Você está na página 1de 37

TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO - Norberto Bobbio (1997 - 10ª ed.

Capítulo 1 - Da norma jurídica ao ordenamento jurídico

1. Novidade do problema do ordenamento

Obra que se liga diretamente à anterior (Teoria da norma jurídica), em que se estudou a norma
jurídica, isoladamente considerada.

Estudo do conjunto ou complexo de normas que constituem o ordenamento jurídico.

As normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com
relações particulares entre si → sempre em um ordenamento!

A palavra “direito”, entre seus vários sentidos, tem também o de “ordenamento jurídico” (Direito
romano, Direito brasileiro). “Direito” é palavra que pode ser usada tanto para indicar uma norma
jurídica particular como um determinado complexo de normas jurídicas.

Regras jurídicas constituem sempre uma totalidade.

Não há, até hoje, nenhum tratado completo e orgânico sobre todos os problemas que a
existência de um ordenamento jurídico levanta. Os problemas gerais do Direito foram mais
estudados do ponto de vista da norma jurídica, considerada COMO UM TODO QUE SE
BASTA A SI MESMO, do que do ponto de vista da norma jurídica considerada como
parte de um todo mais vasto.

Tais problemas vinham misturados a outros e não eram considerados merecedores de uma
análise separada e particular. A norma jurídica era a única perspectiva através da qual o
Direito era estudado. O ordenamento jurídico era no máximo um CONJUNTO DE
NORMAS, MAS NÃO UM OBJETO AUTÔNOMO DE ESTUDO, com seus problemas
particulares e diversos.

= considerava-se a árvore, mas não a floresta!

Os primeiros a chamar a atenção sobre a realidade do ordenamento jurídico foram os teóricos


da instituição (Santi Romano). A teoria da instituição teve o grande mérito de pôr em relevo o
fato de que somente se pode falar de Direito onde haja um complexo de normas formando
um ordenamento. Portanto, o Direito não é NORMA, mas um CONJUNTO COORDENADO
DE NORMAS. Uma norma jurídica jamais se encontra só, mas está ligada a outras normas
com as quais forma um SISTEMA NORMATIVO.

Isolamento dos problemas do ordenamento jurídico dos problemas da norma jurídica +


tratamento autônomo dos problemas do ordenamento jurídico como parte de uma teoria geral

1
do Direito → OBRA DE HANS KELSEN. Em sua obra “A teoria geral do Direito e do Estado”, a
análise da teoria do Direito está dividida em duas partes, “Nomostática” e “Nomodinâmica”.

Nomostática: problemas relativos à norma jurídica.


Nomodinâmica: problemas relativos ao ordenamento jurídico.

Talvez pela primeira vez, no sistema de KELSEN, a teoria do ordenamento jurídico constitui
uma das duas partes de uma completa teoria do Direito.

2. Ordenamento jurídico e definição do Direito

Teoria do ordenamento jurídico constitui uma integração da teoria da norma jurídica.

No livro “teoria da norma jurídica”, nao foi possível dar uma definiçao do Direito do ponto de
vista da norma jurídica, considerada isoladamente.

Tivemos de alargar o nosso horizonte para considerar o modo pela qual uma determinada
norma se torna eficaz, a partir de uma organizaçao complexa que determina a natureza e a
entidade das sanções, as pessoas que devem exercê-las e a sua execução. ESSA
ORGANIZAÇÃO COMPLEXA É O PRODUTO DE UM ORDENAMENTO JURÍDICO!

→ logo, só é possível definir o Direito satisfatoriamente se fizermos isso do ponto de vista DO


ORDENAMENTO JURÍDICO!

Os critérios adotados para encontrar uma definição do Direito tomando como base a norma
jurídica ou não possibilitaram qualquer elemento característico da norma jurídica em relação a
outras categorias normativas (normas morais, normas sociais), conduzindo a um círculo
vicioso, ou acabam reconduzindo a um fenômeno mais complexo da organização de um
sistema de regras de conduta, que É JUSTAMENTE O ORDENAMENTO JURÍDICO! Logo,
saída era o reconhecimento da relevância do ordenamento para a compreensão do fenômeno
jurídico.

Nas tentativas realizadas pra caracterizar o Direito por meio da norma jurídica, houve quatro
critérios:
1. Critério formal: acredita ser possível definir o Direito através de algum elemento
estrutural das normas jurídicas. No que tange à estrutura, as normas podem ser
divididas em:
a. Positivas ou negativas: distinção que não oferece nenhum elemento
caracterizador do direito. Encontra-se em qualquer sistema normativo.
b. Categóricas ou hipotéticas: num sistema normativo, existem apenas normas
hipotéticas (se queres A, deves B; se é A, deve ser B). Em nenhuma dessas
formulações, há elemento característico das normas jurídicas. A primeira
formulaçao (se queres A, deves B) é própria de qualquer norma técnica. A

2
segunda formulação (se A é, B deve ser) é comum a qualquer norma
condicionada.
c. Gerais (abstratas) ou individuais (concretas): distinção que não oferece nenhum
elemento caracterizador do Direito. Encontra-se em qualquer sistema normativo.
2. Critério material: extraído do conteúdo das normas jurídicas, isto é, das açoes reguladas
pela norma jurídica.
a. Critério inconcludente, porque as açoes reguladas sao todas as açoes possíveis
(que nao sao nem necessárias, nem impossíveis, portanto). Se norma comanda
açao necessária e proíbe açao impossível = inútil. Se norma proíbe açao
necessária e comanda açao possível = inexequível.
b. Campo das açoes possíveis é vastíssimo, e isso é comum tanto às regras
jurídicas como a todas as outras regras de conduta! Categorias que tentam
separar um campo de ações reservadas ao Direito só servem, na verdade, para
distinguir o Direito da Moral, mas nao das regras de costume que se referem
sempre a açoes externas e, muitas vezes, a ações intersubjetivas.
3. Critério do sujeito que põe a norma: teoria que considera jurídicas as normas postas
pelo poder soberano (aquele acima do qual nao existe nenhum outro num determinado
grupo social e que detém o monopólio da força).
a. Definido o Direito através do poder soberano, contudo, já se realizou o salto da
norma isolada para o ordenamento jurídico no seu conjunto. Quais sao esses
órgãos é o próprio ordenamento que estabelece.
b. Se é verdade que um ordenamento jurídico é definido pela soberania, também é
verdade que a soberania se define através do ordenamento jurídico!
c. Quando o Direito é definido pela soberania, o que vem em primeiro plano nao é
a norma isolada, mas o ordenamento. Equivale a dizer que a norma jurídica é
aquela que faz parte de um determinado ordenamento.
d. A soberania nao caracteriza uma norma, mas um ordenamento. Só caracteriza a
norma quando esta for considerada como parte integrante de um ordenamento.
4. Critério do sujeito ao qual a norma é destinada: pode apresentar duas variantes,
conforme se considere como destinatário da norma o súdito ou o juiz.
a. Súdito como destinatário da norma: norma jurídica seria a norma seguida da
convicção ou crença na sua obrigatoriedade. Mas o sentimento da
obrigatoriedade é o sentimento de aquela norma singular faz parte de um
organismo mais complexo. Da pertinência a esse organismo, vem o seu caráter
mais específico. Vemos, logo, através da norma, o ordenamento que a
compreende.
b. Juiz como destinatário da norma: ora, uma definiçao de juiz só pode ser obtida
se o ordenamento todo for levado em consideração. Mais uma vez, somos
reconduzidos da norma isolada para o sistema normativo.

Como se pode ver das tentativas de definiçao expostas acima, somos constrangidos a deixar
a norma e a abraçar o ordenamento.

3. A nossa definição de Direito

3
No livro anterior, a norma jurídica foi determinada através da sanção, e sanção jurídica através
dos aspectos de exterioridade e de institucionalização. Assim, definição de norma jurídica =
“norma cuja execução é garantida por uma sançao externa e institucionalizada”.

Necessidade em que se acha o teórico geral do Direito de deixar a norma em particular e olhar
para o ordenamento. Se a sanção jurídica é necessariamente institucionalizada, isso significa
que, para que haja Direito, deve haver uma organização, seja grande ou pequena → ou seja,
deve haver um sistema normativo completo. Procurar o elemento distintivo do Direito não em
um elemento da norma, como tentavam os critérios anteriores, mas em um complexo
orgânico de normas.

A pesquisa realizada no livro anterior é uma prova do caminho obrigatório que o teórico geral
do Direito percorre da parte ao todo. Mesmo partindo da norma, chega-se ao ordenamento
quando se quer entender o fenômeno do Direito.

O que comumente chamamos de Direito é mais uma característica de certos


ordenamentos normativos do que de certas normas. Assim, o problema da definição do
Direito se torna um problema de definição do ordenamento normativo. Transferindo o
problema da determinação do significado de “jurídico” da norma para o ordenamento.

O que se entende por norma jurídica? → O que se entende por ordenamento jurídico? → o
problema da definição do Direito encontra sua localização apropriada na teoria do
ordenamento jurídico, e não na teoria da norma.

Só em uma teoria do ordenamento, o fenômeno jurídico encontra a sua explicação adequada.

Problema das normas não sancionadas: quando se fala de uma sanção organizada como
elemento constitutivo do Direito, nos referimos não às normas em particular, mas ao
ordenamento normativo tomado em seu conjunto. Assim, dizer que a sanção organizada
distingue o ordenamento jurídico de qualquer outro tipo de ordenamento não implica que
todas as normas daquele sistema sejam sancionadas, mas somente que são
sancionadas EM SUA MAIORIA!

Problema da eficácia: no caso de muitas normas da CF, elas são válidas, mas não são
eficazes, porque jamais foram aplicadas. Nesse caso, devemos deslocar a visão da norma
singular para o ordenamento considerado em seu conjunto! O problema da validade e da
eficácia, que gera dificuldades insuperáveis desde que se considere uma norma do sistema
(que pode ser válida sem ser eficaz), diminui se passarmos a nos referir ao ordenamento
jurídico, em que a eficácia é o próprio fundamento da validade (do ordenamento).

Problema do Direito consuetudinário: o principal problema de uma teoria do costume é


determinar em que ponto uma norma consuetudinária jurídica se distingue de uma norma
consuetudinária não jurídica. Através de que processo uma simples norma de costume se torna

4
uma norma jurídica? Esse problema é mal posto, porque é inútil procurar o elemento distintivo
de um costume jurídico na norma consuetudinária em particular. Uma norma consuetudinária
se torna jurídica quando vem a fazer parte de um ordenamento jurídico! Desse modo, o
problema passa a ser entender quais os procedimentos que levam uma norma consuetudinária
a fazer parte de um ordenamento jurídico.

Enquanto, pela teoria tradicional, um ordenamento se compõe de normas jurídicas, na


nova perspectiva as normas jurídicas são aquelas que venham a fazer parte de um
ordenamento jurídico. Não existem ordenamentos jurídicos porque há normas jurídicas, mas
existem normas jurídicas porque há ordenamentos jurídicos distintos dos ordenamentos não
jurídicos.

→ o termo “direito”, quando se referir a direito objetivo, indica, por esse novo raciocínio, um
tipo de sistema normativo, não um tipo de norma (norma jurídica).

4. Pluralidade de normas

Deve estar claro que a expressão “direito” se refere a um dado tipo de ordenamento.

O ordenamento jurídico, como todo sistema normativo, é um conjunto de normas. Essa é


uma definição geral de ordenamento, que pressupõe apenas que, na constituição de um
ordenamento, concorram, pelo menos, mais normas. Não pode haver um ordenamento
composto de uma norma só.

Para se conceber um ordenamento composto de uma só norma, seria preciso imaginar uma
norma que se referisse a TODAS AS AÇÕES POSSÍVEIS, qualificando-as em uma única
modalidade.

Três possibilidades de conceber um ordenamento composto de uma única norma:


1. Tudo é permitido: seria a negação de qualquer ordenamento jurídico. Definição do
próprio estado de natureza.
2. Tudo é proibido: tornaria impossível qualquer vida social humana.
3. Tudo é obrigatório: também torna impossível a vida social, porque as ações possíveis
podem entrar em conflito entre si. Ordenar duas ações que estejam em conflito significa
tornar uma ou ambas inexequíveis.

