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“O OFÍCIO DE SACERDOTE”:
mediação cultural, atuação política e produção intelectual de padres no Maranhão
São Luís
2013
2
“O OFÍCIO DE SACERDOTE”:
mediação cultural, atuação política e produção intelectual de padres no Maranhão
São Luís
2013
3
“O OFÍCIO DE SACERDOTE”:
mediação cultural, atuação política e produção intelectual de padres no Maranhão
Aprovada em / /
Banca Examinadora
_________________________________________________
Profª.Drª. Eliana Tavares dos Reis (Orientadora)
Professora e pesquisadora – DESOC e PPGCSO/UFMA
_______________________________________________
Prof. Dr. Igor Gastal Grill
Professor e pesquisador – DESOC e PPGCSO/UFMA
______________________________________________
Prof. Dr. Juarez Lopes
Professor – DESOC/UFMA
5
AGRADECIMENTOS
Por isso, o registro feito nestas maltraçadas linhas em hipótese alguma significa
um ato de predileção por um ou outro nome, apenas a manifestação honrosa àqueles que
se fizeram presentes de uma forma mais intensa para a conclusão deste trabalho.
Por fim, estendo meus agradecimentos a todos e a todas que ajudaram a tornar
mais suaves e prazerosos os passos dados ao longo dessa difícil empreitada,
contribuindo, cada um a seu modo, direta e indiretamente, para que as pedras no meio
do caminho não se constituíssem em barreiras intransponíveis, mas em obstáculos
passíveis de serem ultrapassados, tal como os espinhos que não obnubilam a beleza das
rosas.
8
RESUMO
ABSTRACT
Analyze of the conditions that governed the hybridization of the performance of priests
in Maranhão, in the capital and on the “inside”, particularly in the spheres of religion,
politics and culture, performing roles of cultural mediators and politicians, interpreters
of history and society and spokespersons of collective causes regarded as legitimate.
The study is historical overview and spatial dynamics sociopolitical represented by
Maranhão during the 1950s and 1980s. Therefore, we resorted to the mapping and
cataloging of data and information on the cases investigated in a variety of sources,
especially the query to academic papers, books and texts produced by the priests
examined, libraries belonging to church-related organizations, as well as the websites
and personal blogs. Making use of this material, brought to unveil social powers that
focus on the diversification of the priestly office in Maranhão, taking up writing as a
major instrument of struggle triggered by agents within symbolic competition.
Keywords: Craft priest. Cultural measure. Political action. Intellectual production.
12
LISTA DE QUADROS
SUMÁRIO
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE QUADROS
INTRODUÇÃO.............................................................................................................15
“Intelectuais”, mediação e política: aportes conceituais.................................................24
Obstáculos e procedimentos de pesquisa........................................................................35
Capítulo 1: A REESTRUTURAÇÃO DO ESPAÇO RELIGIOSO E A
DIVERSIFICAÇÃO DA ATIVIDADE SACERDOTAL: apontamentos sócio-
históricos.........................................................................................................................45
INTRODUÇÃO
1
Fruto da graduação em História pela Universidade Estadual do Maranhão, o trabalho analisa os
principais eventos sociopolíticos publicados pelo periódico católico “JORNAL DO MARANHÃO”,
particularmente os fatos conflituosos envolvendo padres e militares, que evidenciaram um
estremecimento nas relações bilaterais entre Igreja e Estado, exigindo da instituição eclesiástica, em
âmbito local, a reformulação de suas estratégias de atuação perante o regime e a adoção de novas práticas
pastorais.
18
pastorais, que implicam numa forma diferente dos sacerdotes de interpretar e atuar na
sociedade, tendo no engajamento militante de padres nessas “lutas sociais” um de seus
principais exemplos, quer na confecção de novas rotas e esferas de atuação sacerdotal,
onde a escrita se constitui num de seus primazes baluartes.
Com isso, entretanto, não se quer atingir aqui a fundamentação teórica adotada
ou seus princípios analíticos, nem redirecionar as abordagens investigativas, mas antes
adequar a proposta bourdiana para contextos “periféricos” como o Maranhão,
reafirmando a sua validade e abrangência enquanto esquema analítico que evidencia a
relevância das especificidades estudadas, num processo de ajustamento das ferramentas
conceituais para distintas localizações geográficas, conforme apontaram Coradini e Reis
(2012). Segundo os autores, a compreensão do que é “política”, por exemplo, deve estar
cimentada nas “lógicas autóctones” dos espaços investigados, e não nas definições por
analogia importadas dos “centros” ocidentais. Ainda que haja um elo consistente de
intermediação entre estes centros e os cientistas sociais de diferentes nacionalidades que
advogam e se apropriam do esquema analítico bourdiano, operacionalizando-o em seus
respectivos países de atuação, faz-se necessário “priorizar o caráter relacional dos
mecanismos de estruturação e hierarquização dos domínios sociais nos limites fluidos
das fronteiras nacionais” (CORADINI; REIS, 2012, p. 13).
são pessoas que se esforçam para manipular as visões de mundo (e, desse modo, para
transformar as práticas) manipulando a estrutura da percepção do mundo (natural e
social), manipulando as palavras, e, através delas, os princípios de construção da
realidade social.
De fato, o uso da escrita por agentes (ou conjunto de agentes) inscritos no espaço
de manipulação simbólica e, por conseguinte, de dominação cultural – onde o acesso à
cultura escolar é amplamente controlado e desigual –, diferentemente de uma percepção
22
Assim, diante dos escassos estudos sobre a atuação de agentes católicos como
mediadores nos domínios da política e da cultura no Maranhão, bem como sobre a
relevância ou não de seu trabalho “intelectual” enquanto produtores culturais,
autorizados pela instituição eclesiástica e legitimados socialmente, de representações do
mundo social sob o olhar da Igreja, e ressalvadas as problemáticas que perpassam a
operacionalização de conceitos importados de “centros” ocidentais para regiões
“periféricas”, conforme já foi apontado, intentou-se articular no presente trabalho as
significativas contribuições das pesquisas já citadas e de outras recentes que sinalizam
para a análise do peso relacional da origem social, do capital escolar, da produção
escrita e de redes de relações mais ou menos privilegiadas na composição de carreiras
de religiosos católicos em diferentes eixos de formação e atuação profissional,
transplantando-se as contribuições destacadas para a esfera religiosa local.
24
disputas pela manutenção do poder se davam entre as velhas e novas forças emergentes,
especialmente concentradas na análise sobre os burocratas de Estado (esfera político-
administrativa), donos de empresas, bancos, etc. (esfera econômica), oficiais de alta
patente das forças armadas, etc. (GRYNSPAN, 1996, 1999; GRILL, 2008).
2
Sobre as contribuições dessa sociologia norte-americana para a atualização das significações do conceito
de “elites” e sua proposta teórica, ver: GRILL, Igor Gastal. Elites, profissionais e lideranças na política:
esboço de uma agenda de pesquisas. In: Ciências Humanas em Revista, v. 4, n. 2, 2008.
26
Vários estudos desenvolvidos por Pierre Bourdieu (2002a, 2002b, 2008, 2010,
2011) e por pesquisadores que circulam nos seus grupos3 ressaltam essa perspectiva de
luta entre dominantes e dominados no campo de poder e de conquista e manutenção dos
meios que garantam tal relação de dominação, da qual o presente trabalho está
embebido, com especial destaque para As regras da arte (2010), onde o sociólogo
analisa os princípios que regem escritores e instituições literárias na elaboração e
manipulação de bens simbólicos. Neste trabalho, Bourdieu retira toda a áurea singular
que recobre os escritores como “geniais”, reconstituindo-lhes os vetores e os
condicionantes que perpassam suas produções, além de analisá-los relacionalmente em
seus espaços de concorrência com outros agentes, explicitando as regras que permitem o
surgimento de “produtores culturais” em diferentes e múltiplos domínios de
manipulação simbólica, não se restringindo apenas aos “literatos”, mas estendendo-se
também à produção de artistas, filósofos, cientistas, políticos, religiosos.
3
Duas coletâneas organizadas por Odaci Luiz Coradini (2008) e outra contando com a colaboração de
Eliana Tavares dos Reis (2012) identificam os pesquisadores que circulam nos grupos de estudos
bourdianos.
