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“O OFÍCIO DE SACERDOTE”:
mediação cultural, atuação política e produção intelectual de padres no Maranhão
São Luís
2013
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“O OFÍCIO DE SACERDOTE”:
mediação cultural, atuação política e produção intelectual de padres no Maranhão
São Luís
2013
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“O OFÍCIO DE SACERDOTE”:
mediação cultural, atuação política e produção intelectual de padres no Maranhão
Aprovada em / /
Banca Examinadora
_________________________________________________
Profª.Drª. Eliana Tavares dos Reis (Orientadora)
Professora e pesquisadora – DESOC e PPGCSO/UFMA
_______________________________________________
Prof. Dr. Igor Gastal Grill
Professor e pesquisador – DESOC e PPGCSO/UFMA
______________________________________________
Prof. Dr. Juarez Lopes
Professor – DESOC/UFMA
5
AGRADECIMENTOS
Por isso, o registro feito nestas maltraçadas linhas em hipótese alguma significa
um ato de predileção por um ou outro nome, apenas a manifestação honrosa àqueles que
se fizeram presentes de uma forma mais intensa para a conclusão deste trabalho.
Por fim, estendo meus agradecimentos a todos e a todas que ajudaram a tornar
mais suaves e prazerosos os passos dados ao longo dessa difícil empreitada,
contribuindo, cada um a seu modo, direta e indiretamente, para que as pedras no meio
do caminho não se constituíssem em barreiras intransponíveis, mas em obstáculos
passíveis de serem ultrapassados, tal como os espinhos que não obnubilam a beleza das
rosas.
8
RESUMO
ABSTRACT
Analyze of the conditions that governed the hybridization of the performance of priests
in Maranhão, in the capital and on the “inside”, particularly in the spheres of religion,
politics and culture, performing roles of cultural mediators and politicians, interpreters
of history and society and spokespersons of collective causes regarded as legitimate.
The study is historical overview and spatial dynamics sociopolitical represented by
Maranhão during the 1950s and 1980s. Therefore, we resorted to the mapping and
cataloging of data and information on the cases investigated in a variety of sources,
especially the query to academic papers, books and texts produced by the priests
examined, libraries belonging to church-related organizations, as well as the websites
and personal blogs. Making use of this material, brought to unveil social powers that
focus on the diversification of the priestly office in Maranhão, taking up writing as a
major instrument of struggle triggered by agents within symbolic competition.
Keywords: Craft priest. Cultural measure. Political action. Intellectual production.
12
LISTA DE QUADROS
SUMÁRIO
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE QUADROS
INTRODUÇÃO.............................................................................................................15
“Intelectuais”, mediação e política: aportes conceituais.................................................24
Obstáculos e procedimentos de pesquisa........................................................................35
Capítulo 1: A REESTRUTURAÇÃO DO ESPAÇO RELIGIOSO E A
DIVERSIFICAÇÃO DA ATIVIDADE SACERDOTAL: apontamentos sócio-
históricos.........................................................................................................................45
INTRODUÇÃO
1
Fruto da graduação em História pela Universidade Estadual do Maranhão, o trabalho analisa os
principais eventos sociopolíticos publicados pelo periódico católico “JORNAL DO MARANHÃO”,
particularmente os fatos conflituosos envolvendo padres e militares, que evidenciaram um
estremecimento nas relações bilaterais entre Igreja e Estado, exigindo da instituição eclesiástica, em
âmbito local, a reformulação de suas estratégias de atuação perante o regime e a adoção de novas práticas
pastorais.
18
pastorais, que implicam numa forma diferente dos sacerdotes de interpretar e atuar na
sociedade, tendo no engajamento militante de padres nessas “lutas sociais” um de seus
principais exemplos, quer na confecção de novas rotas e esferas de atuação sacerdotal,
onde a escrita se constitui num de seus primazes baluartes.
Com isso, entretanto, não se quer atingir aqui a fundamentação teórica adotada
ou seus princípios analíticos, nem redirecionar as abordagens investigativas, mas antes
adequar a proposta bourdiana para contextos “periféricos” como o Maranhão,
reafirmando a sua validade e abrangência enquanto esquema analítico que evidencia a
relevância das especificidades estudadas, num processo de ajustamento das ferramentas
conceituais para distintas localizações geográficas, conforme apontaram Coradini e Reis
(2012). Segundo os autores, a compreensão do que é “política”, por exemplo, deve estar
cimentada nas “lógicas autóctones” dos espaços investigados, e não nas definições por
analogia importadas dos “centros” ocidentais. Ainda que haja um elo consistente de
intermediação entre estes centros e os cientistas sociais de diferentes nacionalidades que
advogam e se apropriam do esquema analítico bourdiano, operacionalizando-o em seus
respectivos países de atuação, faz-se necessário “priorizar o caráter relacional dos
mecanismos de estruturação e hierarquização dos domínios sociais nos limites fluidos
das fronteiras nacionais” (CORADINI; REIS, 2012, p. 13).
são pessoas que se esforçam para manipular as visões de mundo (e, desse modo, para
transformar as práticas) manipulando a estrutura da percepção do mundo (natural e
social), manipulando as palavras, e, através delas, os princípios de construção da
realidade social.
De fato, o uso da escrita por agentes (ou conjunto de agentes) inscritos no espaço
de manipulação simbólica e, por conseguinte, de dominação cultural – onde o acesso à
cultura escolar é amplamente controlado e desigual –, diferentemente de uma percepção
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Assim, diante dos escassos estudos sobre a atuação de agentes católicos como
mediadores nos domínios da política e da cultura no Maranhão, bem como sobre a
relevância ou não de seu trabalho “intelectual” enquanto produtores culturais,
autorizados pela instituição eclesiástica e legitimados socialmente, de representações do
mundo social sob o olhar da Igreja, e ressalvadas as problemáticas que perpassam a
operacionalização de conceitos importados de “centros” ocidentais para regiões
“periféricas”, conforme já foi apontado, intentou-se articular no presente trabalho as
significativas contribuições das pesquisas já citadas e de outras recentes que sinalizam
para a análise do peso relacional da origem social, do capital escolar, da produção
escrita e de redes de relações mais ou menos privilegiadas na composição de carreiras
de religiosos católicos em diferentes eixos de formação e atuação profissional,
transplantando-se as contribuições destacadas para a esfera religiosa local.
24
disputas pela manutenção do poder se davam entre as velhas e novas forças emergentes,
especialmente concentradas na análise sobre os burocratas de Estado (esfera político-
administrativa), donos de empresas, bancos, etc. (esfera econômica), oficiais de alta
patente das forças armadas, etc. (GRYNSPAN, 1996, 1999; GRILL, 2008).
2
Sobre as contribuições dessa sociologia norte-americana para a atualização das significações do conceito
de “elites” e sua proposta teórica, ver: GRILL, Igor Gastal. Elites, profissionais e lideranças na política:
esboço de uma agenda de pesquisas. In: Ciências Humanas em Revista, v. 4, n. 2, 2008.
26
Vários estudos desenvolvidos por Pierre Bourdieu (2002a, 2002b, 2008, 2010,
2011) e por pesquisadores que circulam nos seus grupos3 ressaltam essa perspectiva de
luta entre dominantes e dominados no campo de poder e de conquista e manutenção dos
meios que garantam tal relação de dominação, da qual o presente trabalho está
embebido, com especial destaque para As regras da arte (2010), onde o sociólogo
analisa os princípios que regem escritores e instituições literárias na elaboração e
manipulação de bens simbólicos. Neste trabalho, Bourdieu retira toda a áurea singular
que recobre os escritores como “geniais”, reconstituindo-lhes os vetores e os
condicionantes que perpassam suas produções, além de analisá-los relacionalmente em
seus espaços de concorrência com outros agentes, explicitando as regras que permitem o
surgimento de “produtores culturais” em diferentes e múltiplos domínios de
manipulação simbólica, não se restringindo apenas aos “literatos”, mas estendendo-se
também à produção de artistas, filósofos, cientistas, políticos, religiosos.
3
Duas coletâneas organizadas por Odaci Luiz Coradini (2008) e outra contando com a colaboração de
Eliana Tavares dos Reis (2012) identificam os pesquisadores que circulam nos grupos de estudos
bourdianos.
27
Por sua vez, as noções elaboradas por Eric Wolf (2003) referentes às relações de
“parentesco”, de “amizade” e de “patrono-cliente” fundamentam as possibilidades de
análise das teias sociais gestadas a partir da “interação dialética entre estruturas formais
e os diferentes tipos de associações informais”. Segundo o autor, muitas vezes, “as
relações sociais informais são responsáveis pelos processos metabólicos necessários
para que se mantenha a instituição formal em operação” (WOLF, 2003, p. 94). Nesse
sentido, ponderar o peso das funções desempenhadas pela família e pelos parentes, pelas
relações de amizade e sua variante “instrumental” e pelas relações “patrono-cliente” é
fundamental para se analisar o grau de importância de laços de “lealdade”, ajuda mútua,
redes de reciprocidade e de auto-consagração entre pares para o direcionamento de
carreiras eclesiais, sedimentação de posições estratégicas no espaço religioso e para a
afirmação política e intelectual de sacerdotes no Maranhão.
28
de seu trabalho intelectual com o reconhecimento social que lhe é conferido, isto é, na
delegação da autoridade de onde provém seu discurso autorizado.
Essa imbricação entre cultura e política, efetuada pelo trabalho de mediação dos
“intelectuais”, obteve como resultado por parte destes um estado de saída da teoria ao
engajamento. Diversos estudos já enfatizaram que a passagem desses agentes do campo
teórico para a práxis social se processou por meio da constituição e diferenciação de
“modelos de intervenção”, espraiados para diferentes domínios e espaços sociais (REIS,
2010; SAPIRO, 2012; SEIDL, 2007b; SIGAL, 2012). Gisèle Sapiro (2012) identifica
algumas modalidades de intervenção dos intelectuais na política4 a partir do exame do
caso francês, levando em conta o capital simbólico, a autonomia em relação às
demandas externas e o grau de especialização dos agentes. Para a autora, “os
intelectuais ocupam uma posição dominada no seio das classes dominantes como
detentores de um capital cultural que se diferenciou do capital econômico com a
institucionalização do sistema escolar” (SAPIRO, 2012, p. 22), tal como ponderou
Coradini (2003) em estudo anterior.
4
Analisados numa perspectiva sócio-histórica e construídos de modo ideal-típico, Sapiro identifica e
esmiúça oito tipos de intervenção política dos intelectuais: o intelectual crítico universalista; o guardião
da ordem moralizador; o grupo intelectual contestador ou a “vanguarda”; o intelectual de instituição ou de
organização política; o especialista consultado pelos dirigentes ou o “expert”; o intelectual crítico
especializado ou o “intelectual específico”; e o grupo contestador especializado ou o “intelectual
coletivo”.
31
distintas regiões geográficas. Isso acaba por revelar que, a nível local, no que tange à
definição de “intelectual”, com sua ramificação católica, não há como se precisar uma
conceituação nestes termos, principalmente levando-se em consideração o fato de
muitos “intelectuais católicos” do Maranhão serem assim identificados através de um
processo de consagração baseado no “auto-reconhecimento” e em relações de
reciprocidade, nascido e fomentado entre seus próprios pares e nos círculos sociais aos
quais pertencem.
5
Sobre a formação do mercado editorial brasileiro e as redes de relações pessoais que definem a
possibilidade de publicação e de pertencimento ao panteão dos literatos no país, obliterando assim a
“genialidade” dos escritores, ver Sorá (2010). Tal perspectiva pode ser apreciada ainda no âmbito das
artes plásticas, através da construção de “epítetos” que glorificam artistas “ilustres” e silenciam
profissionais “anônimas”, presente no trabalho de Simioni (2008).
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Nesse sentido, cabe realçar aqui a importância de dois estudos centrais para a
elaboração da presente pesquisa. O primeiro deles foi desenvolvido em conjunto por
Eliana dos Reis e Igor Grill (2012), intitulado O que escrever quer dizer na política?
Carreiras políticas e gêneros de produção escrita, onde são analisados os
significados e o peso que a atividade da escrita pode adquirir, mediante o
reconhecimento “intelectual”, na carreira de agentes dedicados profissionalmente ao
trabalho político, apreendendo-se especificamente “as relações entre a diversidade de
gêneros de escrita e as modalidades de atuação privilegiadas por profissionais da
política” (GRILL; REIS, 2012, p. 102).
Tal abordagem não seria aqui possível, contudo, sem a incorporação das
contribuições presentes em diversos estudos desenvolvidos por Ernesto Seidl (2003,
2007a, 2007b, 2009a, 2009b), especialmente no tocante à constituição de intérpretes da
história e da cultura, onde o autor articula as homologias entre carreiras religiosas e
mediação cultural no Rio Grande do Sul, outra importante dimensão analítica
contemplada na composição desta dissertação. Na citada pesquisa, o cientista social
desenvolve uma linha investigativa que analisa a constituição de agentes sociais,
vinculados à Igreja Católica, investidos do papel de “especialistas” ou “intérpretes” da
cultura e da história do Rio Grande do Sul, provenientes dos processos de imigração
alemã e italiana ocorrido na metade do século XX naquela região do país. O
pesquisador destaca ainda que a formação e a afirmação de mediadores culturais
oriundos da Igreja se operam pela “combinação de recursos acumulados
simultaneamente através de carreiras religiosas e acadêmico-intelectuais” (SEIDL,
2007b, p. 79), evidenciando assim o acúmulo de capital necessário para que os agentes
imponham seus princípios de hierarquização e de definição das posições e dos papéis no
espaço religioso em disputa.
Aliás, não são raros os casos de agentes eclesiásticos que acionam dispositivos
de reconhecimento social exógenos à esfera religiosa para legitimarem sua atuação
evangelizadora e ocupar posições relativamente bem alocadas na estrutura interna da
Igreja. Da mesma forma, mas no sentido inverso, não é desconhecido o fato de muitos
padres usufruírem da autoridade delegada pela instituição eclesiástica para intervir no
mundo social. Inúmeros são os sacerdotes atuantes no Maranhão que possuem formação
de nível superior além das tradicionalmente estabelecidas (teologia e filosofia),
destacando-se padres que se formaram e atuaram como médicos, advogados, jornalistas,
psicólogos, historiadores, sociólogos, professores universitários, e que também atuaram
como “intérpretes da história e da cultura” maranhenses, respaldados pelo poder
simbólico da Igreja Católica no estado, ao produzirem obras calcadas nos princípios
científicos do mundo universitário ou nas regras artísticas que entremeiam as produções
literárias, bem como ao se inscreverem em diversos debates públicos locais, ao
ocuparem cargos públicos e exercerem funções administrativas em governos municipais
e estaduais, e ao participarem ativamente nas lutas político-partidárias regionais e na
organização de movimentos sociais e culturais.
Além disso, através da composição dos trajetos dos padres Brandt e Mohana, é
possível conhecer e analisar os condicionantes históricos e sociais que incidem na
reprodução da “vocação” religiosa e na formação de padres no Maranhão, as distintas
motivações que direcionam agentes para a ordenação sacerdotal, bem como as
disposições de clérigos para a produção de interpretações sobre o mundo social, além de
similitudes e discrepâncias, aproximações e distanciamentos entre os feitos de cada um.
Padre Brandt é oriundo de um berço familiar, com raízes alemãs, que encontrou
na Igreja a oportunidade de dar continuidade aos estudos e de seguir uma carreira
religiosa, em detrimento das escassas alternativas que se apresentavam-lhe. Já o
sacerdote Mohana provém de uma família libanesa de forte tradição católica, mas que
só se torna padre depois de já ter obtido uma formação superior e de atuar
profissionalmente como médico, e de ter se consagrado literariamente através de
premiações recebidas por seus escritos. Os dois personagens, além dos troféus sociais
conquistados, ocuparam posições e assumiram posicionamentos que evidenciam
também a diversificação das modalidades de intervenção de “intelectuais católicos” nos
domínios da política e da cultura no Maranhão (não somente militantes de “causas
sociais”), para além das atividades confessionais cotidianas.
