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ALFREDO BOSI /0up, DIALETICA DA GOLONIZAGAO 3 edieao 26 inprenido 6 UM MITO SACRIFICIAL: O INDIANISMO DE ALENCAR E proprio da imaginacao histérica edificar mitos que, muitas ve- zes, ajudam @ compreender antes 0 tempo que os forjou do que 0 uuniverso remoto pata o qual foram inventados. Acteditando nessa proposigio, attisco-me a revisitar um lugat- comum dos compatatistas literdrios que afinam 0 indianismo brasi leito pelo diapasto europeu da remantizacio das origens nacionais, 14, figuras ¢ cenas medievais; cf, 0 mundo indigena ral e qual o sut- preenderam os descobridores. C4 2 1, uma operacio de retorno, um esforco para bem cumprir o voto naicheletiano de ressuscitat 0 passa- do, alvo confesso da historiografia romantica. Até que ponto esse pa- ralelismo se sustém? ‘A aproximagio de ambas as visbes do passado mantém-se valida ra esfera ampla da historia das mentalidades. Houve, de fato, uma corrente de saudosismo, de filiacio ancien régime, tardia mas nem ppor isso menos intensa, que cruzou as letras européias na fase pos € anti-reyolucionéria, As obras de Chateaubriand, de Xavier de Mai te ¢ de sit Walter Scott ilustram os seus momentos de vigor em ma- téria de imaginacZo e estilo. No caso brasileiro, um dos veios centrais do nosso romantismo, o alencariano, também mostrou-se reccoso de qualquer tipo de mu- danga social, parecendo esgorar cs seus sentimentos de rebeldia 20 jugo colonial nas comog6es politicas da Independéncia. Passado este lo, qualquer medida que avangasse no sentido de alargar a t20 ¢s- treita margem de liberdade outorzada pela Carta de 23 assumia arcs de subversio.! Assim, a reforma eleitoral e a gwestdo servil ficatam. bloqueadas desde a vitéria do Regresso em 1837 (0 tetmo foi cunha- 176 do ¢ assumido prazerosamente pelos conservadores) até a subida da rnaté liberal nos stos GO: pressamente os és decénios que vita 0 sutgimento ¢ 0 climax da nossa literature romantica. ‘Observa-se em todo esse perfodo uma espécie de encruamento as posigbes liberal-radicais que levaram 3 abdicacdo de Pedro 1 ¢ aos scessos tumultuosos da Regéncia. O fendmeno, que jé foi diagnosti- cado em termes de consolidacio do’ poder escravista, ndo é de todo estranho as formas paradoxais pelas quais uma figura de nitido corte rousseauista como o Bom sanvage acabou compondo o nosso imas nério mais conservador. Gigante pela propria natureza, 0 indio en- trou in extremis na sociedade literiria de Segundo Impétio. Remonte-se um pouco no tempo. O pracesso da independéncia gerou, 20 desencadear-se, uma dialétien de oposigio. Mesmo con: derando que os estratos dominantes foram os arquitetos ¢ os ben clitios da patria del criollo,? € fora convit que conttadigéo houve, tanto no nivel dos interesses matetiais coibidos pelo antigo monopé- lio, quanto no delicado tecido da vida simbélica. Viveu-se uma fase de tensfo aguda entre a Colénia que se emancipava e a Metr6pole que se entijecia na defesa do seu caducante Impétio. O primeito quareel do século x1x foi, em toda a América Latina, um tempo de ruptura. O corte nagao/colénia, novolantigo exigia, na moldagem das identi- dades, a atticulagio de um eixo: de um lado, 0 pélo brasileito, que cenfim levancava a cabeca e dizia 0 seu nome; de outro, 0 pélo portu- guts, que sesistia & peida do seu melhor quinhio, Segundo esse desenho de contrastes, o espersvel seria que 0 fa- dio ocupasse, no imaginécio pés-colonial, o lugar que lhe competia, © papel de rebelde. Era, afinal, 0 native por exceléncia em face do inwasor; 0 americano, como se chamava, metonimicamente, versus 0 europeu. Mas nao foi precisamente o que se passou em nossa ficgl0 ro- mintica mais sigoificativa, O indio de Alencar entra em fatima co- munhéo com o colonizador. Peri é, literal ¢ voluntariamente, escravo de Ceci, a quem venera como sua lara, “senhore”, e vassalo fideliss- mo de dom Anténio. No desfecho do romance, em face da catéstrofe iminente, 0 fidalgo batiza o indigena, dando-lhe o seu pr6prio no- me, condigio que julga necessivia para conceder a um selvagem 2 honta de salvar a filha da morte certa a que os aimorés tinham condenado 0s moradores do solat: 77 Se tu fosses cristo, Pe: Indio voltou-se extremamente admirado