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Tudo o que sobe
deve convergir
Flannery O'Connor
Tudo o que sobe
deve convergir
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dcavalo
eterro
Tudo o que sobe deve convergir
Everything that rises must converge
1100-422 Lisboa
PREFÁCIO • • • • • • • • • • • . • . . • • • • • • • • • • • • • • • • • . • • • • • . 7
GREENLEAF • • . • • • • • • . • • • • • . • • • • • • • . • • • • • . . • • • • • • • 31
O CAIAFRIO PERMANENTE • • . • • • • • • • • • • • • • • • • • • . • • • • • . 89
REVELAÇÃO • • . . • • • • • • • • • • • . • • • • • • • • • • . • • • • • • • • • • 193
[!] Conglomerado de Estados no Sul e centro dos Estados Unidos onde os luteranos ortodo
xos correspondem a cerca de 820/o da população e o texto bíblico é tomado com total serie
dade como o paradigma a seguir no quotidiano.
8 ü ' CONNOR
que se dirigia a ele. «Bem», disse ela, «SÓ s e vive uma vez e ao
pagar um pouco mais por ele, pelo menos não tenho com que
me envergonhar.»
«Um destes dias vou começar a ganhar dinheiro», disse
Julian sombriamente - ele sabia que isso nunca iria aconte
cer - «e a mãe poderá ter uma dessas coisas ridículas sempre
que lhe apetecer.» Mas, antes, haviam de mudar de casa.
Imaginou um local onde os vizinhos mais chegados ficassem
a cinco quilómetros para cada lado.
«Acho que estás a sair-te bem», disse ela, calçando as
luvas. «Só acabaste a escola há um ano. Roma e Pavia não se
fizeram num dia.»
Ela era uma das poucas participantes na aula de emagreci
mento do YMCA que chegava de chapéu e de luvas e que se
apresentava com um filho que tinha estudado na universi
dade. «Leva tempo», disse ela, «e o mundo está uma desgraça.
Este chapéu ficava-me melhor do que qualquer dos outros,
embora quando a logista o trouxe eu tivesse dito, 'Volte a
guardar essa coisa. Nunca o poria na cabeça', e ela disse,
'Espere só até o ver posto', e quando ela mo colocou, eu disse,
'Bem ! ! !', e ela disse, 'Se quer saber a minha opinião, esse cha
péu favorece-a a si e a senhora favorece o chapéu, e para
além do mais', arrematou, 'com esse chapéu, jamais se sen
tirá envergonhada:»
Julian pensou que poderia ter suportado a sua sorte mais
facilmente se ela fosse egoísta, se fosse uma bruxa velha que
bebesse e lhe gritasse. Caminhava ao lado dela, saturado em
depressão, como se no meio do seu martírio ele tivesse perdido
a fé. Apercebendo-se da expressão dele, sombria, sem espe
rança, irritada, ela parou bruscamente com um olhar aflito e
puxou-lhe o braço para trás. «Espera por mim», disse. «Vou a
casa tirar esta coisa e amanhã vou devolvê-lo. Eu não estava
em mim. Posso pagar a conta do gás com os sete e meio.»
Ele apertou-lhe o braço com muita força. «A mãe não vai
devolvê-lo», disse. «Eu gosto dele.»
«Bem», disse ela, «Não me parece que deva ... »
1 4 o ' CONNOR
visto pôr um pé. A lei desse mundo era sacrificar-se por ele
depois de ter anteriormente criado essa necessidade gerando
uma confusão. Tinha adquirido os seus sacrifícios apenas
porque a sua própria falta de perspicácia os tomara necessá
rios. Toda a sua vida tinha sido uma luta para agir como uma
Chestny sem os bens dos Chestny, e proporcionar-lhe a ele
tudo o que ela pensava que um Chestny devia ter; mas já que,
dizia ela, era divertido lutar, porquê queixar-se? E quando se
vencia, como ela tinha vencido, que divertido era olhar para
os tempos difíceis ! Julian não conseguia perdoar-lhe o facto
de ela apreciar a luta, e muito menos o facto de pensar que
ela tinha vencido.