27
Por sua vez, as noções elaboradas por Eric Wolf (2003) referentes às relações de
“parentesco”, de “amizade” e de “patrono-cliente” fundamentam as possibilidades de
análise das teias sociais gestadas a partir da “interação dialética entre estruturas formais
e os diferentes tipos de associações informais”. Segundo o autor, muitas vezes, “as
relações sociais informais são responsáveis pelos processos metabólicos necessários
para que se mantenha a instituição formal em operação” (WOLF, 2003, p. 94). Nesse
sentido, ponderar o peso das funções desempenhadas pela família e pelos parentes, pelas
relações de amizade e sua variante “instrumental” e pelas relações “patrono-cliente” é
fundamental para se analisar o grau de importância de laços de “lealdade”, ajuda mútua,
redes de reciprocidade e de auto-consagração entre pares para o direcionamento de
carreiras eclesiais, sedimentação de posições estratégicas no espaço religioso e para a
afirmação política e intelectual de sacerdotes no Maranhão.
28
de seu trabalho intelectual com o reconhecimento social que lhe é conferido, isto é, na
delegação da autoridade de onde provém seu discurso autorizado.
Essa imbricação entre cultura e política, efetuada pelo trabalho de mediação dos
“intelectuais”, obteve como resultado por parte destes um estado de saída da teoria ao
engajamento. Diversos estudos já enfatizaram que a passagem desses agentes do campo
teórico para a práxis social se processou por meio da constituição e diferenciação de
“modelos de intervenção”, espraiados para diferentes domínios e espaços sociais (REIS,
2010; SAPIRO, 2012; SEIDL, 2007b; SIGAL, 2012). Gisèle Sapiro (2012) identifica
algumas modalidades de intervenção dos intelectuais na política4 a partir do exame do
caso francês, levando em conta o capital simbólico, a autonomia em relação às
demandas externas e o grau de especialização dos agentes. Para a autora, “os
intelectuais ocupam uma posição dominada no seio das classes dominantes como
detentores de um capital cultural que se diferenciou do capital econômico com a
institucionalização do sistema escolar” (SAPIRO, 2012, p. 22), tal como ponderou
Coradini (2003) em estudo anterior.
4
Analisados numa perspectiva sócio-histórica e construídos de modo ideal-típico, Sapiro identifica e
esmiúça oito tipos de intervenção política dos intelectuais: o intelectual crítico universalista; o guardião
da ordem moralizador; o grupo intelectual contestador ou a “vanguarda”; o intelectual de instituição ou de
organização política; o especialista consultado pelos dirigentes ou o “expert”; o intelectual crítico
especializado ou o “intelectual específico”; e o grupo contestador especializado ou o “intelectual
coletivo”.
31
distintas regiões geográficas. Isso acaba por revelar que, a nível local, no que tange à
definição de “intelectual”, com sua ramificação católica, não há como se precisar uma
conceituação nestes termos, principalmente levando-se em consideração o fato de
muitos “intelectuais católicos” do Maranhão serem assim identificados através de um
processo de consagração baseado no “auto-reconhecimento” e em relações de
reciprocidade, nascido e fomentado entre seus próprios pares e nos círculos sociais aos
quais pertencem.
5
Sobre a formação do mercado editorial brasileiro e as redes de relações pessoais que definem a
possibilidade de publicação e de pertencimento ao panteão dos literatos no país, obliterando assim a
“genialidade” dos escritores, ver Sorá (2010). Tal perspectiva pode ser apreciada ainda no âmbito das
artes plásticas, através da construção de “epítetos” que glorificam artistas “ilustres” e silenciam
profissionais “anônimas”, presente no trabalho de Simioni (2008).
32
Nesse sentido, cabe realçar aqui a importância de dois estudos centrais para a
elaboração da presente pesquisa. O primeiro deles foi desenvolvido em conjunto por
Eliana dos Reis e Igor Grill (2012), intitulado O que escrever quer dizer na política?
Carreiras políticas e gêneros de produção escrita, onde são analisados os
significados e o peso que a atividade da escrita pode adquirir, mediante o
reconhecimento “intelectual”, na carreira de agentes dedicados profissionalmente ao
trabalho político, apreendendo-se especificamente “as relações entre a diversidade de
gêneros de escrita e as modalidades de atuação privilegiadas por profissionais da
política” (GRILL; REIS, 2012, p. 102).
Tal abordagem não seria aqui possível, contudo, sem a incorporação das
contribuições presentes em diversos estudos desenvolvidos por Ernesto Seidl (2003,
2007a, 2007b, 2009a, 2009b), especialmente no tocante à constituição de intérpretes da
história e da cultura, onde o autor articula as homologias entre carreiras religiosas e
mediação cultural no Rio Grande do Sul, outra importante dimensão analítica
contemplada na composição desta dissertação. Na citada pesquisa, o cientista social
desenvolve uma linha investigativa que analisa a constituição de agentes sociais,
vinculados à Igreja Católica, investidos do papel de “especialistas” ou “intérpretes” da
cultura e da história do Rio Grande do Sul, provenientes dos processos de imigração
alemã e italiana ocorrido na metade do século XX naquela região do país. O
pesquisador destaca ainda que a formação e a afirmação de mediadores culturais
oriundos da Igreja se operam pela “combinação de recursos acumulados
simultaneamente através de carreiras religiosas e acadêmico-intelectuais” (SEIDL,
2007b, p. 79), evidenciando assim o acúmulo de capital necessário para que os agentes
imponham seus princípios de hierarquização e de definição das posições e dos papéis no
espaço religioso em disputa.
Aliás, não são raros os casos de agentes eclesiásticos que acionam dispositivos
de reconhecimento social exógenos à esfera religiosa para legitimarem sua atuação
evangelizadora e ocupar posições relativamente bem alocadas na estrutura interna da
Igreja. Da mesma forma, mas no sentido inverso, não é desconhecido o fato de muitos
padres usufruírem da autoridade delegada pela instituição eclesiástica para intervir no
mundo social. Inúmeros são os sacerdotes atuantes no Maranhão que possuem formação
de nível superior além das tradicionalmente estabelecidas (teologia e filosofia),
destacando-se padres que se formaram e atuaram como médicos, advogados, jornalistas,
psicólogos, historiadores, sociólogos, professores universitários, e que também atuaram
como “intérpretes da história e da cultura” maranhenses, respaldados pelo poder
simbólico da Igreja Católica no estado, ao produzirem obras calcadas nos princípios
científicos do mundo universitário ou nas regras artísticas que entremeiam as produções
literárias, bem como ao se inscreverem em diversos debates públicos locais, ao
ocuparem cargos públicos e exercerem funções administrativas em governos municipais
e estaduais, e ao participarem ativamente nas lutas político-partidárias regionais e na
organização de movimentos sociais e culturais.
Além disso, através da composição dos trajetos dos padres Brandt e Mohana, é
possível conhecer e analisar os condicionantes históricos e sociais que incidem na
reprodução da “vocação” religiosa e na formação de padres no Maranhão, as distintas
motivações que direcionam agentes para a ordenação sacerdotal, bem como as
disposições de clérigos para a produção de interpretações sobre o mundo social, além de
similitudes e discrepâncias, aproximações e distanciamentos entre os feitos de cada um.
Padre Brandt é oriundo de um berço familiar, com raízes alemãs, que encontrou
na Igreja a oportunidade de dar continuidade aos estudos e de seguir uma carreira
religiosa, em detrimento das escassas alternativas que se apresentavam-lhe. Já o
sacerdote Mohana provém de uma família libanesa de forte tradição católica, mas que
só se torna padre depois de já ter obtido uma formação superior e de atuar
profissionalmente como médico, e de ter se consagrado literariamente através de
premiações recebidas por seus escritos. Os dois personagens, além dos troféus sociais
conquistados, ocuparam posições e assumiram posicionamentos que evidenciam
também a diversificação das modalidades de intervenção de “intelectuais católicos” nos
domínios da política e da cultura no Maranhão (não somente militantes de “causas
sociais”), para além das atividades confessionais cotidianas.
38
Mohana”, localizada no centro histórico de São Luís, cujo acesso só foi possível
mediante a satisfação de exigências prévias dos familiares do padre, como a não
concessão de entrevistas e o envio, por escrito, do roteiro de pesquisa para o
levantamento dos dados biográficos.
