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a
2» edição 2002
2" edição, I" reimpressão 2009
Vernant, Jean-Pierre
Entre Mito e Política / Jean-Pierre Vcrnaur, tradução de Cristina
Murachco. - 2. ed., 1. reimpr. - São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2009.
98-1250 CDD-304.8
atividades desenvolvidas pelos gregos antigos nos grandes setores da vida coleti-
va. Esse esquema não é arbitrário: ele se apóia, para dar-lhe uma forma, sobre
uma documentação tão completa e precisa quanto possível. Também não se trata
de um esquema "banal" na medida em que, deixando de lado as generalidades
sobre a natureza humana, procura localizar o que as condutas dos gregos com-
portam de particular, a forma que lhes é própria de executar práticas tão univer-
salmente conhecidas quanto aquelas que envolvem a guerra, a religião, a economia,
a política e a vida doméstica.
Logo, existe uma singularidade grega. Iluminá-la é adotar de início um
ponto de vista comparativo e, nesse confronto com outras culturas, acentuar, para
além das características comuns, as divergências, os afastamentos, as distâncias.
Distâncias com relação a nós, em primeiro lugar, quanto às formas de agir, de
pensar, de sentir, que nos são tão familiares que nos parecem naturais, mas das
quais devemos tentar nos desprender quando nos interessamos pelos gregos, para
não bloquear o acerto do olhar que lançamos sobre eles. Distâncias também com
relação aos homens de outros tempos além da Antigüidade, de outras civilizações
além da grega.
Mas talvez o leitor, embora pronto a concordar conosco sobre a originalida-
de do caso grego, estará tentado a deslocar sua objeção e interrogar-nos sobre a
palavra homem. Por que o homem, e não a civilização ou a cidade gregas? Dirá
que é o contexto social e cultural que está submetido a transformações incessan-
tes; o homem adapta suas condutas a essas variações, mas, em si mesmo, perma-
nece idêntico. Em quê o olho do cidadão de Atenas, no século V antes de nossa
era, seria diferente do de nossos contemporâneos? Sem dúvida. Assim, não se tra-
ta do olho ou do ouvido neste livro e sim das formas gregas de usá-los: a visão e
a audição, seu lugar, suas formas, seu estatuto respectivo. Um exemplo para que
me entendam. Espero que me perdoem o que tem de pessoal: como poderíamos
ver hoje a lua com os olhos de um grego? Pude fazer a experiência na época de
minha juventude, durante minha primeira viagem à Grécia. Eu navegava de noi-
te, de uma ilha a outra; deitado no convés, olhava, sobre mim, o céu onde ela
brilhava, noturno rosto luminoso, estendendo sua luz clara, imóvel ou dançante,
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O HOMEM GREGO
no escuro dorso do mar. Estava encantado, fascinado por aquela doce e estranha
luz que banhava as ondas adormecidas; sentia-me emocionado, como que por uma
presença feminina, ao mesmo tempo próxima e distante, familiar e contudo ina-
cessível, cujo brilho viesse visitar a sscuridão/da noite. E Selene, pensava, notur-
na, misteriosa e brilhante, é Selene que estou véndo. Quando vi, muitos anos depois,
na tela de minha televisão as imagens do primeiro explorador lunar, saltitando
pesadamente em seu escafandro de astronauta no terreno baldio de um subúrbio
desolado, à impressão de sacrilégio que tive reuniu-se o sentimento doloroso de
uma ruptura que não poderia jamais ser reparada: por ter, como todos, contempla-
do essas imagens, meu neto não poderia jamais ver a lua como eu pude fazê-lo um
dia, olhando-a no espelho dos olhos gregos. A palavra Selene tornou-se uma refe-
rência puramente erudita; a lua, tal como aparece no céu, não responde mais a
esse nome.
Entretanto, a ilusão de que, posto que um homem é um homem, se os histo-
riadores conseguissem reconstituir perfeitamente o cenário no qual viviam os an-
tigos, teriam cumprido sua tarefa e, ao lê-los, todos poderiam sentir-se na pele de
um grego, é tenaz. Saint-Just não era o único, entre os revolucionários, que acre-
ditava que bastava praticar à moda antiga as virtudes de simplicidade, frugalidade
e inflexibilidade, para que o republicano de 1789 se identificasse com o grego e
com o romano. Foi Marx quem, na Santa Família, pôs as coisas em seus devidos
lugares: "Este erro aparece tragicamente quando Saint-Just, no dia de sua execu-
ção, mostrando o grande quadro dos direitos do homem pregado na sala da Con-
ciergerie, exclamou com um orgulho justificado: 'E fui eu quem fez isso'. Mas
justamente aquele quadro proclamava o direito de um homem que não podia mais
ser o homem da comunidade antiga, assim como as condições de existência eco-
nômicas e industriais não são as mesmas da Antigüidade". Como o diz François
Hartog, que citou o trecho acima: "O homem dos direitos não pode ser o da cida-
de antiga". E, da mesma forma, não podem sê-lo o cidadão dos Estados moder-
nos, o fiel de uma religião monoteísta, o trabalhador, o industrial ou o banqueiro,
o soldado das guerras mundiais entre nações, o pai de família com sua esposa e
seus filhos, o indivíduo privado em sua vida pessoal íntima, o jovem, correndo
hoje atrás da idade adulta ao longo de uma adolescência que nunca termina.
