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A farsa do inglês escolar

RAYMUNDO DE LIMA*

Um aluno processa a escola porque A culpa deste fracasso é atribuída ao


recebeu diploma sem ter aprendido aluno, professor, escola, metodologia e
inglês. Essa possibilidade existe, como sistema de ensino brasileiro. As escolas
acontece no filme “Escola da em geral se sentem desobrigadas para
desordem” (Teachers/1986), onde um levar os alunos a adquirirem
aluno processa judicialmente uma proficiência em inglês. Porque “o
escola dos Estados Unidos, porque ela objetivo das escolas não é dar
não lhe ensinou a ler, proficiência total no
compreender, inglês aos alunos,
escrever, contar. mas garantir que eles
Muitos alunos nossos tenham contato com a
também recebem cultura, a estrutura da
diploma e não língua e o
aprendem as matérias vocabulário”, diz a
dos currículos. Na FINEP (Federação
faixa dos 15 anos, o das Escolas
Brasil está em 53º Particulares do País)1.
lugar em Resultado: o Brasil
compreensão de ostenta um dos piores
leitura, 53º em ciências e 57º em índices de proficiência na língua inglesa
matemática, segundo o PISA, num do mundo. É o que indica uma pesquisa
ranking de 65 países. Se fosse avaliada da agência de intercâmbios Education
a proficiência em inglês, seríamos o First (EF). Entre os países dos BRIC
último lugar. Mas, alguém se importa? (Brasil, Rússia, Índia, China), os
brasileiros só foram melhores que os
Praticamente todas as escolas públicas e
russos. Os brasileiros receberam nota
particulares, no Brasil têm língua
média de 47,27 no índice English
inglesa nos currículos, mas é preciso
Proficiency Index (EPI) – desempenho
cursar uma escola particular,
inferior ao apresentado por participantes
especializada de línguas, que ainda não
de países como Argentina, Costa Rica e
garante fluência. Os cursinhos pré-
República Tcheca. Com isso, o Brasil
vestibulares se preocupam “apenas
conquistou a 31ª posição no ranking de
ensinar ler textos em inglês, mas não
44 países que não têm o inglês como
ensina escrever, escutar e falar”,
segunda língua.
observa Claudio Anjos, diretor de
exames do British Council no Brasil.
1
Folha de S. Paulo – C6, 26/07/2012.