Cabe ressaltar ainda que, sobre a guarda da memória destes dois padres
específicos, enquanto no Memorial do Padre Brandt todos os livros de sua autoria estão
disponíveis para a venda, salvo raras exceções por esgotamento editorial, na Casa
Mohana não foi permitido o acesso à sua produção livresca, sob o argumento de que
esta está disponível no mercado para a venda, o que implica asseverar que a referida
casa de guarda da memória do padre Mohana não possui acervo disponível para a
comercialização ou mesmo para a consulta local do público interessado. Daí o porquê
da importância da escritora Arlete Nogueira da Cruz Machado para este trabalho, que
gentilmente forneceu ao pesquisador um rico material jornalístico contendo muitas
fotos, dados e informações sobre a vida e a produção intelectual do padre João Mohana.
***
CAPÍTULO 1:
6
No Maranhão, a presença de grupos religiosos protestantes, tais como Anglicanos, Presbiterianos,
Batistas, Pentecostais, dentre outros, data das primeiras décadas do século XIX, com forte incidência já
no início do século XX. Sobre este assunto, ver Santos (2004).
46
No final do século XIX e início do século XX, a Igreja passava por um processo
interno denominado de romanização7 e o Estado brasileiro reorganizava-se sob os
auspícios da República. Dessas transformações políticas e religiosas, que se espraiaram
também para os domínios do “social” e da “cultura”, gestou-se o fim do regime do
Padroado, em cujo bojo estabeleceu-se a separação, em termos político-administrativos,
entre as esferas política e religiosa e a laicização da sociedade brasileira.
7
Conforme aponta Rodrigues (2003, p. 11), entre 1889 e 1922, “a Santa Igreja Católica Apostólica
Romana passava por um processo de centralização do poder em torno da autoridade papal, conhecido por
romanização”, uma espécie de ajustamento das diretrizes doutrinárias produzidas pelo Vaticano, em
Roma.
47
Mas, se por um lado, a ruptura dos laços institucionais com o Estado significou
uma redução de poderes e benefícios, por outro a Igreja pôde gozar de um relativo
aumento de sua autonomia, sobretudo no que concerne à ampliação e estruturação de
seus postos (paróquias e dioceses, a priori), aos princípios de recrutamento e seleção de
seu corpo de agentes e à reformulação e redefinição de sua competência religiosa
(MICELI, 1988; SEIDL, 2003).
É nesse período que ganha força no país, principalmente nas esferas da cultura e
da política, a figura do “intelectual católico” e a valorização da atividade da escrita
como trunfo distintivo da atuação de sacerdotes. A sociogênese desse tipo de agente,
que representa um reordenamento da Igreja perante o mundo social, remete, contudo, ao
início do século XIX, mais precisamente ao ano de 1802, quando é publicado Génie du
christianisme, de François-René de Chateaubriad, autor que propõe uma nova
legitimidade ao catolicismo no campo da literatura. Em contraposição aos “filósofos das
Luzes” e aos princípios da Revolução Francesa de 1789, que colocaram o homem no
centro do universo e desapossaram as obras literárias francesas da metafísica religiosa,
Chateaubriand reaproxima literatura e religião (católica), selando uma aliança entre
ambas e, ao mesmo tempo, se interpondo contra a ascensão do poder científico
(SERRY, 2004, p. 131-132).
Já no final do século XIX, assiste-se a uma “crise” entre clero e laicato que,
dentre outros subprodutos daí provenientes, acaba por criar as condições de valorização
e reconhecimento dos “intelectuais católicos”, não necessariamente “ungidos” pela
ordenação sacerdotal. A partir da atuação de Louis Veuillot, jornalista a serviço de
Roma, se estabelece as “modalidades de um engajamento intelectual leigo em nome do
48
catolicismo”8. Veuillot, que não se ordenou padre, alcança prestígio e poder junto ao
papado de Pio IX, tornando-se “porta-voz” de Roma e estimulando a produção
intelectual de escritores leigos sobre o catolicismo, orientando a opinião do clero,
intervindo nos debates internos da Igreja e servindo de ponte entre a hierarquia
eclesiástica e a “opinião pública” francesa, que adquire nova importância com o
desenvolvimento da imprensa (SERRY, 2004, p. 138).
A partir desse processo de retirada dos clérigos dos debates intelectuais, houve
um aumento no espaço de atuação e de autonomia para os leigos, especialmente para os
escritores, que não mais se encontravam num estado de submissão e obediência estrita
ao clero. Contudo, sua valorização e reconhecimento no campo de produção cultural
tornaram-se possível justamente pelo fato de atuarem e escreverem em defesa da Igreja,
8
Para saber mais sobre as relações entre literatura e religião e a gênese social dos intelectuais católicos,
consultar Literatura e Catolicismo na França (1880-1914): contribuição a uma sociohistória da
crença, de Hervé Serry (2004), que esmiúça as especificidades de cada um desses momentos históricos e
as motivações que levaram à edificação teórica dessas linhas de pensamento católico sobre o “campo
intelectual”, particularmente sobre o domínio das letras e das artes em geral.
49
contra o avanço das ciências e dos fenômenos políticos e sociais que questionavam os
fundamentos de sua autoridade religiosa.
De acordo com Bruneau (1974, p. 28), “até 1930 a Igreja se utilizou de várias
táticas para ser readmitida no que ela considerava ser a posição política que lhe
competia por direito”. Acreditando assim na necessidade de ancorar-se no Estado como
forma de reaver seus privilégios outrora perdidos, a alta hierarquia eclesiástica buscou
aproximar-se dos novos agentes políticos que comandavam a máquina administrativa
brasileira de então, quer pelo estabelecimento de relações de reciprocidade e de
manifestações públicas de apoio mútuo, realização de atividades religiosas e
cerimoniais cívicos em conjunto, ou pela participação de membros da Igreja no
exercício de funções e cargos de competência política e burocrática (BRUNEAU, 1974;
DELLA CAVA, 1975, AZZI, 2008, MICELI, 1988, SEIDL, 2003). Assim, desfrutando
de certa autonomia e estreitando cada vez mais os laços com as elites dirigentes do país,
a Igreja adentra a Era Vargas (1930-1945) gozando do relativo sucesso propiciado pelo
advento da “Neocristandade”9 (BEOZZO, 1986).
9
Conforme define José Oscar Beozzo (1986, p. 322), a Neocristandade era “uma ordem econômica,
social e política sob a direção dos princípios cristãos definidos pela Igreja”, que visava “reconduzir a
sociedade brasileira aos valores morais e culturais do cristianismo católico”. Em outras palavras, tratava-
se da (re)adoção e (re)incorporação de princípios e valores católicos na definição de programas e projetos
50
É no transcurso da década de 1930 que tem início uma disputa pelo controle do
sistema educacional e pela produção cultural no país, onde a Igreja articula e desenvolve
estratégias com vistas a um processo de ideologização do ensino primário e secundário,
assim como o âmbito universitário, o qual Sérgio Miceli (1979, p. 51) chamou de
“enquadramento institucional dos intelectuais”. Em 1935, são criadas a Juventude
Universitária Católica (JUC) e a Ação Universitária Católica como uma tentativa de
circunscrever dentro da esfera de influência religiosa da Igreja as novas lideranças
“intelectuais” do país provenientes das universidades (MAINWARING, 2004; MICELI,
1979).
políticos para o país, propiciada pelo estreitamento dos laços entre membros da hierarquia eclesiástica e
elites dirigentes, durante o período governamental de Getúlio Vargas.
10
A LEC tinha como função congregar o eleitorado católico e selecionar candidatos que se
comprometessem com os princípios sociais da Igreja. O trabalho da Liga consistia no alistamento de
eleitores, na apresentação de propostas aos candidatos e na divulgação via imprensa dos nomes
consignados com tais propostas (NERIS, 2012, p. 43). A título de exemplo de seu relativo sucesso,
muitos projetos elaborados pela LEC foram contemplados na Constituição de 1934 (PACHECO, 1969).