Logo, é inconcebível um ordenamento que regule todas as ações possíveis com uma única
modalidade normativa. Não se pode abraçar todas as ações possíveis com um único juízo de
qualificação.

Mas se pode conceber um ordenamento que ordene ou proíba uma única ação. Seria o caso
de ordenamentos muito simples, que consideram como condição para pertencer a um
determinado grupo ou associação apenas a execução de uma obrigação. Mas um
ordenamento concebido dessa maneira não pode ser considerado como um ordenamento

5
composto de uma única norma. Toda norma particular que regula uma ação implica uma
norma geral exclusiva (norma que subtrai daquela regulamentação particular todas as
outras ações possíveis). Dizer que X é obrigatório implica dizer que não-X é permitido.

Com a incidência da norma geral exclusiva, há, sempre, DUAS NORMAS: a norma particular e
a norma geral exclusiva, ainda que haja apenas uma norma particular expressamente
formulada. Dessa forma, mesmo o ordenamento mais simples é composto de, pelo menos,
duas normas.

Mesmo que um ordenamento jurídico possa ser reduzido à ordem de não causar dano a
ninguém, ainda haverá duas normas: uma que prescreve não causar dano a outrem e outra
que autoriza a fazer tudo o que não cause dano a outrem.

Até agora, quando falamos de normas, nos referimos a normas de conduta. Mas, em todo
ordenamento, ao lado das normas de conduta, existe um outro tipo de normas, chamadas de
normas de estrutura ou normas de competência (prescrevem as condições e os
procedimentos pelos quais emanam normas de conduta válidas). Nao determinam uma
conduta, mas fixam condições e procedimentos para produzir normas válidas de conduta.

É concebível um ordenamento jurídico composto de uma só norma de estrutura? Exemplo:


ordenamento de uma monarquia absolutista, em que todas as normas se resumem a “é
obrigatório tudo aquilo que o soberano determina”. No entanto, as normas de conduta, nesse
caso, serão tantas quantas forem as ordens do soberano. Assim, existindo só uma norma de
estrutura, haverá a extrema variabilidade das normas de conduta no tempo.

5. Os problemas do ordenamento jurídico

Admitimos, dessa forma, que um ordenamento é composto de mais de uma norma. Os


principais problemas relativos à existência de um ordenamento nascem das relações das
normas entre si.

1. Saber se essas normas constituem uma unidade. Problema da hierarquia das normas.
Teoria da unidade do ordenamento jurídico.
2. Saber se o ordenamento jurídico também é um sistema. Problema das antinomias
jurídicas. Teoria do sistema do ordenamento jurídico.
3. Saber se o ordenamento jurídico também pretende ser completo. Problema das
lacunas do Direito. Teoria da plenitude do ordenamento jurídico.
4. Saber se os ordenamentos possuem relações entre si. Problema do reenvio de um
ordenamento a outro. Teoria das relações entre ordenamentos.
Pretensão de traçar as linhas gerais de uma teoria do ordenamento jurídico. Destinada a
continuar e a integrar a teoria da norma jurídica.

Capítulo 2 - A unidade do ordenamento jurídico

6
1. Fontes reconhecidas e fontes delegadas

Na realidade, os ordenamentos são compostos por uma infinidade de normas (que, como as
estrelas no céu, jamais alguém consegue contar).

A dificuldade de rastrear todas as normas que constituem um ordenamento guarda relação com
o fato de, geralmente, essas normas não derivarem de uma única fonte.

Distinção entre ordenamentos jurídicos simples e complexos, conforme as normas


derivem de uma só fonte ou de mais de uma. Os ordenamentos jurídicos de que tratamos
são complexos.

O legislador é um personagem imaginário que esconde uma realidade mais complicada.


Mesmo o ordenamento de um grupo pequeno, como uma família, será complexo, porque nem
sempre a única fonte de regras de conduta é a autoridade paterna.

A complexidade de um ordenamento jurídico deriva do fato de que a necessidade de


regras de conduta numa sociedade é tão grande que não existe nenhum poder, ou
órgão, capaz de satisfazê-la sozinho. Por isso, o poder supremo recorre, normalmente, a
dois expedientes:

1. Recepção de normas já feitas, produzidas por ordenamentos diversos e precedentes.


a. Produz fontes reconhecidas.
b. Exemplo: costume nos ordenamentos estatais modernos, onde a fonte direta e
superior é a lei. O costume pode ser utilizado para acolher normas jurídicas já
feitas e enriquecer o ordenamento em bloco com um conjunto de normas
produzidas em outros ordenamentos e em tempos até mesmo anteriores à
própria constituição do ordenamento estatal.
c. Ainda que seja possível afirmar que o costume pode funcionar como uma
autorização aos cidadãos para produzir normas jurídicas através de seu próprio
comportamento uniforme, considerar o costume entre as fontes delegadas
parece ser uma construção artificial. Na recepção, o ordenamento jurídico
acolhe um preceito já feito; na delegação, manda fazê-lo, ordenando uma
produção futura. O costume é muito mais um produto natural, não havendo um
poder de produção de normas consuetudinárias.
2. Delegação do poder de produzir normas jurídicas a poderes ou órgãos inferiores.
a. Produz fontes delegadas.
b. Exemplo: regulamento em relação à lei. Embora os regulamentos também sejam
normas gerais e abstratas, a sua produção normalmente é atribuída ao Poder
Executivo, por delegação do Poder Legislativo, para integrar leis muito
genéricas, que contêm somente diretrizes e não poderiam ser aplicadas sem
especificação. Tarefa de tornar exequível a lei.
i. As leis ordinárias podem, às vezes, ser consideradas como os
regulamentos executivos das diretrizes contidas na Constituição.

7
Assim, em cada ordenamento, ao lado da fonte DIRETA, temos fontes INDIRETAS, que podem
ser divididas em FONTES RECONHECIDAS e FONTES DELEGADAS.

A complexidade de um ordenamento deriva da multiplicidade das fontes das quais afluem


regras de conduta.

Outra fonte de normas de um ordenamento jurídico: poder de negociação, entendido como o


poder atribuído aos particulares de regular, mediante atos voluntários, os próprios interesses.
Coloca-se em destaque a autonomia privada. Produtora independente de regras de conduta,
aceitas pelo Estado. Pode ser considerado, também, como fonte delegada pelo Estado aos
particulares para regular seus interesses. É uma questão de decidir se a autonomia privada
deve ser considerada como um resíduo de poder normativo natural ou privado, antecedente ao
Estado (sendo produtora independente), ou como um produto do poder originário do Estado
(sendo fonte delegada).

2. Tipos de fontes e formação histórica do ordenamento

A solução do problema da distinção entre fontes reconhecidas e fontes delegadas depende,


também, da concepção geral que se assume em relação à formação e à estrutura de um
ordenamento jurídico.

O ponto de referência último de cada ordenamento será sempre o poder originário, que é a
fonte das fontes, poder além do qual não existe outro pelo qual se possa justificar o
ordenamento jurídico. Distinção entre fontes originárias e fontes derivadas.

Se todas as normas derivassem diretamente do poder originário, o ordenamento seria simples.


Mas, em um ordenamento real, as normas afluem de diversos canais, e isso depende
historicamente de duas razões fundamentais:

a. Limite externo do poder originário/soberano: ordenamento não nasce num deserto.


O novo ordenamento que surge não elimina nunca completamente as estratificações
normativas que o precederam. Parte das regras anteriores vem a fazer parte do novo
ordenamento, por meio de um reconhecimento expresso ou tácito. Assim, fato é que o
novo ordenamento surge limitado pelos ordenamentos precedentes.
i. O poder originário é originário em sentido jurídico, mas não em sentido histórico.
b. Limite interno do poder originário/soberano: uma vez constituído, o poder originário
cria novas centrais de produção jurídica, atribuindo a órgãos executivos o poder de
estabelecer normas integradoras (regulamentos), que são subordinadas às legislativas,
por exemplo. Trata-se de uma autolimitação do poder soberano, o qual subtrai uma
parte do poder normativo para dá-lo a outros órgãos ou entidades, que são
dependentes desse mesmo poder.

8
Pensamento jusnaturalista: o poder civil originário se forma a partir de um estado de
natureza, por meio de um procedimento característico do contrato social. Mas há duas
maneiras de conceber o que é esse contrato social.
Hipótese hobbesiana do contrato social: quem estipula o contrato renuncia
completamente a todos os direitos do estado natural, e o poder civil nasce sem limites. Logo,
toda limitação futura terá a natureza de autolimitação (limite interno). Direito natural
desaparece completamente ao dar vida ao Direito positivo. A soberania civil nasce absoluta,
sem quaisquer limites. Ordenamento positivo é concebido como tábula rasa de todo o direito
preexistente. Cada limite do poder soberano é autolimitação.
Hipótese lockiana do contrato social: o poder civil é fundado com o objetivo de
assegurar o melhor gozo dos direitos naturais (vida, propriedade, liberdade) e, assim, nasce
originariamente limitado por um direito preexistente. Direito positivo é instrumento para a
completa atuação do direito natural. A soberania civil já nasce limitada (pelo direito natural).
Ordenamento positivo é concebido como emergente de um estado jurídico mais antigo que
continua a subsistir. Os limites do poder soberano podem ser originários e externos.

Relação com o capítulo 1 (por que tudo isso foi dito?):


A aceitação de uma normatização consuetudinária corresponde à hipótese de um ordenamento
que nasce limitado.

A atribuição de um poder regulamentar corresponde à hipótese de um ordenamento que se


autolimita.

Por sua vez, o poder de negociação pode ser explicado com ambas as hipóteses. Ora como
uma espécie de direito do estado natural, reconhecido pelo Estado, ora como uma delegação
do Estado aos cidadãos.

3. As fontes do Direito

O que se entende por “fonte”? “Fontes do direito” são aqueles fatos ou atos de que o
ordenamento jurídico faz depender a produção de normas jurídicas. O ordenamento
jurídico, além de regular o comportamento das pessoas, regula também o modo pelo qual as
regras devem ser produzidas. O ordenamento jurídico regula a própria produção normativa!

Existem normas de comportamento ao lado de normas de estrutura (normas para a produção


jurídica, normas que regulam os procedimentos de regulamentação jurídica). As normas de
estrutura não regulam o comportamento, mas o modo de regular um comportamento, isto é, o
comportamento que elas regulam é, na verdade, o modo de produzir regras.

As normas de estrutura simplesmente determinam a quem cabe estabelecer as normas de


conduta. Dessa forma, as normas de estrutura fazem existir fontes de direito.

9
Em cada grau normativo, encontraremos normas de conduta (normas dirigidas diretamente a
regular a conduta das pessoas) e normas de estrutura (normas destinadas a regular a
produção de outras normas).

As leis ordinárias não são todas dirigidas aos cidadãos, porque muitas têm a função de
oferecer aos juízes instruções sobre o modo pelo qual as normas individuais e concretas, que
são as sentenças, devem ser produzidas. Logo, nem sempre serão normas de conduta,
podendo ser normas para a produção de outras normas (normas de estrutura).

Normativas imperativas de segunda instância = normas de estrutura = comandos de comandar.


Somente a consideração do ordenamento NO SEU CONJUNTO permite aceitar a
presença dessas normas de segunda instância.

Para as normas de primeira instância (normas de conduta), vige a classificação tripartite, que
as divide em imperativas, proibitivas e permissivas. Para as normas de segunda instância
(normas de estrutura), há NOVE TIPOS:

1. Normas que mandam ordenar


2. Normas que proíbem ordenar
3. Normas que permitem ordenar
4. Normas que mandam proibir (coincide com proibir permitir)
5. Normas que proíbem proibir (coincide com mandar permitir)
6. Normas que permitem proibir
7. Normas que mandam permitir (coincide com proibir proibir)
8. Normas que proíbem permitir (coincide com mandar proibir)
9. Normas que permitem permitir

4. Construção escalonada do ordenamento

A complexidade do ordenamento não exclui a sua unidade.

