbito eclesiástico, já no final de sua existência, Clodomir Brandt foi


condecorado com os títulos honoríficos de “cônego” e, depois, de “monsenhor”,
honrarias concedidas pela hierarquia da Igreja a sacerdotes que, de alguma forma, se
destacaram em seu ofício religioso. Já na esfera cível, recebeu o título de Cidadão
Arariense, aprovado por unanimidade pela Câmara Municipal, e a Medalha do Mérito
do Trabalho, no grau de oficial, concedida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 16ª
Região (TRT-MA).

No tocante às instâncias de consagração “intelectual”, monsenhor Clodomir foi


agraciado, ainda vivo, com o diploma de Sócio Correspondente do Instituto Histórico e
Geográfico do Maranhão. Postumamente, foi elevado à condição de patrono da Cadeira
nº 09 da Academia Arariense-Vitoriense de Letras. Depois disso, seu nome foi
homenageado dando identidade a duas escolas e à biblioteca municipal de Arari,
podendo ser visto também numa praça, duas ruas (Rua Padre Clodomir e Rua Escritor
Brandt e Silva) e no seu “Memorial Padre Clodomir Brandt e Silva”, situado na mesma
casa em que o sacerdote residira durante toda sua vida na cidade nascida às margens do
rio Mearim.

Observa-se que no trajeto pessoal de padre Brandt a escrita tornou-se não apenas
um trunfo do qual o nosso personagem lançou mão a seu bel prazer, mas efetivamente
um dos principais instrumentos de luta simbólica pela produção, reprodução e
imposição de representações sobre o mundo social, combinando prestígio social com a
autoridade institucional delegada pela Igreja. O que não ocorreu de modo aleatório, e
130

sim através de uma imbricada teia de relações sociais, pelas quais padre Brandt tornou-
se conhecido e reconhecido (capital social), acionada pelo agente em foco (de forma
mais ou menos consciente), principalmente pelos laços familiares, como no caso do
apoio constante e decisivo de seu “tio Cláudio” em relação à ajuda financeira, via
instituição bancária, que financiava e mantinha as obras e ações da Associação da
Doutrina Cristã (ADC), presidida por padre Brandt em Arari.

Além do acúmulo de capital social, nutrido pelas redes de relações sociais às


quais o sacerdote estava envolvido, Clodomir Brandt diferenciou-se também pela posse
dos meios de manipulação simbólica (principalmente canais de comunicação como
jornais e sistema de alto-falantes, além do cinema, teatro e escolas de sua propriedade),
através dos quais sua atuação religiosa começou a incidir, de forma mais significativa,
nas esferas da política e da cultura ararienses.

O acionamento destes recursos por um agente da Igreja Católica evidencia o


grau de heteronomização e de imbricação entre as esferas religiosa, cultural e política no
Maranhão, particularmente no interior do estado, onde as especificidades de um
município como Arari exemplificam o dinamismo e as estratégias formuladas pela
instituição eclesiástica, principalmente para fazer frente às crenças e práticas que
rivalizavam com o catolicismo (maçonaria, religiões de matriz africana e
protestantismo), e assim garantir a manutenção e promover a expansão de sua influência
perante a sociedade local.

Isso fica ainda mais evidente quando da inserção do padre Brandt na esfera
político-partidária de Arari, cuja “missão” surge inicialmente diante da constatação de
que muitos protestantes fazem parte dos grupos políticos da cidade, ocupando cargos
públicos e mandatos eletivos. Tais observações teriam sido o combustível que motivou
padre Brandt a se candidatar e exercer três mandatos de vereador e perder duas eleições
para prefeito de Arari. Somente com o advento de novos condicionantes históricos e
sociopolíticos é que o sacerdote tenta fundamentar sua intervenção na esfera política
diante da “injustiça” social.

Desta feita, a lógica da justificação apresentada por padre Brandt para intervir
fora do âmbito confessional e mesmo para legitimar e estabelecer a demarcação de
novas fronteiras entre religião, cultura e política ancora-se diante do exame do “avanço”
131

institucional de outras crenças rivais ao catolicismo e da consternação individual frente


aos “problemas sociais”.

Outrossim, cabe ainda destacar que à medida que as ações “inovadoras” de padre
Brandt nas esferas da política e da cultura arariense vão se ampliando por toda a cidade,
ressoando inclusive na capital do Estado, sendo noticiadas em jornais de grande
circulação em São Luís, o nosso personagem conquista tanto admiradores quanto
inimigos poderosos, conforme se pôde analisar no protagonismo exercido por Brandt
diante do conflito armado na cidade, onde os principais grupos rivais (padristas e
barriguistas) chegaram ao ápice da violência e intolerância político-religiosa.

Por fim, todas as honrarias já citadas foram concedidas ao nosso personagem


como ato consagrador da vida que teve e dos serviços prestados à população arariense,
obtendo reconhecimento inclusive de seus opositores políticos de outrora. Se por um
lado as homenagens serviram como uma espécie de “salvo-conduto” ao padre que, em
vida, atraiu seguidores e adversários, por outro revelam que o ato de consagração do
sacerdote é a consagração da própria cidade e daqueles que a esculpiram política, social,
cultural e economicamente. Haja vista que as singelezas foram concedidas pelos
descendentes e remanescentes das mesmas famílias políticas que disputavam o poder
local no fulgor dos anos de 1950 até à efervescência dos anos de 1970-1980,
representados tanto nos cargos e postos que ocupam atualmente, quanto na pesquisa e
disseminação das fontes que contam a própria história da cidade e de seus ilustres
filhos, caso das apreciadas no capítulo que ora finda.
132

CAPÍTULO 4:

JOÃO MOHANA E A AFIRMAÇÃO INTELECTUAL DO SACERDOTE: os usos


sociais da escrita

Neste quarto e último capítulo, abordar-se-á as características sociais (origem


familiar, perfil social dos pais, formação escolar, redes de relações, instâncias de
inserção, condicionantes de “entrada” no mundo sacerdotal), concepções de política, de
cultura e de ação evangelizadora, e a intensa produtividade cultural do padre e escritor
João Mohana, cujo nome se apresenta como um dos mais atuantes sacerdotes da Igreja
Católica no Maranhão, especialmente no domínio “intelectual”, onde se notabilizou nas
áreas da literatura, ensaio, teatro, música e pesquisa histórica.

Além de ter atuado profissionalmente como médico, professor e conferencista


sobre temas espirituais, psicológicos e conjugais (como o casamento, a sexualidade,
fidelidade, conjunção carnal, etc.), Mohana apresenta em sua trajetória registros de
engajamento militante no movimento leigo católico antes mesmo de se tornar padre e,
após a ordenação sacerdotal, participação ativa nos movimentos da juventude
universitária, colaborando na formação de futuras lideranças eclesiais e intervindo no
mundo social através de uma intensa produção de bens simbólicos, especialmente de
livros.

Foi a partir do pertencimento a um círculo privilegiado de amigos escritores,


jornalistas e políticos e das relações sociais e econômicas estabelecidas por seus pais,
imigrantes de origem libanesa que chegaram ao Maranhão no início do século XX, que
João Mohana conquistou seu prestígio e reconhecimento “intelectual”, como se verá nas
páginas seguintes. Essa afirmação se exemplifica nas fontes disponíveis que retratam a
vida e a obra do sacerdote escritor, tal como se observa na constituição da principal
fonte primária utilizada para a confecção deste capítulo: um suplemento cultural
veiculado pelo jornal “O IMPARCIAL”, datado de 15 de junho de 1995, em
homenagem ao aniversário de 70 anos do padre, organizado por sua amiga e escritora
Arlete Nogueira da Cruz Machado, esposa do também amigo poeta Nauro Machado,
que, dentre muitos outros, dedicaram sua tinta elogiosa e entusiasmada ao nosso
personagem, compondo assim uma prova material da existência de redes de escritores
que nutrem entre si relações de amizade e de reciprocidade.
133

Apesar do grande volume de livros publicados e reeditados periodicamente, com


traduções para o alemão, espanhol e italiano, são bastante escassas as fontes onde
podem ser encontradas e consultadas informações sobre a vida e os livros de João
Mohana, muitas vezes restritas ao trabalho particular de amigos íntimos e próximos da
família, admiradores e críticos de sua vasta produção literária. Nem a própria Igreja
contém em seus arquivos disponibilizados para consulta pública (especialmente as
bibliotecas das organizações a ela vinculadas) registros sobre Mohana e seus escritos, o
que se poderia afirmar dadas as relações de amizade que mantinha com o alto clero
local.

A exceção que confirma a regra é a biblioteca da Academia Maranhense de


Letras, em cujo acervo existe uma seção dedicada especialmente ao escritor João
Mohana, onde estão armazenadas e disponíveis para consulta grande parte de suas
obras. Tal espaço de salvaguarda de sua produção intelectual se justifica pelo
pertencimento do padre escriba ao rol dos seletos “imortais” da Academia, cuja
organização em torno da construção de “epítetos de excepcionalidade” (SIMIONI,
2008) reflete o grau de imbricação entre o domínio intelectual e as estruturas de poder,
bem como as disputas travadas pelas “elites” locais pela definição e legitimidade do
“ser intelectual” em seus diferentes matizes (NUNES, 2000).

João Mohana é, de longe, o sacerdote maranhense que mais livros escreveu,


registrando sob sua autoria mais de 40 títulos, dentre romances, peças de teatro,
pesquisas históricas e, principalmente, ensaios, gênero de escrita para o qual dedicou a
maior parte de seus esforços intelectuais. Através desse formato, Mohana produziu a
maior parte de suas reflexões sobre o mundo social, a política, a cultura, a economia, a
religião, os problemas espirituais e psicológicos que afetam a vida da população,
incluindo-se temáticas relativas ao casamento e à sexualidade.

Seu espaço de atuação foi ainda tão diversificado quanto sua produção escrita.
Trabalhou como médico-pediatra em São Luís durante cinco anos, participou do
movimento leigo da Ação Católica no Maranhão (ACM), chegando ao posto de
presidente arquidiocesano antes mesmo de se ordenar padre, através do qual pôde
elaborar, com o apoio da Igreja, uma série de “projetos” sociais, culturais, educacionais
e políticos, com foco na produção cultural e na formação de lideranças católicas, ao
mesmo tempo em que escrevia seus premiados romances e aclamados ensaios.
134

Após adquirir a ordenação sacerdotal e já gozando do reconhecimento social


propiciado por sua atuação como médico e como escritor, que cimentaram sua
afirmação “intelectual”, celebrou missas e realizou milhares de conferências e palestras
em diversos estados brasileiros e outros países para os quais foi convidado, dedicando-
se assim ao que chamou de “ministério da palavra escrita e falada” (Suplemento
Cultural de “O IMPARCIAL”, 1995, p. 4).

Em meados da década de 1970, funda e preside o movimento da Juventude


Universitária Autêntica Cristã (JUAC), através da qual se engajou na formação política
e cultural de jovens lideranças recrutadas no espaço universitário para compor os
futuros quadros da Igreja, ajudando assim a manter e a reproduzir o poder e a influência
da instituição eclesiástica no Maranhão, principalmente no domínio intelectual. Muitos
dos jovens formados pela JUAC viriam a intervir nos principais acontecimentos
políticos da capital, tendo na “Greve da Meia-Passagem” (1979) seu exemplo mais
sintomático (BORGES, 1998).

Dessa forma, sua atuação evangelizadora teve significativa interferência em


diferentes esferas, influindo não apenas no âmbito religioso, mas também nas áreas do
“social”, da “cultura” e da “política”, constituindo-se num dos mais significativos
exemplos de carreira religiosa que apresenta em sua gênese social uma mescla
processual de saberes e competências adquiridas fora do âmbito seminarístico e,
posteriormente, acionadas enquanto instrumentos legítimos de atuação sacerdotal,
internamente à Igreja e no mundo social.

O saber e a titulação de médico, a atuação como escritor e as relações sociais


tecidas a partir do trânsito nesses distintos domínios conferem a João Mohana poder e
autoridade suficiente para atuar e intervir em espaços não dominados pela religião
católica de uma forma privilegiada, evidenciando assim o grau de hibridização da
atuação sacerdotal em terreno maranhense e os usos sociais e religiosos da escrita,
principal instrumento de luta simbólica pela imposição de interpretações, sentidos,
formas de pensamento e ordenação de práticas no mundo social, cuja tônica e
abrangência transcendem os assuntos meramente de ordem confessional e espiritual.
135

4.1 O nascimento do escritor: origem social, formação escolar e características dos


pais

João Miguel Mohana nasceu em 15 de junho de 1925, na cidade de Bacabal,


município maranhense. Filho de pais libaneses, Miguel Abrahão Mohana e Anice
Mohana, de forte tradição árabe-cristã, João Mohana era o mais velho de uma prole de
sete filhos, quatro homens e três mulheres: Laura, Ibrahim, Julieta, Olga, Kalil e
Alberto.

Nascido em Bacabal, João Mohana residiu também em Coroatá antes de se


mudar para o município de Viana, onde passou grande parte de sua infância e
adolescência. Foi numa escola vianense que Mohana teve o primeiro contato, durante o
curso primário, com intensas atividades literárias e com a participação na montagem de
peças de teatro. Segundo relata Pedro da Veiga, “vários espetáculos teatrais organizados
na cidade tiveram a participação de João Mohana. Durante as férias do colégio, os
estudantes eram convocados a participar de peças teatrais e show de variedades”35.

O jornalista relata ainda que o “destaque” de João Mohana na escola primária foi
tamanho que ele foi escolhido, dentre todos os alunos, para um ato solene de recepção
de uma autoridade da Igreja Católica. “Quando o arcebispo D. Carlos Carmelo realizou
uma visita pastoral a Viana, o jovem João Mohana foi escolhido para saudá-lo”36.

A caracterização do menino Mohana como alguém de “destaque” na escola


vianense, reveladora de sua “liderança” e “solidariedade” precoce, indica o grau de
proximidade estabelecido entre o expositor dos feitos e o homenageado, onde aquele
“glorifica” os atos deste tomando-o como distinto desde a infância por sua própria
biografia de relativo “sucesso”.

Após ter concluído o curso primário no “interior” do estado, Mohana mudou-se


com a família para a capital São Luís, onde cursou o primeiro ano do “ginásio” no

35
O relato é do jornalista e escritor Pedro da Veiga, que recepcionou João Mohana quando de sua visita à
cidade paranaense no ano de 1973 para a realização de suas famosas palestras para casais. À época da
visita, Veiga era Diretor Administrativo da Prefeitura de Campo Mourão e havia sido convidado pelo
bispo da arquidiocese da cidade, D. Eliseu Simões Mendes, para recepcionar o padre maranhense. As
informações estão contidas em seu blog pessoal, disponíveis no site www. pedrodaveiga.blogspot.com.
Pedro da Veiga faleceu em março deste ano, aos 74 anos de idade.
36
Ibid.
136

“Colégio São Luís”37 e, depois, ingressou no “Colégio Marista Maranhense”38, para dar
continuidade nos estudos.

Foi no Colégio Marista que João Mohana consolidou a herança cristã católica
herdada dos pais. A proposta da escola, inspirada no modelo francês de educação
católica, era pautada em cinco pilares pedagógicos: a) da vida em família, visando a
construção de um espaço comum de diálogo, de aceitação das diferenças e de espírito
fraterno nas relações interpessoais; b) do trabalho e da constância, que valoriza tanto o
trabalho manual quanto o intelectual como desenvolvimento da personalidade humana,
e a constância como fator de maturidade pessoal; c) da simplicidade, que preza pela
humildade nas relações sociais e na forma com que educadores devem tratar seus
educandos; d) da presença, centrada na construção de relações que extrapolem o âmbito
da sala de aula, sendo vivenciada entre discentes e docentes nos recreios e atividades
extra-classe”; e e) pedagogia Marial, tendo em “Maria, Mãe de Deus” o modelo do
educador e do educando marista, “sendo-lhes referência de testemunho e vivência dos
valores cristãos” (NUNES, 1996, p. 3).

Na escola ginasial, de modalidade internato, o jovem João Mohana teve aulas


curriculares de Filosofia, Teologia, Retórica e Gramática. Foi incentivado ainda por um
dos professores a estudar noções de Psicologia, cujos conhecimentos puderam ser
aproveitados mais tarde na confecção de livros voltados para a realização da “plenitude
humana”.