Isso posto, qual deve ser a tarefa do apresentador na introdução de uma obra
sobre o homem grego? Certamente não é resumir ou comentai- os textos que, no
setor de pesquisa que lhes cabe, os mais qualificados helenistas aceitaram nos en-
tregar e a quem gostaríamos, no início do livro, de agradecer calorosamente. Em
vez de repetir ou de glosar o que souberam dizer melhor do que ninguém, eu gos-
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2. J.-P. Veruant, Mylhe et pensée chet les grecs (1965), reed., Paris, 1994, p. 9.
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logo fenece para desaparecer para sempre. Tudo implica, frente aos bens precio-
sos, o mal que lhe corresponde, seu contrário e seu par: não há vida sem morte,
juventude sem velhice, esforço sem cansaço, abundância sem trabalho, prazer
sem sofrimento. Neste mundo, toda luz tem sua sombra, todo brilho tem seu reverso
feito de escuridão. É o contrário entre aqueles que são chamados de não-mortais
(athánatoi), bem-aventurados (mákares), poderosos (kreíttous): as divindades.
Cada qual, em seu próprio domínio, encarna os poderes, as capacidades, as vir-
tudes e os benefícios dos quais os homens, durante sua vida passageira, só po-
dem dispor na forma de um reflexo fugaz e apagado, como um sonho. Assim,
existe uma distância entre as duas raças, a humana e a divina. O grego da época
clássica guarda uma consciência aguda dessa disparidade. Ele sabe que, entre
homens e deuses, existe uma fronteira intransponível: apesar dos recursos do es-
pírito humano e de tudo o que conseguiu descobrir ou inventar ao longo do tem-
po, o futuro continua sendo indecifrável, a morte sem remédio, os deuses fora
de seu alcance, muito além de sua inteligência, assim como o esplendor de seu
rosto é insustentável para seus olhos. Dessa forma, uma das regras principais da
sabedoria grega relativa às relações com os deuses é que o homem não poderia
pretender, de forma alguma, igualar-se a eles.
A aceitação, como um fato inscrito na natureza humana e contra o qual se-
ria vão protestar, de todas as deficiências que acompanham necessariamente nos-
sa condição acarretam diversas ordens de conseqüências. Em primeiro lugar, o
grego não pensaria em esperar dos deuses - nem em pedir-lhes - que lhe conce-
dessem uma forma qualquer daquela imortalidade da qual têm o privilégio. A
esperança de uma sobrevivência do indivíduo após a morte - além de sombra
sem força e sem consciência nas trevas do Hades -, esta esperança não faz parte
da troca que o culto institui com a divindade, ou , em todo caso, não constitui seu
principio ou seu elemento mais importante. A idéia de uma imortalidade indivi-
dual apareceria, para os atenienses do século IV a. C., como algo muito estranho
e esquisito se julgarmos os cuidados que Platão precisou tomar antes de afirmar,
no Fédon, pela boca de Sócrates, que existe em cada um de nós uma alma imor-
tal. Aliás, esta alma, na medida em que é imperecível, é concebida como uma
espécie de deus, um daimõn: longe de se confundir com o ser humano no que faz
dele um ser singular, aparenta-se com o divino, do qual é como que uma parcela
momentaneamente perdida cá embaixo.
Segunda conseqüência. Por mais intransponível que seja, a distância entre
deuses e homens não exclui, entre eles, uma forma de parentesco. São seres do
mesmo mundo, mas de um mundo feito de estamentos e estritamente hierarqui-
zado. De baixo para cima, do inferior ao superior, a diferença é do menos para o
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O HOMEM GREGO
mais, da privação para a plenitude, em uma escala de valores que se estende sem
verdadeira ruptura, sem esta transformação completa de plano que a passagem
do finito para o infinito, do relativo para o absoluto, do tempo para a eternidade
exigem, porque são incomensuráveis. As perfeições das quais são dotados os deuses
prolongam na mesma linha aquelas que são manifestadas pela ordem e beleza do
mundo, pela harmonia feliz de uma cidade dominada pela justiça, pela elegância
de uma vida levada com medida e controle de si; a piedade do homem grego não
adota a via da renúncia ao mundo, mas de sua estetização.