Essa obra aceita a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada


por Hans Kelsen. O núcleo dessa teoria afirma que as normas de um ordenamento não
estão todas no mesmo plano, havendo normas superiores e normas inferiores,
interdependentes entre si. Acima de todas, existe uma norma suprema, chamada de NORMA
FUNDAMENTAL, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa
a unidade do ordenamento.

Cada ordenamento tem uma norma fundamental, que é responsável por dar unidade a todas as
outras normas. Forma um conjunto unitário que pode ser chamado de “ordenamento”.

A norma fundamental é o termo unificador das normas que compõem um ordenamento


jurídico. Sem uma norma fundamental, as normas constituiriam um amontoado, não um
ordenamento propriamente dito.

10
O ordenamento constitui uma unidade pelo fato de que, direta ou indiretamente, todas as fontes
do direito podem ser remontadas a uma única norma.

Estrutura hierárquica do ordenamento. As normas de um ordenamento são dispostas em


ordem hierárquica. O exército é um exemplo de estrutura hierárquica. Assim é o ordenamento
jurídico.

O ato executivo (de cumprir uma obrigação contratual, por exemplo) está ligado, ainda que
mediatamente, às normas constitucionais. Essas normas constitucionais são produtoras, em
diversos níveis, das normas inferiores. Contudo, numa estrutura hierárquica, os termos
“execução” e “produção” são relativos, porque a mesma norma pode ser considerada, ao
mesmo tempo, executiva (em relação à norma superior) e produtiva (em relação à norma
inferior). Todas as fases de um ordenamento são, ao mesmo tempo, executivas e produtivas, à
exceção da fase de grau mais alto (constituída pela norma fundamental) e da fase de grau mais
baixo (constituída pelos atos executivos).

DUPLO PROCESSO ASCENDENTE E DESCENDENTE: estrutura hierárquica de um


ordenamento se constitui por uma pirâmide. O vértice é ocupado pela norma fundamental e a
base é constituída pelos atos executivos. De cima para baixo, há uma série de processos de
produção jurídica (série de poderes sucessivos). De baixo para cima, há uma série de
processos de execução jurídica (série de obrigações que se sucedem). Nos graus
intermediários, estão juntas a produção e a execução. Nos graus extremos, ou só produção
(norma fundamental) ou só execução (atos executivos).

Essa lógica pode ser explicada pela noção de poder-dever. A produção jurídica expressa um
poder (originário ou derivado) e a execução revela o cumprimento de um dever. Poder e dever
são dois conceitos correlatos, um não pode ficar sem o outro.

Poder → capacidade que o ordenamento jurídico atribui a esta ou aquela pessoa de colocar em
prática obrigações em relação a outras pessoas.

Obrigação → atitude a que é submetido quem está sujeito ao poder.

Não há obrigação em um sujeito sem que haja um poder em outro sujeito. Mas pode haver
poder sem nenhuma obrigação correspondente → caso em que, ao poder, não corresponde
uma obrigação, mas uma sujeição (direitos potestativos).

De toda forma, uma relação jurídica é composta pelo poder de um sujeito e o dever de outro
sujeito. Termos correlativos da relação jurídica.

Embora todos os ordenamentos tenham a forma de pirâmide, nem todas as pirâmides têm o
mesmo número de andares.

11
5. Limites materiais e limites formais

Quando um órgão superior atribui um poder normativo a um órgão inferior, não atribui um poder
ilimitado, estabelecendo também os limites para que o poder seja exercido. Assim como o
exercício do poder de negociação ou do poder jurisdicional são limitados pelo Poder
Legislativo, o exercício do Poder Legislativo é limitado pelo poder constitucional.

Conforme se vai de cima para baixo na pirâmide do ordenamento jurídico, o poder normativo
vai se tornando mais circunscrito.

Os limites utilizados pelo poder superior para restringir e regular o poder inferior são de dois
tipos:

a. Limites materiais: relativos ao CONTEÚDO da norma que o inferior está autorizado a


emanar.
i. Positivos: CF impõe ao legislador ordinário que estabeleça normas numa
determinada matéria (ordem de mandar).
ii. Negativos: CF proíbe ao legislador ordinário que estabeleça normas numa
determinada matéria (proibição de mandar ou ordem de permitir).
iii. Os limites materiais podem faltar na relação entre CF e lei ordinária, naqueles
ordenamentos em que não existe diferença de grau entre leis constitucionais e
leis ordinárias (Constituições flexíveis). Nesses casos, o legislador ordinário
pode legislar em qualquer matéria e em qualquer direção. Exemplo: Constituição
inglesa.
b. Limites formais: relativos à FORMA, ao modo ou ao processo pelo qual a norma do
inferior deve ser emanada.
i. São constituídos por todas as normas da CF que prescrevem o modo de
funcionamento dos órgãos legislativos. Os limites formais nunca faltam.

Os dois limites podem ser impostos contemporaneamente, mas pode haver um sem que haja o
outro.

Esses limites delimitam o âmbito em que a norma inferior emana legitimamente. Fora deles, a
norma está sujeita a ser declarada ilegítima e a ser expulsa do sistema.

Quando a lei constitucional atribui aos cidadãos, por exemplo, o direito à liberdade religiosa,
limita o conteúdo normativo do legislador ordinário, proibindo-lhe de estabelecer normas que
tenham como conteúdo a restrição ou a supressão da liberdade religiosa.

Quando a Constituição determina que o Estado deve providenciar a instrução até uma certa
idade, atribui ao legislador ordinário um limite positivo; quando atribui certos direitos de
liberdade, estabelece um limite negativo, proibindo-lhe de emanar leis que reduzam ou
eliminem aquela esfera de liberdade.

12
Se olharmos para a passagem da lei ordinária para a decisão judicial, normalmente
encontraremos ambos os limites. As leis relativas ao direito material podem ser configuradas
como verdadeiros limites materiais ao poder normativo do juiz. As leis relativas ao
procedimento constituem limites formais da atividade do juiz.

Em geral, os vínculos do juiz no que diz respeito à lei são maiores do que aqueles existentes
para o legislador ordinário quanto à Constituição.

“Juízos de equidade” → juiz está autorizado a resolver uma controvérsia sem recorrer a uma
norma legal preestabelecida. Autorização, ao juiz, de produzir direito fora de cada limite
material imposto pelas normas superiores. Isso é muito raro, porque, se os limites materiais
não derivarem de leis escritas, poderão derivar de outras fontes superiores, como o costume ou
o precedente judicial.

As normas relativas aos contratos são geralmente destinadas a determinar o modo pelo qual o
poder de negociação deve ser exercido para produzir consequências jurídicas, e não a matéria
sobre a qual esse poder deve ser exercido. Logo, no que tange à autonomia privada,
interessam mais os limites formais do que o próprio âmbito material, embora também possam
haver limites materiais (exemplo: testamento).

6. A norma fundamental

Será que as normas constitucionais são a norma fundamental?

Toda norma pressupõe um poder normativo, significando imposição de obrigações, decorrente


do exercício de poder.

Se existem normas constitucionais, elas derivam de um poder normativo, que é o poder


constituinte. O poder constituinte é o poder último, supremo, originário num ordenamento
jurídico.

Porém, se o poder constituinte é o poder último, está pressuposto que exista uma norma que
atribui ao poder constituinte a faculdade de produzir normas jurídicas → ESSA NORMA É A
NORMA FUNDAMENTAL! A norma fundamental atribui aos órgãos constitucionais o poder de
fixar normas válidas e, ao mesmo tempo, impõe aos demais o poder de obedecê-las.

A norma fundamental não é expressa, mas nós A PRESSUPOMOS para fundar o sistema
normativo. Para fundar o sistema normativo, faz-se necessária uma norma última, além
da qual seria inútil ir. É uma norma única, da qual todas as outras derivam direta ou
indiretamente. Essa norma única é aquela que impõe obedecer ao poder constituinte, que dá
origem às leis ordinárias, que dão origem aos regulamentos, decisões judiciais… É o ponto de
apoio do sistema, é aquela de onde deriva o poder primeiro.

13
O poder constituinte é um poder jurídico, mas também é o produto de uma norma jurídica → a
norma jurídica que produz o poder constituinte é a norma fundamental. Ainda que não
seja expressa, é o fundamento subentendido da legitimidade de todo o sistema. É o
pressuposto de obediência às leis que derivam da CF e à própria CF.

Como estabelecer se uma norma faz parte de um ordenamento?

Pertinência de uma norma a um ordenamento → VALIDADE. Uma norma existe como norma
jurídica, ou é juridicamente válida, enquanto pertence a um ordenamento jurídico. Se ela for
válida, então será obrigatório conformar-se a ela.

Mas como o juiz ou o cidadão faz para distinguir uma norma pertencente ao sistema de uma
norma que não pertence ao sistema?

A primeira condição para que uma norma seja válida é que advenha de autoridade com poder
legítimo para estabelecer normas jurídicas. De grau em grau, para descobrir qual é esse poder
legítimo, chegamos ao poder supremo, cuja legitimidade é dada por uma norma além da qual
não existe outra, sendo a própria norma fundamental. É esse o modo pelo qual se pode
estabelecer se uma norma é válida: remontando, de grau em grau, de poder em poder, até a
norma fundamental. Uma norma é válida quando puder ser reinserida na norma
fundamental.

A norma fundamental é o critério supremo que permite estabelecer se uma norma pertence a
um ordenamento → é o fundamento de validade de todas as normas do sistema e,
também, o seu princípio unificador.

Não pode existir um ordenamento sem norma fundamental. A norma fundamental é um


pressuposto do ordenamento, assim como os postulados existem em um sistema científico.
Também como os postulados, a norma fundamental é uma CONVENÇÃO, UMA
PROPOSIÇÃO EVIDENTE QUE É POSTA NO VÉRTICE DO SISTEMA para que a ela se
possam reconduzir todas as demais normas. Ela não tem fundamento, porque, se tivesse,
não seria mais a norma fundamental, mas haveria outra norma superior, da qual ela
dependeria. Perguntar o que está por trás da norma fundamental é um problema estéril. Para
sabê-lo, seria preciso sair do sistema, por não se tratar de um problema jurídico. Entramos na
justificação do poder.

As teorias sobre o fundamento do poder são tentativas de responder à pergunta: qual é o


fundamento da norma fundamental? Para responder, deve-se transcender o ordenamento
jurídico positivo. Algumas respostas são mais conhecidas:

a. Todo poder vem de Deus. Foi autorizado por Deus a formular normas jurídicas válidas.
b. Derivação da lei natural, revelada ao homem por meio da razão. Teorias jusnaturalistas
descobrem um outro direito, superior ao direito positivo, que deriva não da vontade do
homem, mas da própria razão que é comum a todos os homens.

14
c. Poder deriva de uma convenção originária, consubstanciada em um contrato social, isto
é, num acordo originário entre aqueles que se reúnem em uma sociedade, ou entre os
membros de uma sociedade e aqueles aos quais é confiado o poder. Deriva da vontade
consentida dos que dão vida à sociedade.

7. Direito e força

A teoria da norma fundamental é objeto de outra crítica frequente (para além de qual o
fundamento da norma fundamental) → diz respeito ao conteúdo da norma fundamental. O
poder originário, que, segundo a norma fundamental, deve ser obedecido, configura o
conjunto das forças políticas que, num determinado momento histórico, tomaram o
domínio e instauraram um novo ordenamento jurídico. Dessa forma, fazer depender todo o
sistema normativo do poder originário seria reduzir o direito à força?

Que a instauração de um ordenamento jurídico tenha ocorrido mediante o exercício da força,


isso não está implícito no conceito de poder. Pode muito bem resultar do próprio consenso
entre as pessoas. A força pode ser um instrumento necessário do poder, mas não significa que
seja o fundamento. A força é necessária para exercer o poder, mas não para justificá-lo.

Colocar o poder como fundamento último de uma ordem jurídica positiva não quer dizer reduzir
o Direito à força, mas simplesmente reconhecer que a força é necessária para a realização do
Direito. É apenas reforçar a ideia de que o Direito é um ordenamento com EFICÁCIA
REFORÇADA. O ordenamento jurídico existe enquanto se mantém eficaz.

