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RECEBIDO EM 04.05.2015 | APROVADO PELA EDITORA-CHEFE EM 29.05.2015

DOSSIÊ: DIREITO E MEMÓRIA

CINQUENTA ANOS DE UM CONFLITO:


O EMBATE ENTRE O MINISTRO RIBEIRO DA COSTA E O
GENERAL COSTA E SILVA SOBRE A REFORMA DO STF (1965) *
Rafael Mafei Rabelo Queiroz

FIFTY YEARS OF A CLASH: THE DISPUTE BETWEEN


JUSTICE RIBEIRO DA COSTA AND GENERAL COSTA E SILVA
REGARDING THE REFORMATION OF BRAZIL’S SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL (1965)

APRESENTAÇÃO
E STE TEXTO OBJETIVA APRESENTAR AS ÍNTEGRAS DOS PRONUNCIAMENTOS DE Á LVARO R IBEIRO DA C OSTA , PRESIDENTE
DO STF, E ARTUR DA COSTA E SILVA, MINISTRO DA GUERRA DO GOVERNO CASTELO BRANCO, NOS INSTANTES IMEDIATAMENTE
ANTECEDENTES AO ATO I NSTITUCIONAL 2 (AI-2). O S DISCURSOS SÃO PRECEDIDOS DE BREVE APRESENTAÇÃO , QUE SITUA
HISTORICAMENTE OS PERSONAGENS E O AMBIENTE POLÍTICO EM QUE SE DERAM OS FATOS , TIDOS COMO DETERMINANTES
NA HISTÓRIA DO STF NO CONTEXTO DA DITADURA MILITAR DE 1964-1985.

INTRODUÇÃO
Na terceira semana de outubro de 2015, propósitos de investida sobre a corte,
completam-se cinquenta anos de um con- planejada pelos militares. Desse pro-
flito político que se mostrou decisivo para nunciamento ficou célebre uma frase
a história das instituições brasileiras, em de efeito: “Já é tempo de que os milita-
especial o Supremo Tribunal Federal. res se compenetrem de que nos regi-
No dia 20 de outubro de 1965, o mes democráticos não lhes cabe o papel
jornal Folha de S. Paulo publicou um lon- de mentores da nação” (COSTA, 1965,
go artigo do ministro Álvaro Ribeiro p. 3). O texto de Ribeiro da Costa reper-
da Costa, presidente do Supremo, intitu- cutiu instantaneamente no Congresso,
lado “A Reforma do STF” (COSTA, 1965, onde o Executivo travava uma dura bata-
p. 3). Nele, o magistrado fez dura defesa lha pela aprovação de projetos de lei e
da autonomia do tribunal em face dos de emendas constitucionais. Deputados
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de oposição destacaram a defesa daquele representante político máximo da cha-


poder por seu presidente, contra a sanha mada “linha dura”, foi um capítulo deci-
reformadora do governo (ARTIGO..., sivo deste momento da história do Poder
1965, p. 10). Judiciário brasileiro.
Dois dias depois, deu-se um exercí- O objetivo deste texto é trazer a
cio militar em Itapeva, interior de São público a íntegra desses dois discursos
Paulo, ao qual esteve presente o próprio (Anexos A e B), situados por breve comen-
presidente Castelo Branco. Na ocasião, o tário de contextualização dos persona-
então ministro da Guerra, general Artur gens e do contexto político que foram
da Costa e Silva, respondeu, em tom infla- decisivos para o desfecho dos eventos his-
mado, ao pronunciamento de Ribeiro da tóricos em questão. Os fatos aqui descri-
Costa. Há relatos de “olhos marejados” e tos baseiam-se em fontes primárias como
“voz embargada” durante o seu discurso, os documentos de imprensa da época e
que foi interrompido várias vezes, de for- decisões relevantes do STF anteriores ao
ma nem sempre protocolar (GASPARI, AI-2, com apoio de fontes secundárias
2002, p. 187), 1 por “centenas de ofi- quando necessário, tais como a historio-
ciais do II Exército que participavam de grafia sobre o período e as memórias de
banquete” em homenagem ao Presiden- alguns de seus protagonistas.
te (COSTA..., 1965, p. 1). Costa e Sil-
va classificou a posição do presidente
do Supremo de “histórica agressão” 1 OS PERSONAGENS
cometida contra as Forças Armadas, por Para melhor entendimento dos discursos
“um homúnculo” que ele insinuava não anexos, pressupõe-se algum conhecimento
estar à altura do cargo que ocupava sobre os personagens que os proferiram.
(VEEMENTE..., 1965, p. 3). Álvaro Ribeiro da Costa nasceu na
Sete dias depois do texto de Ribeiro cidade Rio de Janeiro, em 1897. Tinha na
da Costa, e cinco dias depois do discurso família traços tanto de magistratura quan-
de Costa e Silva, o Chefe de Governo to de militarismo, além de ter cursado
Civil do presidente Castelo Branco, Luís colégio militar no Rio de Janeiro, seu pai,
Vianna Filho, lia, às onze horas da manhã, Alfredo Ribeiro da Costa, era militar de
o preâmbulo do Ato Institucional 2 no alta patente e chegou a fazer parte do
Palácio do Planalto, em cerimônia reple- então Supremo Tribunal Militar. Quando
ta de políticos e jornalistas (VIANNA Ribeiro da Costa já era ministro do STF,
FILHO, 1975, p. 354-355). O AI-2, seu irmão Orlando foi ministro togado
entre outras coisas, alterou a Constitui- do Superior Tribunal Militar, entre 1963
ção de 1946 para prever o número de e 1967 (COSTA, 2010).
16 ministros no STF, elevando de duas Juiz de carreira no estado do Rio de
para três o número de turmas julgado- Janeiro, Álvaro Ribeiro da Costa foi
ras daquela corte. O embate entre o pre- nomeado ministro do Supremo Tribunal
sidente do STF e o ministro da Guerra, Federal na vaga de Filadelfo Azevedo, por
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indicação do presidente José Linhares – ânimos políticos no Brasil. Em outro