Os homens estão submetidos aos deuses como o criado ao senhor do qual
depende. Isso porque a existência mortal não basta a si mesma. Nascer já faz re-
ferência, para cada indivíduo, a um além de si mesmo: os parentes, os ancestrais,
os fundadores da linhagem, saídos diretamente do solo ou concebidos por algum
deus. A partir do instante em que seus olhos se abrem para a luz, o homem está
em dívida. Ele a paga ao prestar escrupulosamente para a divindade, pela obser-
vação dos ritos tradicionais, a homenagem que ela tem o direito de exigir. Embo-
ra possa implicar um elemento de temor que poderá alimentar, no limite, as
angústias obsessivas do supersticioso, a devoção grega comporta outro aspecto
bastante diferente. Ao criar o contato com os deuses e ao torná-los, de alguma
forma, presentes entre os mortais, o culto introduz na vida dos homens uma nova
dimensão, feita de beleza, de gratuidade, de comunhão feliz. Os deuses são cele-
brados com procissões, cantos, danças, coros, jogos, concursos e banquetes nos
quais se consome em comum a carne dos animais ofertados em sacrifício. No mo-
mento em que oferece aos Imortais a veneração que merecem, o ritual de festa se
apresenta, para aqueles cujo destino é a morte, como o adorno dos dias de suas
vidas, um adorno que, ao conferir-lhes graça, alegria, harmonia, ilumina-os com
um brilho no qual se reflete um pouco do esplendor divino. Como diz Platão,
para se tornarem homens feitos, as crianças devem, logo em sua primeira infân-
cia, aprender "a viver jogando, e jogando jogos como os sacrifícios, os cantos, as
danças" (Leis, 803 c). Isso porque, a nós, homens, diz ele: "os deuses nos foram
dados não apenas para partilhar nossas festas, mas para nos dar um sentido do
ritmo e da harmonia acompanhados de prazer, pelo qual eles nos põem em mo-
vimento ao se tornarem nossos coregos e ao nos entrelaçarem uns aos outros pe-
lo canto e pela dança" (Leis, 653 d). No entrelaçamento que o ritual institui entre
os celebrantes, os deuses também se encontram, pelo jogo agradável da festa,
associados e afinados com os homens.
Os homens dependem da divindade: sem seu consentimento nada se realiza
no mundo de câ. Assim, é preciso a todo momento estar em dia com ela, servin-
do-a sem falhas. Mas servi-la não significa ser seu escravo. Para marcar sua di-
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ferença frente ao bárbaro, o grego proclama em alto e bom som que ele é um
homem livre, eleátheros, e a expressão "escravo do deus", que encontramos lar-
gamente difundida entre outros povos, não se usa não só na prática cultuai cor-
rente como também até mesmo para designar ofícios religiosos ou sacerdócios de
uma divindade quando se trata de cidadãos que exercem, a título oficial, suas fun-
ções sacerdotais. Liberdade, escravidão: para aqueles que conferiram a esses dois
termos, no contexto da cidade grega, seu significado pleno e estrito, esses concei-
tos são demasiadamente exclusivos para que possam ser ambos aplicados ao mes-
mo indivíduo. Quem é livre não pode ser escravo, ou, melhor: não se pode ser
escravo sem deixar imediatamente de ser livre. Outros motivos intervém nessa
questão. O mundo dos deuses está longe o bastante para que o dos homens man-
tenha, em relação a ele, sua autonomia; sua distância, contudo, não é tamanha que
o homem se sinta, frente à infinitude do divino, impotente, esmagado, reduzido a
nada. Para que o sucesso coroe seus esforços, tanto na paz como na guerra, para
adquirir riqueza, honra, excelência, para que a harmonia reine na cidade, a vir-
tude nos corações, a inteligência nas mentes, o indivíduo deve se esforçar; é ele
quem deve tomar a iniciativa e realizar a obra sem se poupar. Em todos os cam-
pos das coisas humanas, é responsabilidade de cada um empreender e perseverar
para obter sucesso. Ao realizar sua tarefa como convém, tem-se as melhores opor-
tunidades de assegurar a benevolência divina.
Distância e proximidade, ansiedade e alegria, dependência e autonomia, re-
signação e iniciativa - entre esses pólos opostos, todas as atitudes intermediárias
podem apresentar-se em função dos momentos, das circunstâncias, dos indivíduos.
Entretanto, por mais diversas, por mais contrastadas que sejam, não comportam
nenhuma incompatibilidade; todas se inscrevem dentro de um mesmo campo de
possibilidades, seu leque desenha os limites dentro dos quais pode operar, na for-
ma que lhe é própria, a devoção dos gregos; indica os caminhos múltiplos, mas
não indefinidos, que esse tipo de relação com o divino, característico do culto an-
tigo, permite.
Digo culto, não religião ou crença. Como observa com justeza Mario Ve-
getti , o primeiro desses dois termos não possui um equivalente na Grécia onde
3
3. M. Vegetti, " L ' h o m m e et les dieux", em VHomme grec, op. cit., pp. 319-355.
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giosa; tal coisa é verdadeira do mais prosaico ao mais solene, da esfera privada à
vida pública. M. Vegetti lembra uma anedota muito significativa: hóspedes que
foram visitar Heráclito param à sua porta quando percebem que ele estava se aque-
cendo perto de seu forno. Segundo.Aristóteles, que pretendia provar que, assim
como a observação das estrelas e dos movimentos celestes, o estudo das coisas
mais humildes não carece de dignidade, Heráclito, para convidá-los a entrar, lhes
teria dito: "Aqui também (dentro do forno da cozinha), existem deuses" (Das Par-
tes dos Animais, I, 5, 645 a). Mas, devido ao fato de estar presente em todo lu-
gar e em toda oportunidade, o religioso corre o risco de não possuir mais um
lugar ou um modo de se manifestar que lhes sejam singulares. Assim, só devería-
mos falar em "religião" para o homem grego com os cuidados e as reservas que
nos impusemos para falar da noção de deus.