Quem teme que a ideia de norma fundamental reduza o direito à força está mais preocupado
com a ideia de justiça, que não é que ora se discute. A norma fundamental está na base do
Direito como ele é (Direito positivo), e não do Direito como deveria ser (Direito justo). A norma
fundamental dá a legitimação jurídica, não moral, do poder. O Direito, como ele é, é a
expressão dos mais fortes, não dos mais justos. Melhor se os mais fortes forem, também, os
mais justos…

A força é um instrumento para a realização do Direito. Mas há outra ideia, defendida por ROSS
e KELSEN, que sustenta que a força é objeto da regulamentação jurídica, sendo o Direito um
conjunto de normas que regulam o exercício da força numa determinada sociedade.

As regras para o exercício da força são, num ordenamento jurídico, uma porção de regras que
serve para organizar a sanção e tornar as normas de conduta e o próprio ordenamento mais
eficazes. O objetivo do legislador é organizar a sociedade mediante a força, e não organizar a
força! (Crítica à ideia de ROSS e KELSEN, que confundem a parte com o todo, o instrumento
com o fim)

Capítulo 3 - A coerência do ordenamento jurídico

1. O ordenamento jurídico como sistema

15
No capítulo anterior, demonstrou-se que apenas se pode falar de unidade do ordenamento
jurídico quando se pressupõe como base deste ordenamento uma norma fundamental com a
qual se relacionem, direta ou indiretamente, todas as demais normas do ordenamento.

A próxima pergunta a ser respondida é: além de uma unidade, o ordenamento jurídico constitui,
também, um sistema? Por SISTEMA, entende-se uma totalidade ordenada, um conjunto de
entes em que exista uma certa ordem. Deve haver não apenas um relacionamento com o todo,
mas também um relacionamento de coerência dos elementos entre si.

As normas que compõem o ordenamento estão num relacionamento entre si? Se sim, em que
condições esta relação de coerência é possível?

Análise do conceito de sistema feita por Kelsen. Distinção entre dois tipos de sistema nos
ordenamentos normativos: sistema estático e sistema dinâmico.

a. Sistema estático: normas estão relacionadas umas às outras como as proposições de


um sistema dedutivo, isto é, pelo fato de que derivam umas das outras partindo de uma
ou mais normas originárias de caráter geral, que têm a mesma função dos postulados
ou axiomas em um sistema científico. As normas estão relacionadas entre si no que se
refere ao seu conteúdo. Justificação da ordem pela dedução de uma ordem de
abrangente.
b. Sistema dinâmico: as normas que o compõem derivam umas das outras através de
sucessivas delegações de poder - logo, não através de seu conteúdo, mas através da
autoridade que as colocou. A relação entre as normas nesse tipo de ordenamento
normativo não é material, mas formal. Exemplo: sistema que coloca como máxima “é
preciso obedecer à vontade de Deus”. Nesse caso, todas as normas podem ser
reconduzidas à autoridade divina. Justificação da ordem pela atribuição desta a uma
autoridade indiscutível.

Exemplo didático → pai ordena ao filho que faça a lição. Filho questiona por quê. Se o pai
responder “porque deves aprender”, essa justificação tenderá à construção de um sistema
estático. Se o pai responder “porque deves me obedecer”, essa justificação tenderá à
construção de um sistema dinâmico.

Depois de fazer essa distinção, Kelsen sustenta que os ordenamentos jurídicos são sistemas
dinâmicos. Sistemas estáticos seriam os ordenamentos morais.

O ordenamento jurídico é um ordenamento no qual o enquadramento das normas é julgado


com base num critério meramente formal, independentemente do conteúdo.
O ordenamento moral é um ordenamento no qual o enquadramento das normas no sistema é
fundado sobre aquilo que as normas prescrevem (e não sobre a autoridade de que derivam).

16
Mas que ordem pode haver entre as normas de um ordenamento jurídico, se o critério de
enquadramento é puramente formal, referente não à conduta regulada, mas unicamente à
maneira como foram postas? Da autoridade delegada poderá emanar qualquer norma? E com
base nesse critério somente formal, poderíamos falar, ainda, de um sistema, de ordem, de
totalidade ordenada num conjunto de normas no qual duas normas contraditórias fossem
ambas legítimas?

Num sistema dinâmico, duas normas em oposição são perfeitamente legítimas. Para julgar a
oposição de duas normas, é necessário examinar o seu conteúdo, não bastando se referir à
autoridade de que emanaram. Mas um ordenamento que admita a existência, em seu seio, de
entes em oposição entre si, poderá ser chamado de “sistema” propriamente dito?

Nessas condições, é preciso esclarecer em qual sentido, em quais condições e dentro de quais
limites é possível falar em um sistema normativo de natureza dinâmica.

2. Três significados de sistema

Existe uma tendência constante da jurisprudência de considerar o Direito como sistema, o que
fica provado pela utilização comum da interpretação sistemática, entendida como forma de
interpretação que tira os seus argumentos do pressuposto de que as normas de um
ordenamento, ou de uma parte do ordenamento, constituam uma totalidade ordenada e,
portanto, seja lícito esclarecer uma norma obscura ou diretamente integrar uma norma
deficiente recorrendo ao chamado “espírito do sistema”, mesmo indo contra aquilo que
resultaria de uma interpretação meramente literal.

O termo “sistema” é um daqueles termos de muitos significados, que cada um usa conforme
suas próprias conveniências.

No uso histórico da filosofia do Direito e da jurisprudência, emergem três diferentes significados


de sistema.
1. Um dado ordenamento é um sistema enquanto todas as normas jurídicas daquele
ordenamento forem deriváveis de princípios gerais do Direito, considerados da mesma
maneira que os postulados de um sistema científico. Acepção aplicada historicamente
ao ordenamento do Direito natural. Lógica dedutiva.
2. Termo utilizado para indicar um ordenamento da matéria, realizado através do processo
indutivo, isto é, partindo do conteúdo das simples normas com a finalidade de construir
conceitos sempre mais gerais, e classificações ou divisões da matéria inteira. A
consequência dessas operações será o ordenamento do material jurídico do mesmo
modo que as classificações do zoólogo dão um ordenamento ao reino animal. “Sistema
do Direito romano atual”, de Savigny. Pandectística alemã. Teve como conquista a
teoria do negócio jurídico. Propósito de permitir um melhor ordenamento da matéria.
3. Significado mais interessante: um ordenamento jurídico constitui um sistema porque
não podem coexistir nele normas incompatíveis. A ideia de sistema equivale à
validade do princípio que exclui a incompatibilidade das normas. Se num ordenamento

17
vêm a existir normas incompatíveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas. As
normas de um ordenamento têm um certo relacionamento entre si, que é o
relacionamento de compatibilidade, o que implica a exclusão da incompatibilidade.
a. Dizer que as normas devem ser compatíveis não quer dizer que se encaixem
umas nas outras, que constituam um sistema dedutivo perfeito. Aqui, o sistema
jurídico não é um sistema dedutivo, é apenas uma ordem que exclui a
incompatibilidade das suas partes simples. Num sistema dedutivo, se uma
contradição aparecer, todo o sistema ruirá. Num sistema jurídico, contudo, a
admissão do princípio que exclui a incompatibilidade tem por consequência,
caso haja incompatibilidade entre duas normas, não a queda de todo o sistema,
mas apenas de uma das duas normas ou, no máximo, de ambas as normas
incompatíveis entre si.
b. Para se considerar o enquadramento de uma norma no sistema, não bastará
mostrar a sua derivação de uma das fontes autorizadas, mas será necessário
demonstrar também que ela não é incompatível com outras normas. Nem todas
as normas produzidas pelas fontes autorizadas seriam normas válidas →
apenas aquelas normas compatíveis com as outras serão válidas.

3. As antinomias

Antinomia → situação de normas incompatíveis entre si.

A tese de que o ordenamento jurídico constitua um sistema no terceiro sentido se exprime


também na máxima: o Direito não tolera antinomias. Essa regra vem desde as Constituições de
Justiniano: no Direito romano, considerado por longos séculos o Direito por excelência, não
existiam antinomias. Uma das finalidades da interpretação jurídica era também a de eliminar
antinomias, caso alguma tivesse aparecido.

Quando duas normas são incompatíveis? Em que consiste uma antinomia? Devemos lembrar
dos relacionamentos intercorrentes entre as quatro figuras de qualificação normativa:
obrigatório, proibido, permitido positivo e permitido negativo.

Duas proposições são incompatíveis quando ambas não podem ser verdadeiras. Das seis
relações jurídicas, três são de incompatibilidade e três são de compatibilidade.
1. Obrigatório (O) e proibido (O não): são dois contrários, podem ser ambos falsos, mas
não podem ser ambos verdadeiros.
2. Obrigatório (O) e permitido negativo (não O): são dois contraditórios, não podem ser
nem ambos verdadeiros, nem ambos falsos.
3. Proibido (O não) e permitido positivo (não O não): são dois contraditórios, não podem
ser nem ambos verdadeiros, nem ambos falsos.
4. Obrigatório (O) e permitido positivo (não O não): são dois subalternos, entre os quais
existe uma relação de implicação. Da verdade do primeiro, deduz-se a verdade do
segundo; da falsidade do segundo, deduz-se a falsidade do primeiro. Se uma ação é

18
obrigatória, é necessariamente permitida (relação de superimplicação). Se uma ação é
permitida, não é necessariamente obrigatória (relação de subimplicação).
5. Proibido (O não) e permitido negativo (não O): são subalternos, havendo relação de
implicação, como descrito acima.
6. Permitido positivo (não O não) e permitido negativo (não O): são subcontrários. Ambos
podem ser verdadeiros, mas ambos não podem ser falsos.

Das explicações acima, extrai-se que normas incompatíveis são aquelas que não podem ser
ambas verdadeiras. Dessa forma, relações de incompatibilidade normativa poderão ser
verificadas em três casos:
a. Norma que ordena fazer algo e norma que proíbe fazer algo (contrariedade);
b. Norma que ordena fazer algo e norma que permite não fazer (contraditoriedade);
c. Norma que proíbe fazer algo e norma que permite fazer (contraditoriedade).

4. Vários tipos de antinomias

Portanto, antinomia → situação na qual são colocadas em existência duas normas, das quais
uma obriga e a outra proíbe, ou uma obriga e a outra permite não fazer, ou uma proíbe e a
outra permite o mesmo comportamento.

Há duas condições que devem ser preenchidas para que possa haver uma antinomia:
1. As duas normas devem pertencer ao mesmo ordenamento.
2. As duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade (material, espacial, pessoal e
temporal).

Assim, antinomia jurídica → duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento


e com o mesmo âmbito da validade!

Há três tipos de antinomias:


a. Antinomia total-total: duas normas incompatíveis têm igual âmbito de validade. Em
nenhum caso, uma das duas normas pode ser aplicada sem entrar em conflito com a
outra.
b. Antinomia parcial-parcial: duas normas incompatíveis têm âmbito de validade em parte
igual e em parte diferente, subsistindo a antinomia somente para a parte comum. Cada
uma das normas tem um campo de aplicação em conflito com a outra, e um campo de
aplicação no qual o conflito não existe.
c. Antinomia total-parcial: uma norma tem âmbito de validade igual ao da outra, porém
mais restrito (âmbito de validade é, na íntegra, igual a uma parte do da outra), a
antinomia é total por parte da primeira norma e somente parcial por parte da segunda. A
primeira norma não pode ser aplicada sem entrar em conflito com a segunda, e a
segunda tem uma esfera de aplicação em que não entra em conflito com a primeira.

Além disso…

19
- Antinomias impróprias: um ordenamento jurídico pode ser inspirado em valores
contrapostos. Serão antinomias de princípio. Não são antinomias jurídicas propriamente
ditas, mas podem dar lugar a normas incompatíveis.
- Antinomia de avaliação: uma norma pune um delito menor com uma pena mais grave
do que a infligida a um delito maior. Não se trata, a bem da verdade, de antinomia, mas
de injustiça. A antinomia (que produz incerteza) e a injustiça (que produz desigualdade)
dão lugar a uma situação que pede uma correção, mas a razão pela qual se corrige
uma antinomia é diferente daquela pela qual se corrige a injustiça.
- Antinomias teleológicas: existe uma oposição entre a norma que prescreve o meio para
alcançar o fim e a norma que prescreve o fim. Se aplico a norma que prevê o meio, não
estou em condições de alcançar o fim, e vice-versa. Oposição que nasce, na maioria
das vezes, da insuficiência do meio (mas, então pode se tratar de lacuna, e não de
antinomia).