O que ela queria dizer quando afirmava que vencera era
que tinha conseguido educá-lo e enviá-lo para a universi
dade, e que o resultado era tão positivo - ele era bem pare
cido (os dentes dela tinham ficado com cáries para que os
dele pudessem ser endireitados), inteligente (ele tinha cons
ciência de que era demasiado inteligente para ter sucesso), e
tinha um futuro à sua frente (claro que não havia futuro
algum à sua frente) . A mãe desculpava-lhe a melancolia jus
tificando-a com o facto de ele estar ainda a crescer, e com as
suas ideias radicais que derivavam da falta de experiência
prática. Ela dizia que ele ainda não sabia nada sobre a <<vida»,
que ele não tinha sequer entrado no mundo real - quando,
na realidade, ele estava tão desencantado com o mundo real
como um homem de cinquenta anos.
A maior ironia de tudo isto era, apesar dela, ele ter con
seguido sair-se tão bem. Apesar de ter andado numa univer
sidade apenas de terceira categoria, tinha, por iniciativa pró
pria, saído com uma educação de primeira. Apesar de ter
crescido dominado por uma mentalidade mesquinha, tinha
conseguido desenvolver uma mentalidade aberta. Apesar de
todas as opiniões idiotas que ela tinha, ele não tinha precon
ceitos nem receio de enfrentar os factos. O mais extraordiná
rio de tudo era que, em vez de estar cego pelo amor por ela,
como ela estava por ele, ele se tinha libertado dela a nível
20 o'CONNOR
cio e irei pois tenho dois rapazes», era tudo o que a carta
dizia, mas ele chegou no dia seguinte numa carrinha mon
tada com peças díspares, a mulher e as cinco filhas sentadas
no chão da parte de trás, ele e os dois rapazes na cabina.
Ao longo dos anos em que tinham vivido na sua propriedade,
Mr. e Mrs. Greenleaf quase não envelheceram. Não tinham preo
cupações, nem responsabilidades. Viviam como os lírios do
campo, do sustento que ela lutava para pôr na terra. Quando ela
estivesse morta e enterrada por causa do trabalho excessivo e
das preocupações, os Greenleafs, saudáveis e prósperos, estariam
prontos para começar a explorar Scofield e Wesley.
Wesley dizia que a razão pela qual Mrs. Greenleaf não tinha
envelhecido era porque libertava todas as suas emoções na cura
através da oração. «Devia começar a rezar, querida», insinuou ele.
Scofield apenas a irritava para além do suportável, mas
Wesley causava-lhe uma verdadeira ansiedade. Era magro,
nervoso e careca, e o facto de ser intelectual exercia uma pres
são terrivel no seu temperamento. Duvidava que ele viesse a
casar antes de ela morrer mas estava certa de que nessa altura
a mulher errada o caçaria. As raparigas simpáticas não gos
tavam de Scofield, mas Wesley não gostava de raparigas sim
páticas. Não gostava de nada. Guiava trinta quilómetros
todos os dias até à universidade onde leccionava e trinta qui
lómetros de regresso todas as noites, mas dizia que detestava
a viagem de trinta quilómetros e que detestava a universi
dade de segunda categoria e que detestava os mentecaptos
que lá estudavam. Detestava o país e detestava a vida que
levava ; detestava viver com a mãe e com o idiota do irmão e
detestava ouvir falar da maldita vacaria e do maldito empre
gado e das malditas máquinas avariadas. Mas apesar de tudo
o que dizia, nunca tomava qualquer iniciativa para partir.
Falava de Paris e de Roma, mas nunca ia sequer até Atlanta.
«Se fosses a esses sítios ias adoecer», dizia Mrs. May.
«Quem é que em Paris se vai preocupar em te preparar uma
dieta sem sal? E achas que se te casasses com uma dessas
aves raras com quem sais ela te cozinharia pratos sem sal?
42 o ' CONNOR
«Vês porque é que ele não sabia de quem era aquele touro?
Porque era deles. Vês aquilo que eu tenho que aturar? Vês
que se eu não tivesse mantido o meu pé sobre o pescoço dele
todos estes anos, vocês, rapazes, poderiam estar a ordenhar
vacas todas as manhãs às quatro da matina?»