Quanto à crença, as coisas são mais complicadas. Para nós, hoje, uma pessoa
é, no plano religioso, crente ou incrédula: a linha de demarcação é nítida. Fazer
parte de uma Igreja, ser um praticante regular e acreditar em um corpo de verda-
des constituído como credo com valor de dogma são três aspectos do engajamento
religioso. Não há nada semelhante na Grécia: não existe Igreja nem clero, não há
nenhum dogma. A crença nos deuses não poderia então adotar a forma de um per-
tencimento a uma Igreja, ou da aceitação de um conjunto de proposições dadas
como verdadeiras e que escapam, por seu caráter de revelação, à discussão e à crí-
tica. O "crer" nos deuses do homem grego não se situa em um plano propriamente
intelectual; não visa fundar um conhecimento do divino; não possui nenhum cará-
ter de doutrina. Nesse sentido, o terreno está livre para o desenvolvimento, fora
da religião e sem conflito aberto com ela, das formas de pesquisa e de reflexão
cujo objetivo será precisamente criar um saber e atingir a verdade como tal.
O grego não se encontra, assim, em determinado momento, na situação de ter
de escolher entre crença e não-crença. Ao honrar os deuses conforme as tradições
mais sólidas, ao confiar na eficiência do culto praticado por seus ancestrais, bem
como por todos os membros de sua comunidade, o fiel pode demonstrar ora uma
extrema credulidade, como o supersticioso do qual Teofrasto ri, ora um ceticismo
prudente, como Protágoras, que julga que não se pode saber se os deuses existem ou
não existem, nem conhecer nada sobre eles, ora uma completa incredulidade, como
Crítias, que sustenta que os deuses foram inventados para manter os homens em
sujeição. Mas incredulidade não é não-crença, no sentido que um cristão pode atri-
buir a esse termo. A dúvida no plano intelectual não atinge em cheio, para arruiná-
la, a piedade grega no que ela tem de essencial. Não se pode imaginar Crítias
deixando de participar das cerimônias do culto ou recusando-se a fazer um sacrifí-
cio quando é preciso. Hipocrisia? É mais correto entender que, como a "religião"
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grega é inseparável da vida cívica, excluir-se dela significaria colocar-se fora da
sociedade, deixar de ser o que se é. Existem, contudo, pessoas que desejam ser es-
tranhas à religião cívica e exteriores à pólis\ suas atitudes não estão ligadas a um
grau maior ou menor de incredulidade ou de ceticismo, ao contrário, são sua fé e
seu engajamento em movimentos sectários com vocação mística, como o orftsmo,
que fazem delas, religiosa e socialmente, marginais.
Mas está na hora de abordar outros dos temas que anunciei: o mundo - ain-
da que, estando "cheio de deuses", segundo a fórmula famosa, já tratava dele
quando falava do divino. Assim, temos um mundo onde o divino está implicado
em cada uma de suas partes bem como em sua unidade e em sua ordenação geral.
Não da forma como o criador é responsável por aquilo que tirou do nada e que,
fora ou longe dele, traz sua marca, mas da forma direta e íntima de uma presença
divina espalhada por todos os lugares por onde aparece uma de suas manifesta-
ções. A ph$sis, termo que traduzimos por "natureza" quando dizemos, como Aris-
tóteles, que os filósofos da escola de Mileto foram, no século VI a. C., os primeiros
a iniciar uma historia peri physeõs, uma pesquisa sobre a natureza, esta physis-
natureza tem pouco em comum com o objeto de nossas ciências naturais ou com
a física. Quer faça as plantas crescerem, os seres vivos se deslocarem, os astros
se moverem em suas órbitas celestes, a physis é uma potência animada e viva.
Para o "físico" Tales, mesmo as coisas inanimadas, como uma pedra, participam
da psykhé, que é ao mesmo tempo sopro e alma, embora para nós o primeiro
termo tenha uma conotação "física" e o segundo "espiritual". Animada, inspira-
da, viva, a natureza está, por seu dinamismo, próxima do divino e, por sua ani-
mação, próxima do que somos como homens. Retomando a expressão usada por
Aristóteles sobre o fenômeno dos sonhos que vêm povoar nosso sono, a natureza
é propriamente daimónia, "demoníaca" {Da Adivinhação durante o Sono, 2, 463
b 12-15); e como, no centro de cada homem, a alma é um daimõn, um demônio,
existe, entre o divino, o físico e o humano, mais do que continuidade: existe pa-
rentesco, conaturalidade.
O mundo é belo como um deus. Desde o fim do século VI a. C., o termo que
servirá para designar o universo em seu conjunto é kósmos; nos textos mais anti-
gos, ele se aplica àquilo que, ordenado e regrado harmoniosamente, tem valor de
adorno, conferindo ao objeto que orna um acréscimo de graça e de beleza. Unido
em sua diversidade, permanente por meio do tempo que foge, harmonioso no agen-
O HOMEM GREGO
ciamento das partes que o compõem, o mundo é como uma jóia maravilhosa, uma
obra de arte, um objeto precioso semelhante a um desses agálmata que sua per-
feição qualifica para servirem como oferenda a um deus dentro de seu santuário.