este último, caso raro de ministro do julgamento envolvendo representante
STF que logrou indicar nomes para a do Clube Militar, em julho de 1963, o
corte, em razão de ocupar interinamen- ministro fez um longo e crítico discur-
te a Presidência da República no vácuo so em seguida à decisão do Plenário do
da saída de Getulio Vargas em 1945. 2 STF. Na ocasião, a corte rejeitou habeas
Nos anos agitados que antecederam corpus pedido em favor de Augusto
seu embate com Costa e Silva, como Magessi, presidente do Clube, dando
ministro do STF e do TSE, Álvaro Ribei- licença às autoridades militares para
ro da Costa acostumou-se a participar investigá-lo por indisciplina. Ribeiro
de julgamentos politicamente conturba- da Costa afirmou que “a grave situação
dos: em 7 de maio de 1947, foi voto política” vivida no Brasil era menos cul-
vencido na decisão que determinou a pa daqueles que a agitavam, e mais cul-
cassação de registro do Partido Comu- pa “daqueles a quem, por detenção de
nista do Brasil. 3 Em outras situações, altos cargos públicos, cab[ia] o dever
tomou partido contra a esquerda: nos de tornar tranquila a situação do Brasil”
episódios envolvendo o Clube Militar (DECIDE..., 1963, p. 1). Finalizou seu
ao final do governo de Juscelino Kubits- pronunciamento culpando diretamen-
chek, sugeriu que o STF recomendasse te o governo pela incapacidade de con-
ao presidente uma tomada de atitude ter a crise, bem como pelo clima de
contra seus dirigentes, que haviam se animosidade interno às Forças Arma-
solidarizado com o político gaúcho Leo- das. Por ironia, o mesmo pedido de
nel Brizola em seu plano de estatização compenetração e responsabilidade lhe
da companhia elétrica daquele estado seria feito, dois anos depois, pelo minis-
(COSTA, 2010). Na crise que levou à tro de Castelo Branco que o tinha como
queda de João Goulart, Ribeiro da Cos- interlocutor nas discussões sobre a
ta já era presidente do tribunal. Esteve reforma do Poder Judiciário. 5
presente naquilo que Elio Gaspari cha- Pelas posições manifestadas ante-
mou de “cerimônia bizarra” de posse de riormente ao 31 de março de 1964, não
Ranieri Mazzilli na presidência da chega a ser surpreendente o aval de
República: sob testemunho da menor Ribeiro da Costa à deposição de João
comitiva na história republicana, no Goulart. Além de sua participação de
meio da madrugada e com seus partici- caráter institucional na “cerimônia” de
pantes subindo escadas no escuro à luz posse de Ranieri Mazzilli, Ribeiro da
de fósforos. 4 Costa fez declarações públicas de apoio
Ribeiro da Costa já vinha há algum ao golpe: “O desafio feito à democracia
tempo criticando o que via ser descom- foi respondido vigorosamente. Sua recu-
postura de algumas autoridades, cujas peração tornou-se legítima através do
ações açodadas, a seu ver, só contri- movimento liderado pelas Forças Arma-
buíam para o acirramento dos já tensos das, já estando restabelecido o poder de
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governo pela forma constitucional” os envolvidos na “Revolta do Forte de


(STF, 1964a, p. 4). Adotou a mesma linha Copacabana” e amargou três meses de
manifestada por outras instituições do prisão administrativa, mas não chegou
mundo jurídico, como a OAB nacional a ser processado (SILVA, 2010).
(OAB, 1964) e Associação dos Advoga- Desde então, fez carreira de sucesso
dos (HOMENAGEM..., 1964, p. 23), no Exército, sempre ascendendo até ocu-
que igualmente saudaram a tomada de par uma posição administrativa que se
poder pelos militares. mostrou estratégica: em 1962, assumiu a
Após o golpe de 1964, tornou-se evi- chefia do Departamento Geral de Pes-
dente a divisão das Forças Armadas em soal do Exército. Lá, retomou contatos
duas facções. A primeira, chamada de diários com os companheiros de farda
“linha Sorbonne”, compreendia os egres- que, dois anos depois, desencadeariam o
sos da Escola Superior de Guerra e tinha golpe contra João Goulart. Castelo Bran-
no próprio Castelo Branco seu líder co era, à época, chefe do Estado-Maior do
maior. A outra redundou na conhecida Exército (SILVA, 2010), e Costa e Silva
“linha dura”, também chamada de “revo- reunia-se com ele muito frequentemen-
lucionários fervorosos” por Milton Cam- te. Tomou posse no Ministério da Guer-
pos, primeiro ministro da Justiça de ra no dia 4 de abril de 1964, de onde só
Castelo, e de “revolucionários ortodo- sairia para a Presidência da República.
xos” por Luís Vianna Filho, chefe da Casa Enquanto ministro da Guerra, Cos-
Civil do marechal. 6 Seu líder político ta e Silva foi uma pedra nos sapatos de
maior era Artur da Costa e Silva. Castelo Branco. Se não pertencia à “ala
Nascido em Taquari, Rio Grande do intelectual” dos egressos da Escola Supe-
Sul, em 1899, Costa e Silva ostentava a rior de Guerra, como ele próprio reco-
trajetória típica do militar engajado do nhece no discurso anexo, era, por outro
século XX. Primeiro, por sua educação, lado, um experiente general com enor-
já que passou por dois dos principais redu- me apoio das tropas, que, possivelmen-
tos formadores de militares politizados te, se viam mais empáticas à dureza de
no Brasil republicano: o Colégio Militar Costa e Silva do que à erudição e ao dis-
de Porto Alegre e a Escola Militar do Rea- tanciamento protocolar do marechal
lengo. Alfredo Bosi (1992, p. 281 e ss.) 7 cearense. Isso bastava para fazê-lo poli-
já sustentou a tese de que esses centros, ticamente poderoso, naquele contexto
divulgadores pioneiros do positivismo em que as agitações, dentro do Exérci-
comteano no Brasil, foram fundamentais to especialmente, vinham sendo mais
para a formação de uma classe militar regra do que exceção. Costa e Silva sabia
politicamente engajada, defensora de bem disso e usava essa conjuntura a seu
um Estado forte e providente. Quando favor, alimentando as ambições da “linha
jovem oficial, Costa e Silva também pra- dura”. O discurso que ora se reproduz foi
ticara seus próprios atos de subversão: um momento icônico dessa sua estraté-
em julho de 1922, recusou-se a reprimir gia, que se mostrou constrangedora para
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o próprio Presidente da República derrotados, candidatos militares dispu-


(VIANNA FILHO, 1975, p. 352). 8 taram todos os pleitos presidenciais. 10
Os antecedentes imediatos do con-
flito entre Ribeiro da Costa e Costa e
2 O CONTEXTO Silva, porém, podem ser situados de
O plano das constituições republicanas, maneira mais precisa e remetem a duas
que nem sempre se realizava em prática ordens de fatos distintos. A primeira foi
institucional efetiva, era que o Judiciário política: a pressão pública que se fez
ocupasse a posição de árbitro de grandes sobre a corte, desde os primórdios da
conflitos políticos. Na Constituição de “Revolução”, por nela figurarem diver-
1824, essa tarefa cabia ao Imperador, no sos ministros que, por terem sido indi-
exercício do Poder Moderador. 9 Oscar cados por presidentes rivais dos
Vilhena Vieira aponta, com acerto, que a militares, eram acusados de “contrar-
elevação do Judiciário, e do Supremo em revolucionários”. A segunda foi técnica,
particular, ao papel de árbitro máximo da porque ligada ao próprio exercício de
República foi acidentada e progressiva sua função jurisdicional: os sucessivos
(VIEIRA, 2008, p. 445). habeas corpus concedidos pelo STF em
Em minha interpretação, o interva- favor dos perseguidos políticos mais
lo entre nossas duas grandes experiências incisivamente atingidos pela caça às bru-
ditatoriais do século XX – as duas déca- xas posterior ao 1º de abril de 1964. Na
das de 1945 a 1964 – foi o período em medida em que ambas se somavam,
que o Supremo finalmente buscou ascen- Ribeiro da Costa elevava o tom na defe-
der à importância dessa missão institu- sa da corte; e nesse mesmo diapasão,
cional. Mas tal ascensão não se deu sem mais se inflamavam os que clamam por
conflito: ocupar a posição de árbitro- alguma forma de interferência no
mor da República, afinal, implicaria per- Supremo Tribunal Federal.
da de autoridade política por parte de Quanto à pressão política, diversas
outras instituições que até ali desempe- entidades pediam o “saneamento da justi-
nhavam esse papel. Dentre elas, a prin- ça” como necessário percurso da “marcha
cipal era justamente as Forças Armadas, da Revolução”. O Sindicato dos Advoga-
e o Exército em particular: todas as gran- dos de São Paulo, por exemplo, soltou
des crises políticas brasileiras até então nota afirmando que “nenhum dos pode-
haviam sido de alguma maneira encami- res estava imune à revolução”, tendo
nhadas com participação decisiva dos todos eles o dever de “limpar de seu seio”
militares. Mesmo nos períodos de nor- os “comunistas e todos aqueles que con-
malidade democrática, os homens de far- tribuíram decisivamente para a tentativa
da tinham importante papel: Dutra, o de instauração, no País, de um regime
primeiro presidente do período em ques- comuno-caudilhista” (SINDICATO...,
tão, era militar e foi eleito por voto dire- 1964, p. 4). Do Congresso, o deputado
to; e nas três eleições seguintes, embora udenista Jorge Curi tampouco poupava os
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ministros do Supremo. O ministro Evan- Como combustível da crise, a esse