38
Mohana”, localizada no centro histórico de São Luís, cujo acesso só foi possível
mediante a satisfação de exigências prévias dos familiares do padre, como a não
concessão de entrevistas e o envio, por escrito, do roteiro de pesquisa para o
levantamento dos dados biográficos.
Cabe ressaltar ainda que, sobre a guarda da memória destes dois padres
específicos, enquanto no Memorial do Padre Brandt todos os livros de sua autoria estão
disponíveis para a venda, salvo raras exceções por esgotamento editorial, na Casa
Mohana não foi permitido o acesso à sua produção livresca, sob o argumento de que
esta está disponível no mercado para a venda, o que implica asseverar que a referida
casa de guarda da memória do padre Mohana não possui acervo disponível para a
comercialização ou mesmo para a consulta local do público interessado. Daí o porquê
da importância da escritora Arlete Nogueira da Cruz Machado para este trabalho, que
gentilmente forneceu ao pesquisador um rico material jornalístico contendo muitas
fotos, dados e informações sobre a vida e a produção intelectual do padre João Mohana.
***
CAPÍTULO 1:
6
No Maranhão, a presença de grupos religiosos protestantes, tais como Anglicanos, Presbiterianos,
Batistas, Pentecostais, dentre outros, data das primeiras décadas do século XIX, com forte incidência já
no início do século XX. Sobre este assunto, ver Santos (2004).
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No final do século XIX e início do século XX, a Igreja passava por um processo
interno denominado de romanização7 e o Estado brasileiro reorganizava-se sob os
auspícios da República. Dessas transformações políticas e religiosas, que se espraiaram
também para os domínios do “social” e da “cultura”, gestou-se o fim do regime do
Padroado, em cujo bojo estabeleceu-se a separação, em termos político-administrativos,
entre as esferas política e religiosa e a laicização da sociedade brasileira.
7
Conforme aponta Rodrigues (2003, p. 11), entre 1889 e 1922, “a Santa Igreja Católica Apostólica
Romana passava por um processo de centralização do poder em torno da autoridade papal, conhecido por
romanização”, uma espécie de ajustamento das diretrizes doutrinárias produzidas pelo Vaticano, em
Roma.
47
Mas, se por um lado, a ruptura dos laços institucionais com o Estado significou
uma redução de poderes e benefícios, por outro a Igreja pôde gozar de um relativo
aumento de sua autonomia, sobretudo no que concerne à ampliação e estruturação de
seus postos (paróquias e dioceses, a priori), aos princípios de recrutamento e seleção de
seu corpo de agentes e à reformulação e redefinição de sua competência religiosa
(MICELI, 1988; SEIDL, 2003).
É nesse período que ganha força no país, principalmente nas esferas da cultura e
da política, a figura do “intelectual católico” e a valorização da atividade da escrita
como trunfo distintivo da atuação de sacerdotes. A sociogênese desse tipo de agente,
que representa um reordenamento da Igreja perante o mundo social, remete, contudo, ao
início do século XIX, mais precisamente ao ano de 1802, quando é publicado Génie du
christianisme, de François-René de Chateaubriad, autor que propõe uma nova
legitimidade ao catolicismo no campo da literatura. Em contraposição aos “filósofos das
Luzes” e aos princípios da Revolução Francesa de 1789, que colocaram o homem no
centro do universo e desapossaram as obras literárias francesas da metafísica religiosa,
Chateaubriand reaproxima literatura e religião (católica), selando uma aliança entre
ambas e, ao mesmo tempo, se interpondo contra a ascensão do poder científico
(SERRY, 2004, p. 131-132).
Já no final do século XIX, assiste-se a uma “crise” entre clero e laicato que,
dentre outros subprodutos daí provenientes, acaba por criar as condições de valorização
e reconhecimento dos “intelectuais católicos”, não necessariamente “ungidos” pela
ordenação sacerdotal. A partir da atuação de Louis Veuillot, jornalista a serviço de
Roma, se estabelece as “modalidades de um engajamento intelectual leigo em nome do
48
catolicismo”8. Veuillot, que não se ordenou padre, alcança prestígio e poder junto ao
papado de Pio IX, tornando-se “porta-voz” de Roma e estimulando a produção
intelectual de escritores leigos sobre o catolicismo, orientando a opinião do clero,
intervindo nos debates internos da Igreja e servindo de ponte entre a hierarquia
eclesiástica e a “opinião pública” francesa, que adquire nova importância com o
desenvolvimento da imprensa (SERRY, 2004, p. 138).
A partir desse processo de retirada dos clérigos dos debates intelectuais, houve
um aumento no espaço de atuação e de autonomia para os leigos, especialmente para os
escritores, que não mais se encontravam num estado de submissão e obediência estrita
ao clero. Contudo, sua valorização e reconhecimento no campo de produção cultural
tornaram-se possível justamente pelo fato de atuarem e escreverem em defesa da Igreja,
8
Para saber mais sobre as relações entre literatura e religião e a gênese social dos intelectuais católicos,
consultar Literatura e Catolicismo na França (1880-1914): contribuição a uma sociohistória da
crença, de Hervé Serry (2004), que esmiúça as especificidades de cada um desses momentos históricos e
as motivações que levaram à edificação teórica dessas linhas de pensamento católico sobre o “campo
intelectual”, particularmente sobre o domínio das letras e das artes em geral.
49
contra o avanço das ciências e dos fenômenos políticos e sociais que questionavam os
fundamentos de sua autoridade religiosa.
De acordo com Bruneau (1974, p. 28), “até 1930 a Igreja se utilizou de várias
táticas para ser readmitida no que ela considerava ser a posição política que lhe
competia por direito”. Acreditando assim na necessidade de ancorar-se no Estado como
forma de reaver seus privilégios outrora perdidos, a alta hierarquia eclesiástica buscou
aproximar-se dos novos agentes políticos que comandavam a máquina administrativa
brasileira de então, quer pelo estabelecimento de relações de reciprocidade e de
manifestações públicas de apoio mútuo, realização de atividades religiosas e
cerimoniais cívicos em conjunto, ou pela participação de membros da Igreja no
exercício de funções e cargos de competência política e burocrática (BRUNEAU, 1974;
DELLA CAVA, 1975, AZZI, 2008, MICELI, 1988, SEIDL, 2003). Assim, desfrutando
de certa autonomia e estreitando cada vez mais os laços com as elites dirigentes do país,
a Igreja adentra a Era Vargas (1930-1945) gozando do relativo sucesso propiciado pelo
advento da “Neocristandade”9 (BEOZZO, 1986).
9
Conforme define José Oscar Beozzo (1986, p. 322), a Neocristandade era “uma ordem econômica,
social e política sob a direção dos princípios cristãos definidos pela Igreja”, que visava “reconduzir a
sociedade brasileira aos valores morais e culturais do cristianismo católico”. Em outras palavras, tratava-
se da (re)adoção e (re)incorporação de princípios e valores católicos na definição de programas e projetos
50
É no transcurso da década de 1930 que tem início uma disputa pelo controle do
sistema educacional e pela produção cultural no país, onde a Igreja articula e desenvolve
estratégias com vistas a um processo de ideologização do ensino primário e secundário,
assim como o âmbito universitário, o qual Sérgio Miceli (1979, p. 51) chamou de
“enquadramento institucional dos intelectuais”. Em 1935, são criadas a Juventude
Universitária Católica (JUC) e a Ação Universitária Católica como uma tentativa de
circunscrever dentro da esfera de influência religiosa da Igreja as novas lideranças
“intelectuais” do país provenientes das universidades (MAINWARING, 2004; MICELI,
1979).
políticos para o país, propiciada pelo estreitamento dos laços entre membros da hierarquia eclesiástica e
elites dirigentes, durante o período governamental de Getúlio Vargas.
10
A LEC tinha como função congregar o eleitorado católico e selecionar candidatos que se
comprometessem com os princípios sociais da Igreja. O trabalho da Liga consistia no alistamento de
eleitores, na apresentação de propostas aos candidatos e na divulgação via imprensa dos nomes
consignados com tais propostas (NERIS, 2012, p. 43). A título de exemplo de seu relativo sucesso,
muitos projetos elaborados pela LEC foram contemplados na Constituição de 1934 (PACHECO, 1969).
51
Inicialmente, a JUC tinha apenas esse caráter conservador, clerical, voltado para
a “cristianização das futuras elites”. Contudo, após a reorganização da Ação Católica no
Brasil, entre 1946 e 1950, o movimento leigo adquire maior autonomia em relação à
hierarquia eclesiástica passando a ter maior envolvimento nas questões sociais
específicas do mundo dos universitários e se aproximando da chamada “esquerda”
brasileira, chegando a uma “rápida radicalização que a levou a um contundente conflito
com a hierarquia”, assumindo assim uma “responsabilidade explícita pela ação política
como parte de seu compromisso evangélico” (MAINWARING, 2004, p. 84).
Nesse rol de estratégias e ações da Igreja articuladas junto aos setores influentes
da sociedade, particularmente no domínio “intelectual”, destacando-se as relações
institucionais estabelecidas com a imprensa, cabe elencar a instituição do “Dia da Boa
Imprensa”, a fundação da “Associação de Jornalistas Católicos” (1937) e até a
11
Sobre este assunto, consultar Faria; Montenegro (2005), Neris (2011).
53
realização da “Páscoa dos Intelectuais” (NERIS, 2012, p. 45). Merece destaque também
a fundação do periódico “JORNAL DO MARANHÃO”12, o veículo de comunicação
oficial da Igreja Católica no estado, que congregava diversos “intelectuais” (católicos e
não-católicos) na confecção das interpretações da instituição eclesiástica sobre o que
ocorria em âmbito local, nacional e internacional.
12
O periódico chamava-se inicialmente de “CORRESPONDENTE”; depois foi batizado de “O
MARANHÃO”, até receber o nome definitivo de “JORNAL DO MARANHÃO”. Fundado em 1930 pela
Arquidiocese de São Luís, o jornal tornou-se o canal oficial de publicação da visão da Igreja sobre os
acontecimentos no Maranhão, no Brasil e no mundo. Teve suas atividades suspensas no auge da repressão
da “ditadura militar”, em meados da década de 1960, voltando a circular somente em 2009. Para saber
mais sobre esse assunto, ver Melo (2010).
54
Tal concepção, contudo, não envolvia a Igreja como uma unidade compósita.
Pelo contrário, havia disputas internas entre correntes teológicas que divergiam quanto à
aproximação e/ou distanciamento da “doutrina social” preconizada pelo Vaticano.
Ainda segundo Mainwaring (2004, p. 55), enquanto alguns segmentos do clero (os ditos
“tradicionalistas”) reprovavam a aproximação com os movimentos populares por
acreditarem constituírem-se numa “ameaça”, à medida que adquiriam um enfoque “anti-
católico” e questionador da “hierarquia social”, para os “moderados” e “progressistas”
tal aproximação ajudou a fomentar uma nova consciência dos problemas fundamentais
da sociedade brasileira, modificando assim a forma com que muitos líderes eclesiásticos
percebiam a sociedade.
13
O Concílio Vaticano II (1962-1965) “representou para a Igreja do Brasil a oportunidade de reafirmar e
renovar a sua presença na sociedade, empreendendo um percurso de aggiornamento em diversos planos,
na teologia, nas estruturas eclesiais e nas práticas pastorais, para responder e se posicionar diante os
desafios da modernidade” (BONATO, 2009, p. 15). A palavra italiana aggiornamento pode ser traduzida,
em português, como “atualização”, e é nessa perspectiva que o autor a compreende.
56
14
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil foi fundada em 1952 pelo, então, monsenhor Hélder
Câmara, com a aprovação da Secretaria de Estado do Vaticano. O objetivo era instituir uma coordenação
nacional para as dioceses que estavam em plena expansão (GONÇALVES, 2004, p. 50).
15
O Movimento de Educação de Base foi criado pela Igreja Católica em 1961, a partir de encontros de
bispos nordestinos. Utilizando-se do método de alfabetização do pedagogo de orientação marxista, Paulo
Freire, sua proposta estava fincada nas bases de “educar para transformar”, isto é, politizar, conscientizar
e mobilizar socialmente as comunidades alcançadas (ibid).
16
A primeira reunião do episcopado no continente ocorreu em 1959, na cidade do Rio de Janeiro. Na
ocasião, a prioridade dos debates residia nas questões internas da Igreja. Já nesta segunda conferência,
realizada em Medellín, na Colômbia, as discussões giraram em torno dos problemas enfrentados
especificamente pelos povos da América Latina (DELGADO e PASSOS, 2007, p. 113).
57
defensores de uma teologia que prega a “libertação política e religiosa” dos cristãos.
Segundo Boff (2012, p. 34-35), o sujeito histórico dessa libertação deve ser o “povo
oprimido”, a partir da tomada de consciência deste de sua “condição de oprimido”,
consequência direta do “tipo de organização elitista, de acumulação privada, enfim, da
própria estrutura econômico-social do sistema capitalista”.
Leonardo Boff (ibidem) elabora algo que poderia se chamar aqui de a construção
religiosa da dimensão do político, vez que o teólogo estabelece que a fé cristã deva ser a
responsável pelo “despertar” da consciência do povo oprimido que, ao se dar conta das
injustiças, “passa para a compreensão das estruturas reais que produzem as injustiças”.
Concluindo assim que, a partir de tal compreensão, faz-se necessário “mudá-las [as
estruturas] para que não produzam mais o pecado social”.
CAPÍTULO 2:
O objetivo deste capítulo é analisar o perfil social dos catorze casos elencados
através do maior número possível das variáveis disponíveis sobre os agentes católicos
que atuam como mediadores culturais, investindo na produção de bens simbólicos, e
que acionam tais recursos em diferentes momentos de suas trajetórias, a fim de
apreender seus trânsitos, vínculos, relações de reciprocidade, o peso de investimentos
mais ou menos conscientes e os tipos de capital de que dispõem (social, cultural,
político, etc.), enfim, suas amálgamas e distintas interações sociais, cujos registros de
inscrição os colocam numa posição de poder relacionalmente privilegiada no espaço
social mais amplo.
A composição dos quadros a seguir mostra algumas das variáveis tomadas como
ponto de análise e de composição do perfil social de catorze agentes católicos que
apresentam registros de atividade de escrita em suas carreiras religiosas no período
recortado (1950-1980), consubstanciados na publicação de textos em formato de livros.
Parte-se da análise da formação escolar, dos títulos, da atuação profissional, dos
trânsitos e reconhecimentos adquiridos em espaços sociais mais heterônomos, como
esferas de atuação de “letrados” (faculdades, universidades, academias de letras, jornais,
institutos de pesquisa), de participação política e de ação militante, além de dados gerais
sobre as obras (ano de publicação, gêneros de escrita, temáticas, etc.) para se estabelecer
as relações sincrônica e diacrônica entre formação escolar e modalidades de escrita e
entre posição social e produção intelectual no tocante às trajetórias dos padres
investigados, percebendo as representações que elaboram sobre o mundo social, sobre si
mesmos e sobre as “questões” que se dispõem a abordar em seus escritos.