O homem contempla e admira esse.grande ser vivo que é todo o mundo; faz parte
dele. De pronto, esse universo se descobre é se impõe para ele, em sua realidade
irrecusável, como um dado primeiro, anterior a qualquer experiência que possa
ser feita. Para conhecer o mundo, o homem não pode situar em si mesmo o ponto
de partida de sua abordagem como se, para chegar às coisas, fosse preciso passar
pela consciência que temos delas. O mundo o qual nosso saber visa não é atingido
"em nosso espírito". Nada mais distante da cultura grega do que o cogito cartesi-
ano, o "penso" posto como condição e fundamento de todo o conhecimento do
mundo, de si e de deus, ou do que a concepção leibniziana segundo a qual cada
indivíduo é uma mônada isolada, sem porta nem janela, contendo dentro de si,
como na sala fechada de um cinema, todo o desenrolar do filme que conta sua
existência. Para ser apreendido pelo homem, o mundo não precisa sofrer essa trans-
mutação que faria dele um fato de consciência. Representar-se o mundo não con-
siste em torná-lo presente dentro de nosso pensamento. Nosso pensamento é que
é do mundo e presença no mundo. O homem pertence ao mundo com o qual está
aparentado e que conhece por ressonância ou conivência. O ser do homem, origi-
nalmente, é um ser-no-mundo. Se esse mundo lhe fosse estranho, como hoje su-
pomos, se fosse um puro objeto, feito de extensão e de movimento, opondo-se a
um sujeito, feito de julgamento e de pensamento, o homem só poderia, de fato,
comunicar-se com ele assimilando sua própria consciência. Mas, para o grego, o
mundo não é esse universo exterior coisificado, separado do homem pela barreira
intransponível que separa a matéria do espírito, o físico do psíquico. O homem
encontra-se em uma relação de comunidade íntima com o universo animado ao
qual tudo o liga.
Um exemplo para fazer entender melhor o que Gérard Simon chama de "es-
tilo de presença no mundo e de presença a si que não podemos mais entender sem
um esforço importante de distanciamento metódico, exigindo uma verdadeira res-
tituição arqueológica" . Quero falar da vista e da visão. Na cultura grega, o "ver"
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tem um estatuto privilegiado. Ele é valorizado até ocupar, na economia das capa-
cidades humanas, uma posição sem equivalente. De uma certa forma, o homem é
olhar para a sua própria natureza. E isso por duas razões, ambas decisivas. Em
primeiro lugar, ver e saber são a mesma coisa; se idetn, "ver", e eidénai, "saber",
são duas formas verbais de um mesmo termo, se etdos, "aparência, aspecto visí-
vel", significa também "caráter próprio, forma inteligível", é porque o conheci-
mento é interpretado e expresso no modo do ver. Conhecer é uma forma de visão.
Em segundo lugar, ver e viver são também a mesma coisa. Para ser vivo, é preciso
ao mesmo tempo ver a luz do sol e ser visível aos olhos de todos. Deixar a vida
significa perder ao mesmo tempo a vista e a visibilidade, abandonar a claridade
do dia para penetrar em outro mundo, o mundo da Noite onde, perdido nas Tre-
vas, somos despojados ao mesmo tempo de nosso rosto e de nosso olhar.
Mas esse "ver", tanto mais precioso quanto é conhecimento e vida, os gre-
gos não o interpretam como nós o fazemos - desde que Descartes, entre outros,
passou por aí diferenciando três níveis no fenômeno visual: primeiro a luz,
realidade física, seja ela onda ou corpdsculo; depois o órgão do olho, montagem
óptica, espécie de caixa-preta cuja função é projetar sobre a retina uma imagem
do objeto; por fim, o ato propriamente psíquico de perceber à distância o objeto
olhado. Entre o ato final da percepção, que supõe uma instância espiritual, uma
consciência, um "eu", e o fenômeno material da luz, existe o mesmo abismo que
separa o sujeito humano do mundo exterior.
Inversamente, para os gregos, a visão só é possível se existir, entre o que é
visto e o que vê, uma inteira reciprocidade, traduzindo, quando não uma identi-
dade completa, ao menos um parentesco muito próximo. Porque ilumina todas
as coisas, o sol também é, no céu, um olho que tudo vê; e se nosso olho vê, é
porque irradia uma espécie de luz comparável à do sol. O raio luminoso que emana
do objeto e que o torna visível tem a mesma natureza que o raio óptico prove-
niente do olho e que o torna vidente. O objeto emissor e o sujeito receptor, os
raios luminosos e os raios ópticos pertencem a uma mesma categoria de realida-
de de que ela ignora a oposição físico-psíquica ou que é, ao mesmo tempo, de
ordem física e psíquica. A luz é visão, a visão é luminosa.