37
Apesar da fonte primária utilizada neste trabalho não citar o referido colégio, outras fontes consultadas
no final da pesquisa de campo mencionam o “Colégio São Luís” como uma das instituições de ensino
onde João Mohana cursou o início do “ginasial”, sem oferecer, contudo, maiores detalhes ou informações
sobre a escola. Atualmente, o “ginasial” compreende o período escolar que vai do quinto ao nono ano ou
“série”.
38
Tem sua origem na fundação da “Sociedade de Maria” (1813), do sacerdote francês Marcelino
Champagnat, que junto com outros dois padres integrantes da referida sociedade criam o “Instituto Irmãos
Maristas”, voltado para “suprir a carência de escolas e de educação religiosa na zona rural em que viviam
[na França] (NUNES, 1996, p. 2). Após a morte de Champagnat, o Instituto continuou se desenvolvendo
e se expandindo por diversos países através do trabalho dos remanescentes colaboradores do falecido
fundador. Com a Proclamação da República no Brasil (1889) e a laicização entre Estado e Igreja, a
instituição de ensino dos Irmãos Maristas chega ao país em 1897, somando-se aos outros institutos
religiosos europeus aqui presentes (Lazaristas, Barnabistas, Capuchinhos) para “colaborar com a Igreja
local em seu processo de reorganização interna e externa” (ibid., 1996, p. 9). A convite do arcebispo de
São Luís, D. Francisco de Paula, o Superior Provincial dos Irmãos Maristas, irmão Damien, vem para o
Maranhão realizar o projeto pedagógico-religioso francês, fundando no dia 2 de abril de 1908, na capital
maranhense, situado em frente à Praça Benedito Leite, o “Colégio São Francisco de Paula”, em
homenagem ao santo comemorado no mesmo dia. Em 1920, o Colégio é fechado, após a saída dos irmãos
maristas de São Luís, voltando a ser reaberto somente em 1937, com o retorno dos maristas a convite do
então arcebispo D. Carlos de Carmello Mota, que abriga a instituição de ensino no Palácio do
Arcebispado, passando a chamar-se “Colégio Marista Maranhense” (Suplemento Cultural de “O
IMPARCIAL”, 1995; NUNES, 1996).
137

Como atividades extracurriculares, o Colégio Marista oferecia aulas de música,


piano e flauta, além de sessões de literatura, teatro e cinema, o que explica em boa parte
o “gosto” de Mohana pelas artes, uma vez que a predileção por certas atividades é fruto
muito menos de uma escolha subjetiva consciente do que o resultado de um processo
socialmente adquirido, que inculca nos agentes “gostos de classe” e “estilos de vida”
(BORDIEU, 2008, p. 240).

Há que se levar em conta que, apesar de sua prestigiada educação, o Colégio


Marista não pode ser visto meramente como legitimador institucional de disposições
anteriores, socialmente constituídas, para não se cair na instrumentalização de suas
funções, quais sejam as de certificação, consagração e reprodução de certas habilidades
e competências reconhecidas pela trajetória consagrada do padre Mohana.

Além das atividades artísticas e literárias, os alunos participavam do “Centro do


Apostolado da Oração”, espaço destinado especificamente para a doutrinação e
reprodução da fé católica. Lá, os educandos maristas eram inseridos nos rituais
religiosos de celebração eucarística e valorização da importância dos sacramentos na
vida dos cristãos, bem como recebiam os ensinamentos sobre as práticas apostólicas e
os significados da simbologia católica (realização de orações, confissões, reza de terços
e novenas, sessões de leituras bíblicas e de reflexões sobre o Evangelho etc.).

Convém ressaltar que o Colégio Marista, até meados do século passado, além da
educação religiosa voltada para a formação do “bom cristão e do virtuoso cidadão”,
também fornecia instrução militar aos seus alunos39. No final da década de 1930, a
escola era uma das poucas instituições católicas de ensino voltadas especialmente ao
público masculino, destinada à educação de crianças (curso primário, antigo “primeiro
grau”) e adolescentes (curso secundário, antigo “segundo grau”), onde os maiores de
dezesseis anos recebiam treinamento militar e realizavam exercícios de tiro ao alvo
(NUNES, 1996, p. 5-6).

Tanto a formação educacional religiosa quanto o fornecimento de instrução


militar conferiam à escola dos “irmãos maristas” um aspecto maior de rigidez e de
disciplina, prerrogativas básicas de instituições que atuam no modelo de internato. Pelo
fato de ser uma instituição de ensino privada e de ter mantido “certo distanciamento de
alguns aspectos genuínos da proposta educativa do fundador, como a prioridade ao
39
Para saber mais sobre este assunto, ver Nunes (1996).
138

atendimento às camadas carentes” (ibid., 1996, p. 9), infere-se que os alunos do Colégio
Marista eram, em grande parte, pertencentes às elites locais, que matriculavam seus
filhos pela “tradição católica” e pelo rigor do ensino, bem como pelas escassas
alternativas de educação masculina.

É interessante pontuar também que ao iniciar suas atividades educativas no


Maranhão, entre 1908 e 1920, o então “Colégio São Francisco de Paula” contava com
um quadro de professores composto exclusivamente por franceses, registrando o
primeiro educador brasileiro somente em 1917, o Irmão Manoel Benigno, vindo de
Pernambuco e permanecendo na escola até o seu fechamento, em 1920.

A partir disso, tem-se a dimensão da presença dos filhos das elites dominantes
na instituição de ensino, uma vez que a predominância de franceses entre os educadores
sugere o aprendizado ou, minimamente, noções básicas da língua francesa por parte dos
alunos, aspecto raro e distintivo num estado eminentemente agrário e de população
majoritariamente analfabeta, cujo modelo de economia agroexportadora baseada
principalmente na produção de arroz e algodão beneficiou quase que exclusivamente os
“senhores de terra”. Assim, os grandes latifundiários maranhenses enriqueceram
financeiramente e através desta riqueza conseguiram significativa ascensão social,
investindo de tal modo na educação dos filhos a ponto de se constituírem enquanto
“elites políticas rurais”, que passaram a dominar o espaço político local e a se afirmar
no domínio intelectual, em detrimento da maioria da população desprovida do acesso à
educação básica (ALMEIDA, 2008).

No caso de João Mohana, o aspecto de escola de elite do Colégio Marista se


coaduna com o grau de ascensão econômica conquistado por sua família, que procurou
na instituição de ensino a oportunidade do filho mais velho do casal Mohana continuar
seus estudos com “qualidade”, investindo em sua formação educacional e,
consequentemente, direcionando sua “vocação profissional”, reconvertendo poder
econômico em capital cultural e abrindo possibilidades para a construção de laços
sociais relativamente privilegiados.

Para maior compreensão sobre esse processo, faz-se necessária a explicitação


dos fatores sociais, econômicos e culturais que compõem o perfil social dos genitores da
família Mohana em solo maranhense.
139

4.1.1 Características sociais dos pais

Os pais de João Mohana, Miguel Abrahão Mohana e Anice Mohana, eram


cristãos libaneses maronitas40 que chegaram ao Maranhão no início do século XX,
juntamente com outras famílias de descendência sírio-libanesa. Grande parte de
membros dessas famílias conseguiram se destacar na sociedade local41, principalmente
através do comércio, atividade econômica que promoveu o seu enriquecimento e lhes
possibilitou novas formas de afirmação social, especialmente no espaço político, através
da conquista de cargos representativos de frações sociais e da ocupação de postos
burocráticos concernentes à estrutura estatal, e na esfera cultural, entrecortada por
relações de poder que configuram a inserção, o pertencimento e o domínio desses
agentes em instâncias de produção de conhecimento e de consagração “intelectual”.

A historiografia que aborda a imigração libanesa para o Brasil apresenta alguns


fatores que explicariam tal processo migratório. O historiador André Gattaz (2005)
divide esse processo em quatro momentos, dos quais apenas os dois primeiros
interessam para o presente estudo por causa do recorte histórico42. O primeiro momento
ocorre entre os anos de 1880 e 1920, quando há um aumento da insatisfação dos sírio-
libaneses com o domínio exercido pelo Império Turco-Otomano. De maioria árabe-
muçulmana, os líderes políticos do Império, em pleno processo de desagregação
político-territorial, decidem estabelecer a obrigatoriedade do alistamento militar para
toda a população, desencadeando forte resistência entre os cristãos, os primeiros a
migrarem para o Brasil. O Líbano enquanto país independente ainda não existia, vindo a
figurar no mapa geopolítico mundial somente a partir de 1920, com a criação da
República do Líbano.

O segundo momento desse processo migratório se dá entre os anos de 1920 e


1940, fase iniciada com a criação do Líbano enquanto estado nacional, que contou com
40
Sobre as diferenças étnico-religiosas entre os descendentes de sírio-libaneses, ver Magalhães (2009).
41
Sobre este assunto, consultar os trabalhos desenvolvidos por Furtado (2008), Magalhães (2009) e Assis
(2012).
42
As outras duas fases ou momentos de intensificação desse processo migratório ocorrem entre 1943 e
1975 e de 1975 aos dias atuais. Aquele em decorrência do “Pacto Nacional”, acordo firmado e não
cumprido entre lideranças políticas muçulmanas sunitas de Beirute e cristãs maronitas do Monte Líbano,
num contexto de crescimento do nacionalismo pan-árabe e de declínio do poder político da França, país
que influenciava diretamente os rumos do recém-criado Líbano. Já o momento mais atual trata da “Guerra
do Líbano”, travada desde 1975 por motivos étnico-religiosos com os países vizinhos formados a partir da
desagregação do Império Turco-Otomano. Entre eles Turquia, Israel, Iraque e Síria (GATTAZ, 2005).
140

a intervenção direta da França e da Inglaterra na sua consecução. Ainda segundo Gattaz


(2005), é a partir daí que se intensificam os conflitos étnico-religiosos entre
muçulmanos e cristãos, à medida que para compor o novo país foram anexadas áreas da
Síria, cuja população era predominantemente muçulmana, em relação às pequenas
províncias autônomas de maioria cristã.

Por conta da intervenção francesa no processo de criação do Líbano, que já


atuava na região muito antes do advento da República libanesa, foi estabelecido no país
o francês como língua oficial, concomitante ao árabe, e o modelo de educação francesa,
o que gerou novas clivagens étnicas e religiosas entre muçulmanos e cristãos, que
impulsionaram a migração destes últimos para o Brasil, num momento em que este país
vivia um intenso processo de “importação de mão-de-obra” de povos oriundos
principalmente da Europa, devido ao desenvolvimento relativamente tardio da
industrialização brasileira e da formação e expansão de um mercado interno de trabalho
(FAUSTO, 1997).

Não foi possível precisar a chegada dos “Mohana” no Maranhão por falta de
fontes e registros, mas compreende-se que deva ter sido logo nas primeiras levas
migratórias, entre os anos de 1900 e 1920, levando-se em consideração a cidade e a data
de nascimento de João Mohana (Bacabal, 15 de junho de 1925), o primeiro dos sete
filhos do casal Miguel e Anice Mohana.

Além disso, para se ter mais ou menos uma ideia do ano de desembarque do
casal Mohana em solo maranhense, pode-se levar em consideração também os laços
sociais e de amizade estabelecidos entre os grupos familiares que aqui chegaram em
grandes levas, predominantemente ao interior do estado. Conforme afirma Oliveira
Lima (apud FURTADO, 2008, p. 30),

na primeira leva, trazidos por parentes e amigos, [vieram] os Jorges (Codó); Murad e
Mettre (S. Luís); Simão (Caxias, Itapecurú-Mirim); Salomão (Santa Inês e Pindaré-
Mirim), todos filhos do Líbano, oriundos das cidades de Záklê, de Abláh. Na segunda
leva, no início do século XX (1901), vieram os Ázars (Esber e Miguel) e os Chamiés.
Estes motivaram a vinda de outros, a última diáspora: Chamés, Aboud, Farah, Damous,
Fiquene, Mouchrek, Saback, Facuri, Tajra, Curi, Millet, Sequeff, Safady, Nazar, Maluf
(Rosário); Mubarack, Buzar (Itapecurú); Trovão (Coroatá); Abdalla, Tomé (Timbiras);
Boêres (Bequimão) e mais Waquim, Nahuz, Dino, Mattar, Fanciss, Boabaid, Chuaty e
outros.
141

Alguns grupos familiares libaneses que aportaram no Maranhão, mesmo com a


dificuldade de língua e diferença cultural, conseguiram ascender economicamente,
principalmente através da atividade do “mascate”, que dispensava um conhecimento
apurado do idioma português, bastando apenas a “disposição individual” para as trocas
comerciais. Conforme analisa Gattaz (2005, p. 96),

a mascateação tinha vantagens imediatas de dispensar qualquer habilidade ou soma


significativa de recursos, não exigir mais do que o conhecimento rudimentar da língua
portuguesa, e possibilitar a acumulação de capital em função exclusiva do esforço
individual.

Sobre o trânsito dos mascates entre as diversas cidades do interior do estado,


muitas vezes percorrendo longas distâncias para expandir seus negócios, Magalhães
(2009, p. 31) pontua que

andando com malas cheias de mercadorias, de barco, a pé ou no lombo de animais,


batendo de porta em porta [os mascates sírios e libaneses] andavam de cidade em
cidade, de fazenda em fazenda, cruzavam divisas municipais e estaduais à procura de
compradores para suas mercadorias.

No entanto, a atividade econômica desenvolvida pelos imigrantes libaneses não


se restringia apenas à “mascateação”. Segundo um dos irmãos de nosso personagem, o
professor Kalil Mohana (apud FURTADO, 2008, p. 32), algumas famílias libanesas se
tornaram proprietárias de

grandes fazendas de gado ou de plantação; compravam toda a produção agropecuária e


exportavam para a capital [São Luís] ou para o [restante do] Brasil: babaçu, arroz,
algodão, tucum, depois soja. Quanto ao gado, industrializavam sobretudo o couro, nos
curtumes famosos, até exportando para fins industriais ou fabricando aqui bolsas,
sapatos e vários objetos úteis à vida pessoal e social.

O aspecto de “nomadismo” dos mascates explica o intenso trânsito entre as


cidades do interior realizado pelas famílias libanesas, que viviam essencialmente do
comércio. Com Miguel e Anice Mohana não foi diferente. O estabelecimento
residencial em Bacabal, Coroatá e Viana, antes da mudança para a capital São Luís,
onde fixaram moradia no mesmo local de seu empreendimento comercial, a “Casa
142

Mohana”43, sugere a dimensão desse nomadismo baseado na compra e venda de


produtos agrícolas e manufaturados.

O acúmulo de capital econômico gerado a partir dessas transações comerciais


projetou socialmente esses grupos familiares, favorecendo a sua inserção na elite
maranhense44 e, a partir daí, a sua afirmação na política do Maranhão45. Convém
observar, contudo, que as atividades comerciais não significaram que todos os
descendentes de imigrantes que a ela se dedicaram conseguiram enriquecer. Conforme
afirma Gattaz (2005, p. 100),

o caminho de segura ascensão social não foi porém regra única e invariável para os
libaneses. Muitos imigrantes (...) só conseguiram atingir o patamar de pequenos
comerciantes, nunca alcançando a ambicionada fase atacadista ou industrial. Outros
nem a isso chegaram, permanecendo como funcionários de seus parentes mais bem
estabelecidos.

Na outra ponta da presente argumentação, não se pode cair numa espécie de


determinismo econômico analisando-se que apenas a atividade econômica foi suficiente
para garantir aos grupos familiares imigrantes a disseminada ascensão social. De acordo
com Oswaldo Truzzi (apud ASSIS, 2012, p. 63),

qualquer balanço da bem-sucedida saga da colônia síria e libanesa em termos de


ascensão econômica não pode deixar de destacar os dois elementos básicos que deram
sustentação ao processo como um todo. Em primeiro lugar, as relações de
complementaridade e de ajuda mútua estabelecidas no interior da colônia (...), desde a
acolhida dos recém-chegados pelos já residentes até a ponta das relações (...) entre
industriais e grandes comerciantes. (...) O segundo elemento fundamental diz respeito
ao contínuo processo de realimentação que representou a importação de parentes e
conterrâneos pelos já estabelecidos.

Esses vínculos sociais tecidos entre os “recém-chegados” e os já “estabelecidos”


ajudam a entender que o processo de ascensão social e econômica se deu de forma
compartilhada, socialmente ancorada em relações de amizade, de auxílio recíproco e de

43
Rebatizada de “Casa João Mohana”, como forma de consagração e homenagem à memória do filho
mais “ilustre” da família Mohana.
44
Ver Furtado (2008).
45
Consultar em Assis (2012) o exemplo de duas famílias, “Haickel” e “Duailibe”, que baseadas no
enriquecimento econômico e em estratégias de reprodução de dominação (relações sociais de amizade,
parentesco e alianças matrimoniais) conseguiram se projetar e se afirmar no espaço político local,
ocupando cargos e postos relativos à esfera estatal e garantindo a manutenção da influência sobre os
mesmos.
143

complementaridades, além de laços matrimoniais estabelecidos entre os próprios grupos


de descendentes que contribuíram para sua afirmação social. Para outro contexto, no
qual se privilegia as heranças políticas transmitidas através de “redes de parentesco”,
dentre outras estratégias acionadas, ver Grill (2003). Tais aspectos não são observáveis
apenas no enriquecimento econômico, mas também na ascensão política de muitos
desses descendentes de libaneses e na consagração “intelectual” de tantos outros que
também enveredaram pelo campo da escrita literária e das artes como um todo.

No caso da família Mohana, apenas o pai se dedicou ao comércio, cabendo à


mãe os cuidados com o lar. Segundo relato de Ibrahim Mohana46, irmão do nosso
personagem, seu pai “foi sempre ativo comerciante” e sua mãe “dona-de-casa de
inteligência brilhante”.

As figuras do pai (Miguel) comerciante, provedor da família, e da mãe (Anice)


como dona-de-casa de “inteligência brilhante”47 ajudam a compor o perfil social dos
“Mohana” e a compreender os motivos que levaram a família a residir em Bacabal, a se
deslocar para Coroatá, posteriormente para Viana e, após o acúmulo de capital
econômico, a investir na educação dos filhos, mudando-se definitivamente para a capital
maranhense, a fim de dar continuidade aos seus estudos.