Pontua-se ainda que não foi possível, durante a pesquisa dos dados biográficos,
o levantamento de variáveis como escolaridade e profissão dos pais de todos os agentes,
por dois motivos principais: a) o primeiro pela escassez de dados referentes aos agentes
investigados, cuja apreensão se deu, de forma limitada, pelas informações contidas em
alguns de seus escritos (as raras vezes que os textos tratam da origem social do escritor
referem-se a um aspecto geral de “origem humilde”, porém, não em todos os casos), em
60
Quadro 1
Algumas propriedades sociais dos 14 agentes investigados
Ano de Idade/Ano de
Padre Nacionalidade/Origem Formação superior
Nascimento Ordenação
Eider
1916 33 Brasileiro/Viana-MA Teologia, Filosofia
Furtado
(1949)
Clodomir
Teologia, Filosofia,
Brandt e 1917 26 Brasileiro/Colinas-MA
Humanidades
Silva (1943)
Cônego
Ribamar 1923 21 Brasileiro/Codó-MA Teologia, Filosofia
Carvalho (1944)
Teologia,
Vito Milesi 1931 24 Italiano
Filosofia, Sociologia
(1955)
Cláudio
1937 29 Italiano Teologia, Filosofia
Bergamashi
(1966)
Letras, Teologia,
Victor Filosofia, Sociologia,
1938 26 Canadense
Asselin Direito, Mestrado em
(1964)
Teologia
Josimo
1953 26 Brasileiro/Marabá-PA Teologia, Filosofia
Tavares
(1979)
Com foco nos dados expostos no quadro acima, cujos agentes estão ordenados
conforme o ano de nascimento, de modo crescente, tem-se a exposição das principais
características dos perfis sociais que ajudam a construir, comparativamente, um perfil
mais geral de padres que escrevem. Através de tais dados, intenta-se estabelecer uma
correlação entre o volume de recursos acumulados e a lógica operada na definição
62
detrimento de suas ações, redigiu seu “testamento espiritual”, onde assevera suas
convicções política e religiosa:
Tenho que assumir. Agora estou empenhado na luta pela causa dos pobres lavradores
indefesos, povo oprimido nas garras dos latifúndios. Se eu me calar, quem os
defenderá? Quem lutará a seu favor? [...] Eu pelo menos nada tenho a perder. Não tenho
mulher, filhos e nem riqueza sequer... Só tenho pena de uma coisa: de minha mãe, que
só tem a mim, e não mais ninguém por ela. Pobre. Viúva. Mas vocês ficam aí e cuidarão
dela. Nem o medo me detém. É hora de assumir. Morro por uma justa causa. Agora
quero que vocês entendam o seguinte: tudo isto que está acontecendo é uma
consequência lógica resultante do meu trabalho, na luta e defesa dos pobres, em prol do
Evangelho que me levou a assumir até as últimas consequências. A minha vida nada
vale em vista da morte de tantos pais lavradores assassinados, violentados, despejados
de suas terras. Deixando mulheres e filhos abandonados, sem carinho, sem pão e sem
lar. (TAVARES, apud COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, 1986, p. 17-18. Grifo
nosso).
Isso não justifica, contudo, a ausência de algum estrangeiro na escolha dos casos
específicos. Nesse aspecto, a inclusão de padres de diferentes nacionalidades implicaria
a observação de outras dimensões de análise, por ora não contempladas no presente
estudo, principalmente no que se refere à importação de “ideias vindas de fora” e à
circulação internacional dos agentes, como no trabalho desenvolvido por Seidl (2007b).
Ainda assim, no caso dos padres estrangeiros (7) que se encaixam nesta
formação escolar híbrida, 3 são italianos, 1 canadense, 1 francês, 1 português e 1 belga.
Deste montante, predomina a formação em Sociologia (3), seguida pelo Direito (2),
História (2) e Letras (1). A predominância de tais cursos é reveladora das definições do
processo de aquisição de disposições em torno das modalidades de engajamento dos
padres estrangeiros com formação multifacetada. Não por acaso, os agentes que
apresentam em seus registros biográficos participação em espaços de atuação mais
próximos de um perfil militante, como veremos mais adiante, possuem predominância
de formação na área das ciências sociais e do Direito.
67
Nesse sentido, os dados sobre a formação escolar dos casos elencados oferecem
pistas significativas sobre o tipo de perfil de agentes que se dedicam em algum
momento à atividade de escrita, indissociavelmente conectados às posições que ocupam
e às causas que defendem. São estes casos que, mais à frente, participam da organização
de atividades concernentes ao âmbito de ação de instituições vinculadas à Igreja, onde a
defesa de “causas sociais” se constitui em pauta legítima de reivindicação no repertório
de mobilização tanto dos sacerdotes e leigos quanto da própria Igreja.
Quadro 2
Dados sobre a atuação profissional e a participação em distintos espaços de
socialização e de intervenção dos 14 casos investigados
17
O Seminário diocesano de Santo Antônio foi fundado em 1838, durante o bispado de D. Marcos
Antonio de Sousa (1827-1842). O Seminário tinha por função iniciar os futuros padres recrutados junto às
elites maranhenses nos estudos da fé e da doutrina cristã, ofertando-lhes uma formação educacional
religiosa, moral e literária (SILVA, 2012, p. 155). Com o tempo, tornou-se o único Seminário no
Maranhão dedicado exclusivamente à formação do sacerdócio (PACHECO, 1969).
71
No Maranhão, isso não foi diferente. Mesmo após a laicização promovida pelo
advento da República, a Igreja continuou disputando o controle ideológico do ensino
junto ao Estado. A partir da década de 1930, as disputas se arrefecem quando são
criadas, em âmbito local, a Juventude Universitária Católica e a Ação Universitária
Católica, que a nível nacional estavam direcionadas para o recrutamento das futuras
elites representadas pelos universitários (RIDENTI, 2002). A nível regional, este
processo acabou desembocando na fundação da Universidade Federal do Maranhão,
onde se registrou a participação efetiva de membros da hierarquia eclesiástica que
comandavam a Arquidiocese de São Luís e dos “literatos” que integravam a Academia
Maranhense de Letras (FARIA; MONTENEGRO, 2005, p. 18-19).
Cabe destacar ainda que outras profissões que apresentam alguma recorrência
entre os casos arrolados são a de jornalista (3/14) e a de advogado (2/14). Há uma ampla
gama de textos produzidos por aqueles que atuam no âmbito do jornalismo maranhense,
publicados em diversos jornais de significativa circulação no estado, aspecto não
contemplado no presente estudo devido às dificuldades de sua localização, porém
passível de ser salientado para a mobilização de investimentos em pesquisas futuras. Já
no caso dos dois padres advogados, suas atuações profissionais estão diretamente
ligadas às instâncias onde registram presença frequente, particularmente na Comissão
Pastoral da Terra, entidade vinculada à Igreja Católica no Maranhão, atuando no âmbito
do Direito do Trabalho, do Direito Agrário e do Direito Penal.
e a se candidatar, por duas vezes, para a disputa pelo cargo de Prefeito de Arari, tendo
sido derrotado em ambas.
No tocante aos clérigos que tiveram suas funções identificadas apenas no âmbito
confessional, destaca-se o registro de sua participação como “militantes” em
associações de moradores e comunidades eclesiais de base, e que fizeram de seu ofício
sacerdotal o sentido maior de suas vidas. Sua experiência profissional, no entanto, é
registrada apenas no âmbito das instituições engajadas da Igreja, com destaque para a
CPT18. Os dois casos foram coordenadores da instituição em Goiás (1979) e no
Maranhão (1982). São eles, respectivamente, os padres Josimo Tavares e Cláudio
Bergamashi. Observa-se ainda que nenhum dos dois possui registro de inscrição em
instâncias de consagração intelectual, nem universitária e nem de “letrados”, o que não
impede que sejam percebidos e se percebam como tal.
18
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi instituída no Maranhão em 1975 como parte de “um intenso
programa de ação social junto às populações rurais”, iniciado por D. José de Medeiros Delgado, então
Arcebispo de São Luís. Dentre os principais objetivos da CPT no Maranhão, destaca-se a tentativa da
Igreja de fazer frente ao crescimento dos conflitos no campo, promovendo assim a organização dos
trabalhadores rurais na condução de suas lutas pela conquista de direitos sociais (ALMEIDA, 1981;
COSTA, 1994).
74
19
O surgimento da JAC, JEC, JIC, JOC e JUC é um esforço da Ação Católica Brasileira em promover a
renovação das práticas pastorais na Igreja, com foco especial nos movimentos de juventude, numa
tentativa de cooptar futuros quadros e líderes católicos junto a setores específicos da sociedade. Conforme
assinala Salem (1981, p. 22), “o primeiro grupo ‘especializado’ que se constitui é a Juventude Operária
Católica (JOC). Em 1950, funda-se a JAC (Juventude Agrária), a JEC (Juventude Estudantil, composta
por estudantes secundaristas), JUC (Juventude Universitária) e JIC (Juventude Independente), agrupando
os que não se encaixavam nas outras categorias”.
75
Não se pode negar que o ato de escrever implica numa distinção do autor em
relação aos demais indivíduos, pois ainda ocupa uma “posição de excelência” dentro
das sociedades de letrados. Seja como for, quem escreve não apenas registra seu nome e
suas ações na história, mas também demarca sua posição de poder perante os demais
agentes. De um modo geral, aqueles que atuam como mediadores culturais
consubstanciam suas posições, disposições e posicionamentos na publicação de textos,
especialmente de livros, legitimando assim a manutenção do próprio papel social que
assumem em diferentes momentos e domínios.
Com foco nesta perspectiva, passa-se à identificação dos gêneros de escrita aos
quais os agentes dedicaram-se com maior incidência, numa tentativa de correlacioná-los
às posições que ocuparam ao longo de seus trajetos de vida. O objetivo é demonstrar
que o grau de concentração dos escritos e das temáticas abordadas está
irremediavelmente conectado aos recursos acumulados (saberes, habilidades,
conhecimento) e às experiências vividas (cargos, atividades, funções, profissões).
Em face a tais descrições, talhadas com fulcro numa primeira leitura sobre os
dados e registros das publicações mapeadas, procedeu-se à confecção do Quadro 3
baseado nos tipos de escritos que aparecem com maior recorrência, agrupados e
classificados da seguinte forma: religiosidade (textos teológicos e doutrinários, que
versem sobre orações, salmos, exaltação à fé cristã, espiritualidade); generalista (artigos
jornalísticos, escritos de militância, “visões” de mundos obre a história, a cultura, a
política, a sociedade, comportamento, família, casamento, sexualidade, etc.); literários
(romances, peças de teatro, contos, crônicas e poesias); além dos textos memorialísticos,
incluindo-se as autobiografias. Os demais livros não inclusos nesta taxonomia, devido
às poucas recorrências evidenciadas, foram listados como “não-classificados”.
Quadro 3
Distribuição de livros por gêneros de escrita referente aos 14 casos investigados
Não-
Religiosidade Generalista Literatura Memórias TOTAL
classificado
13 14 8 1 1 37
- 8 5 - 13 26
6 3 5 1 - 15
1 3 2 2 1 9
- 1 - - - 1
1 - - - - 1
- - - 1 - 1
- 1 - - - 1
- - 1 - - 1
- 1 - - - 1
- 3 - 1 3 7
- 1 - - - 1
- 3 - - 4 7
7 - 3 - - 10
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.
79
Quadro 4
Frequência das modalidades de escrita
Gêneros Quantidade %
Religiosidade 28 23,7
Generalista 38 32,2
Literatura 24 20,3
Memórias 6 5,08
Não-classificados 22 18,6
Total 118 100%
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.
80
A ordenação por gêneros das obras catalogadas revela uma variedade de usos da
escrita em seus diferentes formatos e as estratégias ativadas através dos recursos
disponíveis de cada agente para legitimação de seus textos. Observa-se, assim, que dos
14 casos investigados há uma incidência de 38 títulos (32,2%) publicados dentro da
classificação de textos generalistas, isto é, textos escritos sobre diversas áreas e
assuntos. A categoria de publicações religiosas registra frequência de 28 casos (23,7%).
24 registros (20,3%) são de textos literários e apenas 6 casos (5,08%) tratam-se de
memórias e autobiografias. Dos livros não inseridos em nenhuma dessas classificações,
constam 22 títulos (18,6%).
Por outro lado, percebe-se que mesmo diante da prevalência de escritos mais
gerais, assuntos da esfera religiosa ocupam o segundo lugar com uma diferença não tão
ampla assim (apenas 8,5%). Ocorre ainda que o gênero religiosidade também ocupa
uma posição de proximidade com o gênero literário, havendo assim um certo
paralelismo entre investimentos feitos pelos agentes clericais em escritos de vertente
mais religiosa e literária, ambos correspondendo a 23,7% e 20,3%, respectivamente.
Dos casos analisados, pontua-se ainda uma tendência na redução de textos
memorialísticos, que registraram o percentual de 5,08%.
Quadro 5
Distribuição dos livros por décadas
Décadas Quantidade
1950 1
1960 6
1970 9
1980 15
1990 13
2000 6
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.
O ápice dos escritos aparece na década de 1980, com 15 títulos registrados, sinal
de que o processo de reabertura política entra em cena, promovendo a ampliação do
acesso a editoras e a novas publicações. Um dado curioso, contudo, e por isso mesmo, é
que quando se poderia supor um acréscimo na quantidade de livros publicados entre as
décadas de 1990 e 2000, precisamente por conta da abertura e do acesso a espaços de
82
Conforme se verá nos casos específicos dos padres Clodomir Brandt e João
Mohana, nos capítulos seguintes, os usos sociais da escrita por sacerdotes maranhenses
são exemplos distintivos dos poderes simbólicos que incidem sobre a produção de livros
de “intelectuais católicos”, acionada como trunfo não apenas para demarcar posições e
adotar posicionamentos, mas efetivamente como trincheira de luta pela imposição de
representações “legítimas” sobre o mundo social. Tanto Brandt quanto Mohana, cada
um a seu modo e com as especificidades das dinâmicas de concorrência às quais
estavam enredados, quer seja na capital ou no interior do Maranhão, representam a
importância creditada ao papel de mediadores católicos nas esferas da cultura e da
política, cujas atuações revelam as fluidas fronteiras entre esses diferentes domínios e as
bases de legitimação de “intérpretes” e “porta-vozes” dos problemas sociais, sob a
chancela da Igreja.
84
CAPÍTULO 3:
Além disso, registra em seu trajeto a autoria de vinte e seis livros, a maioria
publicada de forma independente por sua própria editora (Editora Notícias de Arari),
sendo um dos mais produtivos clérigos da Igreja no tocante à produção “intelectual”.
Seus escritos, além de refletirem a síntese de seus pensamentos e concepções sobre o
mundo social, externalizam seus ideais, “projetos” de sociedade, visão política,
habilidades literárias, enfim, uma gama de competências e saberes que remetem a uma
forte hibridização de sua atuação, para além do âmbito confessional, e apontam para o
grau de heteronomização entre os diferentes domínios sociais, particularmente entre as
esferas política, cultural e religiosa.
Dentre as fontes utilizadas para a confecção deste capítulo, estão alguns livros
escritos pelo próprio padre Brant, que fornecem inúmeros dados e informações sobre
sua origem familiar e o percurso que trilhou até chegar ao exercício do sacerdócio e aos
fatos daí decorrentes, principalmente no livro A família Brandt, onde produz uma
narrativa memorialística de “glorificação” de sua própria história e a de seus familiares.
20
Segundo definição apresentada por Bourdieu (2004, p. 81), a noção de trajetória é cunhada como “uma
série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo), em um espaço
ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes. Tal noção é construída criticamente em
relação à ideia de “narrativa histórica”, que produz uma “ilusão biográfica” do agente pesquisado ao
abordá-lo como um ponto fixo e imutável que tem sua história de vida contada com início, meio e fim,
cuja única constância é a nominação, isto é, o nome que identifica a pessoa no decurso do tempo.