Conforme observa Charles Mugler em um estudo intitulado "La lumière et
la vision dans la poésie grecque" ("A Luz e a Visão na Poesia Grega"), a própria
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que ela ainda aparece transposta em algumas observações, para nós surpreenden-
tes, de filósofos como Aristóteles. No De insomniis, o mestre do Liceu sustenta
que, se a vista é afetada por seu objeto, "ela também exerce uma certa ação sobre
ele", como o fazem todos os objetos brilhantes, pois entra na classe das coisas bri-
lhantes e coloridas. E apresenta como prova disso que, se as mulheres se olharem
em um espelho na época de sua menstruação, a superfície polida do espelho se
cobre com uma espécie de vapor cor de sangue; essa mácula impregna tão profun-
damente os espelhos quando eles estão novos que é difícil apagá-la (De insomniis,
2, 459 b 25-31).
Mas é talvez em Platão que o "parentesco" entre a luz, o raio de fogo emi-
tido pelo objeto e aquele que o olho lança para fora se afirma com maior clareza
como causa da visão. Como os deuses teriam, com efeito, fabricado os "olhos
portadores de luz (phõsphóra ómmata)'"}
Eles fizeram com que o fogo puro que reside dentro de nós e que é irmão (adelphós) do
fogo exterior se escoasse pelos olhos de forma sutil e contínua [...] assim, quando a luz do dia
(methsmerinòn phâs) cerca a corrente da visão, o semelhante encontra seu semelhante, funde-
se com ele em um único todo, e forma-se, ao longo da reta proveniente dos olhos, utn tínico
corpo homogêneo, apropriado ao nosso. Dessa forma, onde quer que venha a bater o fogo que
sai do interior dos olhos, ele encontra e se choca com aquele que vem dos objetos exteriores.
Forma-se assim um conjunto que tem propriedades uniformes em todas as suas partes, graças
à similitude [Timeu; 45 b sg.].
Resumindo: no lugar de três instâncias distintas - realidade física, órgão
sensorial, atividade mental - , temos, para explicar a visão, uma espécie de braço
luminoso que, a partir dos olhos, se estende como um tentáculo e prolonga nosso
organismo para fora. Devido a seu parentesco (todos consistem igualmente em
um fogo muito puro que ilumina sem queimar), o braço óptico integra-se à luz
do dia e aos raios emitidos pelos objetos. Mesclado a eles, constitui um corpo
(soma) único, perfeitamente contínuo e homogêneo, que pertence ao mesmo tempo
a nós e ao mundo físico. Podemos assim tocar, onde quer que esteja, e por mais
distante que esteja, o objeto exterior projetando até ele uma passarela extensível
feita de uma matéria comum ao objeto visto, a nós que vemos e à luz que nos faz
ver. Nosso olhar opera no mundo no qual encontra seu lugar como um pedaço
desse mundo.
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ENTRE MITO E POLÍTICA
Assim, não devemos nos espantar quando lemos em Plotino, no século III
de nossa era que, quando percebemos um objeto qualquer pela vista,
é claro que o vemos sempre onde ele está e que nos projetamos para perto dele (prosbâlomen)
pela visão. A impressão visual acontece diretamente no lugar onde se encontra o objeto; a alma
vê o que está fora dela [.,.). Pois ela não precisaria olhar para fora se tivesse dentro dela a forma
do objeto que vê; olharia simplesmente a marca que, de fora, entrou dentro dela. Além disso, a
alma atribui uma distância ao objeto e sabe dizer a que distância o vê; como veria, separado dela
e longe dela um objeto que está dentro dela? Além do mais, sabe dizer as dimensões do objeto
exterior; sabe que tal objeto, por exemplo o céu, é grande. Como seria possível posto que a
marca que está dentro dela não pode ser tão grande quanto o objeto? Por fim, e esta é a objeção
mais forte, se nos limitamos a perceber as marcas dos objetos que vemos, não poderíamos ver
os objetos em si, mas apenas imagens, sombras, e assim os próprios objetos seriam diferentes
do que deles vemos [Enéadas, IV, 6, 1, 14-32.].
Por que citar todo esse texto? Porque mostra com plena clareza a distância
que, a propósito da vista, nos separa dos gregos. Enquanto o campo interpretativo
no qual eles situaram a visão não tiver dado lugar a outro, totalmente diferente, as
questões da percepção visual tal como são debatidas na época moderna, particular-
mente a questão da avaliação da distância, na qual intervém a visão binocular, e a
da constância da grandeza aparente dos objetos apesar da distância em que se en-
contram, que põe em jogo fatores múltiplos, nem mesmo serão colocadas. Tudo
está claro a partir do momento em que nosso olhar passeia entre os objetos no mundo
ao qual ele mesmo pertence, arrastando-nos atrás dele até a extensão do céu. A di-
ficuldade, nesse contexto, não é entender como podemos ver da forma como ve-
mos - isso parece óbvio -, e sim como podemos ver diferentemente do que é, ou
ver o objeto além do lugar em que ele está, por exemplo, em um espelho.