Wesley voltou a puxar o jornal para perto do prato e mur
murou, encarando-a bem de frente, «Eu não ordenharia uma
vaca nem que fosse para salvar a sua alma do inferno.»
«Eu sei que não o farias», disse ela numa voz frágil. Recostou
-se na cadeira e começou a virar rapidamente a faca ao lado do
prato. «São bons rapazes, o O.T. e o E.T.», disse. «Deviam ter sido
meus filhos.» Este pensamento era tão horrivel que a imagem de
Wesley ficou imediatamente desfocada por uma parede de lágri
mas. Tudo o que ela conseguia ver era a sua forma escura,
levantando-se rapidamente da mesa. «E vocês os dois», gritou
ela, uvocês os dois deviam ter pertencido àquela mulher!»
Ele estava a dirigir-se para a porta.
«Quando eu morrer», disse ela numa voz fraca, mão sei o
que vai acontecer-vos.»
«Está sempre a tagarelar sobre esse quando-eu-morreni,
rosnou ele ao sair apressadamente, «mas a mim parece-me
uma senhora bastante saudável.»
Durante algum tempo ela deixou-se ficar sentada onde
estava, olhando a direito à sua frente pela janela através do
compartimento para uma cena de cinzentos e verdes indis
tintos. Distendeu os músculos da cara e do pescoço e inspi
rou profundamente, mas a cena à sua frente acabou por mis
turar-se numa massa cinzenta aguada. «Eles que não pensem
que eu vou morrer em breve», murmurou, e logo a seguir
acrescentou, numa voz ligeiramente provocatória : «Eu só hei
-de morrer quando estiver pronta.»
Limpou os olhos com o guardanapo, levantou-se e diri
giu-se à janela e fitou a cena à sua frente. As vacas estavam
dispersas por dois pastos de um verde pálido, para lá da
estrada ; e, por detrás delas, cercando-as, ficava um muro
negro de árvores com uma sebe aguçada que afastava o céu
44 ü ' CONNOR
1Referência a uma espécie de calão intraduzivel para português e que Mr. Greenleaf usa
amiúde ao longo do conto. (N. da T.)
GREENLEAF 5 1
desta maneira antes», disse ele numa voz incrédula. «Ali não
há nada a não ser os bosques.»
«Deixaremos de vê-los», disse ela, «e aquilo é o relvado e
os bezerros do meu papá pastam ali.»
Ao ouvir aquilo o velho levantou-se. «Estás a comportar-te
mais como uma Pitts do que como uma Fortune», disse. Nunca
antes lhe tinha feito um comentário tão desagradável e arre
pendeu-se no mesmo instante em que o disse. Magoava-o mais
a ele do que a ela. Virou-se e entrou em casa e subiu as esca
das em direcção ao quarto.
Por diversas vezes durante a tarde se levantou da cama e
olhou através da janela para lá do «relvado» para a linha de
bosques que ela afirmava que deixariam de poder ver. De
todas as vezes viu o mesmo : bosques - não uma montanha,
não uma queda de água, não qualquer tipo de arbusto ou flor
plantada, nada mais que bosques. A luz do sol entretecia-se
por entre eles nessa altura particular da tarde de forma que
cada tronco estreito de pinheiro se destacava em toda a sua
nudez. Um tronco de pinheiro é um tronco de pinheiro, dizia
para consigo, e qualquer pessoa que queira ver um não pre
cisa de ir longe por estas bandas. De cada vez que se levan
tava e olhava para fora, ficava mais convencido do seu bom
senso em vender a parcela. O desgosto que causaria ao Pitts
seria permanente, mas ele podia compensar Mary Fortune
comprando-lhe qualquer coisa. Para os adultos, uma estrada
levava ou ao céu ou ao inferno, mas com as crianças havia
sempre paragens ao longo do caminho onde a atenção delas
podia ser desviada com uma insignificância.