5. Critérios para a solução das antinomias

A presença de antinomias em sentido próprio é um defeito que o intérprete tende a eliminar.


Sendo a antinomia o encontro de duas proposições incompatíveis, que não podem ser ambas
verdadeiras, culminando no encontro de duas normas que não podem ser ambas aplicadas, a
eliminação do inconveniente deverá consistir na eliminação de uma das duas normas (no caso
de normas contrárias, também na eliminação das duas).

Mas qual das normas deve ser eliminada? Uma coisa é descobrir a antinomia, outra é resolvê-
la. As regras que vimos até agora servem para saber que duas normas são incompatíveis, mas
nada dizem sobre qual das duas deve ser eliminada.

Agora, vamos passar da fase de determinação das antinomias para a solução das antinomias.

A jurisprudência elaborou regras para a solução das antinomias. Essas regras não servem,
contudo, para resolver todos os casos possíveis de antinomia, porque há casos em que não se
pode aplicar nenhuma das regras pensadas para a solução das antinomias e, também, porque
há casos em que se podem aplicar ao mesmo tempo duas ou mais regras em conflito entre si.

Dessa forma, existe uma distinção entre antinomias solúveis e antinomias insolúveis.
- Antinomias solúveis: chamadas de aparentes.
- Antinomias insolúveis: chamadas de reais. O intérprete é abandonado a si mesmo, ou
pela falta de critérios, ou pelo conflito entre os critérios.

Regras fundamentais para a SOLUÇÃO das antinomias:


a. Critério cronológico: prevalece a norma posterior.
b. Critério hierárquico: prevalece a hierarquicamente superior.
i. A inferioridade de uma norma em relação a outra consiste na menor força de
seu poder normativo, manifestada na incapacidade de estabelecer uma

20
regulamentação que esteja em oposição à regulamentação de uma norma
hierarquicamente superior.
ii. Problema mais complexo: relação entre lei e costume. No ordenamento italiano,
o costume é uma fonte hierarquicamente inferior à lei. Comumemente, diz-se
que o costume não vale contra legem. Há ordenamentos, mais primitivos, menos
centralizados, nos quais leis e costumes são fontes de mesmo grau. Dessa
forma, será aplicado o critério cronológico. Se o costume for considerado como
inferior à lei, será aplicado o critério hierárquico.
c. Critério da especialidade: entre uma norma geral e uma norma especial, prevalece a
norma especial.
i. A lei especial representa um momento ineliminável do desenvolvimento de um
ordenamento. Bloquear a lei especial frente à geral significaria paralisar esse
desenvolvimento.
ii. Nesse caso, a antinomia será total-parcial. Assim, a lei geral cairá parcialmente.
O relacionamento de especialidade é necessariamente antinômico. Aplica-se
porque existe uma antinomia.
iii. Diversamente, na aplicação dos critérios cronológico e hierárquico, tem-se
geralmente a eliminação total de uma das duas normas. Aplicam-se esses
critérios quando surge uma antinomia.

6. Insuficiência dos critérios

O critério cronológico serve quando duas normas incompatíveis são sucessivas.


O critério hierárquico serve quando duas normas incompatíveis estão em nível diverso.
O critério de especialidade serve no choque de uma norma geral com uma norma especial.

Mas pode ocorrer antinomia entre duas normas contemporâneas, do mesmo nível e ambas
gerais. Dessa forma, os três critérios se mostram insuficientes. Exemplo: duas normas gerais
incompatíveis no mesmo código (antinomias total-total e parcial-parcial).

Não existe um quarto critério que permita resolver as antinomias desse tipo. O único critério
referido em velhos tratadistas é aquele tirado da forma da norma, que consistiria em
estabelecer uma graduação de prevalência entre as três formas da norma jurídica (imperativas,
proibitivas e permissivas). Esse cânone, que manda aplicar a lex favorabilis, é muito menos
evidente do que possa parecer, porque a norma jurídica é bilateral - ao mesmo tempo, atribui
um direito a uma pessoa e impõe uma obrigação a outra, donde resulta que a interpretação a
favor de um sujeito é ao mesmo tempo odiosa para o outro sujeito da relação. Qual dos dois
interesses em conflito é justo fazer prevalecer? Devemos reconhecer que essas regras
deduzidas da forma da norma não têm a mesma legitimidade daquelas deduzidas dos três
critérios anteriores (cronológico, hierárquico e por especialidade).

No caso de um conflito em que não possa se aplicar nenhum dos três critérios, a solução é
confiada à liberdade do intérprete. Verdadeiro “poder discricionário do intérprete”, sendo a
solução do conflito confiada à sua liberdade, segundo a oportunidade, valendo-se das técnicas

21
hermenêuticas usadas pelos juristas tradicionalmente e não se limitando a aplicar uma só
regra.

O intérprete terá a sua frente três possibilidades:


1. Eliminar uma → caso de interpretação ab-rogante, em versão de ab-rogação simples.
Será uma ab-rogação em sentido impróprio, porque não tem o jurista o poder normativo
necessário para exercer o poder ab-rogativo. Tem o poder de não aplicar a norma que
considerar incompatível no caso concreto, mas não tem o poder de expelir essa norma
do sistema (portanto, não tem o poder de ab-rogá-la).
2. Eliminar ambas → caso de interpretação ab-rogante, em versão de dupla-abrogação.
Casos de oposição entre duas normas que sejam contrárias, e não contraditórias. Aqui,
eliminam-se ambas as normas e não sobra nenhuma das duas.
3. Conservar ambas → caso de interpretação corretiva. Talvez seja a hipótese à qual o
intérprete recorra mais frequentemente, uma vez que o jurista e o juiz tendem, sempre
que possível, à conservação das normas dadas. É possível se houver a
demonstração de que as normas não são incompatíveis, que a incompatibilidade é
puramente aparente, que a pressuposta incompatibilidade deriva de uma interpretação
ruim, unilateral, incompleta ou errada de uma das duas normas ou de ambas. Não
haverá a eliminação de normas, mas uma pretensão de eliminação da própria
incompatibilidade.
a. Para atingir esse objetivo, pode-se proceder à interpretação corretiva,
introduzindo alguma leve ou parcial modificação no texto legal. É uma forma de
interpretação que pretende conciliar duas normas aparentemente incompatíveis
para conservá-las ambas no sistema, ou seja, para evitar o remédio extremo da
ab-rogação.
b. MESSINEO: “é estrito dever do intérprete, antes de chegar à interpretação ab-
rogante, tentar qualquer saída para que a norma jurídica tenha um sentido. Há
um direito à existência que não pode ser negado à norma, desde que ela veio à
luz”.
PS: enquanto a interpretação ab-rogante tem por efeito a eliminação total de uma ou duas
normas, a interpretação corretiva tem por efeito a eliminação puramente parcial de uma ou
duas normas.

7. Conflito dos critérios

Relembrando, as razões para a existência de antinomias insolúveis são duas: a inaplicabilidade


dos critérios ou a aplicabilidade de dois ou mais critérios conflitantes. Nesse último caso, é
possível que uma relação enseje a aplicação concomitante de não apenas um, mas dois ou
três critérios.

Por exemplo, se, de duas normas incompatíveis, uma é superior e subsequente, e a outra é
inferior e antecedente, tanto o critério hierárquico quanto o cronológico dão o mesmo resultado,
fazendo prevalecer a primeira (superior e subsequente). O mesmo acontece se a norma
subsequente é especial em relação à precedente: ela prevalecerá segundo o critério da

22
especialidade e com base no critério cronológico. Os dois critérios se somam, e como bastaria
apenas um critério para dar preponderância a uma das duas normas, a norma preponderante
prevalece a fortiori.

Mas nem sempre a situação é simples, como no caso em que duas normas se encontrem
numa relação em que sejam aplicáveis dois critérios, mas que a aplicação de um critério dê
uma solução oposta à aplicação do outro. Nessa hipótese, não se podem aplicar
concomitantemente os dois critérios. Mas qual deve ser aplicado? Exemplo: norma
constitucional anterior e norma ordinária posterior → são aplicáveis dois critérios, o hierárquico
e o cronológico, e cada um deles conduz à prevalência de uma norma distinta. Os dois critérios
são, portanto, incompatíveis.

No caso acima, teremos uma incompatibilidade de segundo grau: incompatibilidade entre


critérios válidos para a solução da incompatibilidade entre normas. Dá origem a uma antinomia
de segundo grau.

As antinomias de segundo grau podem ser de três tipos:


1. Critério hierárquico versus critério cronológico: norma anterior-superior X norma
posterior-inferior. O critério hierárquico prevalece sobre o cronológico, fazendo
prevalecer a norma inferior, mesmo que posterior.
2. Critério de especialidade versus critério cronológico: norma anterior-especial X norma
posterior-geral. Em regra, a lei geral sucessiva não tira do caminho a lei especial
precedente. Logo, o critério cronológico falha não só quando a lei é inferior, mas
também quando é geral.
3. Critério hierárquico versus critério de especialidade: norma superior-geral X norma
inferior-especial. Uma resposta segura é impossível. Assim como na falta de critérios, a
solução dependerá do intérprete, que aplicará ora um ou outro, segundo as
circunstâncias do caso concreto. Estão em jogo dois valores fundamentais de todo
ordenamento jurídico, o do respeito da ordem (hierarquia) e o da justiça (prevalência de
leis posteriores).

8. O dever de coerência

O discurso defendido sustenta que a incompatibilidade entre duas normas seja um mal a ser
eliminado e, portanto, pressupõe uma regra de coerência, que determina que, em um
ordenamento jurídico, não devem existir antinomias.

Uma regra como essa apenas pode ser dirigida àqueles que têm relação com a produção e
aplicação das normas, em particular ao legislador, que é o produtor por excelência, e ao juiz,
que é o aplicador por excelência.

1. Normas de diferentes níveis, dispostas hierarquicamente. REGRA DE COERÊNCIA


VALE EM AMBAS AS FORMAS. Nesse caso, a regra de coerência existe tanto para o
legislador, para que não formule normas em oposição a normas superiores, quanto para

23
o juiz, para que, encontrando um conflito entre norma superior e norma inferior, aplique
a norma superior.
2. Normas de mesmo nível, sucessivas no tempo. REGRA DE COERÊNCIA APENAS
PARA JUIZ. Nesse caso, não existe dever algum de coerência por parte do legislador.
Contudo, existe, por parte do juiz, dever de resolver a antinomia, eliminando a norma
anterior e aplicando a posterior.
a. O legislador ordinário é livre nesse aspecto, admitindo-se a ab-rogação
implícita: legitimidade de uma lei posterior em oposição a uma lei anterior.
3. Normas de mesmo nível, contemporâneas. NÃO EXISTE REGRA DE COERÊNCIA.
Não há obrigação juridicamente qualificada por parte do legislador de não se
contradizer, porque uma lei, que contenha disposições contraditórias, é sempre uma lei
válida, e são válidas, também, ambas as disposições contraditórias (?). Mas há um
dever moral, pelo legislador, de não contradizer-se. Quanto ao juiz, também não tem
dever juridicamente qualificado de eliminar a antinomia, mas terá uma necessidade de
fato (no caso concreto, encontrar-se-á diante da necessidade de aplicar uma e
desaplicar a outra), embora não se trate de uma obrigação ou necessidade moral.

A compatibilidade é uma condição necessária para a validade de uma norma jurídica? NÃO,
pelo menos em relação ao terceiro caso. Duas normas incompatíveis no mesmo nível e
contemporâneas são ambas válidas. CONTUDO, não podem ser ambas eficazes ao
mesmo tempo, no sentido de que a aplicação de uma ao caso concreto exclui a
aplicação da outra. Mas ambas são válidas, no sentido de que, APESAR DE SEU
CONFLITO, ambas continuam a existir no sistema, enquanto não houver a ab-rogação
legislativa.