dro Lins e Silva, que seria pouco tempo embate político mais abstrato somou-se a
depois cassado após o AI-5, recordava-se atuação concreta do Supremo no exercí-
de que Curi “falava permanentemente” cio de sua judicatura. Desde o golpe, os
(SILVA, 1997, p. 381) contra ele e Her- militares recorreram aos Inquéritos Poli-
mes Lima, os dois indicados de Jango. À ciais Militares, e às prisões cautelares no
imprensa da época, Curi chegou a sus- âmbito desses IPMs, como mecanismos
tentar que poupar o STF, enquanto eram para tirar rapidamente de cena seus adver-
expurgados o Congresso e o Executivo, sários políticos mais agudos. As investiga-
implicava “odiosa discriminação” em favor ções invariavelmente envolviam acusações
do tribunal (STF..., 1964b). Também o de alguma forma de tentativa de subver-
jornal O Estado de S. Paulo, em ao menos são da ordem e, mais especificamente, de
duas oportunidades, defendeu a inter- crimes contra a segurança nacional.
venção na corte, nomeando inclusive os Os atingidos corriam ao Judiciário, e
ministros Evandro Lins e Hermes Lima eventualmente ao STF – esse mesmo cujo
(EXPURGO..., 1964, p. 5; ROTEIRO..., expurgo era reclamado para depurá-lo
1964, p. 1). de infiltrações “comunistas” e “contrarre-
É importante destacar que não havia volucionárias” –, buscando amparo.
consenso entre os militares sobre a con- Faziam-no com base em duas teses: a pri-
veniência do expurgo, o que talvez expli- meira, excesso de prazo na prisão caute-
que a “odiosa discriminação” vista por lar; a segunda, incompetência da justiça
Curi. Não só o Supremo foi inicialmen- militar. O Supremo com alguma frequên-
te preservado, ao contrário dos demais cia acatava à primeira; e firmou jurispru-
poderes, como Castelo Branco fez ques- dência pacífica em favor da segunda.
tão de valorizar publicamente a corte em Essa orientação jurisprudencial tor-
diversas oportunidades. Numa delas, nava-se particularmente incômoda ao
Evandro Lins e Silva recordou-se que, governo quando casos de grande reper-
em meio à campanha pela intervenção na cussão eram julgados. Nos meses anterio-
corte, o presidente visitou o Supremo e res ao AI-2, houve ao menos dois: o habeas
fez questão de conversar brevemente com corpus em favor de Mauro Borges, então
ele e Hermes Lima, cortesia que não governador de Goiás; e o habeas corpus em
estendeu a qualquer outro ministro além favor de Miguel Arraes, em que quase se
do presidente Ribeiro da Costa. Em sua trocou a prisão do ex-governador pela do
interpretação, Castelo “deixou entrever, comandante do I Exército por desobe-
no seu gesto de cumprimentar aqueles diência ao tribunal. Em ambos funcionou
que eram visados pela campanha da como advogado Sobral Pinto, que pouco
imprensa, uma mensagem de que não tempo antes rejeitara convite de Juscelino
estava pretendendo nos atingir, de que ia Kubitschek para integrar o Supremo.
respeitar o Tribunal e seus juízes” (SILVA, O caso de Mauro Borges (STF, Habeas
1997, p. 383).11 corpus n. 41.296-GO) veio primeiro.
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Foi acompanhado pari passu pelas mais do Presidente, com quem se reuniu pes-
altas autoridades militares, que ficaram soalmente. Durante o julgamento, Ribei-
consternadas com o resultado (PRESI- ro da Costa, que presidia a sessão, advertia
DENTE..., 1964, p. 5). Após liminar a todos os presentes que a decisão do
concedida pelo relator, o tribunal con- Supremo deveria ser respeitada e que a
cedeu ordem preventiva de habeas corpus plateia não deveria se manifestar em qual-
para sustar processo de impedimento quer sentido, qualquer que fosse o resul-
contra o governador. Entenderam os tado (JULGAMENTO..., 1964, p. 5).
ministros que, por ser baseado em acu- Menos de seis meses depois, e na
sação de crime comum, o processo con- esteira de seguidos julgamentos em que
tra Borges dependia de prévia licença da prisões em IPMs eram relaxadas, o Supre-
Assembleia Legislativa, nos termos da mo voltou a pautar um habeas corpus de
vigente constituição do Estado de Goiás. personagem político de destaque: Miguel
A chave para a decisão estava no enten- Arraes, governador deposto de Pernam-
dimento do Supremo de que crimes mili- buco (STF, Habeas corpus n. 42.108-PE).
tares equivaliam a “crimes comuns” para A questão jurídica versava sobre a incom-
fins constitucionais. petência da Justiça Militar para julgar
Por trás do caso de Goiás havia outros acusados de “crimes contra a segurança
elementos explosivos. Segundo Gaspa- nacional” – maior obstáculo legal aos
ri, nos IPMs que envolviam o governador IPMs como forma de ataque aos adversá-
Mauro Borges ocorreu “o primeiro gran- rios dos militares.
de caso de insubordinação e violência” Na ocasião, o STF reafirmou seu
após o golpe (GASPARI, 2002, p. 187). entendimento de que, por força da
Seu protagonista foi o tenente-coronel Constituição de 1946, à justiça militar
Danilo Darcy de Sá da Cunha e Mello, só cabia julgar civis no caso de atentados
chefe das investigações e comandante do à segurança externa do país. 12 Tal enten-
10º Batalhão de Caçadores. As investiga- dimento prejudicava a maior parte das
ções do tenente Danilo baseavam-se em investigações militares contra os adver-
declarações de um suposto agente infil- sários do regime que, quando muito,
trado que, posteriormente, foi constata- poderiam ser acusados de atentado con-
do portador de esquizofrenia paranoide: tra a segurança interna do país, e nada
flagraram-lhe bebendo água de um vaso mais. Os militares, porém, advogavam
sanitário e ele jurava ter descoberto a a tese de que atos internos estavam liga-
cura da cegueira por meio de contatos dos aos atos externos de subversão, na
mediúnicos com uma condessa de roman- esteira da chamada “guerra revolucioná-
ce (ibidem, p. 188). Após a decisão do ria”, cujas dimensões seriam necessa-
Supremo, o encarregado pelos IPMs riamente transnacionais. 13 O Supremo
divulgou nota atacando o julgamento do nunca lhes deu razão e não decidiu de
STF como “uma farsa”. Foi chamado para maneira diferente porque o caso envol-
explicar-se em Brasília e recebeu afagos via Arraes.
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Mesmo após a concessão da ordem Estando cada vez mais claro que o
em favor do político pernambucano, os Judiciário, como um todo, e o Supremo,
encarregados de sua prisão mantiveram- em particular, teriam de ser contempla-
no preso, sob alegação de que seu encar- dos nas reformas que pavimentariam o
ceramento se fundamentava também em “roteiro da Revolução” de que falava Júlio
outro IPM. Ribeiro da Costa então reagiu de Mesquita Filho, o governo incumbiu
duramente e acusou os militares de insu- o ministro da Justiça Milton Campos de
bordinação, já que o fundamento da conduzir trabalhos nesse sentido. Cam-
incompetência absoluta da Justiça Militar pos formou então uma comissão, que
abrangia, por óbvio, quaisquer IPMs con- contava com o ex-presidente da OAB e
tra o governador. O presidente do STF prócer udenista Prado Kelly, que igual-
enviou duro telegrama ordenando ao mente seria feito ministro do STF em
general Edson de Figueiredo, do I Exér- seguida ao AI-2, o também advogado
cito: “acate pois aquela decisão, como lhe Dario de Almeida Magalhães e o minis-
foi comunicada”. Os militares chegaram tro aposentado do Supremo Orozimbo
até Castelo perguntando-se como reagir. Nonato (REFORMA..., 1965, p. 9). A
Com a intervenção direta do Presidente, eles coube pensar a reforma do Judiciá-
que posteriormente manteve contato rio, o Supremo aí incluso.
telefônico com Ribeiro da Costa para Ribeiro da Costa respondeu: criou
esfriar ânimos exaltados, a decisão foi uma comissão de reforma do Judiciário
cumprida. Arraes deixou a Fortaleza de dentro do STF e exigiu que ela fosse
Santa Cruz e foi levado, de carona por interlocutora dos trabalhos da comissão
um oficial do Exército, até a casa de um governamental, no que foi atendido. Da
tio no bairro de Botafogo (ARRAES..., comissão do tribunal fizeram parte, além
1965, p. 1). do próprio presidente, os ministros Luís
Por casos assim, a relação entre Gallotti,Victor Nunes Leal e, numa pri-
Ribeiro da Costa e os militares foi dete- meira fase, Cândido Motta Filho.
riorando-se rapidamente, em que pese os As reformas pretendidas pelo gover-
esforços pessoais empenhados por Cas- no baseavam-se na justificativa de melho-
telo no sentido de apaziguar conflitos. O rar o desempenho da corte, passando
ministro que saudara o golpe como nor- pela melhor definição de suas compe-
malização democrática do governo tor- tências e pela sua organização interna.
nou-se, em pouco mais de um ano, um Nem tudo era desacordo, já que o STF
incômodo político enorme para os mili- não se opunha, por exemplo, à diminui-
tares, e um espinho atravessado na gar- ção de sua competência: via com bons
ganta da “linha dura”. O temperamento olhos deixar de julgar os recursos de
rude de “extremados” como Costa e Sil- habeas corpus como os que soltavam os
va ou Carlos Lacerda encontrava em acusados em IPMs, desde que a Consti-
Ribeiro da Costa respostas à altura em tuição fosse regularmente alterada para
contundência e aspereza. tanto. A comissão trabalhava também
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para imprimir mais eficiência ao trabalho Cândido Motta Filho e unanimemente