A terceira vez que se levantou para olhar para os bosques,
eram quase seis horas e os troncos descamados pareciam bro
tar de uma poça de luz vermelha que jorrava do sol quase
oculto que se punha por trás deles. O velho fitou a cena du
rante algum tempo, como se durante um dilatado instante
tivesse sido arrebatado para fora da agitação de tudo o que
levava ao futuro e fosse retido ali no centro de um mistério
desconfortável de que não se tinha apercebido anteriormente.
7 8 o'CONNOR
dia que fosse lida senão após a sua morte. Era uma carta
semelhante à que Kafka dirigira ao pai. O pai de Asbury
tinha morrido havia vinte anos e Asbury considerava o facto
uma enorme benção. Tinha a certeza de que o velho perten
cera ao b ando do tribunal, um rústico proeminente envol
vido e m todos os assuntos de forma desonesta, e e l e sabia
que não teria conseguido suportá-lo. Leu alguma da sua cor
respondência e ficou horrorizado com a estupidez de tudo
aquilo.
Ele sabia, claro, que a mãe não perceberia a carta de ime
diato . O seu pensamento literal necessitaria de algum tempo
para apreender o significado, mas achava que ela conseguiria
perceber que lhe perdoava tudo o que lhe tinha feito naquele
sítio. Quanto a isso, supunha que ela tomaria consciência do
que lhe tinha feito apenas através da carta. Achava que ela
não tinha qualquer consciência disso. A satisfação consigo
própria era quase inconsciente ; mas, através da carta, poderia
experimentar uma tomada de consciência dolorosa e isso seria
a única coisa de valor que tinha para deixar.
Se lê-la ia ser doloroso para ela, escrevê-la tinha por vezes
sido insuportável p ara ele - pois para a confrontar, ele tinha
tido que se confrontar a si mesmo. «Eu vim para cá para esca
par à atmosfera esclavagista dessa casa», tinha escrito, «para
descobrir a liberdade, para alforriar a minha imaginação, para
retirá-la, como se de um falcão se tratasse, da sua gaiola e pô
-la ' a rodopiar na espiral que se dilata' (Yeats ) e o que é que
descobri? A minha imaginação é incapaz de voar. É um pás
saro que a mãe domesticou, encolhido, cheio de medo, no seu
galinheiro, recusando-se a sair !» As palavras seguintes esta
vam sublinhadas duas vezes. «Não tenho imaginação. Não
possuo talento. Não consigo criar. Não possuo nada a não ser
a ânsia por estas coisas. Por que não matou isso também?
Mulher, porque me manietou?»
Ao escrever isto, atingiu o âmago do desespero e pensou
que, ao lê-lo, a mãe iria pelo menos começar a aperceber-se
da tragédia dele e do papel que ela tinha desempenhado. Não
O CALAFRIO PERMANENTE 9 9
«Deus não . . . »
«Deus criou-te para O conheceres, O amares e O servires
neste mundo e p ara seres feliz com Ele no próximo !», disse o
velho padre numa voz demolidora. «Se não te aplicas no cate
cismo como é que pretendes saber como salvar a tua alma
imortal?»
Asbury viu que tinha cometido um erro e que era altura de
se livrar do idiota do velho. «Oiça», atalhou, «eu não sou
Católico.»
«Uma fraca desculpa p ara não rezares !», bufou o velho.
Asbury afundou-se ligeiramente na cama. «Estou a mor
rer», gritou.
«Mas ainda não morreste !», arrematou o padre, «e como é
que esperas encontrar-te com Deus face a face quando nunca
falaste com Ele? Como é que esperas conseguir aquilo que não
pedes? Deus não envia o Espírito Santo àqueles que não O
pedem. Pede-Lhe para que te envie o Espírito Santo. »
«0 Espírito Santo?», disse Asbury.
« É s tão ignorante que nunca ouviste falar do Espírito
Santo?», perguntou o p adre.
«Claro que ouvi falar do Espírito Santo», disse Asbury
furioso, «e o Espírito S anto é a última coisa de que eu ando à
procura !»