51
Inicialmente, a JUC tinha apenas esse caráter conservador, clerical, voltado para
a “cristianização das futuras elites”. Contudo, após a reorganização da Ação Católica no
Brasil, entre 1946 e 1950, o movimento leigo adquire maior autonomia em relação à
hierarquia eclesiástica passando a ter maior envolvimento nas questões sociais
específicas do mundo dos universitários e se aproximando da chamada “esquerda”
brasileira, chegando a uma “rápida radicalização que a levou a um contundente conflito
com a hierarquia”, assumindo assim uma “responsabilidade explícita pela ação política
como parte de seu compromisso evangélico” (MAINWARING, 2004, p. 84).
Nesse rol de estratégias e ações da Igreja articuladas junto aos setores influentes
da sociedade, particularmente no domínio “intelectual”, destacando-se as relações
institucionais estabelecidas com a imprensa, cabe elencar a instituição do “Dia da Boa
Imprensa”, a fundação da “Associação de Jornalistas Católicos” (1937) e até a
11
Sobre este assunto, consultar Faria; Montenegro (2005), Neris (2011).
53
realização da “Páscoa dos Intelectuais” (NERIS, 2012, p. 45). Merece destaque também
a fundação do periódico “JORNAL DO MARANHÃO”12, o veículo de comunicação
oficial da Igreja Católica no estado, que congregava diversos “intelectuais” (católicos e
não-católicos) na confecção das interpretações da instituição eclesiástica sobre o que
ocorria em âmbito local, nacional e internacional.
12
O periódico chamava-se inicialmente de “CORRESPONDENTE”; depois foi batizado de “O
MARANHÃO”, até receber o nome definitivo de “JORNAL DO MARANHÃO”. Fundado em 1930 pela
Arquidiocese de São Luís, o jornal tornou-se o canal oficial de publicação da visão da Igreja sobre os
acontecimentos no Maranhão, no Brasil e no mundo. Teve suas atividades suspensas no auge da repressão
da “ditadura militar”, em meados da década de 1960, voltando a circular somente em 2009. Para saber
mais sobre esse assunto, ver Melo (2010).
54
Tal concepção, contudo, não envolvia a Igreja como uma unidade compósita.
Pelo contrário, havia disputas internas entre correntes teológicas que divergiam quanto à
aproximação e/ou distanciamento da “doutrina social” preconizada pelo Vaticano.
Ainda segundo Mainwaring (2004, p. 55), enquanto alguns segmentos do clero (os ditos
“tradicionalistas”) reprovavam a aproximação com os movimentos populares por
acreditarem constituírem-se numa “ameaça”, à medida que adquiriam um enfoque “anti-
católico” e questionador da “hierarquia social”, para os “moderados” e “progressistas”
tal aproximação ajudou a fomentar uma nova consciência dos problemas fundamentais
da sociedade brasileira, modificando assim a forma com que muitos líderes eclesiásticos
percebiam a sociedade.
13
O Concílio Vaticano II (1962-1965) “representou para a Igreja do Brasil a oportunidade de reafirmar e
renovar a sua presença na sociedade, empreendendo um percurso de aggiornamento em diversos planos,
na teologia, nas estruturas eclesiais e nas práticas pastorais, para responder e se posicionar diante os
desafios da modernidade” (BONATO, 2009, p. 15). A palavra italiana aggiornamento pode ser traduzida,
em português, como “atualização”, e é nessa perspectiva que o autor a compreende.
56
14
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil foi fundada em 1952 pelo, então, monsenhor Hélder
Câmara, com a aprovação da Secretaria de Estado do Vaticano. O objetivo era instituir uma coordenação
nacional para as dioceses que estavam em plena expansão (GONÇALVES, 2004, p. 50).
15
O Movimento de Educação de Base foi criado pela Igreja Católica em 1961, a partir de encontros de
bispos nordestinos. Utilizando-se do método de alfabetização do pedagogo de orientação marxista, Paulo
Freire, sua proposta estava fincada nas bases de “educar para transformar”, isto é, politizar, conscientizar
e mobilizar socialmente as comunidades alcançadas (ibid).
16
A primeira reunião do episcopado no continente ocorreu em 1959, na cidade do Rio de Janeiro. Na
ocasião, a prioridade dos debates residia nas questões internas da Igreja. Já nesta segunda conferência,
realizada em Medellín, na Colômbia, as discussões giraram em torno dos problemas enfrentados
especificamente pelos povos da América Latina (DELGADO e PASSOS, 2007, p. 113).
57
defensores de uma teologia que prega a “libertação política e religiosa” dos cristãos.
Segundo Boff (2012, p. 34-35), o sujeito histórico dessa libertação deve ser o “povo
oprimido”, a partir da tomada de consciência deste de sua “condição de oprimido”,
consequência direta do “tipo de organização elitista, de acumulação privada, enfim, da
própria estrutura econômico-social do sistema capitalista”.
Leonardo Boff (ibidem) elabora algo que poderia se chamar aqui de a construção
religiosa da dimensão do político, vez que o teólogo estabelece que a fé cristã deva ser a
responsável pelo “despertar” da consciência do povo oprimido que, ao se dar conta das
injustiças, “passa para a compreensão das estruturas reais que produzem as injustiças”.
Concluindo assim que, a partir de tal compreensão, faz-se necessário “mudá-las [as
estruturas] para que não produzam mais o pecado social”.
CAPÍTULO 2:
O objetivo deste capítulo é analisar o perfil social dos catorze casos elencados
através do maior número possível das variáveis disponíveis sobre os agentes católicos
que atuam como mediadores culturais, investindo na produção de bens simbólicos, e
que acionam tais recursos em diferentes momentos de suas trajetórias, a fim de
apreender seus trânsitos, vínculos, relações de reciprocidade, o peso de investimentos
mais ou menos conscientes e os tipos de capital de que dispõem (social, cultural,
político, etc.), enfim, suas amálgamas e distintas interações sociais, cujos registros de
inscrição os colocam numa posição de poder relacionalmente privilegiada no espaço
social mais amplo.
A composição dos quadros a seguir mostra algumas das variáveis tomadas como
ponto de análise e de composição do perfil social de catorze agentes católicos que
apresentam registros de atividade de escrita em suas carreiras religiosas no período
recortado (1950-1980), consubstanciados na publicação de textos em formato de livros.
Parte-se da análise da formação escolar, dos títulos, da atuação profissional, dos
trânsitos e reconhecimentos adquiridos em espaços sociais mais heterônomos, como
esferas de atuação de “letrados” (faculdades, universidades, academias de letras, jornais,
institutos de pesquisa), de participação política e de ação militante, além de dados gerais
sobre as obras (ano de publicação, gêneros de escrita, temáticas, etc.) para se estabelecer
as relações sincrônica e diacrônica entre formação escolar e modalidades de escrita e
entre posição social e produção intelectual no tocante às trajetórias dos padres
investigados, percebendo as representações que elaboram sobre o mundo social, sobre si
mesmos e sobre as “questões” que se dispõem a abordar em seus escritos.