Que formulação escolher para caracterizar esse estilo particular de ser-no-
mundo? O melhor jeito é, sem dúvida, defini-lo negativamente em relação ao nos-
so, dizendo que, nele, o homem não está separado do universo. Os gregos sabem,
é claro, que existe uma "natureza humana" e não deixaram de refletir sobre as ca-
racterísticas que distinguem o homem dos outros seres, das coisas inanimadas, dos
animais e dos deuses. Mas o reconhecimento dessa especificidade não separa o ho-
mem do mundo; não leva a erguer, frente ao universo em seu conjunto, um campo
de realidade irredutível a qualquer outro e que sua forma de existência marginaliza
radicalmente: o homem e seu pensamento, que constituem em si um mundo intei-
ramente separado do restante.
Bernard Groethuysen escreve, sobre o estudioso antigo, que ele jamais es-
quece do mundo, que pensa e age com relação ao cosmos, que faz parte do mun-
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O HOMEM GREGO
do, que é "cósmico" . Podemos dizer, sobre o indivíduo grego, de forma menos
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— Quando olhamos para o olho de alguém que está íi nossa frente, nosso rosto se reflete
no que chamamos de pupila como em um espelho; aquele que se olha vê sua imagem.
— Está certo.
—Assim, quando o olho considera outro olho, quando fixa seu olhar sobre a parte desse
olho que é a mais excelente, aquela que vê, é ele mesmo que vê [...]. E a alma também, se quiser
conhecer a si mesma, deve olhar para outra alma e, naquela alma, a parte em que reside a facul-
dade própria da alma, a inteligência, ou ainda tal outro objeto que lhe é semelhante [Alcibíades,
133 a-b.].
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ENTRE MITO E POLÍTICA
Eusébio cita em sua Preparação Evangélica, logo depois do texto que acabamos
de citai-, o deus, pois "é o melhor espelho das coisas humanas para quem quer
julgar a qualidade da alma e é nele que podemos melhor ver e conhecer a nós
mesmos". Mas, sejam quais forem esses objetos - alma do outro, essências inte-
ligíveis, deus -, é sempre olhando, não dentro de si mas para fora, para um ser
diferente que lhe é aparentado, que nossa alma pode se conhecer, como o olho
pode ver no exterior um objeto iluminado por causa da afinidade natural entre o
olhar e a luz, da similitude completa entre o que vê e o que é visto. Assim, o que
somos, nosso rosto e nossa alma, nós o vemos e conhecemos ao olhar o olho e a
alma do outro. A identidade de cada um se revela no contato com o outro, pelo
cruzamento dos olhares e pela troca de palavras.
Nesse ponto, novamente, como em sua teoria da visão, Platão nos parece
uma boa testemunha. Mesmo se, ao colocar a alma no centro de sua concepção da
identidade de cada um, ele marca um ponto de inflexão cujas conseqüências se-
riam decisivas, não sai dos quadros em que se inscreve a representação grega do
indivíduo. De início, porque essa alma, que é nós, não traduz a singularidade de
nosso ser, sua originalidade fundamental, mas inversamente, considerada como
daímõn, ela é impessoal ou suprapessoal, dentro de nós ela está além de nós, visto
que sua função não é assegurar nossa particularidade de ser humano, e sim liber-
tar-nos dela integrando-nos à ordem cósmica e divina. Em seguida, porque o co-
nhecimento de si e a relação consigo mesmo não podem sempre se estabelecer
diretamente, imediatamente, porque permanecem limitados pela reciprocidade do
ver e do ser-visto, do eu e do outro, que constitui uma característica das culturas
da vergonha e da honra por oposição às culturas da falta e do dever. Vergonha e
honra, no lugar dos sentimentos de culpabilidade e de obrigação que remetem
necessariamente, no sujeito moral, a sua consciência pessoal íntima. Uma palavra
grega deve ser levada em conta neste sentido: time. Ela designa o "valor" que é
reconhecido a um indivíduo, ou seja, ao mesmo tempo, as marcas sociais de sua
identidade: seu nome, sua filiação, sua origem, seu estatuto no grupo com as hon-
ras que lhe são ligadas, os privilégios e a consideração que tem o direito de exigir,
e sua excelência pessoal, o conjunto das qualidades e dos méritos - beleza, vigor,
coragem, nobreza do comportamento, domínio sobre si - que, em seu rosto, em
suas vestes, em seu comportamento, manifestam aos olhos de todos seu pertenci-
mento à elite dos kaloi kagathoí, os belos-e-bons, dos áristoi, os excelentes.
Em uma sociedade de confronto na qual, para ser reconhecido, é preciso ven-
cer os rivais em uma competição incessante pela glória, cada um encontra-se co-
locado sob o olhar de outro, cada um existe por esse olhar. Somos o que os outros
vêem de nós. A identidade de um indivíduo coincide com sua avaliação social: da
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O HOMEM GREGO
Nós praticamos a liberdade, não só em nossa conduta política, como também quanto a
toda desconfiança que poderíamos ter uns pelos outros no que concerne aos nossos modos de
viver cotidianos. Não nos encolerizamos com nosso próximo se ele age seguindo sua vontade
e não recorremos a vexames que, embora não causem danos, podem parecer ferinos. Apesar
dessa tolerância que rege nossas relações privadas, no domínio público, o temor nos impede
antes de tudo de fazer coisas ilegais [Tucídides, II, 37, 2-3.J.
de. Mas esse indivíduo jamais aparece como encarnando direitos universais ina-
lienáveis, ou como uma pessoa, no sentido moderno do termo, com sua vida in-
terior singular, o mundo secreto de sua subjetividade, a originalidade fundamental
de seu eu. Trata-se de uma forma essencialmente social do indivíduo marcada pe-
lo desejo de se ilustrar, de adquirir, aos olhos de seus pares, por seu estilo de vida,
seus méritos, sua generosidade, suas proezas, renome suficiente para fazer de sua
existência singular o bem comum de toda a cidade, e até mesmo da Grécia inteira.