85
Com efeito, a escolha de Clodomir Brandt pela vida sacerdotal parece ter sido
motivada e condicionada pelas precárias condições de existência de seus pais,
constituindo-se para ele uma das escassas oportunidades de vencer as dificuldades
materiais de sua família e adquirir uma formação e seguir a carreira religiosa, que ainda
gozava de algum prestígio social, para a qual a influência e o apoio de seu tio Cláudio
foram decisivos em sua formatação e concretização.
89
21
Consagrado na historiografia como o evento que marca o fim do período conhecido como “República
Velha” (1889-1930), a Revolução de 1930 significou, em termos gerais, a ascensão da classe industrial ao
poder político no país através do movimento tenentista. No entanto, tal definição é bastante criticada
pelos novos estudos e abordagens sobre o tema. Para saber mais, ver Fausto (1997).
90
Rua da Horta, no Centro, que passaram a ser sua principal fonte de renda. Em junho de
1939, foi nomeado conselheiro e vice-presidente do Departamento Administrativo do
Estado pelo Interventor Federal Paulo Martins de Sousa Ramos, com quem manteve
estreitas relações de amizade e de colaboração durante todo seu governo
intervencionista. Em março de 1941, decide pedir exoneração do cargo para assumir o
posto de Diretor-Presidente do Banco do Estado do Maranhão (antigo BEM, já extinto),
onde permaneceu por 10 anos.
Sua destacada atuação no BEM despertou ainda mais os olhos da Igreja para si.
A convite de D. José de Medeiros Delgado, Arcebispo Metropolitano de São Luís, de
quem era amigo e colaborador, após sua renúncia ao cargo bancário em decorrência do
pedido de demissão de Paulo Ramos ao presidente Getúlio Vargas, em março de 1951,
Cláudio Brandt aceitou ocupar a função de diretor da recém-criada Cooperativa Banco
Rural do Maranhão, uma instituição financeira de crédito popular administrada pela
Igreja Católica. Depois disso, assumiu a função de Tesoureiro da Santa Casa de
Misericórdia de São Luís e de Delegado Regional do Instituto de Aposentadoria e
Pensões da Estiva Transportes e Cargas (IAPETC). Cláudio foi ainda um dos
responsáveis pela organização e fundação do Partido Trabalhista Brasileiro no
Maranhão (PTB/MA), onde atuou em parceria com seu estimado amigo, o interventor
Paulo Ramos. Cláudio Brandt faleceu no Rio de Janeiro, no dia 19 de junho de 1968,
aos 78 anos de idade, vítima de um edema pulmonar.
22
Sobre este assunto, ver SILVA, Clodomir Brand e. A Família Brandt. Arari: Editora Notícias de Arari,
1993, p. 61-73.
91
Além do mais, pesa sobre o papel assumido por Cláudio Brandt, adquirido pela
prosperidade econômica, pelos destacados cargos políticos e funções administrativas
que desempenhou e pelas redes de relações que teceu e expandiu, a tendência de
manutenção de uma pretensa “reputação” familiar (WOLF, 2003, p. 100). Tal
perspectiva está identificada nos juízos de valores e nas ações da família sobre o
“destino” de alguns entes, seja no “desgosto” dos parentes pelo casamento da irmã
Carolina com um homem “muito preto e pobre”, na “desordem emocional e psíquica”
de um dos irmãos de Clodomir, o único que viveu uma “vida desajustada” e cheia de
problemas, segundo relato do próprio padre Brandt (SILVA, 1993, p. 64-67) ou na
tentativa de Cláudio de oferecer melhores condições de educação e de emprego para
todos os seus sobrinhos, os futuros responsáveis pela perpetuação do nome da “família
Brandt” na história da cidade de Arari.
Aquele centro de ensino religioso imprimiu, com certeza, uma marca de acentuado
dinamismo naqueles jovens reclusos, notadamente em Clodomir, sagaz e especulativo,
adquirente de uma sólida base intelectual, destacando-se em várias matérias –
português, francês, retórica e redação (exercitada esta última ao fundar e redigir o jornal
de uso interno “A CRUZADA”), sem se descurar dos livros pertinentes à cultura geral.
Com efeito, a vida no seminário tinha por função não apenas garantir a
ordenação sacerdotal e a reprodução dos quadros clericais da Igreja, mas também
contribuir para a formação cultural daqueles que deveriam ser, além de “ministros
ilustrados”, “cidadãos habilitados para administrar os negócios públicos”. Pode-se
observar que esta tendência de intervenção sacerdotal na esfera pública, cunhada legal e
institucionalmente ainda no século XIX, reverbera no século seguinte e torna-se mais
evidente no caso em questão, quando, já com nove anos de seminário, Clodomir Brandt
assim se manifesta sobre uma campanha de arrecadação de fundos, que ele mesmo
dirigia, para a manutenção do estabelecimento vocacional situado em São Luís:
Se não houver recursos para sustentar o Seminário, não haverá um clero atuante, sadio e
santo para estender sua ação evangelizadora cada vez mais longe, indo às fábricas
levar o conforto religioso ao tugúrio do pobre para consolá-lo e santificar-lhe a
humildade, indo ao palácio do rico cheio de luzes e sons, indo em busca das crianças e
dos jovens, e pelo sertão longínquo buscar almas e trazê-las para a redenção
(FERNANDES, 2012, p. 33. Grifo nosso).
23
Conforme o define Matonti e Poupeau (2006, p. 130), trata-se de um tipo de capital incorporado sob a
forma de técnicas e de disposições a agir e a intervir, abrangendo um conjunto de saberes (teóricos e
práticos) “mobilizáveis no momento das ações coletivas, das lutas inter ou intrapartidárias, mas também
exportáveis, passíveis de conversão para outros universos, e, assim, suscetíveis de facilitar certas
reconversões”.
94
Caxias, Buriti Bravo, Passagem Franca e Colinas, onde celebrou a primeira missa
cantada do Maranhão, denominada de “Missa Nova” (FERNANDES, 2012, p. 45).
- Foi bom você ter vindo hoje aqui. Precisava mesmo falar com você, para lhe
comunicar que não vais mais para Cururupu. Deixei de novo lá o padre Papp. Dom Luiz
pediu-me para ceder-lhe novamente. Caso queira, está dada a permissão. Ele alega que
você é filho de Colinas...
- Dom Carlos, não quero mais ir para Caxias. Gostaria de ir trabalhar numa paróquia do
interior.
- Está certo. Eu só lhe ofereci essa oportunidade de ir trabalhar com Dom Luiz porque
pensei que isso era de seu agrado. Mas a sua diocese é aqui.
O chefe da Igreja maranhense entrou no seu gabinete e trouxe um papel na mão,
retomando a conversa com o padre.
- Aqui está a relação das paróquias vagas da Arquidiocese. Escolha entre essas
paróquias uma para nela ir trabalhar.
- Mas, senhor arcebispo, vossa Excelência é quem deve fazer a indicação da paróquia e
eu aceitarei. Ordenei-me para padre para obedecer.
- É, mas eu não costumo fazer assim com meus padres. No entanto, como você alegou a
obediência, eu ordeno que escolha.
O padre não teve mais argumento, nem alternativa. Começou a ler o listão de paróquias
vagas, algumas localizadas em cidades que estavam em pleno desenvolvimento. E logo,
sem muito pensar:
- Senhor arcebispo, escolho Arari.
- Arari, não! Escolha outra. Há várias paróquias boas vagas. Arari, não!
- Então, agora, vossa Excelência indica. Já obedeci escolhendo Arari.
96
- Mas Arari não serve para você. No entanto, vamos fazer uma coisa: você tem três dias
para pensar. Vá e volte daqui a três dias. Há uma pessoa que pode ajudar-lhe. É o padre
Pedro Verneullen, a quem você conhece. Fale com ele. É experiente e já passou dias em
Arari (SILVA, 1996, p. 26-28).
24
Existem quatro hipóteses que sustentam a origem do nome da cidade de Arari. A primeira se trata de
uma suposta predominância na região do Médio Mearim de um tipo raro de “araris”, araras vermelhas
com tons amarelados. A segunda hipótese gira também em torno da designação de uma espécie de arara,
porém relativa à sua baixa estatura, onde “arari” significaria “pequena arara”. A terceira versão trata da
denominação dada a certo tipo de árvore de terra firme e à tinta vermelha extraída de sua casca. Já a
quarta hipótese refere-se ao tipo de sardinha de bastante abundância nas barrancas do rio Mearim, versão
mais aceita entre os historiadores precisamente pelo fato da cidade ter nascido às margens do famoso rio e
ter na pesca uma das suas principais atividades econômicas (BATALHA, 2011, p. 51-52). É interessante
observar, no entanto, que as diversas versões sobre a origem de Arari refletem, em última instância, o
grau da disputa travada em torno dos princípios de legitimação e de imposição de uma “versão oficial”
sobre a história e a memória da cidade.
25
Para o sacerdote, a designação “Arari” teria sido originada de um diálogo entre um marinheiro e um
dono de embarcação, que teria de ancorá-la num lugar chamado “arariba” quando a maré fosse vazante.
97
Em relato do padre Pedro Verneullen, que estivera na cidade dois anos antes da
chegada do padre Brandt, em 1944, tendo sido o maior influenciador sobre a decisão de
nosso personagem em fixar-se na região – o qual não deixou nada escrito que contivesse
maiores detalhes sobre sua chegada ao local –, é possível observar alguns aspectos
específicos sobre a vida social, cultural e religiosa de Arari, além de colhermos as
Nas palavras do padre Brandt, “de arariba para Arari, a transformação não foi difícil. A lei do menor
esforço, que é uma economia fisiológica na pronúncia das palavras, iria produzir a transformação
metaplástica do vocabulário, pela perda da sílaba ‘ba’” (SILVA, 1985, p. 19).
26
Sobre as disputas territoriais entre as elites políticas e rurais em virtude da redefinição dos limites
municipais decretados pelo interventor Paulo Ramos, ver Batalha (2011, p. 40-46).
98
Viajando através dos campos enxutos, sob o sol causticante de meio-dia, cheguei ao
Arari pela Trizidela. À primeira vista, julguei que fosse um desses pequenos povoados
que já vira à beira do Itapecuru e do Pindaré. Só a largura do rio me impressionou. No
porto, não havia, naquela hora, nem lancha nem batelão. Na rua também não havia
ninguém. “Será – pensava comigo mesmo – que o padre Eliud me mandou enterrar
algum defunto morto?” Boa parte dessa primeira impressão foi devido ao meu estado
físico naquela hora: cheguei estropiado pela viagem, encandeado pelo sol do campo,
com a cabeça em fogo, vermelha que parecia lavada em sangue. No dia seguinte (...),
pude corrigir essas impressões. Logo vi uma igreja nova em construção! Havia,
portanto, vida nova nesse lugar: é um povo que quer ressurgir. Fui chamado logo no dia
seguinte para fazer uma confissão em Perimirim. Fui a pé. Vi ruas e mais ruas, cortadas
por travessas em direção ao campo. Para mim, era uma revelação. Para o povo parece
que também foi uma novidade, a julgar pelo furioso latido dos cães e pelo choro
espantado das crianças. Certamente, nunca tinham visto um padre de perto,
atravessando as ruas (FERNANDES, 2012, p. 57-58. Grifo nosso).
O que não fica claro na descrição do padre europeu é quem era o responsável
pela construção da igreja e de onde o povo iria “ressurgir”, uma vez que a constatação
de uma nova edificação eclesiástica implica, minimamente, um certo grau de
organização religiosa presente no seio da população de Arari antes mesmo da chegada
do missionário holandês e, posteriormente, do padre Brandt.
à cidade por meio da realização dos cultos da Assembleia de Deus. Nesse ano, já
existem em Arari dez templos religiosos, de maioria católica (ibid., 2011, p. 129).
(...) Fazia cada dia um passeio de manhã e à tarde; queria ouvir e ver. Passando pelas
ruas, notava a ausência de homens: explicaram-me que a maior parte da população
masculina ia campear ou era de embarcadiços. (...) Apesar das ausências prolongadas
dos pais, as famílias são numerosas e muito unidas. Cada chegada de lancha é uma
alegria para as famílias e para as casas de negócio, porque as provisões de boca para as
tripulações e os passageiros são renovadas em Arari, sobretudo o pão e a carne. (...) A
demora das lanchas torna possível o intercâmbio de outros produtos: chapéus de palha,
redes de dormir, artefatos de couro, todos de indústria caseira.
A população de Arari é muito laboriosa. As casas, em geral, trepadas em estacas (por
causa das inundações periódicas), são amplas e bem arejadas. (...) Ninguém fica ocioso.
Os homens estão ocupados no conserto de arreios para os cavalos, ou na confecção de
tarrafas para as próximas pescarias. As moças fazem chapéus, costuram ou fazem redes;
algumas mais adiantadas ensinam as primeiras letras a uma dúzia de crianças. (...)
Graças a tal operosidade, não há pobres miseráveis no lugar. Os que precisam de
assistência recebem-na de boa vontade na casa das famílias vizinhas. Infelizmente, não
há médico. (...) Os marítimos em geral mandam os seus doentes em casos mais graves
para a cidade de São Luís, porque há sempre transporte nas lanchas (FERNANDES,
2012, p. 59-60).
Para alcançar tal intento, a ADC dividia-se em quatro secretarias que tratavam
especificamente dos temas arrolados: secretarias de educação, de catequese, de cultura e
de assistência, tendo como diretor-geral o padre Brandt. Sob os cuidados da Secretaria
de Educação, ficaram o Instituto Nossa Senhora das Graças e a Fornecedora
Educacional, depois transformada em livraria; a Secretaria de Cultura destinava-se à
realização de encontros, palestras, conferências, encenação de peças teatrais,
desenvolvimento de um coral religioso e fundação de um “Boletim Paroquial”, que só
viria a circular na cidade em 1946, produzido e impresso primeiramente em São Luís e,
a partir de 1953, em Arari; a Secretaria de Catequese cuidava dos centros de catecismo,
mantinha os catequistas e vendia livros religiosos a domicílio; e a Secretaria de
Assistência dedicava-se a ações caritativas, especialmente na Páscoa e no Natal, além de
cuidar da educação de “crianças carentes”. Anos mais tarde, em meados da década de
1960, assim se expressava padre Brandt sobre a instituição filantrópica de orientação
católica: “A ADC, na verdade, quer atingir todas as manifestações da vida humana e
para isso foi organizada com estatuto de caráter polivalente” (FERNANDES, 2012, p.
84).
105
uma das metas da ADC foi a de financiar os estudos de jovens inteligentes cujas
famílias não pudessem mantê-los estudando até o curso superior. Objetivava o
propósito de formar um médico, um advogado e uma assistente social mediante o
compromisso destes, depois de graduados, trabalharem para a comunidade arariense, em
parceria com a ADC. Pretendia, ainda, por meio de ajuda financeira, facilitar o acesso a
alguns vocacionados para o mister sacerdotal (Grifo nosso).
Ainda assim, e talvez por isso mesmo, ou seja, pelas dificuldades em se garantir
a reprodução de uma classe de agentes voltados para o trabalho da ADC e da Igreja,
padre Brandt deu continuidade ao seu “projeto desenvolvimentista” da cidade. Em 15 de
março de 1947, com recursos oriundos das ações da entidade caritativa, é inaugurado o
Instituto Bom Jesus dos Aflitos, destinado exclusivamente para estudantes do sexo
feminino, a fim de se contrabalançar o peso educacional do Instituto Nossa Senhora das
Graças, escola destinada apenas para o público masculino.
Logo no prólogo de sua conferência, padre Brandt expõe, com nítida firmeza de
posicionamento, que discutir arte e catolicismo e a legitimidade de uma crítica literária
de cunho religioso é de “sumo interesse para os intelectuais católicos” e “nenhum deles
pode fugir ao problema”.