Pontua-se ainda que não foi possível, durante a pesquisa dos dados biográficos,
o levantamento de variáveis como escolaridade e profissão dos pais de todos os agentes,
por dois motivos principais: a) o primeiro pela escassez de dados referentes aos agentes
investigados, cuja apreensão se deu, de forma limitada, pelas informações contidas em
alguns de seus escritos (as raras vezes que os textos tratam da origem social do escritor
referem-se a um aspecto geral de “origem humilde”, porém, não em todos os casos), em
60
Quadro 1
Algumas propriedades sociais dos 14 agentes investigados
Ano de Idade/Ano de
Padre Nacionalidade/Origem Formação superior
Nascimento Ordenação
Eider
1916 33 Brasileiro/Viana-MA Teologia, Filosofia
Furtado
(1949)
Clodomir
Teologia, Filosofia,
Brandt e 1917 26 Brasileiro/Colinas-MA
Humanidades
Silva (1943)
Cônego
Ribamar 1923 21 Brasileiro/Codó-MA Teologia, Filosofia
Carvalho (1944)
Teologia,
Vito Milesi 1931 24 Italiano
Filosofia, Sociologia
(1955)
Cláudio
1937 29 Italiano Teologia, Filosofia
Bergamashi
(1966)
Letras, Teologia,
Victor Filosofia, Sociologia,
1938 26 Canadense
Asselin Direito, Mestrado em
(1964)
Teologia
Josimo
1953 26 Brasileiro/Marabá-PA Teologia, Filosofia
Tavares
(1979)
Com foco nos dados expostos no quadro acima, cujos agentes estão ordenados
conforme o ano de nascimento, de modo crescente, tem-se a exposição das principais
características dos perfis sociais que ajudam a construir, comparativamente, um perfil
mais geral de padres que escrevem. Através de tais dados, intenta-se estabelecer uma
correlação entre o volume de recursos acumulados e a lógica operada na definição
62
detrimento de suas ações, redigiu seu “testamento espiritual”, onde assevera suas
convicções política e religiosa:
Tenho que assumir. Agora estou empenhado na luta pela causa dos pobres lavradores
indefesos, povo oprimido nas garras dos latifúndios. Se eu me calar, quem os
defenderá? Quem lutará a seu favor? [...] Eu pelo menos nada tenho a perder. Não tenho
mulher, filhos e nem riqueza sequer... Só tenho pena de uma coisa: de minha mãe, que
só tem a mim, e não mais ninguém por ela. Pobre. Viúva. Mas vocês ficam aí e cuidarão
dela. Nem o medo me detém. É hora de assumir. Morro por uma justa causa. Agora
quero que vocês entendam o seguinte: tudo isto que está acontecendo é uma
consequência lógica resultante do meu trabalho, na luta e defesa dos pobres, em prol do
Evangelho que me levou a assumir até as últimas consequências. A minha vida nada
vale em vista da morte de tantos pais lavradores assassinados, violentados, despejados
de suas terras. Deixando mulheres e filhos abandonados, sem carinho, sem pão e sem
lar. (TAVARES, apud COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, 1986, p. 17-18. Grifo
nosso).
Isso não justifica, contudo, a ausência de algum estrangeiro na escolha dos casos
específicos. Nesse aspecto, a inclusão de padres de diferentes nacionalidades implicaria
a observação de outras dimensões de análise, por ora não contempladas no presente
estudo, principalmente no que se refere à importação de “ideias vindas de fora” e à
circulação internacional dos agentes, como no trabalho desenvolvido por Seidl (2007b).
Ainda assim, no caso dos padres estrangeiros (7) que se encaixam nesta
formação escolar híbrida, 3 são italianos, 1 canadense, 1 francês, 1 português e 1 belga.
Deste montante, predomina a formação em Sociologia (3), seguida pelo Direito (2),
História (2) e Letras (1). A predominância de tais cursos é reveladora das definições do
processo de aquisição de disposições em torno das modalidades de engajamento dos
padres estrangeiros com formação multifacetada. Não por acaso, os agentes que
apresentam em seus registros biográficos participação em espaços de atuação mais
próximos de um perfil militante, como veremos mais adiante, possuem predominância
de formação na área das ciências sociais e do Direito.
67
Nesse sentido, os dados sobre a formação escolar dos casos elencados oferecem
pistas significativas sobre o tipo de perfil de agentes que se dedicam em algum
momento à atividade de escrita, indissociavelmente conectados às posições que ocupam
e às causas que defendem. São estes casos que, mais à frente, participam da organização
de atividades concernentes ao âmbito de ação de instituições vinculadas à Igreja, onde a
defesa de “causas sociais” se constitui em pauta legítima de reivindicação no repertório
de mobilização tanto dos sacerdotes e leigos quanto da própria Igreja.
Quadro 2
Dados sobre a atuação profissional e a participação em distintos espaços de
socialização e de intervenção dos 14 casos investigados
17
O Seminário diocesano de Santo Antônio foi fundado em 1838, durante o bispado de D. Marcos
Antonio de Sousa (1827-1842). O Seminário tinha por função iniciar os futuros padres recrutados junto às
elites maranhenses nos estudos da fé e da doutrina cristã, ofertando-lhes uma formação educacional
religiosa, moral e literária (SILVA, 2012, p. 155). Com o tempo, tornou-se o único Seminário no
Maranhão dedicado exclusivamente à formação do sacerdócio (PACHECO, 1969).
71
No Maranhão, isso não foi diferente. Mesmo após a laicização promovida pelo
advento da República, a Igreja continuou disputando o controle ideológico do ensino
junto ao Estado. A partir da década de 1930, as disputas se arrefecem quando são
criadas, em âmbito local, a Juventude Universitária Católica e a Ação Universitária
Católica, que a nível nacional estavam direcionadas para o recrutamento das futuras
elites representadas pelos universitários (RIDENTI, 2002). A nível regional, este
processo acabou desembocando na fundação da Universidade Federal do Maranhão,
onde se registrou a participação efetiva de membros da hierarquia eclesiástica que
comandavam a Arquidiocese de São Luís e dos “literatos” que integravam a Academia
Maranhense de Letras (FARIA; MONTENEGRO, 2005, p. 18-19).
Cabe destacar ainda que outras profissões que apresentam alguma recorrência
entre os casos arrolados são a de jornalista (3/14) e a de advogado (2/14). Há uma ampla
gama de textos produzidos por aqueles que atuam no âmbito do jornalismo maranhense,
publicados em diversos jornais de significativa circulação no estado, aspecto não
contemplado no presente estudo devido às dificuldades de sua localização, porém
passível de ser salientado para a mobilização de investimentos em pesquisas futuras. Já
no caso dos dois padres advogados, suas atuações profissionais estão diretamente
ligadas às instâncias onde registram presença frequente, particularmente na Comissão
Pastoral da Terra, entidade vinculada à Igreja Católica no Maranhão, atuando no âmbito
do Direito do Trabalho, do Direito Agrário e do Direito Penal.
e a se candidatar, por duas vezes, para a disputa pelo cargo de Prefeito de Arari, tendo
sido derrotado em ambas.
No tocante aos clérigos que tiveram suas funções identificadas apenas no âmbito
confessional, destaca-se o registro de sua participação como “militantes” em
associações de moradores e comunidades eclesiais de base, e que fizeram de seu ofício
sacerdotal o sentido maior de suas vidas. Sua experiência profissional, no entanto, é
registrada apenas no âmbito das instituições engajadas da Igreja, com destaque para a
CPT18. Os dois casos foram coordenadores da instituição em Goiás (1979) e no
Maranhão (1982). São eles, respectivamente, os padres Josimo Tavares e Cláudio
Bergamashi. Observa-se ainda que nenhum dos dois possui registro de inscrição em
instâncias de consagração intelectual, nem universitária e nem de “letrados”, o que não
impede que sejam percebidos e se percebam como tal.
18
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi instituída no Maranhão em 1975 como parte de “um intenso
programa de ação social junto às populações rurais”, iniciado por D. José de Medeiros Delgado, então
Arcebispo de São Luís. Dentre os principais objetivos da CPT no Maranhão, destaca-se a tentativa da
Igreja de fazer frente ao crescimento dos conflitos no campo, promovendo assim a organização dos
trabalhadores rurais na condução de suas lutas pela conquista de direitos sociais (ALMEIDA, 1981;
COSTA, 1994).
74
19
O surgimento da JAC, JEC, JIC, JOC e JUC é um esforço da Ação Católica Brasileira em promover a
renovação das práticas pastorais na Igreja, com foco especial nos movimentos de juventude, numa
tentativa de cooptar futuros quadros e líderes católicos junto a setores específicos da sociedade. Conforme
assinala Salem (1981, p. 22), “o primeiro grupo ‘especializado’ que se constitui é a Juventude Operária
Católica (JOC). Em 1950, funda-se a JAC (Juventude Agrária), a JEC (Juventude Estudantil, composta
por estudantes secundaristas), JUC (Juventude Universitária) e JIC (Juventude Independente), agrupando
os que não se encaixavam nas outras categorias”.
75
Não se pode negar que o ato de escrever implica numa distinção do autor em
relação aos demais indivíduos, pois ainda ocupa uma “posição de excelência” dentro
das sociedades de letrados. Seja como for, quem escreve não apenas registra seu nome e
suas ações na história, mas também demarca sua posição de poder perante os demais
agentes. De um modo geral, aqueles que atuam como mediadores culturais
consubstanciam suas posições, disposições e posicionamentos na publicação de textos,
especialmente de livros, legitimando assim a manutenção do próprio papel social que
assumem em diferentes momentos e domínios.