A coerência, portanto, não figura como condição de validade, mas condição para a justiça do
ordenamento jurídico. A validade de duas normas contraditórias viola a exigência da certeza e
a exigência da justiça. O ordenamento não consegue, nessas circunstâncias, garantir nem a
certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com exatidão as
consequências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como o igual tratamento
das pessoas que pertencem à mesma categoria.

PS: a coerência pode ser definida como aquela propriedade pela qual nunca se dá o caso em
que se possa demonstrar a pertinência a um sistema e de uma certa norma e da norma
contraditória.

Capítulo 4 - A completude do ordenamento jurídico

1. O problema das lacunas

“Completude” → propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para regular
qualquer caso. Considerando que a lacuna geralmente significa falta de normas, completude
significa falta de lacunas.

24
Um ordenamento é completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular
qualquer caso que lhe seja apresentado. Não há caso que não possa ser regulado com uma
norma tirada do sistema. Em outros termos, um ordenamento é completo quando jamais se
verifica o caso de que a ele não se podem demonstrar pertencentes nem uma certa norma nem
a norma contraditória. A incompletude consiste no fato de que o sistema não compreende nem
a norma que proíbe um certo comportamento nem a norma que o permite. Nem a permissão,
nem a proibição são dedutíveis do sistema jurídico. Assim, o sistema será incompleto e o
ordenamento terá uma lacuna.

O nexo entre coerência e completude está em que a coerência significa a exclusão de toda a
situação na qual pertençam ao sistema ambas as normas que se contradizem; por sua vez, a
completude significa a exclusão de toda a situação na qual não pertençam ao sistema
nenhuma das duas normas que se contradizem.

Segundo SAVIGNY, o que tentamos estabelecer é sempre a unidade: seja negativa, com a
eliminação de contradições, seja positiva, com o preenchimento das lacunas.

O caso de lacuna é quando há menos normas do que deveria haver. Assim, o dever do
intérprete será não eliminar algo, mas acrescentar aquilo que falta.

Devemos lembrar que a coerência é uma exigência, mas não uma necessidade, no sentido de
que a total exclusão das antinomias não é uma condição necessária para a existência de
um ordenamento jurídico. Diversamente, a completude é algo mais do que uma exigência,
é uma necessidade, é uma condição necessária para o funcionamento do sistema!

A COMPLETUDE É UMA CONDIÇÃO SEM A QUAL O SISTEMA EM SEU CONJUNTO NÃO


PODERIA FUNCIONAR. Especificamente, a completude é necessária para ordenamentos em
que: (i) o juiz é obrigado a julgar todas as controvérsias que se apresentarem ao seu exame; e,
ainda, (ii) deve julgá-las com base em uma norma pertencente ao sistema. Se o ordenamento
não for assim, a completude deixará de ser um requisito do ordenamento. O ordenamento
internacional não contém o princípio do non liquet, por exemplo. De outro modo, o
ordenamento inglês autoriza o juiz a resolver a controvérsia como se ele mesmo fosse o
legislador, caso não haja lei ou costume aplicável.

2. O dogma da completude

= princípio de que o ordenamento jurídico seja completo para fornecer ao juiz, em cada caso,
uma solução sem recorrer à equidade.

Essa perspectiva foi e é dominante na teoria jurídica europeia de origem romana, sendo um
dos aspectos salientes do positivismo jurídico. Nos tempos modernos, o dogma da
completude tornou-se parte integrante da concepção estatal do Direito, isto é, daquela
concepção que faz da produção jurídica um monopólio do Estado. A afirmação do dogma da
completude caminha no mesmo passo que a monopolização do Direito por parte do

25
Estado. A miragem da codificação é a completude: uma regra para cada caso. O código serve
para o juiz como um prontuário que deve servir infalivelmente e do qual não pode se afastar.

Fetichismo da lei: tendência de se ater escrupulosamente aos códigos. França → escola da


exegese, contraposta à escola científica. Na escola da exegese, vige a admiração incondicional
pela obra realizada pelo legislador através da codificação, uma confiança cega na suficiência
das leis, a crença de que o código basta a si mesmo, não tendo lacunas. A escola da exegese
consagra o dogma da completude, estando diretamente ligada ao fenômeno da codificação.

O raciocínio do jurista tradicional, enraizado no dogma da completude, fundava-se em três


pressupostos:
1. A proposição maior de cada raciocínio jurídico deve ser uma norma jurídica.
2. Essa norma deve ser sempre uma lei do Estado.
3. Todas essas normas devem formar no seu conjunto uma unidade.

3. A crítica da completude

ERHLICH → escola de Direito livre. França e Alemanha, final do século XIX. A batalha da
escola de Direito livre contra as várias escolas da exegese é uma batalha pelas lacunas,
afirmando que o Direito constituído está cheio de lacunas e, para preenchê-las, é necessário
confiar principalmente no poder criativo do juiz, naquele que é chamado para resolver os
infinitos casos suscitados pelas relações sociais, além e fora de toda a regra pré-constituída.
Movimento contra o estadismo jurídico e o dogma da completude.

Esse movimento surgiu porque, à medida que a codificação envelhecia (sobretudo na França),
descobriam-se as suas insuficiências. Além disso, houve a revolução industrial, que provocou
uma grande transformação na sociedade, fazendo as leis parecerem anacrônicas, insuficientes
e inadequadas, acelerando o seu processo natural de envelhecimento.

Tudo isso aliado ao particular desenvolvimento da filosofia social e das Ciências Sociais no
século passado. A sociologia, essa nova ciência que foi o produto mais típico do espírito
científico do século XIX, desde o momento em que conscientizou das correntes subterrâneas
que animavam a vida social, representou a destruição do mito do Estado. Descoberta da
importância da sociedade em relação ao Estado, encontrando-se na sociologia um ponto de
apoio para contrastar a pretensão do estadismo jurídico.

ERHLICH é um dos representantes mais destacados do programa da sociologia jurídica, que


pretendia mostrar que o Direito era um fenômeno social e que, assim, a pretensão dos juristas
de fazer do Direito um produto do Estado era infundada e conduzia a vários absurdos, como o
absurdo de acreditar na completude do Direito codificado.

As relações entre escola do Direito livre e sociologia jurídica são muito estreitas: são
duas faces da mesma moeda. Entrava em cena a convicção de que o Direito legislativo era

26
lacunoso e que as lacunas não poderiam ser preenchidas mediante o próprio Direito
estabelecido, mas através do reencontro e da formulação do Direito livre.

4. O espaço jurídico vazio

O Direito livre (livre no sentido de não ligado ao Direito estatal) representava aos olhos dos
juristas tradicionalistas uma nova encarnação do Direito natural, significando a abertura de
portas ao arbítrio, ao caos e à anarquia. A completude não seria um mito, mas uma
exigência de justiça. Não tinha uma função inútil, mas servia a um dos valores supremos
da ordem jurídica, a certeza.

O primeiro argumento lançado pelos positivistas foi o do espaço jurídico vazio. Com base
nessa concepção, o âmbito da atividade de um homem poderia ser dividido, do ponto de vista
do Direito, em dois compartimentos: um no qual são reguladas as normas jurídicas, chamado
de espaço jurídico PLENO, e outro que é livre, chamado de espaço jurídico VAZIO. Nesse
caso, ou há vínculo jurídico, ou há a absoluta liberdade. Não pode acontecer que o ato seja
ao mesmo tempo livre e regulado. Ou um caso está regulado pelo Direito, e então é um caso
jurídico ou juridicamente relevante, ou não está regulado pelo Direito, e então pertence à esfera
de livre desenvolvimento da atividade humana (esfera do juridicamente irrelevante). Como
não é possível admitir que um caso seja jurídico E regulado, não existem, a bem da verdade,
lacunas normativas no Direito.

Até onde o Direito alcança com as suas normas, evidentemente não há lacunas. Onde o
Direito não alcança, há espaço jurídico vazio e, portanto, não lacuna, mas atividade que
é indiferente ao Direito, é juridicamente irrelevante. Ou existe o ordenamento jurídico, e
então não existe lacuna, ou há a chamada lacuna, e então não existe o ordenamento jurídico
→ dessa forma, a lacuna não é mais tal, por não representar mais uma deficiência do
ordenamento, mas um limite natural de sua existência. Não é uma lacuna do ordenamento,
assim como a margem de um rio não é a falta do rio, mas simplesmente a separação entre o
que é rio e o que não é.

Crítica de BOBBIO: parece que a afirmação do espaço jurídico vazio nasce da falsa
identificação do jurídico com o obrigatório. O que não é obrigatório, representando a esfera do
permitido e do lícito, deve ser considerado juridicamente irrelevante ou indiferente ao Direito?
Aqui está o erro, porque o que é permitido coincidiria com o que é juridicamente indiferente.
Como ficam as liberdades jurídicas nesse caso?

Pensando por essa lógica, liberdade não protegida significaria ilicitude do uso da força privada
(porque liberdade protegida seria a liberdade garantida contra o impedimento dos outros). Mas,
nos ordenamentos jurídicos modernos, vige o monopólio da força por parte do Estado, e a
situação hipotética de uma liberdade não protegida não se mostra possível.

O fato de que a liberdade não seja protegida não torna essa situação juridicamente irrelevante,
porque, no momento em que a liberdade de agir de um não está protegida, está protegida a

27
liberdade do outro de exercer a força, e isso será juridicamente relevante. Não falha a
relevância jurídica, apenas muda a relação direito-dever.

5. A norma geral exclusiva

Uma segunda teoria, reagindo à escola do Direito livre, procurou colocar criticamente o
problema da completude. Segundo a primeira teoria (do espaço jurídico pleno), não há se falar
em lacunas do ordenamento jurídico, mas mais propriamente em limites deste ordenamento.
Essa segunda teoria, contudo, sustenta que não hás lacunas porque O DIREITO NUNCA
FALTA → logo, haveria apenas espaço jurídico pleno.

ZITELMANN: uma norma que regula um comportamento não só limita a regulamentação e,


portanto, as consequências jurídicas que derivam dessa regulamentação, mas,
simultaneamente, exclui da regulamentação todos os outros comportamentos.
Exemplo: uma norma que proíbe fumar exclui da proibição (ou seja, permite) todos os outros
comportamentos que não sejam fumar.

Em outros termos, todos os comportamentos não compreendidos na norma particular são


regulados por uma norma geral exclusiva, isto é, pela regra que exclui (por isso,
EXCLUSIVA) todos os comportamentos (GERAL) que não sejam aqueles previstos pela
norma particular específica (INCLUSIVA).

As normas, desse modo, nunca nascem sozinhas, mas aos pares → CADA NORMA
PARTICULAR (INCLUSIVA) ESTÁ ACOMPANHADA PELA NORMA GERAL EXCLUSIVA,
COMO SE ESTA FOSSE A SUA PRÓPRIA SOMBRA. Essa norma geral exclusiva é
subentendida, não é expressa, é geral e negativa.

Enquanto, para a teoria do espaço jurídico vazio, a atividade humana se divide em um campo
regulado por normas e outro não regulado, essa teoria da norma geral exclusiva entende que
toda atividade humana é regulada por normas jurídicas, porque o que não recai sob as
normas particulares inclusivas acaba sendo abarcado pela norma geral exclusiva.

Cada norma positiva, que atribui uma pena ou indenização, também é uma exceção da norma
fundamental geral e negativa (norma geral exclusiva).

Por força dessa norma exclusiva, cada possível caso vem a encontrar no ordenamento jurídico
o seu regulamento. Ou existe na legislação uma disposição particular, e dela derivará a norma
particular inclusiva, ou não existe disposição particular, e o caso recairá sob a norma geral
exclusiva.

Que uma solução seja politicamente insatisfatória não significa que não seja uma solução
jurídica. Podemos lamentar que um Estado no qual falte uma lei seja mal constituído, mas não
se poderá dizer que o seu ordenamento seja incompleto ou lacunoso.

28
Ponto fraco dessa teoria: ela não diz que, num ordenamento jurídico, não existe apenas um
conjunto de normas particulares inclusivas e uma norma geral exclusiva que as acompanha.
Existe um terceiro tipo de norma, que é inclusiva e geral (norma geral inclusiva). Essa norma
regula identicamente os casos não compreendidos na norma particular, mas semelhantes a
eles. Exemplo: norma que determina, no ordenamento italiano, que, em caso de lacuna, o juiz
deve recorrer às normas que regulam casos análogos.