(...) Como sacerdote e representante da Igreja, Mãe de todas as culturas, não me ficava
bem ausentar-me de movimento tão belo, símbolo e prenúncio de uma nova era que se
inicia para esta terra a que já estamos vinculados por fortes e indestrutíveis laços de
amizade.
(...) Aqui, pois, estou para convosco compartilhar desses momentos de fino e deleitoso
discretear sobre arte e sobre cultura.
Propus-me, então, com certa ousadia, fazer um trabalho sobre a crítica literária e os
católicos, ou melhor, examinar se há alguma divergência ou incompatibilidade
entre o espirito católico, com seus dogmas e sua intransigência, e a legítima e boa
crítica literária.
O problema é de indiscutível complexidade e requer, de quem o enfrenta, qualidades
superiores de inteligência e de cultura que me são escassas.
Nem por isso, porém, julguei-me com direito a omitir-me em assunto de tanta
relevância e tão indispensável nos tempos de hoje (...). Cremos que há somente um
norte a seguir, na bússola do mundo, e é a reorganização de tudo em bases filosóficas,
mas filosóficas no legítimo sentido, isto é, no sentido cristão (...).
Não é a primeira vez que se equaciona o problema que motiva nossa palestra, nem tão
pouco sou o primeiro ou o último a procurar sua solução. Outros de mais cultura, e,
portanto, de mais equilíbrio em seus conhecimentos, já o estudaram e deram suas
respostas, que vão desde o afirmar a impossibilidade de uma crítica verdadeira feita por
católicos, até ao extremo oposto, de dizer-se ser a única a realmente poder considerar-se
como legítima e também a única em condições de aferir o valor das obras de arte.
Muitos também virão depois, e cada um irá colocando suas vigorosas inteligências a
serviço da causa que não deixa de ser de sumo interesse para os intelectuais católicos.
O assunto tem sido na realidade uma preocupação dos escritores católicos e
nenhum deles pode fugir ao problema.
(...) Os inimigos do pensamento católico fazem questão de frisar que nós, os que
cremos, os que temos dogmas e que somos intransigentes em matéria de Fé e de Moral,
jamais teremos serenidade bastante para manter imparcialidade perante uma obra,
mesmo de arte pura, mas que não se regule pelo estalão de nossa doutrina e de nossos
princípios (SILVA, 1983, p. 11-12. Grifo nosso).
O jornal “NOTÍCIAS”, contudo, não foi o único veículo midiático fundado por
padre Brandt para atingir seus propósitos. Dirigindo e redigindo praticamente sozinho
as mais de quinhentas edições do referido periódico impresso, ele ainda teve fôlego para
fundar e escrever no informativo “RELÂMPAGO”, “uma publicação esporádica, que
circulava quase sempre em tempos de campanha eleitoral de seu interesse” (ibid., 2012,
p. 173). Infelizmente, no transcurso da pesquisa, não foi possível o acesso a tais fontes
por falta de informações que levassem ao local exato onde estão guardadas.
Além disso, o vigário juntou forças para, no dia 11 de julho de 1948, inaugurar a
“Voz de Arari”, um serviço de alto-falantes que se constituiu no primeiro veículo de
comunicação social de alcance mais abrangente na cidade. O serviço contava com uma
amplificadora que possuía três potentes saídas de som instaladas na torre da igreja
matriz. Assim, a “Voz de Arari” era
ouvida por quase toda a população, transmitia variada programação – músicas clássicas
e populares, convites, avisos, programas de calouros, mensagens de congratulações aos
aniversariantes, principalmente quando o aniversariante era o próprio vigário, que cedo
se tornara um ídolo venerado pelos seus seguidores (FERNANDES, 2012, p. 107).
Como exemplo sintomático dos usos diversos que fazia de seu sistema de
comunicação falada, em dezembro de 1953 padre Brandt organizou um grande comício
político na Praça da Matriz e uma posterior passeata pelas principais ruas da cidade, em
apoio ao candidato Henrique de La Rocque Almeida27 que pleiteava uma cadeira no
27
Advogado e jornalista, Henrique de La Rocque se tornou uma das mais expressivas figuras políticas do
Maranhão. Natural de São Luís, nasceu em 8 de agosto de 1912, cursou o ginásio na Bahia e ingressou na
Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro (atual UFRJ). No início dos anos 1950,
consegue ocupar vários cargos na esfera burocrático-administrativa, através dos quais estabelece
determinadas relações sociais que acabam influenciando-o a atuar no domínio da política, vindo
candidatar-se ao Senado, em 1953, com o apoio de Getúlio Vargas, tendo sido derrotado pelo candidato
apoiado por Vitorino Freire. Contudo, seu poder político se consolida e se traduz nos cinco mandatos
consecutivos que exerceu como deputado federal pelo Maranhão: 1954-1958 (PTB), 1958-1962 e 1962-
1966 (PSP), 1966-1970 e 1970-1974 (Arena). Em 1974, conseguiu costurar alianças com diversas forças
111
políticas maranhenses para lançar-se novamente ao Senado, conquistando e exercendo o mandato de 1974
a 1980, ano em que foi indicado para assumir o cargo vitalício de ministro do Tribunal de Contas da
União, vindo a falecer dois anos depois, em 1982. O prestígio conquistado junto às elites políticas do
Maranhão se reflete, como exemplo, na escolha de seu nome para batizar o palácio do Governo do
Estado, durante o governo de Edison Lobão (1991-1994), passando a chamar-se até os dias atuais de
Palácio Henrique de La Rocque. As informações sobre a carreira política deste personagem estão
disponibilizadas no site do Senado Federal, cujo endereço é www.senado.gov.br.
112
Clodomir Brandt e Silva entra na vida política de Arari pouco tempo depois de
assumir o posto de vigário-residente da cidade. Seu engajamento nas questões políticas
municipais está irremediavelmente associado à sua ação missionária católica, ao status
social adquirido perante a comunidade arariense e ao somatório de inúmeros processos e
condicionantes históricos, políticos, culturais e religiosos que, de certo modo, foram
corporificados em suas práticas e representações, nas modalidades de expressão verbal
falada e escrita.
Para se entender bem as nuances de sua atuação na esfera política de Arari, faz-
se necessário observar que as transformações macro e microssociais processadas
historicamente foram conferindo ao padre Brandt um repertório variável de mobilização
e de engajamento, desde sua entrada numa escola de ensino fundamental de grande
dinamismo cultural ao seu ingresso no Seminário de Santo Antônio (sob o
financiamento direto de seu abastado tio Cláudio), onde os estudos de conhecimento
geral e seu relativo “sucesso” como estudante, aliado às redes de contatos e alianças que
estabeleceu durante sua vida seminarística explicam, em parte, o seu envolvimento em
questões não necessariamente inscritas no domínio da espiritualidade e da atividade
sacerdotal.
113
Seja lá como for, é importante observarmos que seu envolvimento direto nos
assuntos políticos de Arari provém de uma noção formulada e adquirida por um tipo de
catolicismo que deveria intervir nas diversas instâncias da sociedade para retomar o
poder da Igreja no local e garantir a realização da obra missionária católica, conforme
demonstrado na institucionalização e no desenvolvimento das ações empreendidas pela
Associação da Doutrina Cristã, a ADC, principal plataforma de sustentação das ações de
Brandt. Aliás, à medida que avançam as obras patrocinadas com recursos provenientes
da ADC, os conflitos político-religiosos vão se intensificando, principalmente nos
jornais de propriedade do padre, tendo em sua figura o principal redator e combatente.
Apesar disso, uma nova configuração política se estabelece no seio de sua gestão
municipal com a ascensão ao poder, no plano nacional, de Getúlio Vargas. A partir da
gestão varguista, especialmente com o advento do Estado Novo, em 1937, Arari passa a
ser administrada por interventores nomeados. Nesse mesmo ano, Paulo Martins de
Sousa Ramos é nomeado Interventor Federal no Maranhão, cuja administração segue
até o ano de 1945. Através de laços de amizade estabelecidos com o novo interventor,
Antônio Garcia volta a ocupar a cadeira na Prefeitura de Arari, agora não mais como
prefeito, e sim como interventor municipal (SOUSA, 2003, p. 21). Porém, sua posição
115
no posto sofreria inúmeras injunções e interferências por parte do novo sistema político
vigente no país, fazendo com que se instalasse um estado de intermitência política em
Arari, ora com a presença de Garcia no comando da Prefeitura da cidade, ora com o
advento de outros personagens políticos ocupando o referido cargo28.
28
Sobre esse “vai-e-vem” de Garcia no poder político-administrativo de Arari, consultar Batalha (2011, p.
130-136).
29
Os “padristas” sucederam os “lucilinistas”, e os “barriguistas”, os “marcelinistas” (BATALHA, 2011,
p. 148). Os “marcelinistas” foram assim chamados por conta de seu líder, Marcelino Eduardo Chaves. Já
os “lucilinistas” eram liderados por Lucílio Quintino Fernandes. Os dois grupos foram os protagonistas
das disputas pelo controle do poder político local nas eleições de 1912 para a Intendência Municipal.
Ambos os lados, contudo, eram pertencentes às famílias “tradicionais” de Arari, e ainda estavam ligados
por laços de parentescos entre si (SOUSA, 2003, p. 17-19).
30
Sobre a origem e os detalhes dos conflitos entre os seguidores de Antônio Garcia e de padre Brandt,
resumida na dicotomia “padristas e barriguistas”, ver Sousa (2003).
116
Em fins da década de 1940, o partido situacionista (PSD) era composto por três
distintos representantes: Antônio Garcia, ex-prefeito e ex-interventor municipal, um dos
líderes políticos mais antigos e atuantes da cidade; Teodoro Antônio Batalha, que já
havia sido presidente da Câmara Municipal e suplente de deputado estadual; e Cipriano
Ribeiro dos Santos, rico fazendeiro, ex-prefeito e ex-delegado de polícia (BATALHA,
2011, p. 152-153). Foi contra estes agentes que o vigário de Arari travou seus maiores
combates políticos, utilizando-se para tanto de todos os meios de que dispunha,
principalmente os seus veículos de comunicação.
em nenhum momento, a tomada da prefeitura pode ser vista como uma ruptura com as
práticas políticas do passado, nem muito menos com o poder econômico dominante. A
própria prefeita Justina Fernandes pertencia a uma família de grandes proprietários
rurais, que disputa o poder desde o início do século XX. Os embates permanentes entre
padristas e barriguistas mostraram a dimensão do interesse pelo poder e o nível de
envolvimento desses grupos com os mais altos escalões da política do Estado para se
sustentar ou readquirir o espaço perdido.
Nessas eleições, ocorreu um fato inédito na política arariense: alegando que o juiz da
comarca, Dr. Nodson Jansen Penna de Melo, estava protegendo o Pe. Brandt, e seus
partidários, com uma incontestável fraude eleitoral, os políticos do PSD se recusaram a
votar e recomendaram aos seus partidários que não comparecessem às urnas, pois o
pleito seria nulo, pelo fato de o juiz ter entregue todo o material das eleições ao Pe.
Brandt e seus fiscais, e impedido os políticos do PSD de fiscalizarem a votação. Mesmo
assim, houve a eleição, denunciada e tida como fraudulenta, mas validada pelo juiz
eleitoral da comarca. Com essa decisão, o Pe. Brandt elegeu todos os nove vereadores
que compunham a Câmara Municipal (BATALHA, 2011, p. 142).
Não se pode desconsiderar também o apoio decisivo de seu tio Cláudio, à época
presidente do Banco Rural do Maranhão, um dos maiores financiadores dos projetos
desenvolvidos por padre Brandt e mantidos através da ADC, que com seu prestígio
junto ao interventor Paulo Ramos facilitou os contatos do sacerdote com membros
dirigentes de diferentes segmentos e esferas sociais, regionais e nacionais (BATALHA,
2011; FERNANDES, 2012).
Dispondo desse capital social e de certo capital político acumulado por suas
experiências eleitorais, padre Brandt lança-se candidato à Prefeitura de Arari, em 1959,
disputando a preferência do eleitorado com o seu ex-aliado Benedito de Jesus Abas
(conhecido também como Biné Abas). Foi a primeira e única vez que os padristas se
dividiram. Aproveitando-se do afrouxamento dos laços entre os representantes do PSP,
os partidários do PSD decidiram apoiar Biné Abas, que venceu aquele pleito com
pequena margem de diferença de votos.
Padre Brandt ainda teria fôlego para disputar as eleições municipais de 1962,
onde foi eleito vereador de Arari com 320 votos. Este foi o primeiro mandato eletivo
conquistado pelo sacerdote. Com o advento do Golpe de 1964 e, em seu bojo, a
implantação do bipartidarismo no país e o sistema de eleições indiretas, padre Brandt e
119
seus seguidores, assim como seus outrora opositores barriguistas, cerram fileiras na
situacionista Arena, o partido do governo militar, sigla pela qual conquista seu segundo
mandato de vereador, no pleito de 1966, e o terceiro, já em 1970.
Assim, no ano de 1972, padre Brandt disputa pela última vez um cargo eletivo e,
novamente, o de prefeito de Arari, contra o mesmo candidato que já o havia derrotado
em 1959, Biné Abas. Também nessa ocasião a disputa eleitoral pelo comando do Poder
Executivo municipal lhe imputou nova derrota, devido à desistência das candidaturas do
MDB, que decidiram em conjunto apoiar Biné. A partir dessa última desventura
eleitoral, o vigário de Arari decide não mais concorrer a nenhum cargo político e passa a
se dedicar de forma mais incisiva à literatura, mas seu protagonismo e influência na
vida política da cidade permaneceriam até o fim de seus dias (BATALHA, 2011, p.
175-178).
Apesar de ter dado continuidade à sua carreira política até o ano de 1972, consta
na edição de 6 de maio de 1965 do jornal “NOTÍCIAS” uma declaração do pároco sobre
o encerramento de sua interferência, a partir daquela data, no processo político de Arari,
a qual vale a pena reproduzir aqui:
120
Pelo contrário, foi a partir da primeira vitória eleitoral do grupo liderado pelo Pe.
Brandt, no ano de 1955, que as disputas pelo controle hegemônico do poder político
municipal entraram numa fase de recrudescimento das hostilidades entre “padristas” e
121
31
O conflito armado que resultou na invasão da sede da ADC e no fuzilamento da Casa Paroquial, onde
estava a mãe de Clodomir, pelas forças policiais vindas da capital São Luís, foi motivado pela luta
corporal entre um policial e um vendedor do jornal “BOLETIM PAROQUIAL”, de propriedade do padre
Brandt, em meio ao clima de guerra política existente no município entre partidários do barriguismo e do
padrismo. Com a intervenção do sacerdote no caso, que contou ainda com o apoio da população, o
delegado local não conseguiu efetuar a prisão do jornaleiro, com o agravante de ter suas armas e as de
seus comandados tomadas pelos populares, que as entregaram à prefeita Justina Fernandes. Diante da
recusa desta em devolvê-las à autoridade policial local, foi designado um destacamento da capital para
Arari com a missão de reaver as armas. Mesmo com a devolução das mesmas, as forças policiais
promoveram atos de vandalismo e terrorismo na cidade. Para saber mais sobre este assunto, ver Sousa
(2003, p. 39-48) e Batalha (2011, p. 151-160).
122
“Um atentado inolvidável e covarde paralisou a vida de Arari por dois meses. Fechadas
todas as instituições paroquiais – Comércio reduzido – Um povo sob terror”.