do tribunal: data desta época a adoção concordaram em prorrogar o mandato
das súmulas, implementada principal- de Ribeiro da Costa até o final de sua judi-
mente por iniciativa de um de seus mem- catura, o que lhe garantiu alguns meses
bros, o ministro Victor Nunes Leal. mais na liderança do Judiciário (SILVA,
O tema das aposentadorias compul- 1997, p. 382). No dia em que a inédita
sórias ou do aumento do número de mudança regimental foi anunciada no ple-
ministros, porém, era tabu. Ribeiro da nário da corte, três ministros não pude-
Costa não os admitia e aí os diálogos sem- ram estar presentes, mas fizeram questão
pre emperravam: os membros mais exal- de registrar voto favorável à incomum
tados do governo, entre os quais Costa e emenda, garantindo-lhe aprovação por
Silva, não concebiam a hipótese de ter de unanimidade e respaldando à liderança
conviver por anos a fio com o órgão de de Ribeiro da Costa naquele delicado
cúpula do Poder Judiciário recheado de momento de enfrentamento institucional
ministros indicados por Goulart, Jusce- (MANOBRA..., 1965, p. 9).
lino e Getulio Vargas. Ribeiro da Costa, Os discursos anexos foram proferidos
por sua vez, não admitia presidir um Judi- no cume desta crise, quando parecia cla-
ciário cuja independência não se preser- ro a todos que finalmente era chegada a
vasse. Segundo Evandro Lins e Silva, hora do “expurgo”, que talvez não acon-
Ribeiro da Costa mandou avisar a Caste- tecera até então não só pela indisposição
lo Branco que, se tal intervenção aconte- de Castelo (que ao final cedeu aos “linhas
cesse à revelia da vontade do Supremo, ele dura”), mas pela postura do presidente do
trancaria o tribunal e mandaria as chaves STF, que jamais jogou a toalha em sua
ao Presidente (SILVA, 1997, p. 380). luta em favor da autonomia do Supremo
É importante destacar que a posição Tribunal Federal. Esta era a opinião de
de Ribeiro da Costa angariou apoio de Evandro Lins e Silva: “O Supremo não foi
todos os ministros da corte, independen- atingido, a meu ver, e nós não fomos ime-
temente de seus posicionamentos políti- diatamente cassados, em virtude da ati-
cos.14 No auge da crise com o Executivo, tude de Ribeiro de Costa” (SILVA, 1997,
e pouco antes do segundo ato institucio- p. 382).
nal, os ministros do STF reuniram-se, Uma semana depois, em 27 de outu-
num sábado, na casa do vice-presidente bro de 1965, viria o AI-2.

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ANEXO A:
A REFORMA DO S.T.F.15
Ministro Ribeiro da Costa (Presidente do Supremo Tribunal Federal)