«E Ele pode ser a última coisa que recebes», disse o padre,
cravando o seu único olho ameaçador exaltado. «Queres que
a tua alma sofra a condenação eterna? Queres ser privado de
Deus por toda a eternidade? Queres sofrer a dor mais terrível,
maior do que o fogo, a dor da p erda? Queres sofrer a dor da
perda por toda a eternidade?»
Asbury moveu os braços e as pernas desamparadamente
como se estivesse pregado à cama pelo olho terrível.
«Como é que o Espírito Santo pode encher-te a alma
quando ela está cheia de lixo?», bramiu o padre. «0 Espírito
Santo não virá até te veres a ti próprio como és - um j ovem
preguiçoso, ignorante e orgulhoso !», acrescentou ele, batendo
com o punho na pequena mesa-de-cabeceira.
1 1 4 ü 'CONNOR
Havia algo que ele procurava, algo que ele sentia que preci
sava de ter, uma última experiência final e significativa que ele
deveria criar para si próprio antes de morrer - criar para si pró
prio a partir da sua própria inteligência. Tinha confiado sempre
em si próprio e nunca fora lamechas a respeito do inefável.
Uma vez, quando Mary George tinha treze anos e ele cinco,
ela atraiu-o com a promessa de um presente não especificado
para uma tenda cheia de pessoas e arrastou-o de costas até à
frente, onde estava de pé um homem envergando um fato azul
e uma gravata vermelha e branca. «Tome», disse ela alto. «Eu
já estou salva mas pode salvá-lo a ele. É uma verdadeira peste
e tem um ego grande demais.» Ele soltou-se da mão dela e dis
parou dali como um pequeno rafeiro e mais tarde, quando lhe
perguntou pelo presente, ela disse: «Terias recebido a Salvação
se tivesses esperado por ela mas como agiste daquela forma,
não recebeste nada !»
À medida que o dia passava, ele ficava cada vez mais frené
tico com receio de morrer sem proporcionar a si próprio uma
última experiência significativa. A mãe sentava-se ao lado da
cama muito preocupada. Tinha tentado ligar a Block por duas
vezes mas não conseguia apanhá-lo. O rapaz pensou que nem
mesmo agora ela tinha consciência que ele ia morrer, muito
menos de que o fim estava apenas a algumas horas de distância.
A luz no quarto começava a adquirir um matiz bizarro,
quase como se estivesse a materializar-se. Sob uma forma
obscura entrou e pareceu ficar à espera. Lá fora nada ap aren
tava mover-se p ara além da orla da linha esbatida das árvo
res que ele conseguia ver alguns centímetros por cima do
parapeito da j anela. De repente, lembrou-se daquela experiên
cia de comunhão que tivera na vacaria com os pretos quando
fumaram juntos, e subitamente começou a tremer de excita
ção. Haviam de fumar juntos uma última vez.
Após um momento, virando a cabeça na almofada, disse :
«Mãe, quero despedir-me dos pretos.»
A mãe empalideceu. Durante um instante a cara pare
ceu prestes a desfazer-se. Depois a linha da boca endureceu ;
1 1 6 o'CONNOR
tava ainda menos olhar para Sarah Ham, fixou toda a sua
atenção, com desagrado e aversão, no aparador que se encon
trava do outro lado da sala. A mãe tratava cada observação da
rapariga como se merecesse uma atenção real. Sugeriu vários
planos para o uso salutar do tempo livre de Star. Sarah Ham
tomou tanta atenção a estes conselhos como se tivessem vindo
de um papagaio. Numa ocasião em que Thomas olhou inad
vertidamente na direcção dela, piscou-lhe imediatamente o
olho. Logo que engoliu a última colher de sobremesa, o rapaz
levantou-se e murmurou, «Tenho que ir, tenho uma reunião.»
«Thomas», disse a mãe, «quero que leves a Star a casa a
caminho da tua reunião. Não quero que ela apanhe táxis sozi
nha à noite.»
Durante um momento, Thomas ficou em silêncio, furioso.
D epois virou-se e saiu da sala. Dai a pouco regressou com
uma expressão de determinação obscura. A rapariga estava
pronta, esperando à porta da sala, humildemente. Até lhe dei
tou um grande olhar de admiração e confiança. Thomas não
lhe ofereceu o braço, mas ela agarrou-lhe, apesar disso, e saiu
de casa e desceu as escadas agarrada ao que podia ter sido um
monumento que se movia por milagre.