No dia 24 de outubro [de 1955], a cidade de Arari foi inopinadamente invadida por
soldados da Polícia Militar do Estado, vindos em uma caminhonete do senhor José Frias
pela estrada que liga Arari a Miranda. Viajaram no mesmo transporte Otaviano Araújo,
vulgo Dedé, Coletor Estadual, e Hoendel Hayden Silva, Tabelião. Estes dois senhores,
segundo informações seguras, serviram de orientadores dos soldados na empreitada
infame que vinham realizar.
Hoje já não resta mais dúvida alguma sobre a finalidade do atentado. Era a morte
do pároco de Arari, Cônego Brandt e Silva, e a pilhagem dos bens da Paróquia.
Foram organizadores, em São Luís, o delegado de polícia Leovegildo Pinto e Theodoro
Antônio Batalha, que convenceram o coronel Amorim, chefe de Polícia, de que o
Cônego Brandt e a prefeita Justina Fernandes Rodrigues estavam com duzentos
homens armados para enfrentar a força pública.
O desejo do delegado Léo Pinto era chegar a Arari à meia noite de 23 para 24 quando
encontraria o Cônego Brandt dormindo em sua residência (...). Se tal houvera
acontecido, o Cônego Brandt teria sido morto, assim como sua veneranda mãe Carolina
Brandt e mais umas duas dezenas de crianças. Isto porque os soldados vinham armados
de fuzis e metralhadoras de mão e tinham ingerido muito álcool (FERNANDES, 2012,
p. 181-182. Grifo nosso).
Em outro texto de sua autoria, veiculado no seu “A Voz de Arari”, por volta de
dezembro de 1953, quando da organização de um comício em apoio à candidatura de
Henrique de La Roque para o Senado Federal, em concorrência ao candidato apoiado
por Vitorino Freire32, Clodomir Brandt não poupou palavras para expressar suas críticas
a este último:
32
Vitorino de Brito Freire foi o principal líder político combatido pelas forças políticas que se opunham
ao seu “mandonismo” na esfera política do Maranhão. Apesar de não ser maranhense (nasceu na cidade
de Pedra Buíque, em Pernambuco, em 28 de novembro de 1908), Vitorino foi eleito deputado federal pelo
Maranhão em 1946, abdicando do mandato para disputar uma vaga ao Senado Federal, tendo sido senador
por três mandatos consecutivos: 1947-1955, 1956-1963 e 1964-1971, todos pelo PSD, cargo a partir do
qual exerceu grande influência sobre a política e os políticos maranhenses até o ano de sua morte, em
1977. Dentre eles José Sarney, que foi “apadrinhado político” de Vitorino quando de sua entrada no
âmbito do Legislativo, tendo assumido um mandato de deputado federal em 1956, aos 26 anos, na
condição de terceiro suplente, adquirida dois anos antes quando disputou sua primeira eleição, sob as
123
bênçãos do que os adversários chamaram de “vitorinismo”. Sarney foi o grande aliado e, posteriormente,
o principal adversário de Vitorino no jogo político maranhense. Sobre este assunto, ver Buzzar (1998).
33
Sobre as “Oposições Coligadas”, consórcio de figuras políticas de diferentes facções alinhados para
fazer frente ao poder político do senador Vitorino Freire no Maranhão, ver Buzzar (1998).
34
Nascido em Nova Iorque do Maranhão, a 10 de outubro de 1917, José Guimarães Neiva Moreira era
jornalista e foi presidente nacional do PDT, tendo sido um dos fundadores da legenda no Maranhão.
Ingressou na vida política no início dos anos de 1950, tendo conquistado os mandatos de deputado
estadual (1951-1955) e de deputado federal por duas legislaturas consecutivas (1955-1959 e 1960-1964),
todos pelo PSP. Pelo PDT maranhense, Neiva Moreira foi novamente deputado federal, de 1993 a 1994,
de 1997 a 2000 e de 2001 a 2004. Ao liderar a Frente Parlamentar Nacionalista na Câmara dos
Deputados, em 1961, se aproximou de Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, de cuja
relação e atuação política nasceu o Partido Democrático Trabalhista (PDT). No plano nacional, foi um
dos principais opositores políticos do regime militar, tendo sido opositor, a nível regional, à candidatura
de José Sarney nas eleições de 1965, que era apoiado pelo presidente general Castelo Branco, o que lhe
rendeu a prisão e o envio para o exílio na Bolívia, retornando ao Brasil somente com a decretação da Lei
n. 6.683, de 28 de agosto de 1979, a chamada “Lei da Anistia”, que concedeu o “perdão” a todos os que
cometeram “crimes políticos” no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de
1979. Neiva Moreira faleceu em 10 de maio de 2012, vítima de infecção respiratória pulmonar.
124
Convivemos um longo período de nossas vidas e jamais encontrei nele, nem nas
confidências fraternas, no convívio social ou no tumulto e nos encontros das grandes
lutas, um momento de desânimo, de renúncia, mesquinhez e ódio racional. No meu
exílio de 15 anos, o perfil de sua atuação evangélica esteve sempre presente e quando
retornei ao Maranhão, logo nos reunimos para um balanço, sem a marca dos rancores,
daqueles anos de chumbo, que não demoliram as nossas convicções nem nos afastaram
da linha, em nossas vidas (FERNANDES, 2012, p. 151).
Como exemplo de uma resposta dada à altura da linguagem utilizada por padre
Brandt em seus ferozes relatos, o jornal “DIÁRIO POPULAR” publicou um texto
criticando a gestão da prefeita Justina Fernandes. Tais críticas estão circunscritas no
contexto de sucessivas vitórias e aumento de prestígio do vigário de Arari em
detrimento da perda de espaço e de poder político de seus opositores:
O que se tem visto em Arari causa nojo e revolta. Instalou-se naquele infeliz município
uma comandita ao serviço do mal, capitaneada precisamente por quem deveria antes,
pelos seus misteres profissionais, espalhar o bem e difundir a verdadeira doutrina da
fraternidade cristã. Arvorado de chefe político, Clodomir Brandt despiu-se das
vestes que lhe impunham a dignidade do sacerdócio cristão, trocando-a pela de
lobo faminto e voraz para atacar traiçoeiramente os que não lhe ouvem os uivos
aterrorizantes (ibid., 2003, p. 35. Grifo nosso)
Já no decorrer da década de 1960, padre Brandt viria a travar uma nova querela
política na imprensa, desta vez com os membros que integravam o “Grêmio Arariense
125
A par do seu acerto até certo tempo, de suas obras e realizações consideráveis e do valor
que representou para a sua época, responde hoje por uma soma infindável de pecados,
126
A politização do povo, que julgávamos vir sendo feita em Arari por quem à educação
dizia dedicar-se, chega a manifestar-se um mito. 20 anos vem sendo transmitida uma
instrução que longe está de educação e conscientização, chegando mesmo a haver um
interesse na manutenção da ignorância, pois à sua sombra suas ambições se articulam
melhor e repousam certas conveniências. (...) Fazer a indústria da ignorância é
convencer os seus adeptos que seus excessos são virtudes mesmo quando enxovalham,
com agressividade, a vida pública e particular de qualquer adversário, não conseguindo
esconder a sua vocação caudilha; é valer-se da discriminação, colaborando para que o
ódio e o fanatismo da gente arariense ande à flor da pele, abrindo fronteiras e distâncias;
é afastar da igreja os seus adversários políticos, sob a pecha de “inimigos da
religião”, após haver criado com a sua interferência política o problema que os
separou, gerando-lhes frustração espiritual e conflitos; fazer a indústria da ignorância
é confundir, deliberadamente, política e religião, misturando os dois planos,
permitindo o trucidamento dos valores maiores; é pregar entre os seus que os católicos
que se afastaram são homens e mulheres sem consciência, sem fé, sem religião e sem
moral, como se fora ele a medida da consciência, da fé, da religião e da moral; (...) é
ousar enfrentar em guerra os avanços, reformulações de conceitos e novas conquistas da
atualidade que venham de encontro aos seus interesses, pregando a discriminação
religiosa para salvaguardar a sua política (ibid., 2012, p. 161-162. Grifo nosso).
Sou político. Qual o homem normal, na época atual, e no mundo de hoje, e em regiões
como a nossa, que não o é? (...) Seria duro demais, e muito desumano, não participar do
processo que tem por finalidade a melhoria de vida do povo. Não só do espiritual, mas
também do material, que é igualmente sagrado. Não me conformo em ser só sacerdote
da alma. Penso também no que é do corpo. (...) Não sou de ferro ou de cimento
armado para não reagir diante da injustiça. Como poderia ver o meu vizinho lutando
e sofrendo, e ficar indiferente? (...) Estamos em guerra, numa guerra terrível onde o
sangue foi substituído pela fome que se alastra, pela falta de oportunidade, pela falta de
higiene e de saúde, pela falta, enfim, de tudo aquilo que dá ao homem um sentido
humano. E cruzar os braços, nesta hora e neste lugar, seria uma traição ao povo e a si
mesmo, como é uma traição o homem válido fugir ao dever de empunhar a arma
quando a Pátria está ameaçada. Estou certo? Estou errado? Não quero saber. Tomei a
atitude que me ditava a consciência, e aqui estou! (SILVA, 1992, p. 4-5. Grifo nosso).
Através destes escritos, padre Brandt tenta estabelecer uma correlação entre a
atividade sacerdotal e o “ser político”. Para o sacerdote, não é possível “não reagir
diante da injustiça”, pois “seria duro demais, e muito desumano, não participar do
128
processo que tem por finalidade a melhoria de vida do povo”. Assim, ao não se
conformar em ser apenas “sacerdote da alma”, Brandt cria, através dos usos sociais que
faz das heterodoxias que influenciam a atuação de padres no Maranhão de meados do
século passado, as bases de legitimação de sua intervenção religiosa na esfera política.
Ainda que os princípios emanados por essa teologia não tenham sido suficientes
para impor uma espécie de “filiação” ao sacerdote escritor e que suas ações no campo
da “cultura” e da “política” possam ser interpretadas como “progressistas”,
minimamente forneceu-lhe subsídios ideológicos para legitimar sua intervenção e
compor suas interpretações sobre o mundo social num contexto em que estas discussões
teológicas e ideológicas estavam presentes, demonstrando, em última análise, o grau de
penetração do discurso da “libertação” entre os clérigos maranhenses, presente no
repertório de atuação de um sacerdote vinculado às elites locais e participante ativo das
disputas políticas entre os grupos dominantes ararienses.
Todos os livros de sua autoria que vieram a ser publicados, computando um total
de vinte e seis títulos (ver lista completa no anexo I), a maioria sendo lançados por sua
própria editora “Notícias de Arari”, homônima do jornal com o qual ele havia travado
129
Observa-se que no trajeto pessoal de padre Brandt a escrita tornou-se não apenas
um trunfo do qual o nosso personagem lançou mão a seu bel prazer, mas efetivamente
um dos principais instrumentos de luta simbólica pela produção, reprodução e
imposição de representações sobre o mundo social, combinando prestígio social com a
autoridade institucional delegada pela Igreja. O que não ocorreu de modo aleatório, e
130
sim através de uma imbricada teia de relações sociais, pelas quais padre Brandt tornou-
se conhecido e reconhecido (capital social), acionada pelo agente em foco (de forma
mais ou menos consciente), principalmente pelos laços familiares, como no caso do
apoio constante e decisivo de seu “tio Cláudio” em relação à ajuda financeira, via
instituição bancária, que financiava e mantinha as obras e ações da Associação da
Doutrina Cristã (ADC), presidida por padre Brandt em Arari.
Isso fica ainda mais evidente quando da inserção do padre Brandt na esfera
político-partidária de Arari, cuja “missão” surge inicialmente diante da constatação de
que muitos protestantes fazem parte dos grupos políticos da cidade, ocupando cargos
públicos e mandatos eletivos. Tais observações teriam sido o combustível que motivou
padre Brandt a se candidatar e exercer três mandatos de vereador e perder duas eleições
para prefeito de Arari. Somente com o advento de novos condicionantes históricos e
sociopolíticos é que o sacerdote tenta fundamentar sua intervenção na esfera política
diante da “injustiça” social.
Desta feita, a lógica da justificação apresentada por padre Brandt para intervir
fora do âmbito confessional e mesmo para legitimar e estabelecer a demarcação de
novas fronteiras entre religião, cultura e política ancora-se diante do exame do “avanço”
131
Outrossim, cabe ainda destacar que à medida que as ações “inovadoras” de padre
Brandt nas esferas da política e da cultura arariense vão se ampliando por toda a cidade,
ressoando inclusive na capital do Estado, sendo noticiadas em jornais de grande
circulação em São Luís, o nosso personagem conquista tanto admiradores quanto
inimigos poderosos, conforme se pôde analisar no protagonismo exercido por Brandt
diante do conflito armado na cidade, onde os principais grupos rivais (padristas e
barriguistas) chegaram ao ápice da violência e intolerância político-religiosa.
CAPÍTULO 4:
Seu espaço de atuação foi ainda tão diversificado quanto sua produção escrita.
Trabalhou como médico-pediatra em São Luís durante cinco anos, participou do
movimento leigo da Ação Católica no Maranhão (ACM), chegando ao posto de
presidente arquidiocesano antes mesmo de se ordenar padre, através do qual pôde
elaborar, com o apoio da Igreja, uma série de “projetos” sociais, culturais, educacionais
e políticos, com foco na produção cultural e na formação de lideranças católicas, ao
mesmo tempo em que escrevia seus premiados romances e aclamados ensaios.
134
O jornalista relata ainda que o “destaque” de João Mohana na escola primária foi
tamanho que ele foi escolhido, dentre todos os alunos, para um ato solene de recepção
de uma autoridade da Igreja Católica. “Quando o arcebispo D. Carlos Carmelo realizou
uma visita pastoral a Viana, o jovem João Mohana foi escolhido para saudá-lo”36.
35
O relato é do jornalista e escritor Pedro da Veiga, que recepcionou João Mohana quando de sua visita à
cidade paranaense no ano de 1973 para a realização de suas famosas palestras para casais. À época da
visita, Veiga era Diretor Administrativo da Prefeitura de Campo Mourão e havia sido convidado pelo
bispo da arquidiocese da cidade, D. Eliseu Simões Mendes, para recepcionar o padre maranhense. As
informações estão contidas em seu blog pessoal, disponíveis no site www. pedrodaveiga.blogspot.com.
Pedro da Veiga faleceu em março deste ano, aos 74 anos de idade.
36
Ibid.
136
“Colégio São Luís”37 e, depois, ingressou no “Colégio Marista Maranhense”38, para dar
continuidade nos estudos.
Foi no Colégio Marista que João Mohana consolidou a herança cristã católica
herdada dos pais. A proposta da escola, inspirada no modelo francês de educação
católica, era pautada em cinco pilares pedagógicos: a) da vida em família, visando a
construção de um espaço comum de diálogo, de aceitação das diferenças e de espírito
fraterno nas relações interpessoais; b) do trabalho e da constância, que valoriza tanto o
trabalho manual quanto o intelectual como desenvolvimento da personalidade humana,
e a constância como fator de maturidade pessoal; c) da simplicidade, que preza pela
humildade nas relações sociais e na forma com que educadores devem tratar seus
educandos; d) da presença, centrada na construção de relações que extrapolem o âmbito
da sala de aula, sendo vivenciada entre discentes e docentes nos recreios e atividades
extra-classe”; e e) pedagogia Marial, tendo em “Maria, Mãe de Deus” o modelo do
educador e do educando marista, “sendo-lhes referência de testemunho e vivência dos
valores cristãos” (NUNES, 1996, p. 3).
37
Apesar da fonte primária utilizada neste trabalho não citar o referido colégio, outras fontes consultadas
no final da pesquisa de campo mencionam o “Colégio São Luís” como uma das instituições de ensino
onde João Mohana cursou o início do “ginasial”, sem oferecer, contudo, maiores detalhes ou informações
sobre a escola. Atualmente, o “ginasial” compreende o período escolar que vai do quinto ao nono ano ou
“série”.