A preocupação do casal Mohana com a educação dos filhos remete à sua


formação escolar e ao seu volume de capital cultural. Tanto Miguel quanto Anice
concluíram o curso primário ainda no Líbano. Dominavam o árabe e o francês e
mantinham intercâmbio cultural com seus genitores, que lhes enviavam revistas e
jornais diretamente de sua terra natal, como se observa no relato abaixo:

Caso raro; nós não conhecemos os avôs e as avós, pois ficaram no Líbano. Sabíamos
apenas serem sábios, sem curso superior, escrevendo lindamente o árabe, e mandando
revistas e jornais árabes a todos nós. No Líbano, todos falavam árabe e francês (Ibrahim
Mohana. Entrevista concedida, em São Luís, em janeiro de 2013).

46
Depoimento concedido em entrevista, realizada por escrito, em São Luís, em janeiro de 2013.
47
Magalhães (2009) desenvolve um interessante estudo sobre as “representações” tecidas historicamente
entre os descendentes de sírio-libaneses que chegam ao Maranhão e a população local, entrecortadas
pelos conflitos e dificuldades de socialização existentes no início do processo imigratório (1880), visões
que se ressignificam com o passar do tempo (1930), dos imigrantes em relação aos maranhenses e a si
mesmos, passando a negar ou minimizar a existência de conflitos socioculturais e exaltando a imigração
como “bem-sucedida”, com destaque para os aspectos relativos aos feitos das “famílias que deram certo”,
como “excelentes negociantes”, “famílias ricas”, “políticos importantes” e “intelectuais brilhantes”.
144

Conforme se pode analisar, a educação para “os Mohana” possuía uma dupla
face: a primeira de ascensão social, através do processo de conversão do poder
econômico alcançado em aquisição de capital escolar, aspecto distintivo e valorizado no
espaço de poder mais amplo, onde as possibilidades de ocupação de posições sociais
relativamente bem alocadas estão irremediavelmente associadas ao capital cultural
acumulado pelos agentes em disputa, que ajuda a manter e a reproduzir a própria
estrutura de dominação social em regiões “periféricas” (BOURDIEU 2002;
CORADINI, 2010).

Outro aspecto a ser salientado é o da educação como fator de agregação cultural.


O intercâmbio de “jornais e revistas árabes” vindos diretamente do Líbano, mantido
entre o casal Mohana e seus genitores, além de estabelecer os laços da família com seus
parentes e seu país de origem, reflete a preocupação de se constituir e manter no lar um
“ambiente de letras”, sempre informados dos fatos que aconteciam no Líbano e das
correntes de pensamento e manifestações culturais (arte, literatura, ciência, etc.) em
voga no país árabe. Isso explica, em parte, o fato da matriarca da família Mohana no
Maranhão, a senhora Anice, ser pincelada por um de seus filhos como “dona de casa de
inteligência brilhante”, mesmo “sem ensino superior”, buscando na caracterização da
“excepcionalidade” a afirmação da família como “culta” e “letrada”.

A socialização desenvolvida num “lar de letras”, de intenso intercâmbio cultural


nas línguas árabe e francesa, e a formação escolar obtida, desde o curso primário em
Viana, onde teve seu primeiro contato com a literatura e o teatro, até o ingresso no
Colégio Marista, em São Luís, forneceram ao jovem João Mohana um acúmulo de
capital cultural significativo e valorizado entre as elites locais, já que o diploma escolar,
num espaço com acesso desigual e controlado à educação, se constitui num fator
distintivo para a própria “condição de elite” (CORADINI, 2010).

Por esse intermédio educacional, o trânsito nas instituições escolares,


principalmente na capital maranhense, favoreceu a criação de vínculos e redes de
relações entre os filhos das classes dominantes, haja vista que a escola Marista, em fins
da década de 1930, além de ser privada, era uma das poucas instituições de ensino que
oferecia formação educacional voltada para o público masculino.

Pode-se inferir, portanto, que nessa escola estudaram muitos daqueles que
viriam a tecer com João Mohana relações de reciprocidade, de amizade, alianças e
145

vínculos sociais, e ocupar posições de destaque na sociedade maranhense,


principalmente no espaço político, na estrutura de cargos e postos burocrático-
governamentais, e na esfera da cultura, cujo somatório de condicionantes contribuiu
irrevogavelmente para a sua “consagração literária”.

Além disso, a estrita formação religiosa cristã católica obtida nessas instituições
de ensino, de alguma forma, favoreceu o despertar de sua “vocação sacerdotal”, ainda
que o direcionamento de sua “escolha profissional” tenha sido muito menos resultado
de sua manifestação pessoal do que uma imposição de sua família, particularmente de
seu pai, socialmente condicionado pela estrutura de poder e pelas relações sociais que
sedimentam os “estilos de vida” das elites dominantes.

O próprio João Mohana, em entrevista realizada no ano de 1979, ao falar sobre o


desejo de seu pai para que se formasse em Medicina em oposição a uma pretensa
carreira literária, assim se manifestou: “O que ele [o pai] queria era ter um filho médico
e achava que eu iria passar fome, escrevendo. Salvo raras exceções, naquele tempo era
isso que acontecia” (Suplemento Cultural de “O IMPARCIAL”, 1995, p. 6).

Para o pai de João Mohana, ser médico era a garantia de uma profissão que
renderia o seu sustento material, ao mesmo tempo que significaria a manutenção de um
status quo conquistado através da projeção social e econômica alcançada pela atividade
comercial, rendendo-lhe uma espécie de “crédito social”. Segundo Eric Wolf (2003, p.
101), “a filiação a uma família não define apenas a medida do crédito social de alguém.
Ela também estrutura a natureza dos recursos sociais sob o comando dessa pessoa em
operações envolvendo não-parentes”.

No caso de João Mohana, decidir-se pela carreira médica não era apenas o
atendimento a uma exigência pessoal do pai, mas também a responsabilidade de
“carregar” o nome da família, primando pela manutenção do prestígio do mesmo e do
“crédito social” conquistado.

O fato de ser o primogênito dos “Mohana” no Maranhão legou ao nosso


personagem um capital social que contribuiu sobremaneira para a estruturação de
relações mais ou menos privilegiadas dentro de um espaço não necessariamente
dominado por laços de parentesco, mas transpassadas por alianças de amizade e de
146

reciprocidade que foram fundamentais na definição dos rumos que João Mohana viria a
seguir.

4.1.2 A “opção” pela Medicina

Desde o início da vida escolar, João Mohana esteve enlaçado por redes de
relações que circundavam a esfera de atuação religiosa da Igreja Católica. Da recepção
do arcebispo D. Carmelo em visita pastoral ao município de Viana, ainda no curso
primário, à conclusão dos estudos no Colégio Marista Maranhense, de orientação cristã
católica, seria “natural” a sua entrada no mundo eclesiástico após o “ginásio”.

O fato de afirmar e de ser confirmado por seus “comentadores” de que “sempre


quis ser padre” exemplifica o grau de influência que a formação educacional religiosa
teve sobre sua vida. Contudo, a “opção” pela Medicina não foi, de todo, creditada
apenas a essa herança católica, mas também à dimensão da projeção social e econômica
da família Mohana adquirida por seu pai por meio de atividades comerciais e pelas
relações de amizade, complementaridade e de ajuda mútua estabelecidas desde a
chegada ao Maranhão.

Nessa perspectiva, a educação dos filhos também cumpre o papel de favorecer a


manutenção e ampliação do “crédito social” conquistado através da combinação das
relações supracitadas, encaminhando os descendentes para a conquista e ocupação de
postos políticos e burocráticos e para o exercício de profissões liberais (especialmente
medicina e advocacia), funções estas que privilegiavam a titulação escolar como
princípio de estruturação do espaço de cargos e atividades profissionais disponíveis.
Conforme observa Oliveira Lima (apud FURTADO, 2008, p. 53), “logo o sírio-libanês
compreendeu que no Maranhão não era o rico, porém o intelectual que atraía respeito.
Procurou fazer seus filhos doutores”.

Dessa forma, a escolha ou o direcionamento dos filhos para uma formação


acadêmica em Medicina estava imbricada com as estruturas de poder no Maranhão. Não
bastava ser rico, era necessário transformar essa riqueza em conhecimento, em
aquisição de saberes acadêmicos consubstanciados na conquista de títulos escolares, ao
147

mesmo tempo em que se buscava o “respeito”, o reconhecimento social, a valorização


do nomos familiar que se materializa na ocupação de cargos e postos relativamente bem
alocados na estrutura de poder da sociedade maranhense de meados do século passado.

Apesar de não haver o curso de Medicina no Estado quando da adolescência de


João Mohana48, a profissão de médico no Maranhão era representada e valorizada
socialmente por seu caráter enciclopédico, vinculada a um acúmulo de saberes
científicos que caracterizariam e legitimariam a definição de “intelectual”. De acordo
com Nunes (2000, p. 181-182), que desenvolveu uma análise sociológica sobre a
Medicina e as estruturas de poder no Maranhão,

pode-se considerar que a representação de médico coaduna-se à representação de


intelectual: o médico é considerado mediante sua erudição, mediante sua cultura. Ou
seja, o prestígio social do médico, seu status na sociedade, compreende critérios de
intelectualidade. (...) O médico é, pois, considerado e valorizado mediante uma certa
modalidade de conhecimento: o conhecimento humanístico, que dá ênfase ao saber
enciclopédico.

Por isso, a figura do médico no Maranhão é representada como a de um ser


culto, letrado, erudito, que reúne em torno de si não apenas os conhecimentos atinentes
às Ciências Médicas, mas a uma gama de saberes variados que garantem a eficácia
simbólica do discurso e da autoridade do médico sobre o mundo social.

O direcionamento, portanto, do filho mais velho da família Mohana para a


formação em Medicina, em atendimento aos desígnios do pai, sugere o grau de
afirmação social conquistado pela família e a tentativa de manter e expandir tal inserção
no seio das classes dominantes maranhenses.

Contudo, a escolha pela faculdade de Medicina da Bahia, em Salvador, também


não ocorreu por acaso ou de modo aleatório. Antes mesmo de ingressar na referida
instituição acadêmica, Ibrahim Mohana revela outro aspecto importante na definição
dos rumos da carreira médica do irmão “famoso”: as relações e influências obtidas

48
O primeiro curso de Medicina no Maranhão foi fundado em 1958 e estruturado institucionalmente
como Faculdade de Ciências Médicas. Esta foi criada pela Sociedade Maranhense de Cultura Superior
(Somacs), organização vinculada à Arquidiocese Metropolitana de São Luís e que tinha como objetivo
promover o ensino superior no Estado. A organização do curso coube ao então arcebispo D. José de
Medeiros Delgado, que viria a se tornar um dos amigos do nosso personagem. João Mohana tinha 18 anos
quando ingressou no curso de Medicina de Salvador, na Bahia, no ano de 1943.
148

durante o curso Secundário, correspondente ao atual ensino médio, também realizado na


Bahia.

A grande influência sobre João Mohana foi do cientista jesuíta francês padre Camille
Torrend, um dos homens mais completos do Brasil; sabia tudo das ciências, artes,
técnica; sabia tudo (e mais ainda) que o famoso Concílio Vaticano II iria ensinar. João
fez o curso “clássico” (três anos que precedem a Universidade) no Pensionato para
universitários do padre Torrend. Foi para a Medicina por vontade própria, mas nosso pai
e padre Torrend influenciaram. (Ibrahim Mohana)49

O referido “pensionato para universitários” trata-se, na verdade, do “Pensionato


Mariano Acadêmico”, fruto da obra educacional dos jesuítas no Brasil, particularmente
na Bahia, cujos trabalhos eram organizados pelo padre francês Camille Torrend.
Segundo informa Couto (2011, p. 2290), “o objetivo [do Pensionato] era receber, na
condição de internos, alunos que vinham de diversas cidades do interior da Bahia e
também de outros estados para estudar em Salvador”.

A partir de 1939, quando assume a direção do Pensionato padre Torrend, que


também é botânico de formação, estabelece um leque multifacetado de conhecimentos a
serem ministrados aos alunos, que estavam em fase de preparação para o ingresso nas
escolas de ensino superior, versando sobre diversos assuntos atinentes ao mundo social,
não se restringindo, portanto, apenas à formação religiosa. Ainda segundo Couto (ibid),

os alunos recebiam aulas de preparação para a entrada nas escolas superiores, de


educação física, além de palestras sobre diversos temas das áreas da saúde, educação,
psicologia, política e religião. Os Exercícios Espirituais também faziam parte das
atividades dos pensionistas.

Isso explica, em parte, a aquisição de uma formação plural, “humanística” e


“enciclopédica” por João Mohana, que abordaria em seus escritos, logo após a obtenção
do título de médico e antes da ordenação sacerdotal, temas psicológicos, políticos e
culturais, além dos que remetem ao saber da área médica e da esfera religiosa,
legitimando sua intervenção simbólica nestes distintos domínios.

Pode-se afirmar que a ida de Mohana para o referido pensionato tenha sido tanto
pela formação oferecida quanto pela própria localização geográfica do mesmo. Situado
em Salvador e destinado para “receber alunos vindos de outros Estados”, preparando-os

49
Entrevista concedida em janeiro de 2013, em São Luís.
149

para o ingresso na vida acadêmica, ficaria mais fácil se preparar para entrar numa das
mais prestigiadas faculdades de Medicina do país estando já na cidade onde esta se
localiza, na capital baiana.

A Faculdade de Medicina da Bahia é a mais antiga do país50. Para lá, foram


enviados muitos dos filhos das elites e dos grupos dirigentes maranhenses de princípios
do século XX que, posteriormente, viriam a assumir postos e cargos na esfera política,
no sub-campo burocrático da esfera estatal, além de participar da fundação e exercer o
domínio sobre agências de produção de conhecimento e de consagração “intelectual” no
Estado (NUNES, 2000, p. 207-222). Dentre os “ilustres” médicos maranhenses que
estudaram na instituição baiana e se destacaram posteriormente nos domínios da política
e da “cultura” no Maranhão, constam Clodomir Milet e Nina Rodrigues51.

Assim, em 1943, após concluir o curso secundário no Pensionato de padre


Torrend, João Mohana ingressa na faculdade de Medicina da Bahia, concluindo o curso
em 1949, aos 24 anos de idade, especializando-se em pediatria e voltando para clinicar
em São Luís.

Na capital maranhense, trabalhou como médico no Departamento Estadual da


Criança junto com o Dr. Odorico Amaral de Matos52. Além disso, exerceu o ofício em
sua clínica particular, situada na “Casa Mohana”, na Rua Afonso Pena, no centro
histórico de São Luís, e foi educador sanitário da Campanha Nacional de Educação
Rural junto à Missão Intermunicipal Rural Arquidiocesana, participação que lhe
possibilitou a visita a diversas cidades do interior do Estado, inclusive à cidade de Arari,
onde conheceu as ações desenvolvidas naquela localidade por seu contemporâneo padre
Clodomir Brandt, cuja atuação foi amplamente analisada no Capítulo anterior.

50
Seu ano de fundação data do período colonial, em 18 de fevereiro de 1808, quando da assinatura de D.
João VI do documento que autorizou a criação da Escola de Cirurgia da Bahia. Abrigada no prédio do
Colégio dos Jesuítas, em Salvador, a Escola se transformou na Academia Médico-Cirúrgica em 1 de abril
de 1813. Somente em 3 de outubro de 1832 ganhou o nome de Faculdade de Medicina da Bahia, que
conserva até os dias atuais, vinculada à Universidade Federal da Bahia (UFBA).
51
Dentre outros cargos e postos, Clodomir Milet foi senador pela Arena (1967-1975) e deputado federal
por quatro mandatos consecutivos (1951-1955; 1955-1959; 1959-1963; 1963-1967), além de ter sido
candidato a Governador do Maranhão, em 1960, pelo PSP. Por sua vez, Raimundo Nina Rodrigues
ganhou notoriedade no desenvolvimento de pesquisas científicas nas áreas da Psiquiatria e da
Antropologia, que o legitimaram a ser o patrono da cadeira n. 14 da Academia Maranhense de Letras
(AML) e da cadeira n. 28 do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão.
52
Médico e membro da Academia Maranhense de Letras, quarto ocupante da cadeira n. 3, em
substituição à João Mohana.
150

Essa participação junto à Missão Rural da Arquidiocese do Maranhão rendeu a


João Mohana um bom trânsito entre os membros da hierarquia eclesiástica, se tornando
inclusive amigo íntimo do arcebispo D. José de Medeiros Delgado, relação de amizade
que catapultou nosso personagem à ocupação de posições relativamente privilegiadas na
esfera religiosa local e que, indubitavelmente, viria a influir na sua decisão de ingressar
na vida sacerdotal.

4.2 Um intelectual a serviço da Igreja

As influências obtidas durante a vida escolar, o preparatório no Pensionato de


padre Torrend e a própria tradição cristã herdada da família forneceram um repertório
de mobilização religiosa que favoreceu a atuação de João Mohana no movimento leigo
católico, particularmente na Ação Católica do Maranhão (ACM), destacando-se nas
atividades “intelectuais” de organização e confecção de “projetos” religiosos, culturais,
políticos e sociais.