«Portem-se bem !», gritou a mãe.
Sarah Ham riu-se em silêncio, e deu uma cotovelada a
Thomas.
Ao ir buscar o casaco, ele tinha decidido que esta seria a
sua oportunidade para dizer à rapariga que, a não ser que ela
deixasse de se comportar como um parasita em relação à mãe,
seria ele próprio a encarregar-se, pessoalmente, de que ela
fosse recambiada para a prisão. Dar-lhe-ia a entender que
sabia aquilo que ela andava a tramar, que não era ingénuo e
que havia certas coisas que não toleraria. À secretária, de
caneta na mão, ninguém era mais fluente que Thomas. Assim
que ficou fechado no carro com Sarah Ham, o terror prendeu
-lhe a língua.
Ela sentou-se em cima dos pés e disse, «Enfim, sós», e sol
tou uma risadinha.
OS CONFORTOS DO LAR 1 3 1
«Pensa em tudo o que tu tens e que ele não tem !», disse
Sheppard. «Imagina que tinhas de vasculhar em caixotes do
lixo para encontrares comida? Imagina que tinhas um pé
inchado, enorme, e que um dos lados do teu corpo se inclinava
mais que o outro quando andavas?»
O rapaz ficou com uma expressão vazia, obviamente inca
paz de imaginar tal coisa.
«Tu tens um corpo saudável», disse Sheppard, «uma boa
casa. Nunca te ensinaram nada a não ser a verdade. O teu pai
dá-te tudo o que precisas e tudo o que queres. Não tens um avô
que te bate. E a tua mãe não está na penitenciária estadual.»
A criança afastou o prato. Sheppard suspirou em voz alta.
Um nó de carne apareceu por baixo da boca do rapaz subi
tamente distorcida. A cara transformou-se numa massa de
inchaços com frestas para os olhos. «Se ela estivesse na peni
tenciária», começou a dizer numa espécie de ruído subterrâneo,
«eu podia ir vêêêêêê-la.» Rolaram-lhe lágrimas pela cara
abaixo e o ketchup desceu-lhe pelo queixo. Parecia que lhe
tinham batido na boca. Abandonou-se à dor e berrou.
Sheppard ficou sentado, desamparado e infeliz, como um
homem vergastado por uma qualquer força elementar da natu
reza. Aquela não era uma dor normal. Fazia tudo parte do
egoísmo do miúdo. A mãe tinha morrido há mais de um ano e
a dor de uma criança não deveria durar tanto. «Vais fazer onze
anos», disse num tom reprovador.
A criança começou a fazer um ruído aflitivo, agudo e ofe
gante.
«Se deixares de pensar em ti e pensares no que podes fazer
por outra pessoa», disse Sheppard, «vais deixar de sentir a falta
da tua mãe.»
O rapaz ficou em silêncio mas os seus ombros continuaram
a tremer. Depois o seu semblante desfaleceu e começou a ber
rar de novo.
«Achas que eu também não me sinto sozinho sem ela?»,
disse Shepp ard. «Achas que eu nem sinto a falta dela? Sinto,
mas não fico sentado a lamentar-me. Ocupo-me a ajudar
OS COXOS HÃO-DE EN1RAR PRIMEIRO 1 5 1
[ 5] Logótipo muito antigo de uma marca de farinha para panquecas extremamente popular,
consistindo numa negra gorda de lenço na cabeça, com o sorriso rasgado geralmente asso
ciado à subserviência dos escravos libertados. Na última década, depois de várias pressões,
esta senhora tomou-se menos caricatural e mais politicamente correcto. (N. da T.)
1 60 ü ' CONNOR
[6] Passagem de um blues tomado famoso por Teny Mcgee, extremamente popular à época.
(N. da T.)
1 6 2 o'CONNOR
II
casa porque não queria dividir a sua atenção. Queria estar livre
para observar minuciosamente a reacção de Johnson. O rapaz
não parecia satisfeito nem mesmo interessado com a expecta
tiva do sapato, mas quando este se tomasse uma realidade, cer
tamente ficaria sensibilizado.