Com foco nesta perspectiva, passa-se à identificação dos gêneros de escrita aos
quais os agentes dedicaram-se com maior incidência, numa tentativa de correlacioná-los
às posições que ocuparam ao longo de seus trajetos de vida. O objetivo é demonstrar
que o grau de concentração dos escritos e das temáticas abordadas está
irremediavelmente conectado aos recursos acumulados (saberes, habilidades,
conhecimento) e às experiências vividas (cargos, atividades, funções, profissões).
Em face a tais descrições, talhadas com fulcro numa primeira leitura sobre os
dados e registros das publicações mapeadas, procedeu-se à confecção do Quadro 3
baseado nos tipos de escritos que aparecem com maior recorrência, agrupados e
classificados da seguinte forma: religiosidade (textos teológicos e doutrinários, que
versem sobre orações, salmos, exaltação à fé cristã, espiritualidade); generalista (artigos
jornalísticos, escritos de militância, “visões” de mundos obre a história, a cultura, a
política, a sociedade, comportamento, família, casamento, sexualidade, etc.); literários
(romances, peças de teatro, contos, crônicas e poesias); além dos textos memorialísticos,
incluindo-se as autobiografias. Os demais livros não inclusos nesta taxonomia, devido
às poucas recorrências evidenciadas, foram listados como “não-classificados”.
Quadro 3
Distribuição de livros por gêneros de escrita referente aos 14 casos investigados
Não-
Religiosidade Generalista Literatura Memórias TOTAL
classificado
13 14 8 1 1 37
- 8 5 - 13 26
6 3 5 1 - 15
1 3 2 2 1 9
- 1 - - - 1
1 - - - - 1
- - - 1 - 1
- 1 - - - 1
- - 1 - - 1
- 1 - - - 1
- 3 - 1 3 7
- 1 - - - 1
- 3 - - 4 7
7 - 3 - - 10
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.
79
Quadro 4
Frequência das modalidades de escrita
Gêneros Quantidade %
Religiosidade 28 23,7
Generalista 38 32,2
Literatura 24 20,3
Memórias 6 5,08
Não-classificados 22 18,6
Total 118 100%
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.
80
A ordenação por gêneros das obras catalogadas revela uma variedade de usos da
escrita em seus diferentes formatos e as estratégias ativadas através dos recursos
disponíveis de cada agente para legitimação de seus textos. Observa-se, assim, que dos
14 casos investigados há uma incidência de 38 títulos (32,2%) publicados dentro da
classificação de textos generalistas, isto é, textos escritos sobre diversas áreas e
assuntos. A categoria de publicações religiosas registra frequência de 28 casos (23,7%).
24 registros (20,3%) são de textos literários e apenas 6 casos (5,08%) tratam-se de
memórias e autobiografias. Dos livros não inseridos em nenhuma dessas classificações,
constam 22 títulos (18,6%).
Por outro lado, percebe-se que mesmo diante da prevalência de escritos mais
gerais, assuntos da esfera religiosa ocupam o segundo lugar com uma diferença não tão
ampla assim (apenas 8,5%). Ocorre ainda que o gênero religiosidade também ocupa
uma posição de proximidade com o gênero literário, havendo assim um certo
paralelismo entre investimentos feitos pelos agentes clericais em escritos de vertente
mais religiosa e literária, ambos correspondendo a 23,7% e 20,3%, respectivamente.
Dos casos analisados, pontua-se ainda uma tendência na redução de textos
memorialísticos, que registraram o percentual de 5,08%.
Quadro 5
Distribuição dos livros por décadas
Décadas Quantidade
1950 1
1960 6
1970 9
1980 15
1990 13
2000 6
Fonte: Dados coletados de fontes diversas.
O ápice dos escritos aparece na década de 1980, com 15 títulos registrados, sinal
de que o processo de reabertura política entra em cena, promovendo a ampliação do
acesso a editoras e a novas publicações. Um dado curioso, contudo, e por isso mesmo, é
que quando se poderia supor um acréscimo na quantidade de livros publicados entre as
décadas de 1990 e 2000, precisamente por conta da abertura e do acesso a espaços de
82
Conforme se verá nos casos específicos dos padres Clodomir Brandt e João
Mohana, nos capítulos seguintes, os usos sociais da escrita por sacerdotes maranhenses
são exemplos distintivos dos poderes simbólicos que incidem sobre a produção de livros
de “intelectuais católicos”, acionada como trunfo não apenas para demarcar posições e
adotar posicionamentos, mas efetivamente como trincheira de luta pela imposição de
representações “legítimas” sobre o mundo social. Tanto Brandt quanto Mohana, cada
um a seu modo e com as especificidades das dinâmicas de concorrência às quais
estavam enredados, quer seja na capital ou no interior do Maranhão, representam a
importância creditada ao papel de mediadores católicos nas esferas da cultura e da
política, cujas atuações revelam as fluidas fronteiras entre esses diferentes domínios e as
bases de legitimação de “intérpretes” e “porta-vozes” dos problemas sociais, sob a
chancela da Igreja.
84
CAPÍTULO 3:
Além disso, registra em seu trajeto a autoria de vinte e seis livros, a maioria
publicada de forma independente por sua própria editora (Editora Notícias de Arari),
sendo um dos mais produtivos clérigos da Igreja no tocante à produção “intelectual”.
Seus escritos, além de refletirem a síntese de seus pensamentos e concepções sobre o
mundo social, externalizam seus ideais, “projetos” de sociedade, visão política,
habilidades literárias, enfim, uma gama de competências e saberes que remetem a uma
forte hibridização de sua atuação, para além do âmbito confessional, e apontam para o
grau de heteronomização entre os diferentes domínios sociais, particularmente entre as
esferas política, cultural e religiosa.
Dentre as fontes utilizadas para a confecção deste capítulo, estão alguns livros
escritos pelo próprio padre Brant, que fornecem inúmeros dados e informações sobre
sua origem familiar e o percurso que trilhou até chegar ao exercício do sacerdócio e aos
fatos daí decorrentes, principalmente no livro A família Brandt, onde produz uma
narrativa memorialística de “glorificação” de sua própria história e a de seus familiares.
20
Segundo definição apresentada por Bourdieu (2004, p. 81), a noção de trajetória é cunhada como “uma
série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo), em um espaço
ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes. Tal noção é construída criticamente em
relação à ideia de “narrativa histórica”, que produz uma “ilusão biográfica” do agente pesquisado ao
abordá-lo como um ponto fixo e imutável que tem sua história de vida contada com início, meio e fim,
cuja única constância é a nominação, isto é, o nome que identifica a pessoa no decurso do tempo.
85
Com efeito, a escolha de Clodomir Brandt pela vida sacerdotal parece ter sido
motivada e condicionada pelas precárias condições de existência de seus pais,
constituindo-se para ele uma das escassas oportunidades de vencer as dificuldades
materiais de sua família e adquirir uma formação e seguir a carreira religiosa, que ainda
gozava de algum prestígio social, para a qual a influência e o apoio de seu tio Cláudio
foram decisivos em sua formatação e concretização.
89
21
Consagrado na historiografia como o evento que marca o fim do período conhecido como “República
Velha” (1889-1930), a Revolução de 1930 significou, em termos gerais, a ascensão da classe industrial ao
poder político no país através do movimento tenentista. No entanto, tal definição é bastante criticada
pelos novos estudos e abordagens sobre o tema. Para saber mais, ver Fausto (1997).
90
Rua da Horta, no Centro, que passaram a ser sua principal fonte de renda. Em junho de
1939, foi nomeado conselheiro e vice-presidente do Departamento Administrativo do
Estado pelo Interventor Federal Paulo Martins de Sousa Ramos, com quem manteve
estreitas relações de amizade e de colaboração durante todo seu governo
intervencionista. Em março de 1941, decide pedir exoneração do cargo para assumir o
posto de Diretor-Presidente do Banco do Estado do Maranhão (antigo BEM, já extinto),
onde permaneceu por 10 anos.
Sua destacada atuação no BEM despertou ainda mais os olhos da Igreja para si.