Sob todos os ângulos por que se examine a da independência e harmonia dos poderes
controvérsia suscitada pela pretensão que (Constituição, art. 7º, n. VII, letra B).17
se assoalha imposta por certa área militar, Ora, não só por essa razão relevantíssi-
no sentido de aumento do número dos ma, impõe-se meditar sobre o apregoado
membros do Supremo Tribunal Federal, problema, antes de lhe dar encaminhamen-
não por iniciativa deste, mas exclusiva- to com evidente risco de se estabelecer
mente do sr. Presidente da República, a gravíssimo conflito entre os poderes.
exemplo de permissibilidade constante É que, de modo expresso, pertence
do Ato Institucional,16 afigura-se-nos privativa e exclusivamente ao Supremo
inaconselhável a sugestão, por sua mani- Tribunal Federal, propor o aumento do
festa inconveniência e inutilidade, agra- número de seus membros, consoante dis-
vando de enorme ônus a despesa pública, põe o art. 98, parte segunda, da Consti-
além de acarretar maiores dificuldades à tuição.18 É isso atributo que espelha e diz
celeridade dos julgamentos por exigir com sua própria independência.
tempo muito mais dilatado para se proce- Torna-se fora de dúvida evidente que,
der à apuração, em cada caso, do pensa- se assim prescreve a lei maior, não revoga-
mento do órgão judicante. da, nessa parte, pelo Ato Institucional, este
Em verdade, nada mais contunden- deixa de armar a autoridade do presidente
te absurdo, esdrúxulo e chocante com os da República e a do Congresso, da faculda-
princípios básicos da Constituição, que de aludida, que permanece, logicamente,
vedam em sua sistemática se cogite de au- sob o resguardo da conveniência – medida
mento de juízes da Corte Suprema sem interna corporis – sobre a qual só ao próprio
que de sua iniciativa se manifeste essa ne- órgão judiciário cabe o poder de manifes-
cessidade mediante mensagem dirigida tar-se, pois é ele o único árbitro, de provi-
ao Congresso Nacional. dência que diz respeito à sua composição e,
Não se compreende possa legitimar-se pois, à sua estrutura constitucional.
tal propósito ao simples critério do chefe Transferir para outros poderes iniciati-
de Estado e a aprovação do Parlamento. Se, va cometida privativamente a um deles,
entretanto, viesse a vingar esse procedi- por conveniência de sua própria organiza-
mento, o que nos parece de todo inviável, ção e independência, é atentar contra prin-
teríamos praticamente instaurado grave cípio fundamental da Constituição, ferindo
conflito entre os poderes da República, sua sistemática e suas traves basilares.
dois contra um, ou seja, o Executivo e o Desobedecê-las, importa em fazer
Legislativo, de mãos dadas, a fim de invadi- ruir o próprio regime constitucional.
rem área específica ou privativa do Judiciá- Advirta-se, ainda, a nação da ruinosa
rio, com quebra de princípios fundamental e imeritória pretensão, agitada aqui e ali
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até por chefes militares, que por muito turmas sobrevivem porque o Supremo
entenderem do seu próprio ofício, nem Tribunal as mantém em seu regimento.
por isso conhecem a aparelhagem consti- Mas não são elas autônomas, como ora se
tucional no que diz respeito ao Poder deseja inovar.
Judiciário, notadamente a Suprema Corte, Afirmamos, sob a autoridade de nos-
uma vez que com o inusitado aceno bem sa convicção, sedimentada durante vinte
revelam desconhecer a formação deste anos de exercício no STF, a absoluta des-
órgão, como as suas necessidades rele- necessidade de tal aumento, visto ser so-
vantes, dentro das quais se destaca, como bretudo, ruinoso, inútil, prejudicial à
ponto culminante, a sua estrutura, man- apuração dos julgamentos, abolindo a cele-
tida sua composição pela prática e expe- ridade já alcançada pela emenda regimen-
riência, em número de onze juízes, desde tal instituidora da súmula e da remessa das
mais de 30 anos.19 turmas para o Pleno dos feitos que apre-
O aumento preconizado no antepro- sentam maior complexidade. Com esse
jeto redigido pelo sr. ministro Milton procedimento caminhamos, praticamente,
Campos, encampando sugestão de dois para a extinção das turmas, dando ao Pleno
ilustres advogados,20 integrantes da co- maior ênfase, evitando a repetição de julga-
missão composta por s. exa., visa elevar a mentos pela oposição de embargos.
16 o número dos ministros do Supremo Alertando os Poderes Executivos, ao
Tribunal Federal, ficando este dividido mesmo passo que assim o fazemos tendo
em três turmas com a competência para em vista as insistentes intromissões de mi-
julgarem definitivamente o contencioso litares nesse assunto que não lhes diz res-
de legalidade, ao passo que o Tribunal peito, sobre o qual não lhes cabe opinar, e
Pleno, apenas julgará o contencioso da que, entretanto, vêm ocorrendo lamenta-
constitucionalidade. velmente, coisa jamais vista nos países
Afirmamos a contundência de tal verdadeiramente civilizados.
proposta pois ficaria o Tribunal dividido Já é tempo de que os militares se
em três Supreminhos, sendo irremovível compenetrem de que nos regimes demo-
a divergência entre eles, o que criaria o cráticos não lhes cabe o papel de mento-
impasse para se atingir a unificação juris- res da nação, como há pouco o fizeram,
prudencial, impondo-se criar o recurso com estarrecedora quebra de sagrados
de revista,21 endereçado ao pleno. Demais deveres, os sargentos instigados pelos
disso, que autoridade, respeitabilidade e jangos e brizolas. A atividade civil perten-
confiança, poderá inspirar o Supremo ce aos civis, a militar a estes, que sob o sa-
Tribunal Federal, fragmentado em turmas grado compromisso juraram fidelidade à
autônomas? A Constituição vigente des- disciplina, às leis e à Constituição.
conhece em relação a esse órgão a sua di- Se ao Supremo Tribunal Federal cabe
visão em turmas. A criação destas, se deve o controle de legalidade e constituciona-
a um mero decreto-lei que sempre consi- lidade dos atos dos outros poderes, por
derei incompatível com a Lei Magna.22 As isso mesmo ele é investido de excepcional
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autonomia e independência, tornando-se Quem, devemos dizê-lo, de boa ou


intolerável a alteração do número de seus má-fé deseja esse aumento, revela seu de-
juízes por iniciativa do Executivo e chan- samor a este país, não preza a defesa do
cela do Legislativo. Inaugurado que seja Erário Público nem a sobrevivência das
esse sistema mais adiante aumentar-se-á instituições democráticas delineadas tra-
novamente o número dos membros do dicionalmente em bases constitucionais
STF, sob qualquer pretexto, político ou sistemáticas. Por que tanta insistência e
militar. A que se reduzirá, então, a inde- tão descabido propósito em aniquilar um
pendência do Poder Judiciário se até o dos atributos básicos da independência
seu mais alto tribunal poderá ficar à mer- do poder judiciário e da autonomia do
cê da oscilação de opiniões e das vontades Supremo Tribunal Federal? Com que van-
estranhas àquele Poder? tagem, senão o seu desprestígio ofensivo
Afirmamos, ainda uma vez, ser rui- de suas tradições mais caras a este país
nosa e inútil, prejudicial e gravosa dos que, desse modo, se mostra indiferente à
encargos do Tesouro Nacional aquele sorte de suas próprias instituições?
aumento que importará em despesa Felizmente o alto idealismo de que
incalculável, não só pelo estipêndio que somos possuídos, alimenta a esperança e
será devido a mais cinco (5) ministros a certeza de que profunda meditação há
cujo gabinete se compõe de um secretá- de inspirar o eminente Chefe de Estado,
rio jurídico, um auxiliar de plenário e em cujo patriotismo e serenidade confia-
um motorista. Acrescente-se a aquisição mos, situando-se ele imune a influências
de um automóvel para cada um deles, sua superficiais e interesseiras, que tende à
manutenção, gasolina e gastos eventuais. distorção dos princípios tradicionais da
Some-se, mais, a necessidade imediata de organização de um dos poderes da Repú-
novas instalações do mobiliário da sala de blica e ao enfraquecimento de suas bases
sessões, de seu estrado, cobertura de constitucionais.
tapete etc. Cada ministro dispõe de um Se é certo que via de regra o homem
gabinete de trabalho, mobiliado conve- constrói ou destrói, cabe-nos alertar que
nientemente. Há de ser necessário cons- o momento nos enseja todos os esforços
truir-se um edifício anexo, com pelo para evoluirmos, dentro dos ditames le-
menos cinco gabinetes providos de mobi- gais, constitucionais e democráticos re-
liário adequado. forçando a autoridade, a segurança e a
Aí está a estarrecedora resenha, a des- confiança nas instituições da República, a
pesa inútil, incalculável que representará fim de que à sua sombra o trabalho fruti-
a imposição, inteiramente dispensável, do fique e a tranquilidade restaure nos brasi-
aumento de cinco ministros do STF. leiros a fé pelos destinos da pátria.