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Ciência Sem Fronteiras X revela universidades dos Estados Unidos,
farsa do inglês Reino Unido e Austrália. A fluência em
Recentemente a presidenta Dilma inglês é imprescindível para
acompanhar estes cursos. Por isso as
Roussef criou o programa “Ciência Sem
escolas dos seus países levam a sério o
Fronteiras”2, para 101 mil bolsistas
ensino-aprendizagem da língua inglesa.
cursarem uma pós-graduação nas
“Nas universidades japonesas, o ensino
universidades estrangeiras (a meta é
de inglês virou prioridade máxima”.
que sejam distribuídas pelo programa
Empresas como a Nissan, Uniqlo,
75 mil bolsas de estudo até 2014,
Rakuten, o inglês é a língua oficial
financiadas pelo governo e as restantes
(FSP-Ilustríssima, 22/07/2012).
pela iniciativa privada). A deficiência
em inglês foi verificada na seleção dos Aviso aos “americanofóbicos”: a
bolsistas. Portugal e Espanha aparecem China (que ainda dirigida pelo Partido
em primeiro lugar no programa Ciência Comunista Chinês) é quem manda o
Sem Fronteiras/ 2012, porque maior número de estudantes para
provavelmente os candidatos-bolsistas universidades norte-americanas: 202
têm dificuldade com o inglês, observa o mil no ano letivo 2010/11. A Coreia do
ministro da Educação, Aloizio Sul tem 107 mil, e da Arábia Saudita
Mercadante (FSP:26/07/12). Portugal conta 51.999 de alunos seus nos Estados
não tem nenhuma universidade entre as Unidos. Até abril/ 2012, o Brasil
200 melhores do mundo, se registrou 15.517 brasileiros em escolas
consideramos o ranking Times Higher norte-americanas. A meta do Programa
Education. A Espanha possui uma, ante Ciência Sem Fronteiras é de 50 mil
75 dos Estados Unidos e 32 do Reino bolsistas nos Estados Unidos até 2014.
Unido, observa Fábio Takahashi O Reino Unido espera 10 mil alunos
(FSP:26/07/12). brasileiros do Ciência Sem Fronteiras
Certamente existem boas universidades até o final de 2014, sendo que 20%
nestes dois países, mas o Programa destes estudantes devem ser
Ciência Sem Fronteira prevê que os classificados como baixa renda.
bolsistas busquem as universidades * * *
“mais conceituadas para cada grande
área do conhecimento”. As áreas Na internet não encontrei nenhuma
prioritárias para o Brasil de hoje e do pesquisa sobre as causas da farsa do
futuro são as tecnológicas (ver quadro, ensino-aprendizagem da língua inglesa,
abaixo). Estão fora do Programa as no Brasil. Apenas me deparei com o
Humanidades, porque já temos livro “Inglês em escolas públicas não
profissionais suficientes nestas áreas. funciona: uma questão, múltiplos
olhares”, organizado pelo professor e
É nas tecnológicas e biológicas que os pesquisador, Diógenes Cândido de
chineses, coreanos do sul e japoneses, Lima (Ed. Parábola, 2011). É uma
ocupam a maioria das vagas das coletânea de artigos cujo mérito vai
além de denunciar o descaso com o
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"Ciência sem Fronteiras" é um programa que ensino desta língua estrangeira que
busca promover a consolidação, expansão e como sempre foi tratado nas escolas
internacionalização da ciência e tecnologia, da brasileiras, especialmente as que fazem
inovação e da competitividade brasileira, por
meio do intercâmbio e da mobilidade
parte da rede pública. Os autores
internacional. Programa como este já existe em discutem as causas deste fracasso,
países como China, Coreia do Sul, Japão, etc. apresentam depoimentos cujo “tom

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sincero, franqueza e vítimas do esquerdismo4
coragem chocam pela dos anos 1960-70, terão que
indiferença, pela falta de superar sua neurose se
compromisso e pelo quiseram avançar na troca
descaso com que muitos atualizada dos
professores ensinam o conhecimentos “sem
inglês”. fronteira”.
Por que hoje o inglês é As escolas públicas e
imprescindível? particulares devem parar de
enganar os alunos e pais
Porque é a língua da
comunicação no campo com um inglês faz-de-
conta. As universidades
científico, nas
universidades, nos negócios devem formar uma nova
geração de professores de
transnacionais, no turismo,
línguas competentes na
na mídia. Existem cursos nas
universidades globalizadas em que o metodologia do ensino, principalmente
para ensinar inglês. A formação original
inglês é imprescindível. Inclusive no
Brasil já existem cursos em nível de e continuada dos professores precisam
pós-graduação ministrados só em preencher esta falha curricular.
inglês. Mesmo na graduação, as É hora de parar de reproduzir a farsa do
disciplinas curriculares que não usam inglês nas escolas.
textos em outra língua podem
proporcionar uma formação incompleta
e desatualizada, visto que os artigos,
papers, e resenhas publicadas em
revistas internacionais são em inglês.
Também, os congressos científicos hoje
exigem que as comunicações sejam em 4
inglês, mesmo os realizados no Brasil. “Esquerdismo: doença infantil do comunismo”
é um escrito ensaístico de Lenin, publicado em
Portanto, o domínio da língua inglesa é 1920. Empregamos, aqui, “esquerdismo”
imprescindível em qualquer formação segundo a perspectiva psicanalítica: um sintoma
neurótico marcado pela compulsão de
profissional globalizada. É um absurdo estigmatizar o outro de “burguês”,
que pilotos de voos internacionais e “revisionista”, “reacionário”, “reformista”
controladores de tráfego aéreo não (termos usados nos anos 1960-80). O
sejam fluentes em inglês, como tem esquerdismo é sintoma da falta de argumentação
sido noticiado na imprensa3. Os consistente ou a incapacidade para reconhecer a
realidade em movimento (dialética). O
"americanofóbicos" ou “inglesfóbicos”, esquerdismo contribuiu muito para ampliar a
ignorância no movimento de esquerda no Brasil
e no exterior. Muitos pais que sofriam de
esquerdismo, entre 1960-80, boicotaram os
3
“Ao menos 95 pilotos brasileiros que filhos de aprender inglês, ouvir-cantar músicas
comandam voos internacionais estão com as dos Beatles entre outros, usar uma calça Lee,
suas licenças ameaçadas pela ANAC (Agência tomar Coca-cola, enfim, valia tudo para evitar
Nacional de Aviação) sob a suspeita de não os filhos serem influenciados pelos valores
serem fluentes em inglês como declaram ser...” diabólicos do capitalismo. Resultado: muitos
Folha de S. Paulo: 13/07/2012. Disponível em: intelectuais hoje porque são ignorantes nesta
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/542 língua internacional, e deixam de avançar em
97-ingles-ruim-ameaca-licenca-de-pilotos-de- algumas áreas do conhecimento e no
aviao-no-pais.shtml intercâmbio internacional. Sorry!