daquelas palavras. = Por qué?... perguntou ele. Pot qué?... disse lentamente o fidalgo. Porque se tu fosses cristfo, x te confiaria 2 salvacio de minha Cecilia, ¢ estou convencido de que a levatias a0 Rio de Janeiro & minha irma. (0 tosto do selvagem iluminoa-se; seu peito arquejou de flicidade, seus labios trémulos mal podiam articular o tusbilhio de palavras que Ihe vinham do intimo d'alma, — Peri quer ser cristéo! exclamou ele. D, Antdnio langouslhe um elhar timido de reconhecimente. © Indio caiu aos pés do velho cavalheico, que impés-lhe as m&os sobre 2 cabeca. Sé crisifo! Dou-te 0 meu neme! (0 guarani, paste WY, ap. X) A conversio, acompanhada de mudanca de nome, ocorte igual- mente com o indio Poti, de Iracemia, batizado como AntOnio Felipe Camatio, 0 futuro herdi da tesisténcia 20s holandeses. E Atnaldo, 0 sésia rGstico de Peri de O sertanejo, € agraciado com 0 sobtenome do capitio-mor durante este didlogo edificante: E para si, Atnaldo, que deseja? — insistiu Campelo, — Que o st. Capitto-Mor me deixe beijar sua mao; basta-me isso. — Ta é um homem, ¢ de hoje em diante quero que te chames Ar aldo Louredo Campelo. (0 sertanejo, parte, cap. X00) Eo senhor colonial que, nos irés episédios, outorga, pelo ato da. renomeagao, nova identidade religiosa e pessoal 20 indio e ao sertanejo. Quanto aos aimorés, que slo 0s verdadeitos inimigos do conquis- tador no Guarani, aparecem mascaéos pelos epitetos de Aérbaros, hor- rendos, satanicos, carniceiros, sinistos, horriveis,sedentos de vinganga, ferozes, diabblicos... Iracema, no belo poemaem prosa que traz 0 seu nome, apaixona-se por Martim Soares Moreno, o colonizador do Ceara, por amor de quem rompe com a sua nacio tabajara depois de violar o segredo da jurema. ‘Nas historias de Peri e de Icacema a entrega do indio a0 branco € incondicional, faz-se de corpo e alma, implicando sacrficio e aban- 178 { | dono da sua pertenga 3 ribo de origem. Uma pattida sem retorno. Da virgem de labios de mel disse Machado de Assis em artigo que escreveu logo que saiu o romance: ““Nio resiste, nem indaga: desde que os olhos de Mastim se trocaram com: os seus, a moca curvou 2 cabera Aquela doce escravidio"’s O tisco de softimento ¢ morte & accito pelo selvagem sem qual- quer hesitagdo, como se a sua atitude devota para com o branco re- presentasse o cumprimento de um destino, que Alencar aprescata em ‘tempos herdicos ou idilicos. Cteio que é possivel detectar 2 existéncia de um complexo sacti- ficial na mitologia romantica de Alencar, Comparem-se os desfechos dos seus romances coloniais ¢ indianistas com os destinos de Caroli- nna, 2 cortesi de As asas de um anjo (remida e punida em A expia ao), de Luciola, no romance homénimo, ¢ de Joana, em Mae. S40 todas obras cujas tramas narrativas ou draméticas se resolvem pela imo- Jaco voluntatia dos protagonistas: o fadio, a india, a mulher prosti- tufda, a mie negra, A nobreza dos fracos s6 se conquista pelo sacriff- cio de suas vidas. Paradoxalmente: O guaran ¢ Iracem fundaram o romance na- cional. Nao esti em causa, nestas observagées, a sinceridade patridtica do natrador, sentimento que, de resto, no guardaria qualquer rela- Zo causal com 0 valor estético dos seus textos. O que importa & ver como a figura do indio belo, forte e livre se modelou em um regime de combinacio comi a franca apologia do colonizador. Essa concilia- ‘slo, dada como espontanea por Alencar, viola abertamente a historia da ocupagao portuguesa no primeizo séculs (é 86 ler a crénica da maio- ria das capitanias para saber o que aconteceu), toca o inverossimil no ‘aso de Peri, enfim & pesadamente ideol6gica como interpretacio do processo colonial. Nada disso impede, porém, que a linguagem nac- rativa de Alencar acione, em mais de um passo, a tecla da poesia. ‘A beleza da prosa lirica reverbera aquém ou, em outro sentido, além da representagio do dado empitico que a crénica realista busca espelhat. £ 0 mito, que essa prosa entretece, se faz aquém, ou além, da cadeia narrativa verossimil. ‘Aquém: 0 mito nfo requer o teste da verficago nem se vale da- quelas provas testemunhais que fornecem passaporte idénco a0 dis- curso historiografico. Ou além: o valor estético de um texto mitico 179

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