Assim, o indivíduo, quando enfrenta a questão de sua morte, não poderia apostar
na esperança de sobrevivência no outro mundo igual ao que era quando vivo, em
sua singularidade, na forma de uma alma que lhe fosse particular e que lhe per-
tencesse em propriedade ou de seu corpo ressuscitado. Para criaturas efêmeras,
destinadas à decrepitude da idade e à morte, de que meio poderiam dispor então
para conservar no além o nome, o renome, a figura de beleza, de juventude, a
coragem viril, a excelência? Em uma civilização da honra em que cada um, du-
rante sua vida, se identifica com o que os outros vêem e dizem dele, na qual, quanto
maior a glória que o celebra, mais ele é, só continuará a existir se ela continuar
imperecível em vez de desaparecer no anonimato do esquecimento. Para o ho-
mem grego, a não-morte significa a presença permanente na memória social da-
quele que deixou a luz do sol. Sob as duas formas que adotou - rememoraçâo
contínua pelo canto dos poetas indefinidamente repetido de geração a geração,
memorial funerário erguido para sempre sobre o túmulo a memória coletiva
funciona como uma instituição que garante, para certos indivíduos, o privilégio
de sua sobrevivência no estatuto de morto glorioso. Em vez da alma imortal, as-
sim, temos a glória imperecível e a saudade de todos para sempre; em vez de um
lugar no paraíso reservado para os justos, a garantia, para quem soube merecê-la,
de uma perenidade estabelecida no cerne da existência social dos vivos.
Na tradição épica, o guerreiro que escolhe uma vida breve, como Aquiles, e
que se dedica inteiramente à glória, se cair na flor da idade no campo de batalha,
ganha definitivamente, pela "bela morte", uma dimensão heróica que o esquecimento
não pode mais atingir. A cidade retoma esse tema especialmente, como mostrou Nicole
Loraux, na oração fúnebre para os cidadãos que também escolheram morrer por sua
pátria. Mortalidade e imortalidade associam-se e interpenetram-se na pessoa desses
homens de coragem, os agathol ándres, em lugar de se opor. Já no século VII a. C.,
em seus poemas, Tirteu celebrava como "o bem comum para a cidade e para todo o
povo" o combatente que soube, na falange, manter-se firme na primeira fileira. Se
caiu frente ao inimigo, "os jovens e os velhos o choram da mesma forma e toda a
cidade sofre um triste pesar [...] jamais sua nobre glória perece, nem seu nome, mas,
embora permaneça debaixo da terra, ele é imortal" (IX D, 27 sq., C. Prato). No iní-
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O HOMEM GREGO
cio do século V a.C., Górgias encontra, nessa associação paradoxal do mortal com o
imortal, a oportunidade de satisfazer seu gosto pelas antíteses: "Embora estejam
mortos, a saudade deles não morreu com eles; mas imortal, embora residindo em
corpos que não são imortais, esta saudpde não cessa de viver por eles que não estão
mais vivos". Em sua Oração Fúnebre pai a os soldados atenienses que caíram duran-
te a chamada Guerra de Corinto (395-386), Lísias retoma o tema e o desenvolve de
uma forma mais bem argumentada:
Se, depois de ter escapado dos perigos dos combates, pudéssemos nos tornar imortais, po-
deríamos entender que os vivos choram os mortos. Mas na verdade nosso corpo é vencido pelas
doenças e pela velhice, e o gênio a quem foi entregue nosso destino não fraqueja. Assim, devemos
considerar felizes entre todos os homens os heróis que acabaram seus dias lutando pela mais nobre
e a maior das causas e que, sem esperar por uma morte natural, escolheram a mais bela morte. Sua
memória não pode envelhecer e sua honra é objeto de inveja para todos os homens. A natureza quer
que os choremos como mortais, mas sua virtude quer que os cantemos como imortais [...]. Quanto
a mim, considero sua morte feliz e invejo-os. Se vale a pena nascer, é apenas para aqueles que, com
seu corpo mortal, deixaram de sua virtude uma lembrança imortal [Epitáphios, 78-80).
Retórica? Em parte, sem dúvida, mas certamente não pura retórica. O dis-
curso encontra força e sustentação em uma configuração da identidade na qual ca-
da um aparece como inseparável dos valores sociais que lhe são reconhecidos pela
comunidade dos cidadãos. No que faz dele um indivíduo, o homem grego perma-
nece engajado no social como o é no cosmos.
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