Na ACM, João Mohana chegou ao posto de presidente arquidiocesano, sendo o


responsável direto pela organização das atividades do movimento leigo em todo o
Estado, no interstício entre a volta para São Luís (1949) e a ida para o seminário em
Porto Alegre (1953). Nesse período, construiu relações de amizade e de proximidade
com membros do alto clero maranhense, especialmente com o arcebispo D. José de
Medeiros Delgado, de quem se tornou um “grande amigo”53.

O somatório de um capital cultural baseado numa formação educacional cristã e


de um capital social enriquecido com relações relativamente privilegiadas no domínio
religioso explica, em parte, a posição conquistada e o reconhecimento obtido junto ao
laicato e à própria hierarquia eclesiástica local, posição através da qual pôde elaborar e
colocar em prática um conjunto de ações evangelizadoras em diversas e distintas esferas
sociais.

Há que se destacar que as ações desenvolvidas sob a orientação de João Mohana


durante a sua presidência arquidiocesana à frente da Ação Católica no Maranhão se

53
Ibrahim Mohana, em entrevista realizada em janeiro de 2013, em São Luís.
151

processaram justamente no plano cultural, com ênfase em trabalhos desenvolvidos no


campo da educação, literatura, teatro, música e cinema, cujas temáticas englobavam
problemas sociais, políticos e religiosos vigentes à época. Em entrevista ao “JORNAL
DO DIA”, de Porto Alegre, no ano de 1955, ao abordar os motivos que o fizeram deixar
a profissão de médico para se dedicar à carreira sacerdotal, João Mohana expôs um
breve quadro sobre a situação do movimento da Ação Católica no Maranhão.

[Deixei o movimento] multiplicando raízes e produzindo frutos. Dom Delgado,


Arcebispo do Maranhão, foi quem meteu a broca e começou a quebrar as resistências do
laicato. Isso se deu com a reestruturação da A.C. por ele decretada em começo de 1953.
Daí em diante, os leigos pegamos a pua (conhecem aqui a expressão?) e travou-se
consciente e organizadamente o bom combate. (...)
Nossa vigília lá é intensa de atividade, sempre agarrados atentamente ao báculo do
Bispo. Assim é que, com a aprovação e bênção dele, os setores realizaram um
inquérito global em torno de todas as necessidades humanas dos diversos meios – não
só das necessidades religiosas – para podermos diagnosticar os problemas de base e
lançar um planejamento que não cortasse o maranhense em pedaços ou só no pedaço
religioso. Tem sido um trabalho realista e belo, atendendo aos chamados desejos
fundamentais do homem. Daí surgiram os nossos movimentos religiosos, teatrais,
cinematográficos, musicais, esportivos, recreativos etc. Articulamo-nos com as
várias entidades locais e dessa honesta simbiose saem surpresas que fazem bem a todos
na comunidade, cristãos e não cristãos (Suplemento Cultural de “O IMPARCIAL”,
1995, p. 4. Grifo nosso).

Observa-se que apesar do movimento ser organizado diretamente pelo laicato,


tendo à frente um médico e escritor que não possuía ordenação sacerdotal, as ações
desenvolvidas pela ACM não desgarravam do “báculo do Bispo”. Para tocar em frente
os “projetos” que havia elaborado, João Mohana contava com “a aprovação e bênção
dele”, dando uma dimensão de que no Maranhão de princípio da década de 1950 o
movimento leigo católico não gozava da mesma independência quando de seu
nascimento no limiar do século passado, fruto da autonomia conquistada junto à
hierarquia eclesiástica (SERRY, 2004).

Os anos que estudou no “Pensionato Mariano Acadêmico” do padre jesuíta


francês Camille Torrend forneceram a Mohana uma formação “humanística” bastante
diversificada, o que veio desaguar na sua escolha pela carreira médica, compondo assim
um cabedal cultural significativamente valorizado entre as elites maranhenses, que
representavam o médico como homem culto, letrado e portador de um saber
152

enciclopédico, resultado das íntimas imbricações entre a Medicina e as estruturas de


poder no Estado.

Com essa titulação acadêmica de relativo prestígio e distinção e as teias sociais


tecidas com os membros do alto clero, “articuladas com as várias entidades locais”,
João Mohana conseguiu desenvolver um trabalho realista na ACM que não “cortou o
maranhense em pedaços”, pelo menos não apenas no “pedaço religioso”, atingindo a
“todos na comunidade”, tanto cristãos quanto não cristãos.

A Ação Católica, fundada em 1935 pelo arcebispo do Rio de Janeiro, D.


Sebastião Leme, tinha como objetivo inserir leigos na doutrina e auxiliar bispos e
sacerdotes no ensino e na “edificação dos cristãos”. Segundo Pacheco (1969, p. 584), a
A.C. destinava-se a todas as classes, “aos estudantes, aos lavradores, aos operários, aos
intelectuais”. No Maranhão, o movimento leigo foi fundado um ano após sua vertente
carioca pelo padre Sebastião Fernandes.

A partir daí, várias ramificações do movimento foram surgindo, cada uma


tratando de problemas relativos a frações sociais específicas, especialmente dos
movimentos de juventude, como a Juventude Católica Feminina e a Juventude
Masculina Católica, baseadas no modelo italiano de estruturação das atividades
religiosas. Posteriormente, por volta de 1948, com a adoção do modelo francês, os
movimentos foram definidos conforme as classes e categorias sociais, dando origem às
juventudes operária, agrária, estudantil e universitária, bem como à Ação Popular (AP),
vertente de mobilização católica de viés marxista-leninista (ibid., 1969, p. 585; REIS,
2007, p. 164-181; SALEM, 1981, p. 23).

Se a estratégia da Igreja era inserir o laicato no auxílio à execução de atividades


relativas às funções de bispos e sacerdotes, particularmente na difusão da doutrina
através do processo de evangelização, as diversas e distintas ramificações que surgem
com o tempo sugerem a dimensão da importância adquirida pelo leigo na própria
manutenção do domínio do poder religioso sobre a população local. E, nesse processo
de ampliação do laicato, a inserção de figuras “ilustres” como a do médico e escritor
João Mohana, já gozando de certo prestígio social, sinaliza para o grau de imbricação
entre condicionantes exógenos interferindo na atuação eclesiástica e as disputas
religiosas internas intervindo no mundo social, evidenciando, por fim, o grau de
153

heteronomização do movimento leigo no Maranhão e sua importância no


direcionamento de fiéis para o preenchimento dos quadros clericais.

4.2.1 A consagração literária de um escritor católico

Ao passo que se engajava nos movimentos de base da Igreja local, João Mohana
começava a manifestar, de forma mais incisiva, aquilo que viria a ser o seu principal
trunfo na disputa pela imposição de sentidos sobre o mundo social no espaço de
concorrência simbólica: o exercício da escrita. Assim, em 1952, lança o seu primeiro
livro, o romance O Outro Caminho, pela editora Agir, o qual recebeu o prêmio Coelho
Neto da Academia Brasileira de Letras (ABL) pela melhor obra literária daquele ano.

No mesmo transcurso anual, escreve o ensaio Sofrer e Amar e seu segundo e


último romance, Maria da Tempestade, também premiado pela ABL, ambos
publicados pela editora Agir. Tanto no romance de “estreia” no mundo literário quanto
nos outros dois livros, João Mohana emprega toda sua carga de aprendizado e
conhecimento da doutrina católica para dar vida aos seus personagens e para produzir e
reproduzir no espaço de concorrência simbólica reflexões acerca do plano espiritual e da
busca pelo “encontro com Deus” (ver lista completa dos livros de João Mohana no
anexo II).

A vertente religiosa é um condicionante presente em praticamente todos os


livros escritos por Mohana. No ensaio Sofrer e Amar, o primeiro de uma série de
outros que viriam nos anos seguintes, uma vez que o autor abdica do ficcionismo dos
romances literários para se dedicar às reflexões proporcionadas por aquela modalidade
de escrita, surgem as primeiras elaborações discursivas sobre o mundo social e o plano
espiritual dos indivíduos, cujas interpretações são elaboradas com vistas à “redenção
dos homens”.

É interessante observar que o reconhecimento “literário” obtido pelo escritor


tateia sobre o poder religioso que continua com suas raízes fincadas na estrutura
educacional e cultural do Estado. Ao mesmo tempo em que adquire prestígio social por
produções intelectuais de cunho social e literário, Mohana parece querer se valer desse
154

trunfo para cimentar e legitimar futuras incursões no plano da escrita religiosa. Tal
perspectiva pode ser constatada no seguinte relato do nosso personagem sobre como
recebeu o prêmio da ABL por seu primeiro romance: “Eu me entusiasmei com a notícia
do prêmio. Com a significação literária e social dele. Escancarou a porteira para meu
estradeiro disparar” (Suplemento Cultural de “O IMPARCIAL”, 1995, p. 6).

Analisando retrospectivamente o “sucesso” alcançado através de seus escritos,


em entrevista realizada no ano de 1979, quando já havia lançado vários livros, João
Mohana apresenta sua versão sobre o “êxito literário” conquistado:

(...) Nasci para fazer isso. Seria falso se quisesse destilar charme a esta altura dos meus
vinte livros, tão lidos por tantos. Mas só o talento literário não me conduziria até aqui.
Sou apologista das núpcias do talento com a autodisciplina. Desse enlace é que surgem
o artista e sua obra. Muitos escritores, muitos pintores morreram antes da aurora, por
falta de autodisciplina, embora tivessem talento de sobra. É minha convicção que um
escritor se faz com 40% de talento e 60% de autodisciplina (ibidem).

A lógica da justificação observada na exposição argumentativa de Mohana trata


do aspecto da “predestinação”, argumento que engendra o reconhecimento social
conquistado no presente ao aspecto de um destino traçado desde o nascimento. Ao
afirmar que “nasceu para fazer isso” e que “um escritor se faz com 40% de talento e
60% de autodisciplina”, Mohana privilegia uma reconstrução de si próprio que nega as
retribuições simbólicas disponíveis (reconhecimento, prestígio, consagração,
afirmação), ao passo que suprime a existência dos processos e dos poderes sociais que
incidem sobre a publicação de livros e a consagração intelectual de escritores, tais como
redes de relações com proprietários de editoras, de amizade com outros escritores,
jornalistas, políticos, bem como teias sociais de parentesco, de ajuda mútua e de
complementaridade, além de lógicas de construção de epítetos e de panteões artísticos
(SUAUD, 1991; SIMIONI, 2008; SORÁ, 2010).

Tal perspectiva se evidencia a partir da constatação dos escritores que dedicam


suas linhas elogiosas ao trabalho e à vida de João Mohana, constituindo a própria
natureza do Suplemento Cultural que dá sustentação à presente análise. Escritores
“renomados” como Nauro Machado, Lago Burnett, José Louzeiro, Jomar Moraes, José
Chagas, Josué Montello e a própria escritora Arlete Nogueira da Cruz Machado,
organizadora do suplemento em homenagem aos 70 anos de nascimento de João
Mohana, são todos amigos e admiradores da obra e da “carreira” do nosso personagem.
155

Outro ponto importante que evidencia a perspectiva em comento diz respeito à


própria Editora Agir, responsável pela publicação de boa parte dos livros escritos por
João Mohana, principalmente as primeiras edições. O escritor José Louzeiro, ao relatar
como se processou sua “descoberta” sobre os romances de Mohana, oferece uma singela
descrição da referida editora que, examinando-a neste ponto do trabalho, atende aos
propósitos de situá-la como meio material de difusão das obras do nosso personagem,
dos vínculos sociais propiciados a partir de sua posição (geográfica e estratégica) no
espaço de produção cultural no país, além de exemplificar, em linhas textuais, como se
dava o processo de “divulgação” de um escritor entre os leitores, em meados do século
passado.

Quando cheguei ao Rio, em 1954, a Livraria Agir, na Rua México, 98, por trás da
Biblioteca Nacional, era ponto de encontro de escritores e poetas católicos. O
gerente da loja chamava-se Ernst Fromm e cativava a clientela pelo conhecimento dos
livros e de seus autores, fossem nacionais ou estrangeiros.
Foi Fromm quem me falou do padre e grande romancista maranhense João
Mohana que, tendo publicado um livro de sucesso anos antes, pela Editora Agir (O
Outro Caminho, premiado pela Academia Brasileira de Letras, em 1952), tinha uma
segunda obra circulando e fazendo sucesso entre os leitores: Maria da Tempestade.
Li emocionado esse livro e, na semana seguinte, voltei ao Fromm, a fim de conseguir
um exemplar de O Outro Caminho, o que não foi fácil, pois a edição estava esgotada.
Lembro que ele arranjou um exemplar, com muito custo, no depósito e, assim mesmo,
com defeito na capa. Desde então passei a admirar esse conterrâneo.
(...) Ao término da leitura de O Outro Caminho, senti-me orgulhoso do escritor
maranhense. Afinal, por orientação do próprio Fromm, semanas antes havia
adquirido um exemplar de Os Noivos, obra-prima do italiano Alessandro Manzoni e
Mohana não ficava atrás (Suplemento Cultural de “O IMPARCIAL”, 1995, p. 21. Grifo
nosso).

Através desse relato memorialístico de José Louzeiro, pode-se observar como se


processava a lógica de “propagandeamento” de um escritor recém-lançado no mercado
literário. Parte-se da peculiaridade da Livraria Agir que, em 1954, “era ponto de
encontro de escritores e poetas católicos”. Essa descrição feita por um escritor
maranhense radicado no Rio de Janeiro oferece pistas sobre a existência de possíveis
laços sociais entre João Mohana e o dono da livraria/editora, Ernst Fromm,
precisamente pelo viés religioso, dada a especialidade da editora em publicar livros de
autores católicos. Convém ressaltar que Mohana, quando da publicação de seu primeiro
156

livro (1952), ocupava o posto de presidente arquidiocesano da Ação Católica no Estado,


além de amigo próximo do arcebispo de São Luís, D. Delgado.

Se num primeiro momento as relações entre autor e editor supostamente tenham


se estabelecido, a priori, via religião, devido à “natureza católica” da livraria e do teor
dos escritos de Mohana, somente este aspecto não garante a entrada do autor no rol dos
escritores lançados pela Editora Agir, muito menos “se tornar conhecido” pelo público
fiel da empresa.

O dono da livraria/editora gozava de relativo prestígio conquistado junto ao


círculo de escritores e poetas que para lá se deslocavam. E era esse reconhecimento que
garantia a eficácia simbólica da “indicação” de um autor para a sua clientela. Portanto,
as trocas sociais processadas em círculos de literatos e o pertencimento a essas redes de
relações se constituíram num dos principais trunfos de que podia se valer um escritor
para pleitear sua “afirmação intelectual” no espaço de disputas pela demarcação de
posições estratégicas referentes à atividade de produção de bens simbólicos, que
viabilizavam a publicação de livros.

4.2.2 O ingresso na Academia Maranhense de Letras54

No caso de João Mohana, esses vínculos sociais foram ainda mais sintomáticos
na sua entrada para a Academia Maranhense de Letras (AML). O exame dos
condicionantes de ingresso do médico e escritor para o seleto grupo de autores da
referida agremiação literária requer a apreciação de que tanto o capital cultural quanto o
capital social acumulado são amplamente valorizados como recursos distintivos e de
legitimação de pertencimento entre os “imortais”, onde o jogo da reciprocidade, das
amizades instrumentais e da autoconsagração nem sempre estão em consonância com a
produção intelectual de seus integrantes.

54
Fundada em 1908, a Academia ocupava uma posição privilegiada no espaço de produção cultural no
Estado, levando-se em consideração que ainda eram escassas as agências de produção de conhecimento
científico que, nos anos seguintes, viriam a rivalizar com a AML até a fundação da Universidade Federal
do Maranhão (UFMA), garantindo àquela agência de iniciativa privada um lugar de mera consagração
“intelectual” entre escritores aliançados por redes de relações de amizade instrumental e de
autoreferenciamento.
157

João Mohana, no entanto, foi eleito para a AML no dia 4 de abril de 1970,
tomando posse da cadeira n. 3 em agosto do mesmo ano, quando já havia publicado
dezenas de livros. Sobre sua entrada no rol dos “escritores consagrados” do Maranhão,
João Mohana escreveu:

Você não ignora que hoje a Academia se reimpôs à opinião dos maranhenses. Há
dinamismo, intercâmbio entre os acadêmicos, produtividade, estímulo aos valores
intelectuais da comunidade. Antigamente tinha-se a impressão de que ao entrar para a
Academia deveríamos, de tempo em tempo, sacudir do espírito o mofo intelectual. Hoje
não é mais um museu. É uma trincheira da cultura. Candidatei-me agora porque pude
fazer isto com sinceridade. E confesso que senti honra e alegria quando os acadêmicos
vieram à minha residência (...) comunicar-me que eu era agora um deles (Suplemento
Cultural de “O IMPARCIAL”, 1995, p. 5).