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ANEXO B:
DISCURSO PROFERIDO PELO MINISTRO DA GUERRA ARTUR DA COSTA
E SILVA (ITAPEVA-SP, 22/10/1965)23

Velhos soldados afeitos à vida da caserna, lhes pesa sobre o ombro no momento
estamos com o coração em festa vendo difícil da vida nacional. Quero referir aos
este trabalho realizado com a proficiência senhores a histórica agressão que acaba de
de homens que se dedicam à vida militar, ser dirigida aos militares do Brasil pelo
com dedicação, amor e patriotismo. Nós presidente do Supremo Tribunal Federal.
sabemos e bem conhecemos as dificulda- Como se fôssemos tênues atribuições de
des para a realização vitoriosa, para a rea- poder da República, s. exa. se volta con-
lização eficiente de um trabalho como o tra os militares cometendo, praticando a
que acabamos de observar e apreciar. V. maior das injustiças já praticadas contra o
exa., como oficial de alto mérito, de soldado brasileiro. Diz o senhor presi-
Estado-Maior, cuja vida transcorreu ima- dente do Tribunal Federal da República,
ginando, concebendo, planificando, e eu, um dos poderes da República:
modesto general que veio da tropa, que
vivi na tropa mais de 40 anos, posso dizer, Alertando os poderes Executivo e
como v. exa. também dirá, que esse tra- Legislativo, ao mesmo passo que
balho foi uma grande vitória profissional. assim o fazemos tendo em vista as
É, sem dúvida, grande vitória profissio- insistentes intromissões dos militares
nal, e por quê? Porque encontrou no neste assunto que não lhes diz
âmbito civil aquela consideração desinte- respeito, sobre o qual não lhes cabe
ressada, com algum sacrifício mesmo, opinar. E que entretanto vem
para que se pudesse realizar uma coisa ocorrendo lamentavelmente, coisa
que parece tão simples: o tipo real de jamais vista nos países
artilharia, o tiro real dos blindados. Isso verdadeiramente civilizados. Já é
nós observamos, senhor presidente, e é tempo de que os militares se
com o coração em festa que eu declaro o compenetrem de que nos regimes
meu contentamento. E o sr. Presidente da democráticos não lhes cabe o papel
República também por certo estará com de mentores da nação, com há pouco
o seu coração em festa neste momento. o fizeram com estarrecedora quebra
Mas se é verdade que estes trabalhos, de sagrados deveres os sargentos,
estas manobras, demonstram a alta com- instigados pelos jangos e brizolas.
preensão da responsabilidade que lhes pesa
sobre os ombros, dos chefes militares, Será possível, srs., que estes homens
também é verdade que estamos incom- estejam esquecidos da ação das Forças
preendidos e até mesmo ultrajados e Armadas a 31 de março? Será possível que
agredidos por pessoas que deveriam ter a não lhes pesa sobre a consciência a agres-
máxima noção da responsabilidade que são que nos dirigem? Senhores, aí estão as
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palavras com que nós militares fomos Nós conservamos este regime que se
brindados por s. exa. o sr. presidente do diz democrático, mas que quer ser ditato-
Supremo Tribunal Federal que nós mili- rial por intermédio da ditadura judiciá-
tares, tendo-o a nossa mercê nos primei- ria. Há um ano e meio, depois de tantos
ros dias de abril de 1964, preservamos de sacrifícios, depois de tanta dedicação,
qualquer mutilação. dando a este País a paz, a tranquilidade
Antes estávamos em que ilusão? A de necessária para o seu desenvolvimento,
que o Tribunal saberia compreender a vem um homem de alta responsabilidade
Revolução que acabávamos de tornar dizer que devemos voltar aos quartéis.
vitoriosa, quando, atendendo às aspira- Não. Só voltaremos aos quartéis quando
ções da nação e do povo, formos à rua para o povo determinar ou então quando s.
acabar com o comunismo que se procurava exa. o ser. Presidente da República, que é
implantar neste país. Quando “jangos” e o Executivo deste país, disser: “voltem
“brizolas” procuravam subverter a disci- aos quartéis”. O termo voltar aos quar-
plina militar e fechar o Congresso Nacio- téis é uma metáfora, porque na realidade,
nal e conspurcar a ação dos juízes, o Exér- nós não saímos dos quartéis e a prova está
cito veio à rua para restabelecer a ordem, nesse exercício que acabamos de realizar.
a disciplina, a decência, a austeridade no A prova está nas manobras programa-
governo. E o fizemos certos de que não das para Mato Grosso no próximo mês.
defendíamos nem instituições nem parti- Segunda-feira, dia 25, estaremos em
dos, nem interesses de classes, mas sim a Resende assistindo a uma grande manobra
estabilidade da pátria. Agora, fomos man- de nossos paraquedistas, que diariamente
dados pelo presidente do Supremo Tribu- arriscam suas vidas. Senhores, eu não
nal Federal, fomos mandados recolher- queria me exaltar neste momento. Mas,
nos aos quartéis? Saímos do quartéis a senhores, ofendido, agredido na minha
pedido do povo, a pedido da sociedade classe, eu não posso deixar de revidar a
que se via ameaçada e só voltaremos aos esta afronta.Aconteça o que acontecer. Dis-
quartéis quando o povo assim o determi- seram alhures que o presidente da Repú-
nar, mas permaneceremos de armas per- blica está fraco politicamente. Não nos
filadas para evitar que volte a este país a importa que ele esteja fraco politicamente;
subversão, a corrupção, a indisciplina e o está forte militarmente.
desprestígio internacional. Senhores: eu tenho em minha mão um
Há um ano e meio, naquele dia de documento histórico onde esse mesmo
março, ou melhor dito, naquele 1º de homem que se diz presidente da mais alta
abril – que não será nunca um 1º de abril corte de Justiça do nosso país se dirigiu a
para o Brasil, mas sim uma afirmação cate- um general brasileiro em termos incon-
górica – há um ano e meio fomos para o venientes. O sr. presidente da República
sacrifício, vimos o gesto magnífico de revidou, entretanto. Amparou o general e
civilismo, de misticismo civilista de s. disse a esse ministro que não era assim que
exa. o sr. presidente da República. se tratava um general brasileiro. Os dias
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são de ontem. Não preciso recapitular.24 para entrega ao exmo. sr. chefe do
Pois bem, eu vou trazer isto a público, Gabinete Militar da Presidência, e
para que se saiba onde está a coragem e que por esta passo a v. exa. através do
onde está a lealdade e onde está a ver- escalão avançado do Ministério aqui
dade. Em dias do mês de maio, o coman- em Brasília. Recebida a orientação de
dante da 11ª Região Militar me comuni- v. exa. através do escalão avançado,
cava em parte. Eu vou ler, com absoluta informo que me comunicarei com o
tranquilidade, a parte: presidente do STF, dando-lhe ciência
de que fiz parte de suas ponderações.
Participo a v. exa. que fui procurado As. – General José Nogueira Paz,
na manhã de hoje pelo exmo. sr. dr. comandante da 11ª Região Militar.
Álvaro Ribeiro da Costa, presidente
do Supremo Tribunal Federal, e como O documento é este senhores. Eu
eu não fosse encontrado por me tenho fotocópia na minha mão. Este
achar inspecionando a região do documento escrito pelo próprio punho
campo de instrução, telefonou o do presidente do STF, procurando resol-
mesmo ao coronel Darci Lázaro, ver uma situação que ele havia criado,
comandante do Batalhão de Guarda agredindo os encarregados dos inquéri-
Presidencial, comunicando-lhe que tos, concedendo habeas corpus absurdos. E
de acordo com um informe recebido, ele então dizia:
de pessoa altamente idônea, haveria
nesse dia, no de hoje, 13 de maio, Emenda constitucional – aprova para
uma revolução visando implantar um todos os efeitos os atos praticados
regime ditatorial no Brasil. Durante pelo Alto Comando Revolucionário
conversa que teve com o coronel de 31 de março de 64 e bem assim
Darci Lázaro, demonstrou o aqueles decorrentes da aplicação do
presidente do STF as apreensões que Ato Institucional de 9 de Abril de
pairavam nos espíritos dos membros 1964 (vide art. 18 das disposições
do Poder Judiciário, dizendo-lhe que transitórias da Constituição de
nessa ocasião o problema da Justiça 1934).25
poderia ser resolvido favoravelmente Lei ordinária – concede atribuição
à Revolução, através de uma emenda privativa aos encarregados de
constitucional de sua autoria, que investigação policial-militar para
pretendia sugerir ao deputado Adauto prorrogar, no interesse da apuração
Lúcio Cardoso, para apresentação ao de responsabilidade, o prazo de
Congresso. Às 11hs55 apresentou-se detenção dos indiciados até a
ao Q.G. da 11ª. R.M. o coronel Darci ultimação do procedimento
Lázaro, entregando-me a minuta de processual. Parágrafo 1º – Alcança
um projeto da emenda supracitada, todos os processos de Investigação
que recebera do presidente do STF, Policial-Militar, a critério dos
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respectivos encarregados, atingindo, defender a insinuação malévola que dizia