38
Tem sua origem na fundação da “Sociedade de Maria” (1813), do sacerdote francês Marcelino
Champagnat, que junto com outros dois padres integrantes da referida sociedade criam o “Instituto Irmãos
Maristas”, voltado para “suprir a carência de escolas e de educação religiosa na zona rural em que viviam
[na França] (NUNES, 1996, p. 2). Após a morte de Champagnat, o Instituto continuou se desenvolvendo
e se expandindo por diversos países através do trabalho dos remanescentes colaboradores do falecido
fundador. Com a Proclamação da República no Brasil (1889) e a laicização entre Estado e Igreja, a
instituição de ensino dos Irmãos Maristas chega ao país em 1897, somando-se aos outros institutos
religiosos europeus aqui presentes (Lazaristas, Barnabistas, Capuchinhos) para “colaborar com a Igreja
local em seu processo de reorganização interna e externa” (ibid., 1996, p. 9). A convite do arcebispo de
São Luís, D. Francisco de Paula, o Superior Provincial dos Irmãos Maristas, irmão Damien, vem para o
Maranhão realizar o projeto pedagógico-religioso francês, fundando no dia 2 de abril de 1908, na capital
maranhense, situado em frente à Praça Benedito Leite, o “Colégio São Francisco de Paula”, em
homenagem ao santo comemorado no mesmo dia. Em 1920, o Colégio é fechado, após a saída dos irmãos
maristas de São Luís, voltando a ser reaberto somente em 1937, com o retorno dos maristas a convite do
então arcebispo D. Carlos de Carmello Mota, que abriga a instituição de ensino no Palácio do
Arcebispado, passando a chamar-se “Colégio Marista Maranhense” (Suplemento Cultural de “O
IMPARCIAL”, 1995; NUNES, 1996).
137
Convém ressaltar que o Colégio Marista, até meados do século passado, além da
educação religiosa voltada para a formação do “bom cristão e do virtuoso cidadão”,
também fornecia instrução militar aos seus alunos39. No final da década de 1930, a
escola era uma das poucas instituições católicas de ensino voltadas especialmente ao
público masculino, destinada à educação de crianças (curso primário, antigo “primeiro
grau”) e adolescentes (curso secundário, antigo “segundo grau”), onde os maiores de
dezesseis anos recebiam treinamento militar e realizavam exercícios de tiro ao alvo
(NUNES, 1996, p. 5-6).
atendimento às camadas carentes” (ibid., 1996, p. 9), infere-se que os alunos do Colégio
Marista eram, em grande parte, pertencentes às elites locais, que matriculavam seus
filhos pela “tradição católica” e pelo rigor do ensino, bem como pelas escassas
alternativas de educação masculina.
A partir disso, tem-se a dimensão da presença dos filhos das elites dominantes
na instituição de ensino, uma vez que a predominância de franceses entre os educadores
sugere o aprendizado ou, minimamente, noções básicas da língua francesa por parte dos
alunos, aspecto raro e distintivo num estado eminentemente agrário e de população
majoritariamente analfabeta, cujo modelo de economia agroexportadora baseada
principalmente na produção de arroz e algodão beneficiou quase que exclusivamente os
“senhores de terra”. Assim, os grandes latifundiários maranhenses enriqueceram
financeiramente e através desta riqueza conseguiram significativa ascensão social,
investindo de tal modo na educação dos filhos a ponto de se constituírem enquanto
“elites políticas rurais”, que passaram a dominar o espaço político local e a se afirmar
no domínio intelectual, em detrimento da maioria da população desprovida do acesso à
educação básica (ALMEIDA, 2008).
Não foi possível precisar a chegada dos “Mohana” no Maranhão por falta de
fontes e registros, mas compreende-se que deva ter sido logo nas primeiras levas
migratórias, entre os anos de 1900 e 1920, levando-se em consideração a cidade e a data
de nascimento de João Mohana (Bacabal, 15 de junho de 1925), o primeiro dos sete
filhos do casal Miguel e Anice Mohana.
Além disso, para se ter mais ou menos uma ideia do ano de desembarque do
casal Mohana em solo maranhense, pode-se levar em consideração também os laços
sociais e de amizade estabelecidos entre os grupos familiares que aqui chegaram em
grandes levas, predominantemente ao interior do estado. Conforme afirma Oliveira
Lima (apud FURTADO, 2008, p. 30),
na primeira leva, trazidos por parentes e amigos, [vieram] os Jorges (Codó); Murad e
Mettre (S. Luís); Simão (Caxias, Itapecurú-Mirim); Salomão (Santa Inês e Pindaré-
Mirim), todos filhos do Líbano, oriundos das cidades de Záklê, de Abláh. Na segunda
leva, no início do século XX (1901), vieram os Ázars (Esber e Miguel) e os Chamiés.
Estes motivaram a vinda de outros, a última diáspora: Chamés, Aboud, Farah, Damous,
Fiquene, Mouchrek, Saback, Facuri, Tajra, Curi, Millet, Sequeff, Safady, Nazar, Maluf
(Rosário); Mubarack, Buzar (Itapecurú); Trovão (Coroatá); Abdalla, Tomé (Timbiras);
Boêres (Bequimão) e mais Waquim, Nahuz, Dino, Mattar, Fanciss, Boabaid, Chuaty e
outros.
141
o caminho de segura ascensão social não foi porém regra única e invariável para os
libaneses. Muitos imigrantes (...) só conseguiram atingir o patamar de pequenos
comerciantes, nunca alcançando a ambicionada fase atacadista ou industrial. Outros
nem a isso chegaram, permanecendo como funcionários de seus parentes mais bem
estabelecidos.
43
Rebatizada de “Casa João Mohana”, como forma de consagração e homenagem à memória do filho
mais “ilustre” da família Mohana.
44
Ver Furtado (2008).
45
Consultar em Assis (2012) o exemplo de duas famílias, “Haickel” e “Duailibe”, que baseadas no
enriquecimento econômico e em estratégias de reprodução de dominação (relações sociais de amizade,
parentesco e alianças matrimoniais) conseguiram se projetar e se afirmar no espaço político local,
ocupando cargos e postos relativos à esfera estatal e garantindo a manutenção da influência sobre os
mesmos.
143
Caso raro; nós não conhecemos os avôs e as avós, pois ficaram no Líbano. Sabíamos
apenas serem sábios, sem curso superior, escrevendo lindamente o árabe, e mandando
revistas e jornais árabes a todos nós. No Líbano, todos falavam árabe e francês (Ibrahim
Mohana. Entrevista concedida, em São Luís, em janeiro de 2013).
46
Depoimento concedido em entrevista, realizada por escrito, em São Luís, em janeiro de 2013.
47
Magalhães (2009) desenvolve um interessante estudo sobre as “representações” tecidas historicamente
entre os descendentes de sírio-libaneses que chegam ao Maranhão e a população local, entrecortadas
pelos conflitos e dificuldades de socialização existentes no início do processo imigratório (1880), visões
que se ressignificam com o passar do tempo (1930), dos imigrantes em relação aos maranhenses e a si
mesmos, passando a negar ou minimizar a existência de conflitos socioculturais e exaltando a imigração
como “bem-sucedida”, com destaque para os aspectos relativos aos feitos das “famílias que deram certo”,
como “excelentes negociantes”, “famílias ricas”, “políticos importantes” e “intelectuais brilhantes”.
144
Conforme se pode analisar, a educação para “os Mohana” possuía uma dupla
face: a primeira de ascensão social, através do processo de conversão do poder
econômico alcançado em aquisição de capital escolar, aspecto distintivo e valorizado no
espaço de poder mais amplo, onde as possibilidades de ocupação de posições sociais
relativamente bem alocadas estão irremediavelmente associadas ao capital cultural
acumulado pelos agentes em disputa, que ajuda a manter e a reproduzir a própria
estrutura de dominação social em regiões “periféricas” (BOURDIEU 2002;
CORADINI, 2010).
Pode-se inferir, portanto, que nessa escola estudaram muitos daqueles que
viriam a tecer com João Mohana relações de reciprocidade, de amizade, alianças e
145
Além disso, a estrita formação religiosa cristã católica obtida nessas instituições
de ensino, de alguma forma, favoreceu o despertar de sua “vocação sacerdotal”, ainda
que o direcionamento de sua “escolha profissional” tenha sido muito menos resultado
de sua manifestação pessoal do que uma imposição de sua família, particularmente de
seu pai, socialmente condicionado pela estrutura de poder e pelas relações sociais que
sedimentam os “estilos de vida” das elites dominantes.
Para o pai de João Mohana, ser médico era a garantia de uma profissão que
renderia o seu sustento material, ao mesmo tempo que significaria a manutenção de um
status quo conquistado através da projeção social e econômica alcançada pela atividade
comercial, rendendo-lhe uma espécie de “crédito social”. Segundo Eric Wolf (2003, p.
101), “a filiação a uma família não define apenas a medida do crédito social de alguém.
Ela também estrutura a natureza dos recursos sociais sob o comando dessa pessoa em
operações envolvendo não-parentes”.
No caso de João Mohana, decidir-se pela carreira médica não era apenas o
atendimento a uma exigência pessoal do pai, mas também a responsabilidade de
“carregar” o nome da família, primando pela manutenção do prestígio do mesmo e do
“crédito social” conquistado.
reciprocidade que foram fundamentais na definição dos rumos que João Mohana viria a
seguir.
Desde o início da vida escolar, João Mohana esteve enlaçado por redes de
relações que circundavam a esfera de atuação religiosa da Igreja Católica. Da recepção
do arcebispo D. Carmelo em visita pastoral ao município de Viana, ainda no curso
primário, à conclusão dos estudos no Colégio Marista Maranhense, de orientação cristã
católica, seria “natural” a sua entrada no mundo eclesiástico após o “ginásio”.
48
O primeiro curso de Medicina no Maranhão foi fundado em 1958 e estruturado institucionalmente
como Faculdade de Ciências Médicas. Esta foi criada pela Sociedade Maranhense de Cultura Superior
(Somacs), organização vinculada à Arquidiocese Metropolitana de São Luís e que tinha como objetivo
promover o ensino superior no Estado. A organização do curso coube ao então arcebispo D. José de
Medeiros Delgado, que viria a se tornar um dos amigos do nosso personagem. João Mohana tinha 18 anos
quando ingressou no curso de Medicina de Salvador, na Bahia, no ano de 1943.
148
A grande influência sobre João Mohana foi do cientista jesuíta francês padre Camille
Torrend, um dos homens mais completos do Brasil; sabia tudo das ciências, artes,
técnica; sabia tudo (e mais ainda) que o famoso Concílio Vaticano II iria ensinar. João
fez o curso “clássico” (três anos que precedem a Universidade) no Pensionato para
universitários do padre Torrend. Foi para a Medicina por vontade própria, mas nosso pai
e padre Torrend influenciaram. (Ibrahim Mohana)49
Pode-se afirmar que a ida de Mohana para o referido pensionato tenha sido tanto
pela formação oferecida quanto pela própria localização geográfica do mesmo. Situado
em Salvador e destinado para “receber alunos vindos de outros Estados”, preparando-os
49
Entrevista concedida em janeiro de 2013, em São Luís.
149
para o ingresso na vida acadêmica, ficaria mais fácil se preparar para entrar numa das
mais prestigiadas faculdades de Medicina do país estando já na cidade onde esta se
localiza, na capital baiana.
50
Seu ano de fundação data do período colonial, em 18 de fevereiro de 1808, quando da assinatura de D.
João VI do documento que autorizou a criação da Escola de Cirurgia da Bahia. Abrigada no prédio do
Colégio dos Jesuítas, em Salvador, a Escola se transformou na Academia Médico-Cirúrgica em 1 de abril
de 1813. Somente em 3 de outubro de 1832 ganhou o nome de Faculdade de Medicina da Bahia, que
conserva até os dias atuais, vinculada à Universidade Federal da Bahia (UFBA).
51
Dentre outros cargos e postos, Clodomir Milet foi senador pela Arena (1967-1975) e deputado federal
por quatro mandatos consecutivos (1951-1955; 1955-1959; 1959-1963; 1963-1967), além de ter sido
candidato a Governador do Maranhão, em 1960, pelo PSP. Por sua vez, Raimundo Nina Rodrigues
ganhou notoriedade no desenvolvimento de pesquisas científicas nas áreas da Psiquiatria e da
Antropologia, que o legitimaram a ser o patrono da cadeira n. 14 da Academia Maranhense de Letras
(AML) e da cadeira n. 28 do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão.
52
Médico e membro da Academia Maranhense de Letras, quarto ocupante da cadeira n. 3, em
substituição à João Mohana.
150
53
Ibrahim Mohana, em entrevista realizada em janeiro de 2013, em São Luís.
151
Ao passo que se engajava nos movimentos de base da Igreja local, João Mohana
começava a manifestar, de forma mais incisiva, aquilo que viria a ser o seu principal
trunfo na disputa pela imposição de sentidos sobre o mundo social no espaço de
concorrência simbólica: o exercício da escrita. Assim, em 1952, lança o seu primeiro
livro, o romance O Outro Caminho, pela editora Agir, o qual recebeu o prêmio Coelho
Neto da Academia Brasileira de Letras (ABL) pela melhor obra literária daquele ano.
trunfo para cimentar e legitimar futuras incursões no plano da escrita religiosa. Tal
perspectiva pode ser constatada no seguinte relato do nosso personagem sobre como
recebeu o prêmio da ABL por seu primeiro romance: “Eu me entusiasmei com a notícia
do prêmio. Com a significação literária e social dele. Escancarou a porteira para meu
estradeiro disparar” (Suplemento Cultural de “O IMPARCIAL”, 1995, p. 6).
(...) Nasci para fazer isso. Seria falso se quisesse destilar charme a esta altura dos meus
vinte livros, tão lidos por tantos. Mas só o talento literário não me conduziria até aqui.
Sou apologista das núpcias do talento com a autodisciplina. Desse enlace é que surgem
o artista e sua obra. Muitos escritores, muitos pintores morreram antes da aurora, por
falta de autodisciplina, embora tivessem talento de sobra. É minha convicção que um
escritor se faz com 40% de talento e 60% de autodisciplina (ibidem).
Quando cheguei ao Rio, em 1954, a Livraria Agir, na Rua México, 98, por trás da
Biblioteca Nacional, era ponto de encontro de escritores e poetas católicos. O
gerente da loja chamava-se Ernst Fromm e cativava a clientela pelo conhecimento dos
livros e de seus autores, fossem nacionais ou estrangeiros.
Foi Fromm quem me falou do padre e grande romancista maranhense João
Mohana que, tendo publicado um livro de sucesso anos antes, pela Editora Agir (O
Outro Caminho, premiado pela Academia Brasileira de Letras, em 1952), tinha uma
segunda obra circulando e fazendo sucesso entre os leitores: Maria da Tempestade.
Li emocionado esse livro e, na semana seguinte, voltei ao Fromm, a fim de conseguir
um exemplar de O Outro Caminho, o que não foi fácil, pois a edição estava esgotada.
Lembro que ele arranjou um exemplar, com muito custo, no depósito e, assim mesmo,
com defeito na capa. Desde então passei a admirar esse conterrâneo.
(...) Ao término da leitura de O Outro Caminho, senti-me orgulhoso do escritor
maranhense. Afinal, por orientação do próprio Fromm, semanas antes havia
adquirido um exemplar de Os Noivos, obra-prima do italiano Alessandro Manzoni e
Mohana não ficava atrás (Suplemento Cultural de “O IMPARCIAL”, 1995, p. 21. Grifo
nosso).