A convite de D. José de Medeiros Delgado, Arcebispo Metropolitano de São Luís, de
quem era amigo e colaborador, após sua renúncia ao cargo bancário em decorrência do
pedido de demissão de Paulo Ramos ao presidente Getúlio Vargas, em março de 1951,
Cláudio Brandt aceitou ocupar a função de diretor da recém-criada Cooperativa Banco
Rural do Maranhão, uma instituição financeira de crédito popular administrada pela
Igreja Católica. Depois disso, assumiu a função de Tesoureiro da Santa Casa de
Misericórdia de São Luís e de Delegado Regional do Instituto de Aposentadoria e
Pensões da Estiva Transportes e Cargas (IAPETC). Cláudio foi ainda um dos
responsáveis pela organização e fundação do Partido Trabalhista Brasileiro no
Maranhão (PTB/MA), onde atuou em parceria com seu estimado amigo, o interventor
Paulo Ramos. Cláudio Brandt faleceu no Rio de Janeiro, no dia 19 de junho de 1968,
aos 78 anos de idade, vítima de um edema pulmonar.
22
Sobre este assunto, ver SILVA, Clodomir Brand e. A Família Brandt. Arari: Editora Notícias de Arari,
1993, p. 61-73.
91
Além do mais, pesa sobre o papel assumido por Cláudio Brandt, adquirido pela
prosperidade econômica, pelos destacados cargos políticos e funções administrativas
que desempenhou e pelas redes de relações que teceu e expandiu, a tendência de
manutenção de uma pretensa “reputação” familiar (WOLF, 2003, p. 100). Tal
perspectiva está identificada nos juízos de valores e nas ações da família sobre o
“destino” de alguns entes, seja no “desgosto” dos parentes pelo casamento da irmã
Carolina com um homem “muito preto e pobre”, na “desordem emocional e psíquica”
de um dos irmãos de Clodomir, o único que viveu uma “vida desajustada” e cheia de
problemas, segundo relato do próprio padre Brandt (SILVA, 1993, p. 64-67) ou na
tentativa de Cláudio de oferecer melhores condições de educação e de emprego para
todos os seus sobrinhos, os futuros responsáveis pela perpetuação do nome da “família
Brandt” na história da cidade de Arari.
Aquele centro de ensino religioso imprimiu, com certeza, uma marca de acentuado
dinamismo naqueles jovens reclusos, notadamente em Clodomir, sagaz e especulativo,
adquirente de uma sólida base intelectual, destacando-se em várias matérias –
português, francês, retórica e redação (exercitada esta última ao fundar e redigir o jornal
de uso interno “A CRUZADA”), sem se descurar dos livros pertinentes à cultura geral.
Com efeito, a vida no seminário tinha por função não apenas garantir a
ordenação sacerdotal e a reprodução dos quadros clericais da Igreja, mas também
contribuir para a formação cultural daqueles que deveriam ser, além de “ministros
ilustrados”, “cidadãos habilitados para administrar os negócios públicos”. Pode-se
observar que esta tendência de intervenção sacerdotal na esfera pública, cunhada legal e
institucionalmente ainda no século XIX, reverbera no século seguinte e torna-se mais
evidente no caso em questão, quando, já com nove anos de seminário, Clodomir Brandt
assim se manifesta sobre uma campanha de arrecadação de fundos, que ele mesmo
dirigia, para a manutenção do estabelecimento vocacional situado em São Luís:
Se não houver recursos para sustentar o Seminário, não haverá um clero atuante, sadio e
santo para estender sua ação evangelizadora cada vez mais longe, indo às fábricas
levar o conforto religioso ao tugúrio do pobre para consolá-lo e santificar-lhe a
humildade, indo ao palácio do rico cheio de luzes e sons, indo em busca das crianças e
dos jovens, e pelo sertão longínquo buscar almas e trazê-las para a redenção
(FERNANDES, 2012, p. 33. Grifo nosso).
23
Conforme o define Matonti e Poupeau (2006, p. 130), trata-se de um tipo de capital incorporado sob a
forma de técnicas e de disposições a agir e a intervir, abrangendo um conjunto de saberes (teóricos e
práticos) “mobilizáveis no momento das ações coletivas, das lutas inter ou intrapartidárias, mas também
exportáveis, passíveis de conversão para outros universos, e, assim, suscetíveis de facilitar certas
reconversões”.
94
Caxias, Buriti Bravo, Passagem Franca e Colinas, onde celebrou a primeira missa
cantada do Maranhão, denominada de “Missa Nova” (FERNANDES, 2012, p. 45).
- Foi bom você ter vindo hoje aqui. Precisava mesmo falar com você, para lhe
comunicar que não vais mais para Cururupu. Deixei de novo lá o padre Papp. Dom Luiz
pediu-me para ceder-lhe novamente. Caso queira, está dada a permissão. Ele alega que
você é filho de Colinas...
- Dom Carlos, não quero mais ir para Caxias. Gostaria de ir trabalhar numa paróquia do
interior.
- Está certo. Eu só lhe ofereci essa oportunidade de ir trabalhar com Dom Luiz porque
pensei que isso era de seu agrado. Mas a sua diocese é aqui.
O chefe da Igreja maranhense entrou no seu gabinete e trouxe um papel na mão,
retomando a conversa com o padre.
- Aqui está a relação das paróquias vagas da Arquidiocese. Escolha entre essas
paróquias uma para nela ir trabalhar.
- Mas, senhor arcebispo, vossa Excelência é quem deve fazer a indicação da paróquia e
eu aceitarei. Ordenei-me para padre para obedecer.
- É, mas eu não costumo fazer assim com meus padres. No entanto, como você alegou a
obediência, eu ordeno que escolha.
O padre não teve mais argumento, nem alternativa. Começou a ler o listão de paróquias
vagas, algumas localizadas em cidades que estavam em pleno desenvolvimento. E logo,
sem muito pensar:
- Senhor arcebispo, escolho Arari.
- Arari, não! Escolha outra. Há várias paróquias boas vagas. Arari, não!
- Então, agora, vossa Excelência indica. Já obedeci escolhendo Arari.
96
- Mas Arari não serve para você. No entanto, vamos fazer uma coisa: você tem três dias
para pensar. Vá e volte daqui a três dias. Há uma pessoa que pode ajudar-lhe. É o padre
Pedro Verneullen, a quem você conhece. Fale com ele. É experiente e já passou dias em
Arari (SILVA, 1996, p. 26-28).
24
Existem quatro hipóteses que sustentam a origem do nome da cidade de Arari. A primeira se trata de
uma suposta predominância na região do Médio Mearim de um tipo raro de “araris”, araras vermelhas
com tons amarelados. A segunda hipótese gira também em torno da designação de uma espécie de arara,
porém relativa à sua baixa estatura, onde “arari” significaria “pequena arara”. A terceira versão trata da
denominação dada a certo tipo de árvore de terra firme e à tinta vermelha extraída de sua casca. Já a
quarta hipótese refere-se ao tipo de sardinha de bastante abundância nas barrancas do rio Mearim, versão
mais aceita entre os historiadores precisamente pelo fato da cidade ter nascido às margens do famoso rio e
ter na pesca uma das suas principais atividades econômicas (BATALHA, 2011, p. 51-52). É interessante
observar, no entanto, que as diversas versões sobre a origem de Arari refletem, em última instância, o
grau da disputa travada em torno dos princípios de legitimação e de imposição de uma “versão oficial”
sobre a história e a memória da cidade.
25
Para o sacerdote, a designação “Arari” teria sido originada de um diálogo entre um marinheiro e um
dono de embarcação, que teria de ancorá-la num lugar chamado “arariba” quando a maré fosse vazante.
97
Em relato do padre Pedro Verneullen, que estivera na cidade dois anos antes da
chegada do padre Brandt, em 1944, tendo sido o maior influenciador sobre a decisão de
nosso personagem em fixar-se na região – o qual não deixou nada escrito que contivesse
maiores detalhes sobre sua chegada ao local –, é possível observar alguns aspectos
específicos sobre a vida social, cultural e religiosa de Arari, além de colhermos as
Nas palavras do padre Brandt, “de arariba para Arari, a transformação não foi difícil. A lei do menor
esforço, que é uma economia fisiológica na pronúncia das palavras, iria produzir a transformação
metaplástica do vocabulário, pela perda da sílaba ‘ba’” (SILVA, 1985, p. 19).
26
Sobre as disputas territoriais entre as elites políticas e rurais em virtude da redefinição dos limites
municipais decretados pelo interventor Paulo Ramos, ver Batalha (2011, p. 40-46).