inclusive, os indiciados já beneficiados existir no Brasil um triunvirato ditatorial e
por concessão de habeas corpus. nós reagimos e preferimos conservar o
regime atual porque sabemos que o defeito
Senhores, isto é um recuo, isto é uma não é do regime, o defeito é dos homens.
covardia inominável que o sr. presidente É preciso, senhores, que os homens
da República não aceitou e mandou que desta República cresçam, cresçam na
se rasgasse esse documento. Mas eu já altura da grandeza imensa deste país. Este
tinha cópia desse documento no arquivo país exige homens grandes, homens de
do Exército. alto espírito público e não homúnculos
Exmo sr. presidente da República, que venham degradar por interesses pes-
talvez o seu ministro tenha faltado com o soais, por interesses partidários, por
devido respeito a v. exa. Se assim o fiz, interesses de classe ou de clã, prejudi-
senhor presidente, queira desculpar. Mas v. cando o desenvolvimento deste país, que
exa. é um velho soldado. Sabe o quanto de só pede que o deixem crescer, deixem
ofensivo houve nas declarações do ministro progredir, deixem marchar. E nós have-
do STF. Falam em ditadura militar. Falam mos de dar ao Brasil, como a pessoa de s.
em ditadura. E ele sabe, como sabe o pre- exa., o presidente da República, que é um
sidente do Senado da República, que nós homem da nossa formação, nós havemos
não fomos a ditadura porque não quise- de dar ao Brasil a oportunidade de mar-
mos. O sr. presidente da República é teste- char, de progredir e atingir os seus altos
munha disso. Ele e eu tivemos que dialogar, destinos, que ele bem que merece e que
tivemos que argumentar, tivemos que lhe dá de conceder.

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NOTAS

* A pesquisa que resultou neste texto foi revolucionária. Uma radical, ortodoxa, violenta, convicta
parcialmente financiada pela Fundação de Amparo à de que o êxito da Revolução seria correspondente à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). amplitude e energia das punições. Outra, liberal,
generosa, tinha as punições como um meio, nunca como
1 O autor informa que os presentes gritavam objetivo da Revolução. A […] tendência, radical, subsiste
“manda brasa!” nos momentos mais agudos da fala de em setores ponderáveis dos comandos militares e das
Costa e Silva. próprias correntes civis que apoiaram o movimento em
todo o seu curso. Nesses setores continua-se a estimular
2 José Linhares exerceu o cargo de presidente do uma ação drástica do Governo.” Formavam estes, na
Brasil entre outubro de 1945 e janeiro de 1946, quando linguagem popular, “a linha dura” (p. 93).
entregou o cargo ao marechal Eurico Gaspar Dutra.
Embora tenha passado poucos meses na presidência, 7 De fato, é espantoso notar quantos de nosso
Linhares indicou três nomes para o STF: além de Ribeiro presidentes no período militar passaram por educação
da Costa, chegaram ao Supremo por suas mãos os escolar no Rio Grande do Sul: Getulio Vargas, Castelo
ministros Lafayette de Andrada e Edgard Costa Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo
(Supremo Tribunal Federal, 20??). Após exercer a passaram pelo Colégio Militar de Porto Alegre ou pela
presidência da República, Linhares voltou ao Supremo e Escola Militar do Rio Pardo, sua antecessora, e dois
lá ficou até sua aposentadoria, em 1956. deles vieram de muito longe para tanto: Castelo Branco
era cearense, e Figueiredo, carioca. Durante o período
3 Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Processo n. de estudos desses militares no Rio Grande do Sul,
411/412. Cancelamento do registro do Partido convém lembrar, vigorava no estado da chamada
Comunista do Brasil. Relator Ministro Sá Filho. Julgado “Ditadura Republicana” de Júlio de Castilhos e Borges de
em: 7 de maio de 1947. Ribeiro da Costa acompanhou o Medeiros, na contramão do liberalismo da Primeira
voto do relator, negando a cassação do registro por falta República. Esses mesmo ex-presidentes, com exceção
de provas. Ambos restaram vencidos. O voto de Ribeiro de Vargas, estudaram também na Escola Militar do
da Costa está às páginas 87 a 105. Realengo, no Rio de Janeiro.

4 Como João Goulart já era vice do presidente 8 O autor registra em suas memórias: “Entre os
eleito Jânio Quadros, que renunciara em 1961, Ranieri generais presentes, o mal-estar foi visível. E o ministro
Mazzilli, presidente da Câmara, era o próximo na linha percebendo haver avançado nas asas do entusiasmo,
de sucessão. A posse lhe foi dada pelo presidente do concluiu pedindo desculpas ao Presidente, caso tivesse
Senado, Auro de Moura Andrade. Ribeiro da Costa extravasado no arroubo oratório. Castelo, constrangido,
avalizou o ato como presidente do Poder Judiciário. fez pequeno discurso, no qual deixou entrever o
Entre o pequeno grupo de presentes estava também Luís desagrado irremediável”. O autor lembra, em seguida,
Vianna Filho, que pouco tempo depois teria decisiva que Ribeiro da Costa mandou devolver ao presidente
participação na articulação jurídica do governo de Castelo Branco as condecorações que recebera para
Castelo Branco, no qual, além de ministro interino da participar de um banquete oferecido aos chefes de estado
justiça (entre Milton Campos e Juraci Magalhães), foi da Bélgica, que visitavam o Brasil naquela semana.
Chefe do Gabinete Civil – cargo equivalente ao hodierno
Ministro-Chefe da Casa Civil. Para uma descrição 9 Nesse sentido, partilho da opinião de José
detalhada da cerimônia e dos presentes, veja Gaspari Reinaldo de Lima Lopes: “com a República o Judiciário
(2002, p. 111 e ss.); e Vianna Filho (1975, cap. III). foi, desde 1891, encarado como o árbitro possível dos
grandes conflitos de poderes e lhe foi dado, no Supremo
5 O pedido a Ribeiro da Costa seria feito por Tribunal Federal, conscientemente, uma parte das
Juraci Magalhães, então ministro da Justiça encarregado atribuições do extinto Poder Moderador” (LOPES,
de negociar as reformas constitucionais, no mesmo dia 2006, p. 30). À lição de Lopes, eu acrescentaria que a
em que saía publicado o artigo do presidente do STF evolução institucional de nossas repúblicas concebeu
sobre a reforma do tribunal (Anexo A). também outros órgãos, todos dentro do Poder Judiciário,
a quem cumpria esse papel, tal qual o Tribunal Superior
6 Luís Vianna Filho (1975) assim descreve a Eleitoral e, mais recentemente, o Superior Tribunal
diferença entre ambos, devendo ser lido sob a ressalva de de Justiça.
que ele próprio militava no governo de um “Sorbonne”: “o
grupo da Escola Superior de Guerra [era o dos] militares 10 Comblin também sustenta a relevância do
intelectuais da ‘Sorbonne’” (p. 62). “O tempo […] papel dos militares na política civil no período em
mostrou claramente a formação de duas correntes na área questão (COMBLIN, 1978, p. 152).