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Referências Áreas prioritárias no programa Ciência sem
Fronteiras são:
CIÊNCIA SEM FRONTEIRA (PROGRAMA).
Disponível em: Engenharias e demais áreas tecnológicas;
<http://www.cienciasemfronteiras.gov.br/web/c
Ciências Exatas e da Terra;
sf/atracao-de-cientistas-para-o-brasil1>
Biologia, Ciências Biomédicas e da Saúde;
GOVERNO ANUNCIA EXAMES DE
INGLÊS GRÁTIS PARA CIÊNCIA SEM Computação e Tecnologias da Informação;
FRONTEIRAS (14/05/2012). Disponível em:
<http://g1.globo.com/vestibular-e- Tecnologia Aeroespacial;
educacao/noticia/2012/05/governo-anuncia- Fármacos;
exames-de-ingles-gratis-para-ciencia-sem-
fronteiras.html> Acesso em 31/07/2012. Produção Agrícola Sustentável;

INGLÊS RUIM AMEAÇA A LICENÇA DE Petróleo, Gás e Carvão Mineral;


PILOTOS DE AVIÃO BRASILEIROS. In: Energias Renováveis;
Folha de S. Paulo: 13/07/2012. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/54 Tecnologia Mineral;
297-ingles-ruim-ameaca-licenca-de-pilotos-de- Biotecnologia;
aviao-no-pais.shtml>
Nanotecnologia e Novos Materiais;
LIMA, Diógenes Cândido (org.). Inglês em
escolas públicas não funciona: uma questão, Tecnologias de Prevenção e Mitigação de
múltiplos olhares. São Paulo: Parábola, 2011. Desastres Naturais;Biodiversidade e
Bioprospecção;
O JAPÃO SE ANGLICIZA. Folha de S. Paulo
– Cad. Ilustríssima. 22/07/2012. Ciências do Mar;

ROSSI, Clóvis. Tio Sam quer você. Folha de S. Indústria Criativa (voltada a produtos e
Paulo: 29/07/2012. Disponível em: processos para desenvolvimento tecnológico e
<http://www1.folha.uol.com.br/colunas/clovisro inovação);
ssi/1127960-tio-sam-quer-voce.shtml> Novas Tecnologias de Engenharia Construtiva;
Formação de Tecnólogos.

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RAYMUNDO DE LIMA é Doutor em
Educação e professor do Departamento de
Fundamentos da Educação (DFE/UEM).

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