No caso de João Mohana, esses vínculos sociais foram ainda mais sintomáticos
na sua entrada para a Academia Maranhense de Letras (AML). O exame dos
condicionantes de ingresso do médico e escritor para o seleto grupo de autores da
referida agremiação literária requer a apreciação de que tanto o capital cultural quanto o
capital social acumulado são amplamente valorizados como recursos distintivos e de
legitimação de pertencimento entre os “imortais”, onde o jogo da reciprocidade, das
amizades instrumentais e da autoconsagração nem sempre estão em consonância com a
produção intelectual de seus integrantes.
54
Fundada em 1908, a Academia ocupava uma posição privilegiada no espaço de produção cultural no
Estado, levando-se em consideração que ainda eram escassas as agências de produção de conhecimento
científico que, nos anos seguintes, viriam a rivalizar com a AML até a fundação da Universidade Federal
do Maranhão (UFMA), garantindo àquela agência de iniciativa privada um lugar de mera consagração
“intelectual” entre escritores aliançados por redes de relações de amizade instrumental e de
autoreferenciamento.
157
João Mohana, no entanto, foi eleito para a AML no dia 4 de abril de 1970,
tomando posse da cadeira n. 3 em agosto do mesmo ano, quando já havia publicado
dezenas de livros. Sobre sua entrada no rol dos “escritores consagrados” do Maranhão,
João Mohana escreveu:
Você não ignora que hoje a Academia se reimpôs à opinião dos maranhenses. Há
dinamismo, intercâmbio entre os acadêmicos, produtividade, estímulo aos valores
intelectuais da comunidade. Antigamente tinha-se a impressão de que ao entrar para a
Academia deveríamos, de tempo em tempo, sacudir do espírito o mofo intelectual. Hoje
não é mais um museu. É uma trincheira da cultura. Candidatei-me agora porque pude
fazer isto com sinceridade. E confesso que senti honra e alegria quando os acadêmicos
vieram à minha residência (...) comunicar-me que eu era agora um deles (Suplemento
Cultural de “O IMPARCIAL”, 1995, p. 5).
O fato que marca o ápice dessa relação, que dá a dimensão das retribuições
simbólicas obtidas por João Mohana por meio da atividade da escrita e o grau de
relações estabelecidas com membros das elites políticas e culturais do Maranhão,
acontece quando da visita do escritor ao então presidente da República José Sarney
(1985-1989), em Brasília, para receber uma honraria – a “medalha Rio Branco” -
158
concedida por suas ações sociais e culturais no Maranhão. Segundo relata Ibrahim
Mohana, “o presidente Sarney telegrafou pedindo que [João Mohana] fosse a Brasília
receber a maior medalha honrosa do Brasil. João telegrafou: Sou pobre, não tenho
dinheiro das passagens. Sarney mandou as passagens” (Entrevista realizada em janeiro
de 2013, em São Luís).
A inserção nestes círculos sociais foi determinante tanto para a afirmação social
da família Mohana – avalizada primeiramente em conjunto com a ascensão econômica
conquistada pelo pai, oriunda de sua atividade comercial – quanto para a consagração
intelectual do escritor João Mohana. Este, por sua vez, associando seu capital cultural às
competências adquiridas através do exercício da escrita, soube converter para dentro do
campo de atuação sacerdotal todos os condicionantes exógenos que incidiram sobre sua
“trajetória”, por assim dizer, da mesma forma que suas ações enquanto padre
reverberavam as influências adquiridas fora do âmbito eclesiástico, exemplificadas na
multiplicidade de temáticas e de domínios frequentados pelo autor na produção e
publicação de seus livros.
55
O Seminário Maior Interdiocesano Nossa Senhora da Conceição, mais conhecido como Seminário de
Viamão, foi inaugurado no dia 14 de março de 1954 na cidade de Porto Alegre (RS). Da leva dos 61
seminaristas que para lá se deslocaram em 28 de fevereiro, antes mesmo da inauguração, João Mohana
estava presente. O Seminário recebia alunos de todas as cidades do Rio Grande do Sul, bem como aqueles
vindos de outros estados. Em Viamão, os seminaristas recebiam ensinamentos de Teologia e Filosofia,
esta ministrada nos mesmos moldes de um curso leigo superior. Segundo informa o site da instituição,
devido à necessidade de que os sacerdotes fossem portadores de títulos e diplomas acadêmicos, o curso
seminarístico de Filosofia foi elevado, em 1956, à categoria de faculdade. As informações podem ser
obtidas no endereço www.seminariomaiordeviamao.com.br.
160
João Mohana tem uma vocação artística e espiritual que eu já reconhecia quando
aprovei sua ida para o Seminário, comprometendo-me, entretanto, de, enquanto fosse
eu arcebispo, jamais impedir, com encargos pastorais diferentes, a vocação específica
com que nasceu.
Vejo com edificação que ele, graças também ao apoio que lhe tem dado o atual
arcebispo de São Luís, vem cumprindo sua missão.
Recordo-me, com alegria, que eu mesmo quase o impeço de trabalhar com toda
liberdade, quando o consultei para entrar para o corpo docente da Faculdade de
Medicina, por mim organizada a caminho da criação da Universidade do
Maranhão.
Ele se recusou e eu senti que estava sendo fiel à sua vocação artística e espiritual, dados
os motivos que alegava com firmeza e confiança (Suplemento Cultural de “O
IMPARCIAL”, 1995, p. 44. Grifo nosso).
Nesse relato, fica evidente ainda o grau de relações que Mohana mantinha com a
hierarquia eclesiástica local, gozando do “apoio” de outro bispo para o “cumprimento
de sua missão” nas áreas da “cultura” e da “espiritualidade”. Consoante a tais relações,
D. Delgado informa ainda sobre a recusa de Mohana em “não entrar para o corpo
docente da Faculdade de Medicina”, em vias de organização rumo à criação da
Universidade do Maranhão, com a alegação de dedicar-se “com firmeza e confiança”
em sua vocação artística e espiritual.
Com efeito, não consta nas fontes consultadas que João Mohana tenha publicado
algum livro durante os anos que passou no Seminário de Viamão. Por conta de seu
modelo de internato, como o é, geralmente, das instituições confessionais que visam,
com isso, garantir maior inculcação do ofício de sacerdote, a dedicação de Mohana à
obtenção da formação sacerdotal foi integral, paralisando todas as suas atividades
“mundanas” e “apostólicas” temporariamente.
O fato literário de maior importância, neste ano maranhense, que ora se inicia, não é
propriamente literário, ou melhor: não se circunscreve apenas à estreita esfera literária,
porque abrange território mais amplo, porque tem um significado mais vasto, que talvez
nós da imprensa, em nosso afã de informar, não tenhamos podido captar em sua
unânime plenitude. Refiro-me à decisão do romancista João Mohana que (...) deixou,
definitivamente, esta vida exterior em que nos debatemos, para seguir em busca d’ “o
outro caminho”, da estrada do seu encontro consigo próprio, que não podemos chamar
de estrada de Damasco, porque Mohana, muito ao contrário de Saulo, parece que já
ouvia, dentro de si, desde seus primeiros passos no mundo, a voz de Deus, a adverti-lo
de que “grande é a messe e poucos são os operários”.
(...) Assim se pode compreender uma legítima vocação para o sacerdócio. É um
homem de personalidade firmada, particular e publicamente, vitorioso em sua
carreira literária, festejado em sua clínica de médico profissional, acatado e
162
querido nos círculos católicos, onde, sobretudo nos últimos tempos, vinha
desenvolvendo uma atividade admirável no setor das artes, quem resolve desligar-se do
convívio dos seus porque “nenhum profeta é aceito em sua terra”, para postar-se diante
do Senhor (ibid., 1995, p. 20. Grifo nosso).
Nos idos de 1963, ao analisar o paralelo existente entre ser médico e ser
sacerdote, João Mohana elaborou a seguinte reflexão:
Costumam dizer que ser médico e padre é ser duas vezes sacerdote. Não penso assim.
Porque não considero a medicina um sacerdócio. É uma profissão sublime. Nada
mais que isso. Sacerdócio só há um. Esse que se interpõe entre os homens e Deus,
entre Deus e os homens. Mas não há dúvida de que a cultura e prática médicas, no
coração de um padre, são um incomensurável equipamento para a bondade
gratuita (Suplemento Cultural de “O IMPARCIAL”, 1995, p. 4, Grifo nosso).
Tal reflexão revela como um padre concebe seu ofício em comparação com a
carreira médica, potencialmente concorrente pelo fato de rivalizar e mesmo contestar o
monopólio da Igreja e do clero sobre o discurso “salvífico” do corpo à luz da fé cristã,
com a peculiaridade de que ambos, médico e sacerdote, são revestidos de um poder
institucional delegado e autorizado que disputam entre si a legitimidade de suas
posições e definição de seus campos de atuação no espaço de concorrência simbólica
(NUNES, 2000, p. 249-250).
Uma evangelização por meio da arte escrita é o que coloca em prática João
Mohana. Para isso, faz uso religioso do conhecimento médico/científico adquirido para
conferir ares de cientificidade e de “solução” objetiva para os problemas reais e sociais
que analisa em seus livros. Nesse sentido, a luta simbólica travada por Mohana no
campo da produção cultural revela as disputas em jogo pela “imposição da definição
legítima não só do religioso, mas também das diferentes maneiras de desempenhar o
papel religioso” (BOURDIEU, 2004, p. 120).
Essa luta pela imposição sobre o que é e o que define a literatura e o valor
literário de um livro, seja ele escrito em qual modalidade for e abordando assuntos
quaisquer, fica ainda mais evidente na seguinte avaliação feita por Mohana, em abril de
1970, quando perguntado se considerava obras literárias todos os seus livros até então
publicados:
Sim. Na medida em que me preocupo com a forma de cada um. Uma obra é literatura se
oferece o que constitui o mundo literário, que é o modo de dizer, a maneira de escrever,
166
o estilo de comunicar próprio do artista das letras. Ora, neste assunto precisamos
superar um velho preconceito que rejeita considerar um livro sobre tema ético
como obra literária, mesmo quando o tema é abordado com talento estilístico,
realizado com autêntica preocupação de forma. O cinema, por exemplo, superou esse
preconceito. Não vejo porque uma obra sobre política, escrita com valor literário,
realizada de modo artístico, não possa ser literatura. Não existe aí um preconceito
de quem institui tal convenção? Há páginas em meu livro “Paz pela oração” que julgo
tão literárias quanto as de meu romance “Maria da tempestade”. (...) Por que, então, só
considerar literatura a ficção? O ensaio de nível literário merece o mesmo
enquadramento, testemunhe ele qualquer setor da vida; qualquer que seja a
mensagem nele apresentada. Parece-me errado aceitar como incompatibilidade da
literatura o que é alergia de literatos. Não vejo porque ideias em roupagem
literária não possam gozar dos mesmos privilégios de estórias ou sentimentos em
idêntica vestimenta. Não importa se são ideias cafonas, como não importa se são
estórias repugnantes. O conteúdo aqui é secundário. Fundamental é a toalete. Na
toalete é que reside o proprium da literatura (Suplemento Cultural de “O
IMPARCIAL”, 1995, p. 5. Grifo nosso).
À medida que percebe que a predileção pelo ensaio, gênero de escrita não
canonizado pelos “literatos” como digna de valorização literária, não lhe rende o mesmo
prestígio conquistado com seus romances entre os “críticos”, Mohana tenta subverter
“as regras da arte” literária, lançando mão de sua posição e de seu capital cultural para
afirmar, em busca da legitimação literária, de que em seus ensaios há páginas
literariamente tão válidas quanto em seus romances.
relativos à esfera da realidade social das pessoas, e não no plano das emoções. Sua
escrita ensaística é voltada para a conversão religiosa e para a disseminação da doutrina
católica. Títulos de obras que abordam a questão do casamento como Ajustamento
conjugal, Casar para crescer, Namoro é isto, e outros que versam sobre temáticas
envolvendo a espiritualidade, tais como Plenitude Humana, Escolhidos de Deus, O
cristão desafiado, dentre muitos outros, exemplificam a análise exposta.
alcançar contando com o grau de amizade que tinha com o arcebispo D. Delgado e o
bom trânsito que desfrutava entre o alto clero local – foram fortalecidos por lógicas de
ajuda mútua e de reciprocidade, onde o laicato esteve sempre “agarrado atentamente ao
báculo do Bispo” e contava com a sua “aprovação e bênção” para desenvolver suas
ações (Suplemento Cultural de “O IMPARCIAL”, 1995, p. 4).
O choque é muito grande para quem leu as três peças acima apreciadas [Abraão e
Sara, Inês e Pedro e Casulo de Pedra] e esta última de João Mohana. Temos agora uma
amostra do chamado “teatro de agressões”, em que o espectador é agredido pela
linguagem, pelo tema, pelo condicionamento psicológico dos personagens. O tema
aproveitado é da mais atual cotidianidade: a luta entre subversivos e autoridades, com
utilização das palavras de Cristo para justificar certas interpretações, tudo dentro
do espírito da mais conhecida “teologia da libertação” (Suplemento Cultural de “O
IMPARCIAL”, 1995, p. 40. Grifo nosso).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso trilhado pela família Brandt, particularmente pelos pais, que não
conseguem garantir uma maior oferta de possibilidades para a continuidade da formação
escolar de todos os filhos, acaba gerando uma “concentração das redes de relações
parentais” em torno de Cláudio Brandt, o primogênito da família que ajuda na formação
escolar e no direcionamento das profissões de cada um de seus irmãos. É através do “tio
Cláudio” que Clodomir consegue entrar e se manter no Seminário e, assim, seguir a sua
“vocação” profissional. É também o tio estabelecido social, econômica e politicamente
quem irá ajudar padre Brandt no desenvolvimento de seus “projetos” sociais,
educacionais, culturais e políticos em sua ação missionária no interior do Maranhão.
175
A escrita, portanto, é acionada por padre Brandt, detentor dos meios de produção
simbólica na cidade, enquanto instrumento de luta, de demarcação de posições e de
tomadas de posicionamentos que aglutinam avanços e recuos, conquistas e perdas de
espaços no jogo do poder. Sua entrada para a esfera político-partidária consubstancia o
grau de envolvimento de um sacerdote na “vida” de uma cidade, onde não apenas o uso
da escrita ganha ares de domínio público, como a própria atividade religiosa tenta se
legitimar através da atividade da política, num espaço de poder pouco institucionalizado
e, por isso mesmo, de forte valorização do capital de relações sociais pessoalizadas dos
agentes e de predominância das heterodoxias vigentes.
domínios sociais ocorre através da imbricação entre relações mediadas pela valorização
do capital escolar institucionalizado (diplomas dos cursos primário e secundário obtidos
em escolas de prestígio social e título acadêmico de Medicina) e do capital social
constituído em termos de ajuda mútua, relações de parentesco e de amizade
instrumental.
ANEXOS
179
ANEXO I
Ensaio: Escritos sem ordem – 1ª Série (1983); Escritos sem ordem – 2ª Série
(1988); Escritos sem ordem – 3ª Série (1990); Escritos sem ordem – 4ª Série (1992);
Escritos sem ordem – 5ª Série (1994); Escritos sem ordem – 6ª Série (1996).
ANEXO II
Teatro: Inês e Pedro (Por causa de Inês) – 2ª ed. Agir; Abraão e Sara – Agir;
Casulo de pedra – Agir; O marido de Conceição Saldanha – Recado; Os
perseguidos – Globo; A paixão de Thomas Mores – Loyola.
Ensaio:
Outros: Como ser um bom pregador – 2ª Ed. Agir; Auto-análise para o êxito
profissional – 4ª Ed. Loyola; Padres e bispos auto-analisados – 2ª Ed. Agir; A
grande música do Maranhão – Agir.
181
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