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11 O mesmo não se podia dizer dos partidários 17 “Art. 7º - O Governo federal não intervirá
da “linha dura”: esses cobravam o presidente por poupar nos Estados salvo para: […] VII - assegurar a observância
o Supremo, fazendo até insinuações de conchavos e dos seguintes princípios: […] b) independência e
favorecimentos. Foi o caso de Carlos Lacerda quando, já harmonia entre os poderes.”
rompido com Castelo Branco, acusou-o de haver
poupado o STF em troca de decisões favoráveis ao 18 “Art. 98. O Supremo Tribunal Federal, com
candidato do PSD nas eleições ao governo de Minas sede na Capital da República e jurisdição em todo o
Gerais (CARLOS LACERDA..., 1965, p. 20). território nacional, compor-se-á de onze Ministros. Esse
número, mediante proposta do próprio Tribunal, poderá
12 Constituição de 1946, art. 108: “A Justiça ser elevado por lei.” Uma semana depois de publicado o
Militar compete processar e julgar, nos crimes militares discurso do Ribeiro da Costa, o AI-2 alteraria este
definidos em lei, os militares e as pessoas que lhes são, dispositivo constitucional para prever o número de 16
assemelhadas. § 1º Esse foro especial poderá estender-se ministros, divididos em três turmas de cinco julgadores
aos civis, nos casos, expressos em lei, para a repressão de cada. O STF funcionou com esta estrutura até fevereiro
crimes contra a segurança externa do País ou as de 1966, quando a constituição foi alterada pelo AI-6 e o
instituições militares” (destaques do autor). número de ministros foi reduzido novamente a 11.

13 Olavo Bilac Pinto, deputado udenista muito 19 A Constituição de 1891 (art. 56) havia
próximo a Castelo Branco, foi um dos principais defensores estabelecido em 15 o número do ministros do STF. A
da ideia de “guerra revolucionária”. Seus discursos exemplo da Suprema Corte dos EUA, os julgamentos
parlamentares sobre o tema foram posteriormente eram todos plenários, não havendo turmas. Em 1931,
reunidos em livro (PINTO, 1964). Bilac Pinto foi feito ainda durante o governo revolucionário de Getulio
ministro do Supremo por Médici, na vaga aberta pela Vargas, o Decreto 19.656/1931 alterou o número de
aposentadoria de Themístocles Brandão Cavalcanti. Durante juízes para 11, vigente desde então com exceção do
o governo Castelo Branco, foi embaixador em Paris. intervalo entre o AI-2 (1965) e o AI-6 (1969).

14 À época, como hoje e possivelmente em 20 Os advogados a que se refere Ribeiro da Costa


qualquer outro momento de sua história, o STF tinha provavelmente são Prado Kelly, prócer udenista que
ministros com perfis ideológicos variados, que poderiam seria feito ministro do Supremo na esteira do AI-2, e
ser considerados, politicamente, adversários. Ao lado dos Orozimbo Nonato, ministro aposentado do STF que, à
ministros mais associados a João Goulart e JK, havia época, se dedicava a grandes causas e emissão de
outros perfilados no oposto do espectro ideológico: o pareceres. Além deles, colaborou também na comissão
ministro Pedro Chaves, segundo Evandro Lins e Silva formada pelo ministro da Justiça Milton Campos,
(1997, p. 386), “era muito contra a política de Jango” e encarregada de conceber o projeto de reforma da
“manifestava-se pessoalmente” contra o governo; Luís Justiça, o advogado Dario de Almeida Magalhães
Gallotti era também considerado opositor dos (REFORMA..., 1965, p. 9).
“juscelinistas” pela dura posição que encampou contra a
mudança do STF para Brasília, logo após a inauguração da 21 O recurso de revista, de longa tradição na
capital. Para a posição de Gallotti, ver matéria do história judicial brasileira, dá a um tribunal o poder de
periódico lacerdista Maquis (VOTO..., 1960, p. 22-24). cassar uma decisão e devolvê-la ao juízo ad quem, para
que a refaça de acordo com a lei. Segundo Lopes
15 Publicado em: Folha de S. Paulo, Primeiro (2008, p. 307), era o recuso de maior importância do
Caderno, São Paulo, p. 3, 20 out. 1965. Supremo Tribunal de Justiça no Império, de quem, em
matéria contenciosa, o STF se tornou sucessor direto
16 O ato institucional em questão é o AI-1, de 9 nas Repúblicas.
de abril de 1964, mas que à época era chamado apenas de
“ato institucional” por ser único e ter sido concebido 22 Por referir-se a “decreto-lei”, Ribeiro da Costa
como tal. Originalmente, os juristas ligados ao regime provavelmente tem em mente o Decreto-lei n. 6, de 16
militar defendiam que a “Revolução” havia se esgotado de novembro de 1937, art. 5º: “Todos os feitos da
com o primeiro ato institucional, devendo o país voltar à competência do Supremo Tribunal Federal serão julgados
normalidade institucional no momento imediatamente por turmas de cinco juízes, revogado o artigo 3º do
subsequente. A crise política de 1965, dentro da qual se decreto n. 19.656, de 3 de fevereiro de 1931”. O citado
insere o embate entre Ribeiro da Costa e Costa e Silva, foi decreto de 1931, porém, já mandava a organização
determinante para a decisão do governo de “reabrir o provisória do STF em turmas de cinco juízes (art. 2º).
processo revolucionário”, dentro do qual se sentiam livres
para alterar as regras jurídicas sem as amarras do devido 23 Publicado em: O Estado de S. Paulo, Primeiro
processo legislativo. Caderno, São Paulo, p. 3, 23 out. 1965.

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21 RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ : 341

24 Costa e Silva provavelmente refere-se ao caso 25 Constituição de 1934, Disposições transitórias:


Arraes (STF, Habeas corpus n. 42.108-PE, Relator Ministro “Art. 18 - Ficam aprovados os atos do Governo Provisório,
Evandro Lins e Silva. Julgado em: 19 de abril de 1965), já dos interventores federais nos Estados e mais delegados do
citado no comentário do texto principal desde artigo, em mesmo Governo, e excluída qualquer apreciação judiciária
que Ribeiro da Costa ameaçou prender o comandante do dos mesmos atos e dos seus efeitos”.
I Exército.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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342 : CINQUENTA ANOS DE UM CONFLITO: O EMBATE ENTRE O MIN. RIBEIRO DA COSTA E O GEN. COSTA E SILVA

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abr. 1964b. Janeiro, p. 22-24, 30 abr. 1960.

Rafael Mafei Rabelo Queiroz


São Paulo – SP – Brasil PROFESSOR-DOUTOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP,
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEORIA GERAL DO DIREITO.
mafei.rafael@gmail.com

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