Apesar da Academia consagrar autores que figuram e participam dos círculos de


escritores (regionais e nacionais) já estabelecidos, não há critérios específicos para o
ingresso dos que pleiteiam uma cadeira em seu rol de “ilustres”. O congraçamento de
João Mohana entre os pares escritores, por exemplo, foi feito durante a presidência de
José Sarney na Academia, amigo próximo de Mohana e de sua família, quando então
desfrutava de seu último ano de mandato como Governador do Maranhão (1966-1970).

As relações sociais estabelecidas fora do âmbito literário é que conferem maior


ou menor grau de consagração intelectual aos escritores, independentemente da
quantidade ou da qualidade de seus livros, o que sugere uma menor institucionalização
do espaço literário maranhense em relação a outras esferas, duplamente dominado pelo
poder político e pelo privatismo das relações pessoalizadas.

A amizade estabelecida entre João Mohana e o governador Sarney fica evidente


em diversas fotos onde os dois escritores se congratulam em variadas situações, quer
seja em sessões solenes de lançamentos literários em São Luís, quer em eventos
particulares entre as suas respectivas famílias (Suplemento Cultural de “O
IMPARCIAL”, 1995, p. 26-27).

O fato que marca o ápice dessa relação, que dá a dimensão das retribuições
simbólicas obtidas por João Mohana por meio da atividade da escrita e o grau de
relações estabelecidas com membros das elites políticas e culturais do Maranhão,
acontece quando da visita do escritor ao então presidente da República José Sarney
(1985-1989), em Brasília, para receber uma honraria – a “medalha Rio Branco” -
158

concedida por suas ações sociais e culturais no Maranhão. Segundo relata Ibrahim
Mohana, “o presidente Sarney telegrafou pedindo que [João Mohana] fosse a Brasília
receber a maior medalha honrosa do Brasil. João telegrafou: Sou pobre, não tenho
dinheiro das passagens. Sarney mandou as passagens” (Entrevista realizada em janeiro
de 2013, em São Luís).

As relações de João Mohana e de sua família com as classes dirigentes e as elites


culturais do Estado não se circunscreveram apenas ao âmbito da literatura. Em foto
datada de 1981, Mohana aparece ao lado do então governador João Castelo (1979-1982)
abençoando a sede da Escola de Música do Maranhão, quando de sua inauguração
naquele ano. Na ocasião, segundo registro do jornal, o Governo do Estado, através de
Castelo, “ofereceu todas as condições à professora Olga Mohana, diretora da Escola,
para realizar ali um trabalho de infraestrutura sem precedentes” (Suplemento Cultural
de “O IMPARCIAL, 1995, p. 33).

Conforme se pode observar, tanto João Mohana quanto sua família


(exemplificada pela irmã de João, Olga Mohana, que ocupou o posto de diretora da
Escola de Música do Maranhão, cargo de livre indicação feita pelo então governador
João Castelo) desfrutavam de um bom trânsito entre as elites maranhenses,
especialmente nas esferas cultural, política e religiosa, quer seja entre escritores ou
artistas em geral, ou entre deputados e governadores, quer entre membros do alto clero
local.

A inserção nestes círculos sociais foi determinante tanto para a afirmação social
da família Mohana – avalizada primeiramente em conjunto com a ascensão econômica
conquistada pelo pai, oriunda de sua atividade comercial – quanto para a consagração
intelectual do escritor João Mohana. Este, por sua vez, associando seu capital cultural às
competências adquiridas através do exercício da escrita, soube converter para dentro do
campo de atuação sacerdotal todos os condicionantes exógenos que incidiram sobre sua
“trajetória”, por assim dizer, da mesma forma que suas ações enquanto padre
reverberavam as influências adquiridas fora do âmbito eclesiástico, exemplificadas na
multiplicidade de temáticas e de domínios frequentados pelo autor na produção e
publicação de seus livros.

No tocante ao exame dos condicionantes de entrada no mundo sacerdotal, é


interessante pontuar o peso, sempre relativo, que esse capital social conquistado pelo
159

trânsito em distintas esferas, interligado ao capital cultural acumulado em diversas


instâncias de formação escolar e acadêmica, adquire na tomada de posição e de
disposição de João Mohana pela vida eclesiástica, abrindo mão de uma carreira médica
amplamente valorizada no jogo social em disputa, conforme já observado, e
sedimentando novos espaços de intervenção no mundo social.

4.3 Da “batina branca” à “batina preta”: a “vocação” do sacerdócio

Em fevereiro de 1954, poucos meses após a morte do pai, um dos principais


responsáveis por sua opção pela Medicina como carreira profissional, João Mohana
decide entrar para o Seminário de Viamão, no Rio Grande do Sul55. Estava então com
28 anos de idade, exercendo a profissão de médico e já desfrutando do “sucesso”
alcançado com seus três primeiros livros, sendo dois romances premiados pela
Academia Brasileira de Letras.

O ingresso de João Mohana para a vida seminarística é, pois, um dos casos


singulares de padres que se ordenam de forma relativamente tardia em relação a outros
agentes no espaço de concorrência religiosa, além de ser um exemplo significativo para
se analisar os condicionantes exógenos que influem na atuação apostólica de um
sacerdote, bem como os aspectos internos da vida eclesiástica interferindo no mundo
social, particularmente em domínios onde a Igreja busca recuperar, manter e reproduzir
seu poder religioso, como os espaços político e o artístico/intelectual.

Isso fica bem evidente quando se examina o grau de importância da amizade


estabelecida entre João Mohana e o arcebispo D. José Delgado para o ingresso daquele
num seminário localizado no sul do país. Em artigo intitulado “A grandeza do
Maranhão”, datado de 27 de outubro de 1974, onde avalia a contribuição da pesquisa

55
O Seminário Maior Interdiocesano Nossa Senhora da Conceição, mais conhecido como Seminário de
Viamão, foi inaugurado no dia 14 de março de 1954 na cidade de Porto Alegre (RS). Da leva dos 61
seminaristas que para lá se deslocaram em 28 de fevereiro, antes mesmo da inauguração, João Mohana
estava presente. O Seminário recebia alunos de todas as cidades do Rio Grande do Sul, bem como aqueles
vindos de outros estados. Em Viamão, os seminaristas recebiam ensinamentos de Teologia e Filosofia,
esta ministrada nos mesmos moldes de um curso leigo superior. Segundo informa o site da instituição,
devido à necessidade de que os sacerdotes fossem portadores de títulos e diplomas acadêmicos, o curso
seminarístico de Filosofia foi elevado, em 1956, à categoria de faculdade. As informações podem ser
obtidas no endereço www.seminariomaiordeviamao.com.br.
160

desenvolvida por Mohana sobre a descoberta de um acervo musical inédito no Estado,


de reconhecido valor cultural nacional e internacional, assim relata o referido arcebispo:

João Mohana tem uma vocação artística e espiritual que eu já reconhecia quando
aprovei sua ida para o Seminário, comprometendo-me, entretanto, de, enquanto fosse
eu arcebispo, jamais impedir, com encargos pastorais diferentes, a vocação específica
com que nasceu.
Vejo com edificação que ele, graças também ao apoio que lhe tem dado o atual
arcebispo de São Luís, vem cumprindo sua missão.
Recordo-me, com alegria, que eu mesmo quase o impeço de trabalhar com toda
liberdade, quando o consultei para entrar para o corpo docente da Faculdade de
Medicina, por mim organizada a caminho da criação da Universidade do
Maranhão.
Ele se recusou e eu senti que estava sendo fiel à sua vocação artística e espiritual, dados
os motivos que alegava com firmeza e confiança (Suplemento Cultural de “O
IMPARCIAL”, 1995, p. 44. Grifo nosso).

Mesmo não ocupando mais o posto máximo da hierarquia eclesiástica no


Maranhão, D. Delgado manteve laços de amizade e admiração por Mohana dentro e
fora da Igreja, a ponto de confessar ter sido ele próprio um dos que “aprovaram” a ida
do médico e escritor para o Seminário. Nota-se também a preocupação do arcebispo,
enquanto na função eclesiástica, em “jamais impedir” a manifestação da vocação
artística e espiritual que ele já reconhecia em João Mohana.

Nesse relato, fica evidente ainda o grau de relações que Mohana mantinha com a
hierarquia eclesiástica local, gozando do “apoio” de outro bispo para o “cumprimento
de sua missão” nas áreas da “cultura” e da “espiritualidade”. Consoante a tais relações,
D. Delgado informa ainda sobre a recusa de Mohana em “não entrar para o corpo
docente da Faculdade de Medicina”, em vias de organização rumo à criação da
Universidade do Maranhão, com a alegação de dedicar-se “com firmeza e confiança”
em sua vocação artística e espiritual.

Em verdade, seu processo de adaptação ao seminário gaúcho impôs-lhe alguns


impedimentos no aspecto de produção intelectual e nas outras atividades que
desenvolvia. Primeiramente, por conta do distanciamento geográfico entre o Nordeste e
a região Sul do país, que se interpõe como uma barreira espacial na continuidade das
atividades da Ação Católica, da qual era presidente arquidiocesano, ou seja, gozava do
apoio da hierarquia da Igreja do Maranhão para desenvolver seus projetos.
161

Segundo, pela ausência de laços mais consistentes construídos no Seminário


gaúcho com os membros do clero de lá que lhe possibilitassem galgar posições mais
bem alocadas no espaço institucional da Igreja e, assim, desenvolver ações religiosas no
Sul do mesmo porte das desenvolvidas no Nordeste. Perguntado sobre quais atividades
deixou no Maranhão para ser padre no Rio Grande do Sul, Mohana informou:

Atividades médicas: era pediatra do Departamento Estadual da Criança, educador


sanitário da Campanha Nacional de Educação Rural junto à Missão Intermunicipal
Rural Arquidiocesana e exercia a clínica particular em São Luís. Atividades artísticas:
escrevia meus livros. Atividades apostólicas: todo o trabalho de militante da Ação
Católica (Suplemento Cultural de “O IMPARCIAL”, 1995, p. 4)

Com efeito, não consta nas fontes consultadas que João Mohana tenha publicado
algum livro durante os anos que passou no Seminário de Viamão. Por conta de seu
modelo de internato, como o é, geralmente, das instituições confessionais que visam,
com isso, garantir maior inculcação do ofício de sacerdote, a dedicação de Mohana à
obtenção da formação sacerdotal foi integral, paralisando todas as suas atividades
“mundanas” e “apostólicas” temporariamente.

A decisão de Mohana de largar a “batina branca” de médico para vestir a “batina


preta” de padre gerou um fato noticioso que “alarmou” seus pares escritores e a
comunidade “intelectual” maranhense de um modo geral. Em texto publicado no jornal
“O COMBATE”, em 20 de janeiro de 1955, cujo título era “Mohana e O Outro
Caminho”, o jornalista e escritor Lago Burnett elaborou uma reflexão sobre a entrada de
João no seminário de Viamão:

O fato literário de maior importância, neste ano maranhense, que ora se inicia, não é
propriamente literário, ou melhor: não se circunscreve apenas à estreita esfera literária,
porque abrange território mais amplo, porque tem um significado mais vasto, que talvez
nós da imprensa, em nosso afã de informar, não tenhamos podido captar em sua
unânime plenitude. Refiro-me à decisão do romancista João Mohana que (...) deixou,
definitivamente, esta vida exterior em que nos debatemos, para seguir em busca d’ “o
outro caminho”, da estrada do seu encontro consigo próprio, que não podemos chamar
de estrada de Damasco, porque Mohana, muito ao contrário de Saulo, parece que já
ouvia, dentro de si, desde seus primeiros passos no mundo, a voz de Deus, a adverti-lo
de que “grande é a messe e poucos são os operários”.
(...) Assim se pode compreender uma legítima vocação para o sacerdócio. É um
homem de personalidade firmada, particular e publicamente, vitorioso em sua
carreira literária, festejado em sua clínica de médico profissional, acatado e
162

querido nos círculos católicos, onde, sobretudo nos últimos tempos, vinha
desenvolvendo uma atividade admirável no setor das artes, quem resolve desligar-se do
convívio dos seus porque “nenhum profeta é aceito em sua terra”, para postar-se diante
do Senhor (ibid., 1995, p. 20. Grifo nosso).

Nota-se que a decisão de Mohana de ingressar na vida sacerdotal ter se tornado


um fato noticioso sugere a dimensão do reconhecimento social e intelectual adquirido
perante as classes elitistas maranhenses, particularmente entre seus círculos de amigos
escritores. Prestígio esse que aumenta à medida que João obtém a ordenação sacerdotal
e passa a se dedicar ao que chamou de “ministério da palavra escrita e falada”,
desenvolvendo um trabalho pastoral que se diversifica por meio da realização de
palestras e conferências, da publicação de livros e do engajamento militante nos
movimentos da juventude universitária, onde atua na formação de novas lideranças
católicas junto aos filhos das elites acadêmicas.

Dessa forma, em 2 de julho de 1960, no auge dos seus 35 anos de idade,


ordenou-se sacerdote. Desenvolvendo um modelo de ação que se baseia no tripé “falar,
escrever e agir”, João Mohana consegue obter em cada um dos planos um
reconhecimento social que o impele a intervir nos demais. A hibridização de seu ofício
sacerdotal fica ainda mais evidente a partir do uso que faz da consagração intelectual
obtida através do alcance de seus livros, do saber científico adquirido com a formação
em Medicina e da investidura na carreira de padre, que o condicionam e o legitimam a
investir na realização de milhares de palestras e conferências, versando sobre as mais
diversas temáticas, com destaque para as questões sociais que enfocam as relações
conjugais e a postura do indivíduo diante dos problemas do cotidiano, bem como na
produção cada vez mais acelerada de bens simbólicos.

Os usos sociais e religiosos que faz da escrita, consubstanciada na publicação de


dezenas de livros, todos reeditados ininterruptamente e traduzidos para diversas línguas,
além do saber médico/científico capitaneado pelo título acadêmico de Medicina,
conferem a Mohana poder e autoridade também para atuar na formação de novas
lideranças católicas junto às elites universitárias, sempre gozando do apoio da hierarquia
clerical e da ocupação de posições relativamente privilegiadas no espaço em disputa.
163

4.4 O “ministério da palavra escrita” e a dissolução do religioso

Nos idos de 1963, ao analisar o paralelo existente entre ser médico e ser
sacerdote, João Mohana elaborou a seguinte reflexão:

Costumam dizer que ser médico e padre é ser duas vezes sacerdote. Não penso assim.
Porque não considero a medicina um sacerdócio. É uma profissão sublime. Nada
mais que isso. Sacerdócio só há um. Esse que se interpõe entre os homens e Deus,
entre Deus e os homens. Mas não há dúvida de que a cultura e prática médicas, no
coração de um padre, são um incomensurável equipamento para a bondade
gratuita (Suplemento Cultural de “O IMPARCIAL”, 1995, p. 4, Grifo nosso).

Padre Mohana consegue estabelecer uma coexistência difusa entre a medicina e


o sacerdócio, na qual a primeira pode contribuir sensivelmente para o desenvolvimento
da segunda. Mas não concebe o inverso como uma proposição possível de manifestar-
se, vez que considera que “sacerdócio só há um, esse que se interpõe entre os homens e
Deus”. Na concepção do padre escritor, a medicina é apenas uma “profissão sublime”.

Tal reflexão revela como um padre concebe seu ofício em comparação com a
carreira médica, potencialmente concorrente pelo fato de rivalizar e mesmo contestar o
monopólio da Igreja e do clero sobre o discurso “salvífico” do corpo à luz da fé cristã,
com a peculiaridade de que ambos, médico e sacerdote, são revestidos de um poder
institucional delegado e autorizado que disputam entre si a legitimidade de suas
posições e definição de seus campos de atuação no espaço de concorrência simbólica
(NUNES, 2000, p. 249-250).

Contudo, ao mesmo tempo em que tenta criar, ou melhor, estabelecer,


discursivamente, as fronteiras entre o sagrado e o profano, entre a fé e a ciência, entre a
religião e a medicina, relegando a cada uma sua tarefa específica de “salvação” (do
corpo e da “alma”), João Mohana admite a importância e influência que o saber médico
pode exercer sobre a atuação sacerdotal, ressaltando não haver dúvida de que “a cultura
e prática médicas, no coração de um padre, são um incomensurável equipamento para a
bondade gratuita”.

Dispondo de um saber médico valorizado socialmente, das técnicas de


construção de uma obra artística cimentada por meio da escrita e da formação sacerdotal
164

obtida nos moldes universitários (primazia pelo exercício da reflexão e do pensamento


crítico), Mohana se lança à produção de livros cachoeiramente edificados no gênero de
escrita do ensaio, modalidade que propicia a sedimentação de diversas publicações
voltadas para a doutrinação religiosa do comportamento dos leitores.

Uma evangelização por meio da arte escrita é o que coloca em prática João
Mohana. Para isso, faz uso religioso do conhecimento médico/científico adquirido para
conferir ares de cientificidade e de “solução” objetiva para os problemas reais e sociais
que analisa em seus livros. Nesse sentido, a luta simbólica travada por Mohana no
campo da produção cultural revela as disputas em jogo pela “imposição da definição
legítima não só do religioso, mas também das diferentes maneiras de desempenhar o
papel religioso” (BOURDIEU, 2004, p. 120).