Além disso, o ordenamento, em geral, nada diz sobre as condições com base nas quais dois
casos podem ser considerados parecidos. A decisão sobre a semelhança dos casos caberá,
assim, ao intérprete. Para enquadrar o caso concreto na norma geral exclusiva, operará o
argumentum a contrario; para enquadrá-lo na norma geral inclusiva (terceiro tipo referido
acima), operará o argumentum a simili. Existirão duas hipóteses de soluções jurídicas,
portanto. Mas a lacuna consiste justamente na falta de uma regra que permita acolher uma
solução em vez da outra. Parece ficar impossível excluir as lacunas dessa forma.

A lacuna não se verifica mais pela falta de uma norma expressa pela regulamentação de um
determinado caso, mas precisamente pela falta de um critério para a escolha de qual das
duas regras gerais (a norma geral inclusiva ou a norma geral exclusiva) deve ser
aplicada. Reencontra-se a lacuna que se desejava eliminar: a lacuna não a respeito do caso
singular, mas a respeito do critério com base no qual o caso deve ser eliminado.

A dificuldade, que habitualmente não se considera, não é que frente ao caso não
regulamentado haja insuficiência de soluções jurídicas - há, na verdade, exuberância de
soluções. Assim, um ordenamento jurídico, apesar da norma geral exclusiva, pode ser
incompleto, porque entre a norma particular inclusiva e a norma geral exclusiva introduz-se
normalmente a norma geral inclusiva, que estabelece uma zona intermediária entre o
regulamentado e o não regulamentado, em direção à qual tende a penetrar o
ordenamento jurídico, de forma quase sempre indeterminada e indeterminável.

O fato de a solução não ser mais óbvia, de não se poder tirar do sistema nem uma solução
nem a solução oposta, revela a lacuna, isto é, revela a incompletude do ordenamento
jurídico.

6. As lacunas ideológicas

Logo, pode-se falar de lacunas/incompletude no ordenamento jurídico não no sentido da falta


de uma norma a ser aplicada, mas da falta de critérios válidos para decidir qual norma
deve ser aplicada. Essas são as lacunas reais (de iure conditio → do direito já
estabelecido).

Mas há, também, as lacunas ideológicas (de iuri condendo → de direito a ser
estabelecido): decorrem da falta de uma solução SATISFATÓRIA, a falta de uma norma
JUSTA, a falta de uma norma que se desejaria que existisse, mas que não existe. Essas

29
lacunas derivam não da consideração do ordenamento jurídico como ele é, mas da
comparação entre o ordenamento jurídico como ele é e como ele deveria ser.

As lacunas ideológicas decorrem do fato de que nenhum ordenamento jurídico positivo é


perfeito. Somente o ordenamento jurídico natural não deveria ter lacunas ideológicas. Mas um
sistema de Direito natural nunca foi verdadeiramente formulado.

As lacunas com as quais devemos nos preocupar não são as ideológicas, mas as REAIS.
Quando os juristas sustentam que o ordenamento jurista é completo (ainda que sem razão),
dizem que não tem lacunas, referindo-se às lacunas reais e não às lacunas ideológicas.

BRUNETTI → o problema das lacunas tem três faces:


1. O problema de o ordenamento jurídico em si próprio ser completo ou incompleto. Não
tem sentido.
2. O problema de o ordenamento jurídico ser completo ou incompleto comparado a um
ordenamento jurídico ideal. Aqui nascem as lacunas ideológicas.
3. O problema de o ordenamento legislativo ser completo ou incompleto, considerado
como parte de um todo e confrontado com esse todo, que é o ordenamento jurídico.
Esse problema tem sentido. É o único caso em que se pode falar de lacunas reais. Mas
também pode se enquadrar no problema 2, porque não deixa de ser uma comparação
com o ordenamento legislativo perfeito.

Para BRUNETTI, portanto, o problema da completude é um problema sem sentido. Onde tem
sentido, vigem as lacunas ideológicas, que não é um problema útil para o Direito. “Não se
justificariam todos os rios de tinta gastos com ele”.

7. Vários tipos de lacunas (TIPOLOGIA)

● Lacuna própria: lacuna do sistema ou dentro do sistema. = lacuna real!


● Lacuna imprópria: deriva da comparação do sistema real com um sistema ideal. =
lacuna ideológica!

Num sistema em que cada caso não regulamentado faz parte da norma geral exclusiva, não
poderá haver outra coisa senão lacunas impróprias (ideológicas). Teremos a lacuna própria
apenas quando, ao lado da norma geral exclusiva, existir também a norma geral inclusiva,
podendo o caso ser encaixado tanto em uma como na outra.

O que esses dois tipos de lacuna têm em comum é que designam um caso não
regulamentado pelas leis vigentes num dado ordenamento jurídico.
O que esses dois tipos de lacuna têm de diferente é a forma pela qual as lacunas podem ser
eliminadas. A lacuna IMPRÓPRIA apenas poderá ser eliminada pela formulação de novas
normas, por serem completáveis pelo legislador. A lacuna PRÓPRIA poderá ser eliminada
mediante as leis vigentes, por serem completáveis por obra do intérprete.

30
Quando se fala em incompletude do sistema, diz-se em relação às lacunas próprias, e não às
impróprias. O problema da completude do ordenamento jurídico é se há e como podem
ser eliminadas as lacunas PRÓPRIAS.

Com respeito aos motivos que as provocaram:


● Lacunas subjetivas: dependem de algum motivo imputável ao legislador.
○ Voluntárias: o próprio legislador deixa de propósito, quando a matéria é muito
complexa e não pode ser regulada com regras muito miúdas, de modo que a
apreciação do tema é confiada à interpretação do juiz.
■ Em algumas matérias, por exemplo, o legislador formula apenas
diretrizes, que traçam linhas gerais da ação a ser cumprida. Exemplo:
diretriz que traça o fim que se deve alcançar, mas confia a determinação
dos meios aptos a procurar alcançar esse fim à livre escolha do executor.
Muitas normas constitucionais são puras e simples diretrizes. Servem
como diretrizes gerais que devem ser integradas ou preenchidas
posteriormente por órgãos mais aptos a esse fim.
■ Com base nessas considerações, reconhece-se que as lacunas
voluntárias não são verdadeiras lacunas. A integração do vazio,
deixado de propósito, é confiada ao poder criativo do órgão
hierarquicamente inferior. Onde age o poder criativo daquele que
deve aplicar as normas do sistema, o sistema está sempre completo
em sentido próprio, porque em cada circunstância é completável e,
portanto, o problema da completude ou incompletude nem se
apresenta.
○ Involuntárias: dependem de um descuido do legislador.
● Lacunas objetivas: dependem do desenvolvimento das relações sociais, das novas
invenções, de todas aquelas causas que provocam um envelhecimento dos textos
legislativos e que são independentes da vontade do legislador.

● Lacunas praeter legem: quando as regras, expressas para serem muito particulares,
não compreendem todos os casos que podem se apresentar a nível dessa
particularidade.
○ A integração consistirá em formular novas regras ao lado das já expressas.
● Lacunas intra legem: quando as normas são muito gerais e revelam, no interior das
disposições dadas, vazios ou buracos que devem ser preenchidos pelo intérprete. As
lacunas voluntárias são normalmente intra legem.
○ A integração consistirá em formular regras dentro das já expressas.

8. Heterointegração e auto-integração

Como se viu, o dogma da completude está historicamente ligado à concepção estatal do


Direito.

31
Entre os casos inclusos expressamente e os casos exclusos, há, em cada ordenamento, uma
zona incerta de casos não regulamentados, mas potencialmente colocáveis na esfera de
influência dos casos expressamente regulamentados. Cada ordenamento prevê os meios e
os remédios aptos a penetrar nessa zona intermediária, a estender a esfera do
regulamentado em confronto com a do não regulamentado.

Os ordenamentos são complexos e as normas provêm de fontes diversas, embora recolhidas


em uma unidade através do sistema hierárquico. Se, estaticamente considerado, um
ordenamento não é completo, dinamicamente considerado ele será completável. Para essa
tarefa de completar o ordenamento jurídico, há dois métodos (CARNELUTTI):

● Heterointegração: integração operada através do recurso a ordenamentos diversos e a


fontes diversas da dominante (no caso, a lei).
○ Recurso a outros ordenamentos: antigamente, consistia na obrigação do juiz de
recorrer, em caso de lacuna do Direito positivo, ao Direito natural, que era
imaginado como um sistema jurídico perfeito, sobre o qual repousava o
ordenamento positivo, por natureza imperfeito. A tarefa do Direito natural era dar
remédio às inevitáveis imperfeições do Direito positivo. No ordenamento
austríaco, a ideia do Direito natural foi substituída pela noção de princípios
gerais do direito. Ainda que a maioria dos juristas tenha interpretado essa
expressão como princípios gerais DO DIREITO POSITIVO, o que culminaria na
passagem para a auto-integração.
■ Não está excluído que um ordenamento recorra a outros ordenamentos
positivo para operar a própria integração. Isso pode se dar pelo reenvio
a ordenamentos anteriores no tempo e, também, pelo reenvio a
ordenamentos vigentes contemporâneos.
○ Recurso a outras fontes diversas da dominante: a heterointegração assume três
formas.
■ Recurso ao costume considerado como fonte subsidiária da lei
(consuetudo prater legem). A sua aplicação pode se dar de forma ampla
ou restrita.
■ Recurso ao poder criativo do juiz (Direito judiciário). Os sistemas jurídicos
anglo-saxões recorrem mais amplamente a essa forma. Nos continentais,
não se reconhece oficialmente o poder criativo do juiz, salvo em casos
em que se admitem os juízos de equidade.
■ A rigor, pode-se considerar o recurso às opiniões dos juristas (Direito
científico, conforme SAVIGNY). Todavia, a doutrina nunca emite juízos
obrigatórios nem para o legislador, nem para o juiz.
● Auto-integração: integração cumprida através do mesmo ordenamento, no âmbito da
mesma fonte dominante, sem recorrência a outros ordenamentos e com o mínimo
recurso a fontes diversas da dominante.
○ Analogia (argumentum a simili): é o método adotado pelo legislador pelo
legislador italiano. Entendida como o procedimento pelo qual se atribui a um
caso não regulamentado a mesma disciplina de um caso regulamentado

32
semelhante. Falamos disso quando tratamos da norma geral inclusiva. É
certamente o mais típico e o mais importante dos procedimentos interpretativos
de um determinado sistema normativo. É o procedimento pelo qual se explica a
tendência de cada ordenamento jurídico a se expandir para além dos casos
expressamente regulamentados.
■ Fórmula: M é P; S é semelhante a M; S é P.
■ A semelhança não deve ser uma semelhança qualquer, umas uma
semelhante relevante, é preciso ascender dos dois casos a uma
qualidade comum a ambos que seja razão suficiente pela qual ao caso
regulamentado foram atribuídas aquelas e não outras consequências.
Essa razão relevante é a RATIO LEGIS.
■ A analogia propriamente dita é chamada de analogia legis. É distinta da
analogia iuris e da interpretação extensiva. A analogia iuris (o
procedimento pelo qual se tira uma nova regra não do caso singular, mas
de todo o sistema ou de uma parte dele, mesma coisa que acontece com
o recurso aos princípios gerais do direito) não tem nada a ver com um
raciocínio por analogia. A interpretação extensiva é, porém, um caso de
aplicação do raciocínio por analogia. Contudo, diversamente da analogia
propriamente dita, a interpretação extensiva não cria uma nova norma
jurídica, mas estende uma norma para casos não previstos por ela (mero
alargamento do alcance da regra dada).
○ Princípios gerais do direito (analogia iuris): para BETTI, seria caso de
heterointegração. Na opinião de BOBBIO, são normas fundamentais ou
generalíssimas do sistema, são as normas mais gerais, são normas como todas
as outras. A incidência dos princípios gerais de direito se dá em relação aos
princípios não expressos (relacionados ao espírito do sistema, retirados da
abstração da norma pelo intérprete). Se há princípios expressos, por serem
normas como as demais, não se pode falar de lacunas. Um princípio geral
expresso é uma disposição precisa. No que diz respeito especificamente aos
princípios gerais expressos, seria bem curioso que houvesse uma norma que
autorizasse a sua aplicação.