98
Viajando através dos campos enxutos, sob o sol causticante de meio-dia, cheguei ao
Arari pela Trizidela. À primeira vista, julguei que fosse um desses pequenos povoados
que já vira à beira do Itapecuru e do Pindaré. Só a largura do rio me impressionou. No
porto, não havia, naquela hora, nem lancha nem batelão. Na rua também não havia
ninguém. “Será – pensava comigo mesmo – que o padre Eliud me mandou enterrar
algum defunto morto?” Boa parte dessa primeira impressão foi devido ao meu estado
físico naquela hora: cheguei estropiado pela viagem, encandeado pelo sol do campo,
com a cabeça em fogo, vermelha que parecia lavada em sangue. No dia seguinte (...),
pude corrigir essas impressões. Logo vi uma igreja nova em construção! Havia,
portanto, vida nova nesse lugar: é um povo que quer ressurgir. Fui chamado logo no dia
seguinte para fazer uma confissão em Perimirim. Fui a pé. Vi ruas e mais ruas, cortadas
por travessas em direção ao campo. Para mim, era uma revelação. Para o povo parece
que também foi uma novidade, a julgar pelo furioso latido dos cães e pelo choro
espantado das crianças. Certamente, nunca tinham visto um padre de perto,
atravessando as ruas (FERNANDES, 2012, p. 57-58. Grifo nosso).
O que não fica claro na descrição do padre europeu é quem era o responsável
pela construção da igreja e de onde o povo iria “ressurgir”, uma vez que a constatação
de uma nova edificação eclesiástica implica, minimamente, um certo grau de
organização religiosa presente no seio da população de Arari antes mesmo da chegada
do missionário holandês e, posteriormente, do padre Brandt.
à cidade por meio da realização dos cultos da Assembleia de Deus. Nesse ano, já
existem em Arari dez templos religiosos, de maioria católica (ibid., 2011, p. 129).
(...) Fazia cada dia um passeio de manhã e à tarde; queria ouvir e ver. Passando pelas
ruas, notava a ausência de homens: explicaram-me que a maior parte da população
masculina ia campear ou era de embarcadiços. (...) Apesar das ausências prolongadas
dos pais, as famílias são numerosas e muito unidas. Cada chegada de lancha é uma
alegria para as famílias e para as casas de negócio, porque as provisões de boca para as
tripulações e os passageiros são renovadas em Arari, sobretudo o pão e a carne. (...) A
demora das lanchas torna possível o intercâmbio de outros produtos: chapéus de palha,
redes de dormir, artefatos de couro, todos de indústria caseira.
A população de Arari é muito laboriosa. As casas, em geral, trepadas em estacas (por
causa das inundações periódicas), são amplas e bem arejadas. (...) Ninguém fica ocioso.
Os homens estão ocupados no conserto de arreios para os cavalos, ou na confecção de
tarrafas para as próximas pescarias. As moças fazem chapéus, costuram ou fazem redes;
algumas mais adiantadas ensinam as primeiras letras a uma dúzia de crianças. (...)
Graças a tal operosidade, não há pobres miseráveis no lugar. Os que precisam de
assistência recebem-na de boa vontade na casa das famílias vizinhas. Infelizmente, não
há médico. (...) Os marítimos em geral mandam os seus doentes em casos mais graves
para a cidade de São Luís, porque há sempre transporte nas lanchas (FERNANDES,
2012, p. 59-60).
Para alcançar tal intento, a ADC dividia-se em quatro secretarias que tratavam
especificamente dos temas arrolados: secretarias de educação, de catequese, de cultura e
de assistência, tendo como diretor-geral o padre Brandt. Sob os cuidados da Secretaria
de Educação, ficaram o Instituto Nossa Senhora das Graças e a Fornecedora
Educacional, depois transformada em livraria; a Secretaria de Cultura destinava-se à
realização de encontros, palestras, conferências, encenação de peças teatrais,
desenvolvimento de um coral religioso e fundação de um “Boletim Paroquial”, que só
viria a circular na cidade em 1946, produzido e impresso primeiramente em São Luís e,
a partir de 1953, em Arari; a Secretaria de Catequese cuidava dos centros de catecismo,
mantinha os catequistas e vendia livros religiosos a domicílio; e a Secretaria de
Assistência dedicava-se a ações caritativas, especialmente na Páscoa e no Natal, além de
cuidar da educação de “crianças carentes”. Anos mais tarde, em meados da década de
1960, assim se expressava padre Brandt sobre a instituição filantrópica de orientação
católica: “A ADC, na verdade, quer atingir todas as manifestações da vida humana e
para isso foi organizada com estatuto de caráter polivalente” (FERNANDES, 2012, p.
84).
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uma das metas da ADC foi a de financiar os estudos de jovens inteligentes cujas
famílias não pudessem mantê-los estudando até o curso superior. Objetivava o
propósito de formar um médico, um advogado e uma assistente social mediante o
compromisso destes, depois de graduados, trabalharem para a comunidade arariense, em
parceria com a ADC. Pretendia, ainda, por meio de ajuda financeira, facilitar o acesso a
alguns vocacionados para o mister sacerdotal (Grifo nosso).
Ainda assim, e talvez por isso mesmo, ou seja, pelas dificuldades em se garantir
a reprodução de uma classe de agentes voltados para o trabalho da ADC e da Igreja,
padre Brandt deu continuidade ao seu “projeto desenvolvimentista” da cidade. Em 15 de
março de 1947, com recursos oriundos das ações da entidade caritativa, é inaugurado o
Instituto Bom Jesus dos Aflitos, destinado exclusivamente para estudantes do sexo
feminino, a fim de se contrabalançar o peso educacional do Instituto Nossa Senhora das
Graças, escola destinada apenas para o público masculino.
Logo no prólogo de sua conferência, padre Brandt expõe, com nítida firmeza de
posicionamento, que discutir arte e catolicismo e a legitimidade de uma crítica literária
de cunho religioso é de “sumo interesse para os intelectuais católicos” e “nenhum deles
pode fugir ao problema”.
(...) Como sacerdote e representante da Igreja, Mãe de todas as culturas, não me ficava
bem ausentar-me de movimento tão belo, símbolo e prenúncio de uma nova era que se
inicia para esta terra a que já estamos vinculados por fortes e indestrutíveis laços de
amizade.
(...) Aqui, pois, estou para convosco compartilhar desses momentos de fino e deleitoso
discretear sobre arte e sobre cultura.
Propus-me, então, com certa ousadia, fazer um trabalho sobre a crítica literária e os
católicos, ou melhor, examinar se há alguma divergência ou incompatibilidade
entre o espirito católico, com seus dogmas e sua intransigência, e a legítima e boa
crítica literária.
O problema é de indiscutível complexidade e requer, de quem o enfrenta, qualidades
superiores de inteligência e de cultura que me são escassas.
Nem por isso, porém, julguei-me com direito a omitir-me em assunto de tanta
relevância e tão indispensável nos tempos de hoje (...). Cremos que há somente um
norte a seguir, na bússola do mundo, e é a reorganização de tudo em bases filosóficas,
mas filosóficas no legítimo sentido, isto é, no sentido cristão (...).
Não é a primeira vez que se equaciona o problema que motiva nossa palestra, nem tão
pouco sou o primeiro ou o último a procurar sua solução. Outros de mais cultura, e,
portanto, de mais equilíbrio em seus conhecimentos, já o estudaram e deram suas
respostas, que vão desde o afirmar a impossibilidade de uma crítica verdadeira feita por
católicos, até ao extremo oposto, de dizer-se ser a única a realmente poder considerar-se
como legítima e também a única em condições de aferir o valor das obras de arte.
Muitos também virão depois, e cada um irá colocando suas vigorosas inteligências a
serviço da causa que não deixa de ser de sumo interesse para os intelectuais católicos.
O assunto tem sido na realidade uma preocupação dos escritores católicos e
nenhum deles pode fugir ao problema.
(...) Os inimigos do pensamento católico fazem questão de frisar que nós, os que
cremos, os que temos dogmas e que somos intransigentes em matéria de Fé e de Moral,
jamais teremos serenidade bastante para manter imparcialidade perante uma obra,
mesmo de arte pura, mas que não se regule pelo estalão de nossa doutrina e de nossos
princípios (SILVA, 1983, p. 11-12. Grifo nosso).