É nessa perspectiva que a atuação sacerdotal de João Mohana, privilegiando o


exercício de seu ofício religioso no domínio intelectual, evidencia o aspecto
multifacetado de seu repertório de ação evangelizadora. Ao recorrer aos saberes da
medicina e da literatura para cimentar sua produção livresca voltada para a
disseminação da doutrina católica por meio da palavra escrita, Mohana exemplifica o
processo de dissolução do religioso, onde as fluidas e distintas fronteiras de atuação se
confundem e se entrecruzam, possibilitando a participação dos agentes na luta pela
imposição de regras e estratégias que visam estabelecer definições, critérios e
competências de legitimação de práticas e discursos.

4.4.1 Um padre na luta pela definição do que é “literatura”

Sobre a preferência pela modalidade de escrita do ensaio em detrimento da


continuidade no gênero literário que o “consagrou”, o romance, o sacerdote Mohana
assim refletiu:

Vivemos num país carente de ideias e empanturrado de emoções. Deixei de vender


emoções porque havia um precário mercado de ideias. Não foi, pois, visando o
lucro. É que sem ideias corretas um povo não pode ser feliz. Você sabe que não se deve
fazer romance para veicular ideias corretas, pois os personagens nem sempre agem
correto, nem sempre falam correto, não pensam sempre correto. Ora, abomino a
165

inautenticidade. Inicialmente choquei um certo público, com meus romances, porque


não pus neles tipos certinhos. Então concluí que o ensaio era o veículo adequado
para eu atirar todo o meu mundo no mundo. Assim deixei o romance. Mas não
deixei minha preocupação de escrever bonito. Porque sou um artista e creio que o
artista não deve desertar de dentro do pensador. Alguns críticos têm notado este fato:
em meus ensaios há páginas literariamente tão válidas quanto em meus romances
(Suplemento Cultural de “O IMPARCIAL”, 195, p. 5. Grifo nosso).

Há que se observar que sobre o pensamento de Mohana paira uma demasiada


preocupação em “escrever bonito” para conferir “valor literário” a seus livros
ensaísticos numa modalidade de escrita que privilegia não a forma, mas o conteúdo, não
a literariedade das linhas textuais, mas a abrangência e profundidade das questões
abordadas através de um gênero de escrita que lhe permite “atirar todo o seu mundo no
mundo”.

Não obstante, há todo um esforço intelectual do padre Mohana em elaborar um


enredo discursivo que valide literariamente seus ensaios, buscando assim impor uma
nova definição legítima sobre o que é literatura e sobre quais os critérios que devam
defini-la enquanto tal. Trata-se de uma tentativa de subversão da lógica vigente de
definição de critérios e valores literários conferidos ou não a uma produção escrita.

Ao mesmo tempo, significa a demarcação de posições e posicionamentos de


João Mohana na luta pela conquista de reconhecimento “literário” a uma modalidade de
escrita abraçada por ele para sua atuação evangelizadora, mas desprovida do mesmo
grau de retribuições simbólicas atribuídas ao romance, por exemplo. Em suma, pode-se
afirmar que há uma certa preocupação de Mohana em ser sacerdote da palavra escrita
sem descurar de manter o mesmo reconhecimento social conquistado como “literato”,
exemplo nítido de imbricação e interferência mútua entre os domínios da religião e da
“cultura”.

Essa luta pela imposição sobre o que é e o que define a literatura e o valor
literário de um livro, seja ele escrito em qual modalidade for e abordando assuntos
quaisquer, fica ainda mais evidente na seguinte avaliação feita por Mohana, em abril de
1970, quando perguntado se considerava obras literárias todos os seus livros até então
publicados:

Sim. Na medida em que me preocupo com a forma de cada um. Uma obra é literatura se
oferece o que constitui o mundo literário, que é o modo de dizer, a maneira de escrever,
166

o estilo de comunicar próprio do artista das letras. Ora, neste assunto precisamos
superar um velho preconceito que rejeita considerar um livro sobre tema ético
como obra literária, mesmo quando o tema é abordado com talento estilístico,
realizado com autêntica preocupação de forma. O cinema, por exemplo, superou esse
preconceito. Não vejo porque uma obra sobre política, escrita com valor literário,
realizada de modo artístico, não possa ser literatura. Não existe aí um preconceito
de quem institui tal convenção? Há páginas em meu livro “Paz pela oração” que julgo
tão literárias quanto as de meu romance “Maria da tempestade”. (...) Por que, então, só
considerar literatura a ficção? O ensaio de nível literário merece o mesmo
enquadramento, testemunhe ele qualquer setor da vida; qualquer que seja a
mensagem nele apresentada. Parece-me errado aceitar como incompatibilidade da
literatura o que é alergia de literatos. Não vejo porque ideias em roupagem
literária não possam gozar dos mesmos privilégios de estórias ou sentimentos em
idêntica vestimenta. Não importa se são ideias cafonas, como não importa se são
estórias repugnantes. O conteúdo aqui é secundário. Fundamental é a toalete. Na
toalete é que reside o proprium da literatura (Suplemento Cultural de “O
IMPARCIAL”, 1995, p. 5. Grifo nosso).

À medida que percebe que a predileção pelo ensaio, gênero de escrita não
canonizado pelos “literatos” como digna de valorização literária, não lhe rende o mesmo
prestígio conquistado com seus romances entre os “críticos”, Mohana tenta subverter
“as regras da arte” literária, lançando mão de sua posição e de seu capital cultural para
afirmar, em busca da legitimação literária, de que em seus ensaios há páginas
literariamente tão válidas quanto em seus romances.

A preocupação de Mohana reside em torno da forma e não do conteúdo. Para o


sacerdote, o ensaio escrito com esmero pela forma “merece o mesmo enquadramento
literário” dado à ficção, “testemunhe ele qualquer setor da vida”. Os esforços para
conferir literariedade a um gênero convencionalmente tido como não-literário,
sedimenta as críticas feitas por Mohana aos “literatos”, que sustentam “velhos
preconceitos” edificados em torno de convenções concebidas pelo sacerdote como
ultrapassadas, uma vez que o “conteúdo é secundário” e “fundamental é a toalete”, onde
reside “o proprium da literatura”.

O fato é que, longe de fazer ficção, aspecto valorizado no domínio intelectual


como digno de valor literário, a opção pelo ensaio sugere a força com que Mohana
encara seu “ministério da palavra escrita”, uma vez que os livros produzidos nesse
gênero estão eivados de doutrinação cristã, remetendo-se à análise de temas e assuntos
167

relativos à esfera da realidade social das pessoas, e não no plano das emoções. Sua
escrita ensaística é voltada para a conversão religiosa e para a disseminação da doutrina
católica. Títulos de obras que abordam a questão do casamento como Ajustamento
conjugal, Casar para crescer, Namoro é isto, e outros que versam sobre temáticas
envolvendo a espiritualidade, tais como Plenitude Humana, Escolhidos de Deus, O
cristão desafiado, dentre muitos outros, exemplificam a análise exposta.

O conteúdo de seus livros chega algumas vezes a tocar em questões delicadas e


tratadas com reservas por boa parte da hierarquia eclesiástica. Livros como Os
perseguidos, peça de teatro publicada em 1979, e Diga não ao imperialismo cultural,
lançado em 1985, que abordam os problemas políticos e sociais enfrentados pelo país
durante o regime militar (1964-1985) e a influência norte-americana sobre a produção
cultural brasileira em face ao processo de reabertura política, dão a dimensão de uma
visão católica sobre o mundo social, ao passo que oferecem subsídios para se
compreender a posição e os posicionamentos de membros da Igreja frente às questões
sociais tidas como mais “emergentes”, particularmente daqueles bem relacionados com
o alto clero maranhense e com as elites políticas e culturais, como no caso de João
Mohana, constrangendo e condicionando projetos e planos de atuação coletiva e
individual.

4.4.2 Em nome da “libertação”: a JUAC e o recrutamento das elites

Tal perspectiva se acentua a partir do ponto em que se observa a atuação do


movimento leigo da Juventude Universitária Autêntica Cristã (JUAC), fundado e
presidido por João Mohana, em 1975, no Maranhão. A JUAC, fruto das diversas
ramificações existentes a partir da Ação Católica Brasileira (MAINWARING, 2004),
tinha como principal objetivo recrutar entre as elites universitárias as futuras e novas
lideranças católicas para compor os quadros da Igreja no Estado, além de prepará-los
para a vida social de acordo com os preceitos doutrinários do Vaticano II e das
Conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979), resumidos na “opção preferencial
pelos pobres”, na “luta contra as injustiças sociais” e na “libertação política e religiosa
do povo oprimido” (BOFF, 2012, p. 33-37; SALEM, 1981, p. 22-23).
168

Em relação aos outros movimentos de juventude, especialmente às ações da JUC


(Juventude Universitária Católica), cujas intervenções no espaço da política local
matizaram a participação de sacerdotes em eventos históricos como a “Greve da Meia
Passagem” (BORGES, 2006) e a construção do Partido dos Trabalhadores no Maranhão
(BORGES, 1998), entre outros, acabando por recolocar a questão da “politização do
engajamento religioso” em contextos e dinâmicas periféricos (MACHADO, 2012;
NERIS, 2012; PEREIRA, 2011), a JUAC privilegiou o trabalho apostólico no domínio
intelectual, focando principalmente a formação educacional, cultural, política e social
dos “autênticos cristãos”, fazendo uso do mesmo arcabouço ideológico doutrinário de
seus congêneres, a teologia da libertação. Esta passou a ser então apropriada enquanto
recurso estratégico para a “inclusão de novas problemáticas legítimas”, legitimando
“reinterpretações do passado” e balizando produções de sentido sobre o presente, ao
mesmo tempo em que a própria capacidade de mediação e de intervenção religiosa no
mundo social se reafirma (CORADINI, 2012, p. 73-75).

Nessa perspectiva, João Mohana se serve dos pressupostos da Teologia da


Libertação, enquanto presidente e organizador do movimento leigo no Maranhão, para
basilar a formação política e educacional de seus militantes. Um texto de autoria de
Marcelo Antunes, ex-militante da JUAC no Estado, datado de fins da década de 1970,
apresenta alguns elementos que consubstanciam a análise e caracterizam o aspecto
pedagógico da “libertação” e da “transformação” sobre a militância:

O processo de decadência cultural, política e existencial que se instalou no Brasil, pós-


golpe militar, e que estrategicamente se abateu sobre a juventude brasileira, o
militarismo no embotamento do seu presente e a redução castradora dos seus sonhos às
margens da massificação e do imperialismo cultural, tornam-se cenário onde a graça de
Deus reservou à juventude maranhense um encontro, um chamado. Em meio ao caos, o
nosso tempo foi presenteado com um movimento que nos permitiu vivenciar a
força transhistórica, transformadora e transfiguradora da pessoa e do projeto de
Cristo. O poder da mensagem semeada entre nós através de um homem, de um
apóstolo, cujos limites e amplitude da linguagem, eu agora posso fazer uso, me
conduzem a nomear: João Mohana.
Dentre sua vasta atividade junto à cultura maranhense, o Padre Mohana funda em
1975 o movimento JUAC (Juventude Universitária Autêntica Cristã), com vistas a
suprir uma lacuna na nossa educação marcada pela selvageria do capitalismo,
profundamente egocêntrica e em consequência despersonalizada e castradora. Pudemos
169

sentir, a partir de então, em nossas jovens existências, a dinâmica transformadora


do Evangelho.
A sua pedagogia significou para nós a realista revelação do rio Bacanga, dos nossos
limites, dando-nos a ver a amplitude do oceano e desencadeando em nós poderosa
transformação rumo à desembocadura, via palavras com força de Boqueirão: “tudo
que desanima é demoníaco”, “é preciso lutar contra as condições”, “sem ideal e
disciplina não se faz nada!”[...]
Por uma sorte, da qual não fomos merecedores, a graça da convivência com João
Mohana nos fez experimentar a ação confiante da libertação cristã, significação da
real possibilidade da mudança, abrindo à juventude do Maranhão o exemplo perene
do vislumbramento da “boca do Pindaré, sempre lembrando partida, nunca chegada”, de
outros caminhos, sem medo da diferença, da alteridade, de realizar em nós a
multiplicação dos talentos, da luta incansável pela modificação do meio e do trabalho
infindável, do qual a vida é ensinamento.
Escrevem-se assim na vida do Maranhão páginas inextinguíveis, das quais somos
testemunhas, e uma obra que nos conclama provocativamente para o rompimento
dos nossos casulos, frente à realidade da messe faminta de operários e à instalação
de um certo Reino... (Suplemento Cultural de “O IMPARCIAL”, 1995, p. 20. Grifo
nosso).

A caracterização feita por um ex-militante da JUAC no Maranhão possibilita


pensar que, mesmo um movimento leigo com vistas à “cristianização das futuras elites”,
o que poderia evidenciar o seu aspecto “clerical e conservador” (MAINWARING,
2004, p. 83-84), consegue pautar-se pelos ditames doutrinários de uma teologia que visa
“mudar as estruturas” que produzem as “injustiças sociais”, seja a “organização elitista
da sociedade, a acumulação privada e a própria estrutura socioeconômica do sistema
capitalista” (BOFF, 2012, p. 35).

Os pressupostos da Teologia da Libertação aparecem curiosamente em Mohana


tanto no seu engajamento militante quanto nas concepções que tece sobre a política, a
economia, a sociedade, inclusive até sobre a própria Igreja. O “estranhamento” se
justifica pelo fato das relações que Mohana mantém com membros do alto clero
maranhense. Enquanto em outros contextos os movimentos da juventude universitária
se “radicalizaram contra a hierarquia” (MAINWARING, 2004; REIS, 2007; SERBIN,
2002), no Maranhão os vínculos estabelecidos entre os dirigentes dos movimentos
leigos e a hierarquia eclesiástica – como quando Mohana foi presidente arquidiocesano
da Ação Católica no Estado antes mesmo de se tornar padre, cuja posição conseguiu
170

alcançar contando com o grau de amizade que tinha com o arcebispo D. Delgado e o
bom trânsito que desfrutava entre o alto clero local – foram fortalecidos por lógicas de
ajuda mútua e de reciprocidade, onde o laicato esteve sempre “agarrado atentamente ao
báculo do Bispo” e contava com a sua “aprovação e bênção” para desenvolver suas
ações (Suplemento Cultural de “O IMPARCIAL”, 1995, p. 4).

O entranhamento da Teologia da Libertação em João Mohana aparece também


em seus escritos. A peça de teatro Os perseguidos, publicada pela Editora Globo de
Porto Alegre, em 1979, é um dos sintomáticos exemplos de como Mohana busca
evangelizar seu público leitor à luz da explicitação da luta entre “dominantes e
dominados”, por assim dizer, expondo seu pensamento sobre o mundo social e a
situação política do Brasil e do Maranhão daquele período através de seus personagens
“subversivos” que se digladiam contra as “autoridades” em busca da “libertação
religiosa” e da “transformação política e social” das estruturas que sedimentam as
“injustiças sociais” (MOHANA, 1979, p. 35).

O processo de adesão do autor à referida teologia chegou a provocar certo


“espanto” entre os críticos de Mohana. O jornalista Oscar Mendes, em artigo escrito
para “O ESTADO DE MINAS” e publicado em 23 de maio de 1981, elabora uma
crítica literária a quatro peças teatrais das seis escritas por Mohana, assim se referindo
ao enredo de Os perseguidos:

O choque é muito grande para quem leu as três peças acima apreciadas [Abraão e
Sara, Inês e Pedro e Casulo de Pedra] e esta última de João Mohana. Temos agora uma
amostra do chamado “teatro de agressões”, em que o espectador é agredido pela
linguagem, pelo tema, pelo condicionamento psicológico dos personagens. O tema
aproveitado é da mais atual cotidianidade: a luta entre subversivos e autoridades, com
utilização das palavras de Cristo para justificar certas interpretações, tudo dentro
do espírito da mais conhecida “teologia da libertação” (Suplemento Cultural de “O
IMPARCIAL”, 1995, p. 40. Grifo nosso).

O “choque” causado pelo livro de Mohana junto aos críticos literários é


sensivelmente compreensível. Afinal, a incorporação de um repertório discursivo
fornecido pela teologia da libertação por um médico “literato” que fez da pregação do
Evangelho seu ofício “vocacional”, pertencente a uma família que gozava de prestígio e
reconhecimento entre as elites maranhenses, acaba por “agredir” o seu público leitor,
que também se “choca” com a “transformação” sofrida pelo padre.
171

Ao chegarmos até este ponto do exame da trajetória de João Mohana, é possível


observar toda a teia de poderes e de relações sociais que favoreceram e mesmo
impulsionaram certas tomadas de posição, a ocupação de determinadas posições e a
fabricação social de vocações religiosas no Maranhão. Mais do que isso, o percurso
feito por Mohana apresenta elementos que não podem ser negligenciados quando do
exame da emergência de figuras “ilustres” no patamar de “excepcionalidade” em
diferentes domínios.