Capítulo 5 - As relações entre os ordenamentos jurídicos

1. A pluralidade dos ordenamentos

Até agora, foram considerados apenas os problemas que nascem no interior de um


ordenamento. Mas existem também os problemas oriundos das relações entre os
ordenamentos, isto é, que nascem no exterior de um ordenamento.

Para que se possa falar de relação entre ordenamentos, os ordenamentos jurídicos existentes
devem ser mais do que um (não deve haver um ordenamento jurídico único). A ideia de
pluralismo jurídico, oposta à concepção do monismo jurídico, percorreu duas fases:

33
1. Primeira fase: nacional ou estatal. Nascimento e desenvolvimento do historicismo
jurídico (escola histórica do Direito), que afirma a nacionalidade dos direitos que
emanam direta ou indiretamente da consciência popular. Assim, há tantos Direitos
quantos forem os povos ou as nações.
a. Essa primeira forma de pluralismo tem caráter estatalista: há muitos
ordenamentos jurídicos porque há muitas nações, que tendem a exprimir cada
uma num ordenamento unitário a sua personalidade, o seu gênio jurídico.
Fragmentação do Direito universal em tantos Direitos particulares.
b. Ideia confirmada e teorizada pelo positivismo jurídico, ideia segundo a qual não
existe outro Direito além do Direito positivo, criado por uma vontade soberana
(concepção voluntarista do Direito → fonte do Direito não é a razão, mas a
vontade). Há tantos Direitos diferentes entre si quantos são os poderes
soberanos.
2. Segunda fase: institucional. O pluralismo significa não apenas que há muitos
ordenamentos jurídicos, mas que há ordenamentos jurídicos de muitos e variados tipos.
Tese principal é de que existe um ordenamento jurídico onde existe uma instituição, isto
é, um grupo social organizado. Origem na escola do livre Direito.
a. Produto da descoberta da sociedade abaixo do Estado.
b. Consequência: fragmentação da ideia universalista do Direito. Aceitando a teoria
pluralista institucional, o problema do relacionamento entre ordenamentos não
compreende mais somente o problema das relações entre ordenamentos
estatais, mas também o das relações entre ordenamentos estatais e
ordenamentos diferentes dos estatais.
i. Esses ordenamentos diferentes dos estatais podem ser acima do Estado
(ordenamento internacional);
ii. Abaixo do Estado (ordenamentos propriamente sociais);
iii. Ao lado do Estado (Igreja Católica);
iv. Contra o Estado (associações de malandros, seitas secretas).

O universalismo jurídico ressurge hoje não mais como uma crença num eterno Direito natural,
mas como vontade de constituir um Direito positivo único, que recolha em unidade todos os
Direitos positivos existentes, e que seja produto não da natureza, mas da história, e esteja não
no início do desenvolvimento social e histórico (como o Direito natural), mas no seu fim. Ideia
de Estado mundial único.

2. Vários tipos de relação entre ordenamentos

As normas de um ordenamento podem ser dispostas em ordem hierárquica, o que possibilita


que os ordenamentos também estejam em uma relação de hierarquia. A imagem da pirâmide
das normas pode ser completada com a imagem da pirâmide dos ordenamentos.

Classificação 1: grau de validade entre ordenamentos


a. Relações de coordenação: aquelas que têm lugar entre Estados soberanos e dão
origem ao regime jurídico particular próprio do relacionamento entre entes que estão no

34
mesmo plano → regime pactuário, no qual as regras de coexistência são produto de
uma autolimitação recíproca.
b. Relações de subordinação: verificadas entre o ordenamento estatal e os ordenamentos
sociais (associações, sindicatos, partidos, igrejas…), que têm estatutos próprios, cuja
validade deriva diretamente do reconhecimento pelo Estado.

Classificação 2: extensão recíproca dos âmbitos de validade


a. De exclusão total: âmbitos de validade dos dois ordenamentos são delimitados de
maneira a não se sobreporem um ao outro em nenhuma de suas partes. Exemplo: dois
ordenamentos estatais que se excluem totalmente quanto à validade especial de suas
normas.
b. De inclusão total: um dos dois ordenamentos tem um âmbito de validade compreendido
totalmente no do outro. Exemplo: o ordenamento de um Estado-membro está
compreendido totalmente no ordenamento do Estado federal.
i. Teoria do Direito como mínimo ético → relacionamento entre Direito e Moral
seria de inclusão total, por não haver regra jurídica que não seja também moral.
c. De exclusão/inclusão parcial: dois ordenamentos têm uma parte em comum e uma
parte não comum. Quando o ordenamento estatal absorve ou assimila um ordenamento
diferente, mas não o faz totalmente. Não importa que a esfera comum seja grande ou
pequena.

Classificação 3: validade que um ordenamento atribui às regras de outros ordenamentos com


que entra em contato
a. Indiferença: um ordenamento considera lícito aquilo que, num outro ordenamento, é
considerado obrigatório.
b. Recusa: um ordenamento considera proibido aquilo que, num outro ordenamento, é
obrigatório. Exemplo: relações entre Estados e associação de malandros.
c. Absorção: um ordenamento considera obrigatório ou proibido aquilo que, em outro
ordenamento, é também obrigatório ou proibido.
i. Reenvio: procedimento pelo qual um ordenamento deixa de regular uma dada
matéria e acolhe a regulamentação estabelecida por fontes normativas
pertencentes a outro ordenamento.
ii. Recepção: procedimento pelo qual um ordenamento incorpora no próprio
sistema a disciplina normativa de uma dada matéria, assim como foi
estabelecida num outro ordenamento.

3. Estados e ordenamentos menores

“Ordenamentos menores”: aqueles ordenamentos que mantêm unidos os seus membros para
fins parciais e, assim, investem somente uma parte da totalidade dos interesses das pessoas
que compõem o grupo. Não importa se são jurídicos ou não.

Sabemos que os ordenamentos estatais são ordenamentos complexos. Além disso, são
compostos, por serem estratificados, resultantes de uma estratificação secular de

35
ordenamentos diversos, a princípio independentes um do outro e, depois, pouco a pouco,
absorvidos e amalgamados no ordenamento estatal único ora vigente.

Essa estratificação ocorreu, em grande medida, pelo procedimento de absorção de um


ordenamento jurídico por parte de outro, através da modalidade de RECEPÇÃO. Exemplo:
Direito comercial ou Direito da navegação, que foram, pouco a pouco, introduzidos e integrados
no ordenamento estatal único com a ampliação do monopólio jurídico do Estado. Onde houve
a recepção, não há mais vestígios do ordenamento originário.

Ainda que, normalmente, ocorra a recepção, também é possível que o ordenamento estatal se
utilize do REENVIO em relação aos ordenamentos menores. Nesse processo, o ordenamento
estatal não se apropria do conteúdo das normas de outro ordenamento, como ocorre na
recepção, mas se limita a reconhecer a sua plena validade no próprio âmbito. Exemplo: vida da
família é regulada por costumes aos quais o ordenamento estatal atribui validade de normas
jurídicas por meio de um reenvio de caráter geral. O legislador se limita a reconhecer a
existência dessas regras e a dar proteção a elas em certos casos, como se fossem normas
formuladas diretamente pelos próprios órgãos dotados de poderes normativos.

A atitude mais frequente do Estado em relação aos ordenamentos menores e parciais é a


da INDIFERENÇA. Os ordenamentos menores têm as suas ordens e suas proibições, mas o
Estado não as reconhece, só valendo para as pessoas que aderem ao ordenamento menor.
Exemplo: regulamentos dos jogos e esportes e obrigações assumidas pelos jogadores e
esportistas entre si.

Às vezes, ainda, a atitude do Estado é a da recusa, como no caso do duelo. Aquilo que é
dever para aquele que se considera participante do ordenamento dos gentlemen é proibido no
ordenamento estatal.

4, 5 e 6. Relações temporais, espaciais e materiais

Relações mais importantes = aquelas que se dão entre ordenamentos estatais ou entre
ordenamentos estatais e ordenamentos originários (ordenamento internacional e da Igreja
Católica).

Essas relações podem ser classificadas a partir de seu âmbito de validade: temporal, espacial
e material. Se dois ordenamentos se diferenciam entre si nesses três âmbitos, não devem ter
nenhuma interferência entre si, não havendo o problema de sua relação, que é de total
exclusão. O exame fica interessante quando há dois âmbitos em comum, sem relação em um
terceiro, de modo que haverá algumas interferências recíprocas.

Três tipos de relacionamentos entre ordenamentos:


1. Espacial e material em comum, mas não o temporal. Ordenamentos estatais que se
sucedem no tempo no mesmo território. Relacionamento entre ordenamento velho e
ordenamento novo, como se dá na sequência de uma revolução. A revolução opera,

36
contudo, uma interrupção, mas não uma completa solução de continuidade. A melhor
explicação é a que se utiliza da RECEPÇÃO: no novo ordenamento, tem lugar uma
recepção de boa parte do velho. As normas pertencem apenas materialmente ao
ordenamento velho. Formalmente, são todas normas do ordenamento novo, por serem
válidas com base na norma fundamental do novo. A RECEPÇÃO É UM ATO
JURÍDICO COM O QUAL UM ORDENAMENTO ACOLHE E TORNA SUAS AS
NORMAS DE OUTRO ORDENAMENTO, ONDE TAIS NORMAS PERMANECEM
MATERIALMENTE IGUAIS, MAS NÃO SÃO MAIS AS MESMAS COM RESPEITO À
SUA FORMA.
a. Três definições jurídicas de “revolução”:
i. ROMANO: revolução é um fato jurídico e tem autonomia jurídica. É uma
instituição, por ser uma organização estatal em um embrião, um
ordenamento jurídico em si mesmo, diferente do anterior e do posterior.
ii. KELSEN: revolução é fato juridicamente qualificado pelo Direito
internacional. Ordenamento diferente do estatal.
iii. Revolução é fato jurídico do ponto de vista do próprio Direito interno do
Estado. É estado particular de necessidade.
2. Temporal e material em comum, mas não o espacial. Ordenamentos de dois Estados
contemporâneos, que vigem ao mesmo tempo e regulam as mesmas matérias, mas não
no mesmo território. Caso do Direito internacional privado (“normas sobre a produção
jurídica”).
a. Em geral, pode-se dizer que, em todo ordenamento moderno, há casos que são
resolvidos aplicando-se não uma norma do ordenamento, mas uma norma do
ordenamento estrangeiro. Situações particulares nas quais têm vigor, em um
ordenamento estatal, normas de outro ordenamento. Caso de REENVIO de um
ordenamento a outro, e não de recepção, porque indicam pura e simplesmente a
fonte de onde a norma deverá ser tirada, seja qual for o seu conteúdo. Aquilo a
que o ordenamento reenvia não é a matéria pela qual uma dada matéria está
regulada, mas a fonte que a regula.
3. Temporal e espacial em comum, mas não o material. Ordenamento estatal e
ordenamento da Igreja.
a. Durante séculos, foram propostos vários tipos de soluções. Reductio ad unum:
redução do Estado à Igreja (teocracia) ou da Igreja ao Estado (cesaropapismo).
Subordinação. Coordenação. Separação (igrejas como associações privadas).
b. Questão do pressuposto: situação em que o ordenamento externo é utilizado
para determinar as características de um certo fato específico, ao qual o
ordenamento interno atribui certas consequências que não são as mesmas
atribuídas pelo ordenamento externo. Diferente de reenvio e de recepção e não
é própria das relações entre Estado e Igreja!
c. Questão do reconhecimento dos efeitos civis: Estado renuncia à própria
regulamentação, limitando-se a atribuir efeitos civis à regulamentação dada pelo
ordenamento da Igreja. Exemplo mais comum: reconhecimento do matrimônio
canônico, ao qual são atribuídos os mesmos efeitos do matrimônio civil.
Procedimento que se distingue tanto do reenvio quanto da recepção.

37

Você também pode gostar