Certamente, o capital cultural produzido, transmitido e adquirido por “herança


familiar” em dinâmicas complexas e periféricas (WOLF, 2003; GRILL, 2003),
representado na figura do pai, próspero comerciante de origem libanesa em vias de
afirmação econômica e social na sociedade maranhense, a formação escolar de
orientação cristã católica e os primeiros contatos com as expressões artísticas de um
modo geral, obtendo destaque entre os colegas, o trânsito e as relações estabelecidas
com membros do alto clero maranhense, exemplificado na recepção de um bispo em
Viana, ainda na infância, e, mais tarde, as amizades feitas com leigos e clérigos que o
influenciaram na vida acadêmica de estudante de Medicina e na militância do
movimento leigo da Ação Católica no Estado, contribuem em sua resultante para a
constituição de uma plataforma de ação evangelizadora multifacetada.

O saber médico adquirido com a formação acadêmica, o prestígio social


conquistado pela consagração “intelectual” e a dedicação à “vocação” sacerdotal
conferem a Mohana uma gama de conhecimentos e competências que, somados,
compõem um leque variado de recursos passíveis de serem acionados em determinadas
situações onde são valorizados e exigidos como requisitos para a ocupação de
determinadas posições, como o título de médico duplamente valorizado pela
legitimidade do exercício da clínica médica e da atuação enquanto “literato/intelectual”,
e a formação seminarística para a ordenação e a atividade sacerdotal.

O volume desse capital institucionalizado somado ao acúmulo de um capital


social que se enriquece à medida que novos espaços são conquistados e teias sociais
relativamente privilegiadas são erigidas acabam, no entanto, promovendo uma
indistinção entre os três ofícios: o de médico, o de escritor e o de sacerdote.

Afinal, Mohana é um padre que usa seus conhecimentos médico/científicos e as


habilidades e técnicas literárias para formular seus livros voltados para a evangelização
172

de seus leitores e para a difusão da fé e dos valores católicos. Ao atribuir para si a


“missão” de exercer com “convicção” e “segurança” o “ministério da palavra escrita e
falada”, esta manifestada em suas milhares de palestras e conferências realizadas no
Brasil e no exterior, o sacerdote se dilui em seu ofício, transplantando para o âmbito
clerical os recursos e troféus conquistados fora dele.

Nesse sentido, diante dos condicionantes e dos constrangimentos impostos pelas


dinâmicas sociopolíticas evidenciadas, o exame do itinerário de João Mohana
exemplifica o grau de hibridização do ofício sacerdotal no Maranhão, onde o padre
reivindica como legítimos saberes e competências que não orbitam hodiernamente no
âmbito confessional e no qual a atividade da escrita funciona como principal atributo na
disputa por imposições de sentidos e de confecção de interpretações sobre o mundo
social, sendo acionada como uma modalidade de atuação evangelizadora, cujas regras
válidas para o domínio da literatura são utilizadas em prol da “libertação” e da
“transformação” dos cristãos.
173

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O enfoque dado à análise dos condicionantes que favoreceram e influenciaram o


processo de hibridização e diversificação da atividade sacerdotal no Maranhão, tanto na
capital quanto no “interior” do Estado, observado através do exame de dois itinerários
singulares de padres que se diferenciaram dos demais agentes pelo repertório de atuação
acionado em distintos domínios e sob variadas formas e modalidades, sugere a
observação de alguns pontos importantes.

Em primeiro lugar, a formulação do objeto em termos de análise sobre as


transformações históricas, políticas, sociais e culturais favorece a compreensão dos
processos por que passou a Igreja, as mudanças operadas em sua organização
institucional, a abertura para o ingresso e a valorização do laicato junto às ações de
evangelização e os condicionantes que possibilitaram a emergência da figura dos
“intelectuais católicos” e sua importância na elaboração de postulados teórico-
doutrinários com vistas ao aumento da clientela religiosa.

Por isso mesmo, e com base no repertório variado de mobilização e engajamento


adquirido pelos agentes e acionado em diferentes domínios, pode-se pensar, em segundo
lugar, que as estratégias de atuação dos sacerdotes investigados foram ainda mais
diversificadas. Observou-se que a inserção de padres em organizações, movimentos e
instituições ligadas ou derivadas de vínculos estabelecidos com a Igreja é marcada tanto
por processos de ruptura ou de radicalismos de posições, quanto, no sentido inverso,
pelo estreitamento das relações de filiação religiosa com a instituição eclesiástica.

Se, de um lado, os condicionantes que constrangeram e favoreceram uma


multiplicidade de intervenções no mundo social, ampliando e diversificando o leque de
atuação de sacerdotes e legitimando processos e ações em espaços não necessariamente
de cunho confessional, são entrecortados por transformações históricas e institucionais,
nem sempre operadas em conjunto, por outro as formas e modalidades de mediação
(cultural, política, social, religiosa) escolhidas pelos agentes, muitas vezes, parecem ter
bases motivacionais próximas entre si, apesar de também preservarem suas
peculiaridades e pontos dissonantes. Nesse sentido, as especificidades apontadas se
174

tornaram ainda mais observáveis diante de um quadro conjuntural marcado por


frequentes avanços e recuos em seus desdobramentos.

Dessa forma, tanto a composição da trajetória do padre Clodomir Brandt quanto


a do padre João Mohana se distanciam em alguns pontos e se aproximam em outros,
evidenciando o cruzamento de lógicas (políticas, culturais e religiosas), a imbricação e
fluidez de fronteiras entre distintos domínios, os usos sociais que são feitos da escrita
por cada um dos agentes, bem como as singularidades de estratégias, recursos e trunfos
acionados no espaço em disputa.

Num primeiro momento, a distinção entre os espaços geográficos de atuação dos


dois sacerdotes define contornos mais nítidos de observação das discrepâncias e
peculiaridades entre ambos. Enquanto padre Brandt realiza suas ações no “interior” do
Maranhão, mais precisamente na cidade de Arari, distante geograficamente do centro de
poder da hierarquia eclesiástica, situado na capital, contando assim muito mais com o
apoio de familiares (no caso, o próspero “tio Cláudio”) e de uma rede de amizades
calcada no valor social conferido aos seus feitos, que está na base das retribuições
simbólicas que obtém como sacerdote, padre Mohana goza do privilégio de atuar na
capital São Luís, centro catalisador das demandas sociais, culturais, econômicas e
religiosas do Estado, o que lhe possibilita um trânsito mais próximo entre os membros
do alto clero local, estabelecendo redes de reciprocidade que o ajudam a pôr em prática
seu trabalho evangelizador por intermédio de um viés institucional, primeiramente
como leigo vinculado à hierarquia clerical e, depois, como integrante do corpo
sacerdotal.

O percurso trilhado pela família Brandt, particularmente pelos pais, que não
conseguem garantir uma maior oferta de possibilidades para a continuidade da formação
escolar de todos os filhos, acaba gerando uma “concentração das redes de relações
parentais” em torno de Cláudio Brandt, o primogênito da família que ajuda na formação
escolar e no direcionamento das profissões de cada um de seus irmãos. É através do “tio
Cláudio” que Clodomir consegue entrar e se manter no Seminário e, assim, seguir a sua
“vocação” profissional. É também o tio estabelecido social, econômica e politicamente
quem irá ajudar padre Brandt no desenvolvimento de seus “projetos” sociais,
educacionais, culturais e políticos em sua ação missionária no interior do Maranhão.
175

A recorrência quase que exclusivamente às relações familiares no tocante ao seu


trabalho pastoral em Arari sugere as dificuldades enfrentadas por um sacerdote que atua
na “periferia da periferia” do âmbito eclesiástico. Não obstante, as dificuldades
propiciadas pelo distanciamento geográfico do centro do poder religioso local, a
Arquidiocese do Maranhão, situada na capital, não isolou nem restringiu por completo
as possibilidades de intercâmbio social entre padre Brandt e as elites religiosas e
políticas de São Luís, conforme foi examinado. As visitas a deputados e governadores
na capital e o recebimento de figuras políticas destacadas regional e nacionalmente em
Arari, dentre outros segmentos sociais que integram as elites locais, são prova cabal da
possibilidade de existências de vínculos dessa natureza, particularmente mediados pela
estrutura e organização institucional da Igreja, ainda que em espaços não prioritários na
agenda eclesiástica, como a esfera político-partidária, sintomaticamente representada
pela mediação e “liderança” política exercida por padre Brandt em Arari.

A destacada atuação do sacerdote de raiz familiar alemã nos domínios da


cultura, da política e da imprensa, por assim dizer, e a utilização da escrita como
principal arma na disputa pela imposição de interpretações e pela conquista de
influência perante a sociedade arariense, produziram um duplo efeito: primeiramente, o
prestígio e o reconhecimento social como retribuição simbólica conquistado pelo padre;
e, em segundo, a formação de uma elite entre os jovens estudantes que rivalizam com o
sacerdote pela prevalência de práticas e discursos heterodoxos sobre o ordenamento
sociopolítico local.

A escrita, portanto, é acionada por padre Brandt, detentor dos meios de produção
simbólica na cidade, enquanto instrumento de luta, de demarcação de posições e de
tomadas de posicionamentos que aglutinam avanços e recuos, conquistas e perdas de
espaços no jogo do poder. Sua entrada para a esfera político-partidária consubstancia o
grau de envolvimento de um sacerdote na “vida” de uma cidade, onde não apenas o uso
da escrita ganha ares de domínio público, como a própria atividade religiosa tenta se
legitimar através da atividade da política, num espaço de poder pouco institucionalizado
e, por isso mesmo, de forte valorização do capital de relações sociais pessoalizadas dos
agentes e de predominância das heterodoxias vigentes.

No caso de João Mohana, o processo de ascensão social e afirmação intelectual


do sacerdote como agente legitimamente estabelecido para intervir nos diferentes
176

domínios sociais ocorre através da imbricação entre relações mediadas pela valorização
do capital escolar institucionalizado (diplomas dos cursos primário e secundário obtidos
em escolas de prestígio social e título acadêmico de Medicina) e do capital social
constituído em termos de ajuda mútua, relações de parentesco e de amizade
instrumental.

Observa-se no exame desse itinerário uma complexidade maior de atuação


religiosa. Primeiramente, pela entrada relativamente tardia na vida clerical (aos 35 anos)
em comparação aos demais agentes, cuja “demora” implica na aquisição de múltiplos
recursos exógenos à esfera religiosa e de composição de um vasto repertório erudito que
o legitima a intervir no mundo literário, na esfera cultural e nos processos de formação
educacional e política das futuras elites clericais junto aos movimentos universitários
sendo, inclusive, fundador e presidente da Juventude Universitária Autêntica Cristã
(JUAC) no Maranhão.

A especificidade de Mohana ocorre no tocante ao próprio desenvolvimento de


sua ação sacerdotal. É um dos raros casos observáveis em que as relações estabelecidas
com membros da hierarquia eclesiástica local o conduziram a assumir posições de
liderança junto aos movimentos do laicato maranhense. Enquanto a nível nacional e em
outros contextos, os movimentos da juventude universitária se complexificaram ao
ponto de se “radicalizarem contra a hierarquia”, João Mohana reúne em torno de si
atributos sociais e competências institucionalizadas – diploma de médico,
reconhecimento “intelectual” e literário e relações de amizade com o alto clero – que
incidem distintivamente nas próprias ações coletivas dos movimentos leigos no
Maranhão, quer através do apoio da Igreja nos projetos desenvolvidos pela Ação
Católica no Estado, tendo em Mohana seu presidente arquidiocesano, quer pela
formulação de uma pedagogia erudita e multifacetada disseminada pela JUAC, através
da figura de seu presidente e fundador João Mohana, voltada para a “libertação” e para a
“transformação” das estruturas que produzem as “injustiças sociais”.

Além disso, é perceptível no trajeto de João Mohana os usos sociais e religiosos


que ele faz dos saberes médico/científicos adquiridos e das competências de escrita
consagradas literariamente para compor sua evangelização por meio da publicação de
livros que abordam assuntos psicológicos, conjugais, espirituais, políticos e sociais, e
para a realização de palestras e conferências dentro e fora do país, gozando do prestígio
177

de ser médico, escritor “consagrado” e padre militante, dando musculatura ao que


chamou de “ministério da palavra escrita e falada”.

Infere-se que a diversificação das modalidades de atuação sacerdotal que transita


por distintos domínios sociais, particularmente nas esferas da política e da cultura,
orbitando em torno das elites e dos grupos dirigentes locais, acaba por mesclar também
elementos políticos-ideológicos que fornecem um repertório discursivo voltado para a
realização de práticas efetivas de evangelização que, em seu conjunto, evidenciam o
grau de hibridização do ofício de sacerdote no Maranhão, presente nos dois itinerários
investigados, mas manifestado de formas singulares em ambos os casos.

O estudo, por fim, apontou para as lógicas cruzadas, clivagens, bricolagens,


disputas ideológicas e intra-faccionais, bem como os investimentos feitos (mais ou
menos conscientes), os recursos disponíveis e acionados como trunfos distintivos de
atuação e a análise dos processos de ascensão e afirmação social, “intelectual”, política
e religiosa que se operam na periferia e no centro do poder da Igreja Católica no
Maranhão, com ancoragem em substratos econômicos e relações políticas e sociais
relativamente privilegiadas. Ao passo que não se descurou do exame dos condicionantes
que constrangem práticas e discursos religiosos, e que também se transformam à medida
que se complexificam aspectos conjunturais, contextuais, históricos e institucionais,
compondo um mosaico heterônomo de elementos exógenos que interferem na esfera
religiosa e de propriedades e recursos provenientes do domínio religioso que são
reivindicados como “legítimos” e passíveis de serem acionados nas disputas travadas
em torno de definições e critérios de intervenção no mundo social.
178

ANEXOS
179

ANEXO I

Livros de autoria do padre Clodomir Brandt

Romance: Folha miúda: minha dor (1983); Os caminhos de Silvânia (1984);


Arnaldo (1988); Luzia dos olhos verdes (1997).

Teatro: A semente que cresceu entre espinhos.

Informativo: Assuntos ararienses (vol. I); Assuntos ararienses (vol. II).

Ensaio: Escritos sem ordem – 1ª Série (1983); Escritos sem ordem – 2ª Série
(1988); Escritos sem ordem – 3ª Série (1990); Escritos sem ordem – 4ª Série (1992);
Escritos sem ordem – 5ª Série (1994); Escritos sem ordem – 6ª Série (1996).

Genealogia: Famílias ararienses: Nicolau Antônio Rodrigues Chaves; Lourenço da


Cruz Bogéa; Os Moraes e Silva; Pedro Leandro Fernandes; João José Fernandes;
José Antônio Fernandes; Pedro Alexandrino Fernandes; Domingos José dos
Santos; Leonardo Pimenta Bastos; Família Pestana; Benedito Raimundo da
Ericeira; Os Pereira; Família Brandt.
180

ANEXO II

Livros de autoria do padre João Mohana

Romance: O outro caminho (1952) – 9ª ed. Agir; Maria da tempestade (1952) – 8ª


ed. Agir.

Teatro: Inês e Pedro (Por causa de Inês) – 2ª ed. Agir; Abraão e Sara – Agir;
Casulo de pedra – Agir; O marido de Conceição Saldanha – Recado; Os
perseguidos – Globo; A paixão de Thomas Mores – Loyola.

Ensaio:

- Educação para o casamento: Ajustamento conjugal – 11ª ed. Loyola; A vida


sexual dos solteiros e casados – 26ª ed. Loyola; A vida afetiva dos que não se casam
– Loyola; Prepare seus filhos para o futuro – 11ª ed. Loyola; Não basta amar para
ser feliz no casamento – 5ª ed. Loyola; Casar para crescer – 3ª ed. Loyola; Namoro
é isto – 3ª ed. Loyola; Amor e responsabilidade – 8ª ed. Agir; Liberte seu filho da
insegurança – 2ª ed. Agir.

- Espiritualidade: Plenitude humana – 5ª ed. Loyola; Descubra o valor do terço –


13ª ed. Loyola; Pobres e ricos perante Cristo no Brasil – Loyola; Teologia das
relações humanas – Loyola; O coração do homem e o coração de Cristo – 2ª ed.
Loyola; O cristão desafiado – Loyola; Espírito Santo de todos – 2ª ed. Loyola;
Escolhidos de Deus – 3ª ed. Loyola; Diga não ao imperialismo cultural – Loyola;
Espiritualidade e Teologia da Libertação – Loyola; A Cristo por Paulo – Agir; A
oração de cada idade – 2ª ed. Agir; Jesus Cristo radiografado: Cristologia I – 2ª ed.
Agir; O enviado: Cristologia II – Agir; Ore com os grandes orantes – 2ª ed. Agir; O
encontro: os mais belos encontros de Cristo – 6ª ed. Agir; O mundo e eu – 9ª ed.
Agir; Sofrer e amar – 16ª Ed. Agir; Paz pela oração – 8ª ed. Agir.

Outros: Como ser um bom pregador – 2ª Ed. Agir; Auto-análise para o êxito
profissional – 4ª Ed. Loyola; Padres e bispos auto-analisados – 2ª Ed. Agir; A
grande música do Maranhão – Agir.
181

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. A ideologia da decadência: leitura


antropológica a uma história da agricultura do Maranhão. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora
Casa 8, Fundação Universidade do Amazonas, 2008.

__________. Transformações econômicas e sociais no campo maranhense:


autonomia e mobilização camponesa no Maranhão. São Luís: CPT, 1981.

ALVES, Márcio Moreira. A Igreja e a política no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.

ARAÚJO, Edna Bezerra de. Valores brandtianos: um tesouro a preservar. São Luís,
2011. Disponível em: http://becbaa.blogspot.com.br/. Acessado em 06/07/2012.

ASSIS, Ingrid Pereira. Descendentes de libaneses na política do Maranhão: ascensão


econômica, relações pessoais e afirmação política. 132 f. Dissertação (Mestrado em
Ciências Sociais) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2012.

AZZI, Riolando. “Presença da Igreja na sociedade brasileira e formação das dioceses no


período republicano”. In: SOUZA, Rogério Luiz de; OTTO, Clarícia (Org.). Faces do
Catolicismo. Florianópolis: Insular, 2008.

BADIE, Bertrand; HERMET, Guy. Política comparada. México: Fondo de Cultura


Econômica, 1993.

BATALHA, João Francisco. Um passeio pela história de Arari. São Luís: Lithograf,
2011.

BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II (1959-1965). São


Paulo: Paulinas, 2005.

__________. “A Igreja entre a Revolução de 1930, o Estado Novo e a


Redemocratização”. In: FAUSTO, Boris (org). História geral da civilização
brasileira. São Paulo: Difel, 1986, v. 11.

BOFF, Leonardo. Igreja, carisma e poder: ensaios de eclesiologia militante. Record:


Rio de Janeiro, 2012.
182

BONATO, Massimo. Transformações do catolicismo brasileiro pós-Concílio


Vaticano II: uma análise da pastoral do padre Alberto Antoniazzi. Dissertação
(Mestrado em História Social) – Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro,
2009.

BORGES, Arleth Santos. A construção do Partido dos Trabalhadores no Maranhão.


Unesp: São Paulo, 1998.

__________. Estudantes e política: movimentos estudantis e greve pela meia


passagem no contexto da redemocratização. Ciências Humanas em Revista. Edufma:
São Luís, v. 4, n. 1, jun. 2006.

BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

__________. Estrategias de reproducción y modos de dominación. In: Colección


Pedagógica Universitaria. Argentina, n. 37-38, enero-junio/julio-diciembre, 2002a.

__________. “Os modos de dominação”. In: Bourdieu, P. A produção da crença:


contribuição para uma economia dos bens simbólicos. São Paulo: Zouk, 2002b.

__________. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004a.

__________. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo


científico. São Paulo: Editora Unesp, 2004b.

__________. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Zouk, 2008a.

__________. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: Edusp, 2008b.

__________. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo:


Companhia das Letras, 2010.

__________. Homo academicus. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011.

BRUNEAU, Thomas. O catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo:


Loyola, 1974.

BURITY, Joanildo A. Religião e política na fronteira: desinstitucionalização e


deslocamento numa relação historicamente polêmica. Revista de Estudos da Religião,
São Paulo, nº. 4, 2001, p. 27-45.
183

BUZZAR, Benedito. O vitorinismo: lutas políticas no Maranhão de 1945 a 1965.


Lithograf: São Luís, 1998.

CODATO, Adriano Nervo; OLIVEIRA, Marcos Roberto de. A marcha, o terço e o


livro: o catolicismo conservador e ação política na conjuntura do golpe de 1964.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, 2004.

CORADINI, Odaci Luiz; REIS, Eliana Tavares dos. Transações culturais, intelectuais
e as ciências sociais. Dossiê: Cultura, poder e modalidades de engajamento. In: Revista
Pós-Ciências Sociais, v. 9, n. 17. Edufma: São Luís, 2012, p. 9-17.

CORADINI, Odaci Luiz. As missões da “cultura” e da “política”: confrontos e


reconversões de elites culturais e políticas no Rio Grande do Sul (1920-1960). Revista
de Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 32, 2003, p. 125-144.

__________. A formação da elite médica, a Academia Nacional de Medicina e a


França como centro de importação. In: Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 35,
2005.

__________ (Org). Estudos de grupos dirigentes no Rio Grande do Sul: algumas


contribuições recentes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.

__________. Titulação escolar, condição de “elite” e posição social. In: Revista


Brasileira de Educação. v. 15, n. 43, jan./abr. 2010.

__________. Os usos das ciências humanas e sociais pelo catolicismo e pelo


luteranismo e as relações centro/periferia. Dossiê: Cultura, poder e modalidades de
engajamento. In: Revista Pós-Ciências Sociais, v. 9, n. 17. Edufma: São Luís, 2012, p.
67-99.

COSTA, Wagner Cabral da. O rosto rural da Igreja: a atuação da CPT no Maranhão
(1976-1981). 59 f. Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal do
Maranhão, São Luís, 1994.

COUTO, Edilece Souza. O retorno dos jesuítas ao Brasil e a fundação do Colégio


Antônio Vieira na Bahia. Anais do V Congresso Internacional de História, 2011, p.
2284-2294.
184

COUTROT, Aline. “Religião e Política”. In: REMOND, René. Por uma história
política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

DELLA CAVA, Ralph. Igreja e Estado no Brasil do século XX: sete monografias
recentes sobre o catolicismo brasileiro (1916-1964). In: Novos Estudos – CEBRAP, n.
12, 1975.

DELGADO, Lucília de Almeida Neves; PASSOS, Mauro. “Catolicismo: direitos


sociais e direitos humanos (1960-1970)”. In: DELGADO, Lucília de Almeida Neves;
FERREIRA, Jorge (Org.). O Brasil Republicano: o tempo da ditadura. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, v. 4, 2003, p. 93-132.

DUBAR, Claude. Trajetórias sociais e formas identitárias: alguns esclarecimentos


conceituais e metodológicos. In: Educ. Soc., Campinas, vol. 19, n. 62, abr. 1998.

ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

__________. Sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

FARIA, Regina Helena Martins de; MONTENEGRO, Antonio Torres. (Org.).


Memória de professores: histórias da UFMA e outras histórias. São Luís:
Universidade Federal do Maranhão/Departamento de História; Brasília: CNPq, 2005.

FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo:


Companhia das Letras, 1997.

FERNANDES, José. O universo do Padre Brandt. São Luís: Unigraf, 2012.

FURTADO, Frederico Mamede Santos. A comunidade sírio-libanesa e sua inserção


na elite maranhense. 71 f. Monografia (Graduação em História) – Universidade
Estadual do Maranhão, São Luís, 2008.

GATTAZ, André. Do Líbano ao Brasil: história oral de imigrantes. São Paulo:


Gandalf, 2005.

GONÇALVEZ, Ângelo Barreiro. A Igreja Católica e o golpe de 1964. Akrópolis:


Revista de Ciências Humanas da Unipar, vol. 12, n. 1, 2004.
185

GRILL, Igor Gastal. Parentesco, redes e partidos: as bases das heranças políticas no
Rio Grande do Sul. 455 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.

__________. “Elites”, “profissionais” e “lideranças” na política: esboço de uma


agenda de pesquisas. In: Ciências Humanas em Revista, São Luís, vol. 4, n. 02, dez.
2008.

GRILL, Igor Gastal; REIS, Eliana Tavares dos. O que escrever quer dizer na
política? Carreiras políticas e gêneros de produção escrita. Dossiê: Cultura, poder e
modalidades de engajamento. In: Revista Pós-Ciências Sociais, v. 9, n. 17. Edufma: São
Luís, 2012, p. 101-121.

GRILL, I.G.; REIS, E.T. Entre togados e votados: as “batalhas jurídicas” nas disputas
eleitorais. 7º Encontro da ABCP, Recife, 2010.

GRYNSZPAN, Mário. A teoria das elites e sua genealogia consagrada. In: BIB, n.
41, 1996.

__________. Ciência, política e trajetórias sociais: uma sociologia histórica da teoria


das elites. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999.

GRYNSPAN, Mário; GRILL, Igor Gastal. Elites: recursos e legitimação. Dossiê:


Elites. In: Revista Pós-Ciências Sociais, v.8, n. 15. Edufma: São Luís, 2011, p. 9-14.

HERMANN, Jaqueline. Religião e política no alvorecer da República: os


movimentos de Juazeiro, Canudos e Contestado. In: Col. O Brasil Republicano. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, v. 3, 2007, p. 121-160.

HERMET, Guy. Les fonctions politiques des organisations religieuses dans lês
régimes à pluralism limité. In: Revue française de science politique, 23e année, n. 3, p.
439-472, 1973.

HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1992.

LAGROYE, Jacques. La vérité dans l’Eglise catholique. Contestations e restauration


d’um regime d’autorité. Éditions Bellin, 2006.
186

LENOIR, Remi. “Objeto sociológico e problema social”. In: CHAMPAGNE, Patrick et


al. Iniciação à prática sociológica. Petrópolis: Vozes, 1996.

LOWY, Michel. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina.


Petrópolis: Vozes, 2000.

MAGALHÃES, Marcelo Vieira. Sírios e libaneses na cidade de São Luís (1885-


1930): entre táticas e representações. 124 f. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2009.

MAINWARING, Scott. Igreja Católica e política no Brasil. São Paulo: Brasiliense,


2004.

MATONTI, Frédérique; POUPEAU, Franck. O capital militante. Uma tentativa de


definição. USP: São Paulo, 2006.

MELO, Hugo Freitas de. Entre rosas e armas: atuação política da Igreja Católica e
ditadura militar no Maranhão (1968-1974). 90 f. Monografia (Graduação em História) –
Universidade Estadual do Maranhão, São Luís, 2010.

MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

__________. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo; Rio de


Janeiro: DIFEL, 1979.

MOHANA, João. Os perseguidos. Globo: Porto Alegre, 1979.

NERIS, Wheriston Silva. Itinerários religiosos e engajamento político no Maranhão


(1940-1980): catolicismo, mediação cultural e militantismo político-religioso. 35º
Encontro Anual da Anpocs. GT 16: Dirigentes e estruturas de poder. Caxambu, MG,
2011.

__________. “Elementos para uma história social da militância católica no Maranhão”.


In: CARREIRO, Gamaliel da Silva; SANTOS, Lyndon de Araújo; FERRETI, Sergio
Figueiredo (Org.). Missa, culto e tambor: os espaços das religiões no Brasil. Edufma:
FAPEMA: São Luís, 2012, p. 29-78.

NUNES, Iran de Maria Leitão. Os irmãos maristas na educação do Maranhão (1908-


1920). Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 1996.
187

NUNES, Patrícia Maria Portela. Medicina, poder e produção intelectual. São Luís:
Edições UFMA; PROIN (CS), 2000.

PEREIRA, Jesus Marmanillo. Engajamento militante e a “luta pela moradia em São


Luís” entre as décadas de 1970 e 1980. 201 f. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) – Universidade Federal do Maranhão. São Luís, 2011.

PACHECO, D. Felipe Condurú. História Eclesiástica do Maranhão. São Luís:


Departamento de Cultura do Estado, 1969.

REIS, Eliana Tavares dos Reis. Em nome da “cultura”: porta-vozes, mediação e


referenciais de políticas públicas no Maranhão. Revista Sociedade e Estado, vol. 25, n.
3, set./dez. 2010.

__________. Contestação, engajamento e militantismo: da “luta contra a ditadura” à


diversificação das modalidades de intervenção política no Rio Grande do Sul. Tese de
Doutorado defendida junto ao PPGCP/UFRGS, Porto Alegre, 2007.

__________. “A arte da intervenção política: origens sociais, carreiras e destinos de


militantes que “lutaram contra a ditadura” no Rio Grande do Sul”. In: CORADINI,
Odaci Luiz. (Org). Grupos de dirigentes no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
UFRGS, 2007b.

__________. “Da contestação à profissionalização política: capital militante, capital


social e capital político”. In: GRLL, I. G.; REIS, E.T.; BARROS FILHO, J. Elites,
profissionais e lideranças políticas (RS e MA). Pesquisas recentes. São Luís,
Coleção Humanidades, vol. 4, 2008.

REIS, Eliana Tavares dos; GRILL, Igor Gastal. Letrados e votados: lógicas cruzadas
do engajamento político no Brasil. Dossiê: Sociologia do poder e das elites. In: Revista
TOMO, Sergipe, n. 13, jul./dez. 2008.

REVISTA PÓS-CIÊNCIAS SOCIAIS. Elites (Dossiê). Universidade Federal do


Maranhão, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. São Luís: Edufma, v. 8, n.
15, 2011.
188

REVISTA PÓS-CIÊNCIAS SOCIAIS. Cultura, poder e modalidades de


engajamento (Dossiê). Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós-
graduação em Ciências Sociais. São Luís: Edufma, v. 9, n. 17, 2012.

RIBEIRO, Emanuela Souza. Igreja Católica e Modernidade no Maranhão (1889-


1922). 173 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2003.

RIDENTI, Marcelo. “Ação Popular: cristianismo e marxismo”. In: REIS FILHO,


Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo (Org.). História do marxismo no Brasil: partidos e
organizações dos anos 20 aos 60. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2002, p. 213-282.

SALEM, H. (Coord.). A Igreja dos oprimidos. São Paulo: Debates, 1981.

SANTOS, Lyndon de Araújo. “Entre a terra e o paraíso”: representações do


protestantismo no Maranhão. In: COSTA, Wagner Cabral da (Org.). História do
Maranhão: novos estudos. São Luís: Edufma, 2004.

SAPIRO, Gisèle. Modelos de intervenção política dos intelectuais: o caso francês.


Dossiê: Cultura, poder e modalidades de engajamento. In: Revista Pós-Ciências Sociais,
v. 9, n. 17. Edufma: São Luís, 2012.

SAWICKI, Frédéric; SIMÉANT, Johanna. Inventário da sociologia do engajamento


militante. Nota crítica sobre algumas tendências recentes dos trabalhos franceses.
Sociologias, Porto Alegre, n. 28, set./dez. 2011, p. 200-255.

SEIDL, Ernesto. A elite eclesiástica no Rio Grande do Sul. 462 f. Tese (Doutorado
em Ciência Política) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.

__________. Um discurso afinado: o episcopado católico frente à “política” e ao


“social”. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, n. 27, jan/jun. 2007a.

__________. “Intérpretes da história e da cultura”: carreiras religiosas e mediação


cultural no Rio Grande do Sul. In: Revista Anos 90, Porto Alegre, v. 14, n. 26, p. 77-
110, dez. 2007b.

__________. Elites militares, trajetórias e redefinições político-institucionais (1850-


1930). In: Revista de Sociologia Política, Curitiba, v. 16, n. 30, p. 199-220, jun. 2008.
189

__________. Caminhos que levam a Roma: recursos culturais e redefinições da


excelência religiosa. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, n. 31, jan./jun.
2009a.

__________. Lógicas cruzadas: carreiras religiosas e política. In: Revista Pós Ciências
Sociais, São Luís, v. 6, n. 11, p. 11-27, 2009b.

SERBIN, Kenneth P. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja Católica
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

__________. Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na


ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

SERRY, Hervé. Literatura e catolicismo na França (1880-1914): contribuição a uma


sociohistória da crença. Revista Tempo Social. USP: São Paulo, 2004.

SIGAL, Silvia. Intelectuais, cultura e política na Argentina. Dossiê: Cultura, poder e


modalidades de engajamento. In: Revista Pós-Ciências Sociais, v. 9, n. 17. Edufma: São
Luís, 2012, p. 51-66.

SILVA, Clodomir Brandt e. A família Brandt. Arari: Ed. Notícias de Arari, 1993.

__________. Assuntos ararienses. Arari: Ed. Notícias de Arari, 1985.

__________. Assuntos ararienses II. Arari: Ed. Notícias de Arari, 1990.

__________. Escritos sem ordem. 1ª série. Arari: Ed. Notícias de Arari, 1983.

__________. Escritos sem ordem. 3ª série. Arari: Ed. Notícias de Arari, 1990.

__________. Escritos sem ordem. 4ª série. Arari: Ed. Notícias de Arari, 1992.

__________. Escritos sem ordem. 5ª série. Arari: Ed. Notícias de Arari, 1994.

__________. Escritos sem ordem. 6ª série. Arari: Ed. Notícias de Arari, 1996.

SILVA, Joelma Santos da. Por mercê de Deus: Igreja e política na trajetória de Dom
Marcos Antonio de Sousa (1820-1842). 194 f. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2012.
190

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Profissão artista: pintoras e escultoras acadêmicas


brasileiras. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2008.

SORÁ, Gustavo. Brasilianas: José Olympio e a gênese do mercado editorial brasileiro.


São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Com-Arte, 2010.

SOUSA, Alysson Ericeira. Padristas e barriguistas: poder político e violência em


Arari. 52 f. Monografia (Graduação em História) – Universidade Estadual do Maranhão,
São Luís, 2003.

SUAUD, Charles. As lutas religiosas do ponto de vista de uma sociologia da


incorporação. O corpo sacerdotal (católico) entre doutrina e inovação. Revista da
Faculdade de Letras/Sociologia. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
série I, v. 1, 1991.

WEBER, Max. Economia y sociedade. México: Fondo de Cultura Econômica, 1997.

__________. Ciência e política: duas vocações. 2ª. Edição. Martin Claret: São Paulo,
2011.

WOLF, Eric. Antropologia e poder. Organizado por Bela Feldman-Bianco e Gustavo


Lins Ribeiro: tradução de Pedro Maia Soares – Brasília: Editora da Universidade de
Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Editora Unicamp, 2003.

Você também pode gostar