A loja ortopédica era um pequeno armazém de cimento
forrado e atulhado com instrumentos de tortura. Cadeiras de
rodas e andarilhos cobriam a maior parte do chão. Nas pare
des estavam penduradas toda a espécie de muletas e de
suportes. Membros artificiais estavam empilhados nas prate
leiras, pernas e braços e mãos, garras e ganchos, correias e
ameses humanos e instrumentos não identificáveis destina
dos a deformidades indescritíveis. Numa pequena clareira no
meio do compartimento havia uma fila de cadeiras com al
mofadas de plástico amarelo e um banco para experimentar
sapatos. Johnson deixou-se cair numa das cadeiras e colocou
o pé em cima do banco e ficou sentado taciturnamente com
os olhos fixos nele. No local aproximado do dedo o cabedal
tinha-se aberto de novo e ele remendara-o com um bocado
de lona ; tinha remendado outro sítio com o que parecia ser a
sola original do sapato. Os dois lados estavam atados com
corda.
Havia um afogueamento de excitação na cara de Sheppard;
o seu coração batia-lhe de forma anormalmente rápida.
O empregado apareceu vindo das traseiras da oficina com o
novo sapato debaixo do braço. «Agora está perfeito !», disse.
Escarranchou-se no banco utilizado para experimentar sapatos
e segurou no sapato ao alto, a sorrir, como se o tivesse produ
zido por magia.
Era um objecto preto, liso e sem forma, que brilhava horri
velmente. Parecia uma arma embotada, altamente polida.
Johnson olhou para ele sombriamente.
«Com este sapato», disse o empregado, «nem vais notar que
estás a andar. Vais pensar que estás a montar!» Inclinou a
careca rosada e reluzente e começou a desapertar a corda cui
dadosamente. Retirou o sapato velho como se estivesse a esfo-
1 7 8 o ' CONNOR
[8 ] Expressão muito em voga na época, quando a pastilha elástica ainda era novidade, uti
lizada para caracterizar as pessoas que a mastigavam com ruído e com a boca toda aberta.
(N. da T.)
1 9 8 ü ' CONNOR
ver se havia alguma coisa no exterior que ela devesse ver, mas
não conseguiu descortinar nada. Os vultos que passavam pro
jectavam apenas uma sombra pálida através da cortina. Não
havia qualquer razão para a rapariga a ter escolhido como
objecto do seu olhar desagradável. «Miss Finley», disse a enfer
meira, fazendo ranger a porta. A mulher que mascava a pasti
lha elástica levantou-se e passou em frente dela e de Claud e
entrou na recepção. Calçava sapatos de salto alto vermelhos.
Exactamente do outro lado da mesa, os olhos da rapariga
feia estavam fixos em Mrs. Turpin como se tivesse uma razão
muito particular para não gostar dela.
«Está um tempo óptimo, não está?», disse a mãe da ra
pariga.
«Está bom tempo para o algodão se conseguirmos que
os pretos o apanhem», disse Mrs. Turpin, «mas os pretos já não
[9]É tradicional, nos Estados Unidos, recortarem-se dos jornais e das revistas, pelo picotado,
umas tiras de papel que dão direito a uma qualquer percentagem de desconto ou a um brinde
quando se entregam na caixa, tanto nos supennercados como em numerosas lojas temáticas.
Os reformados têm a fama de passar o dia a descobrir e recortar cupões. (N. da T.)
200 ü ' CONNOR
[ !O] Note-se que se trata de café americano. Por norma, é de cafeteira, fraco, e bebe-se ou
em canecas ou em copos de papel, bastantes deles num impressionante tamanho X L Estes
copos têm tampa, para que o café não se entorne nem arrefeça enquanto o consumidor anda
com ele na rua. As tampas costumam ter um buraquinho, e é por ai que se bebe. (N. da T.)
REVELAÇÃO 203
[ li]
O problema mantém-se. Recentemente, u m representante da escumalha branca que con
seguiu tomar-se um comediante famoso e bem pago (white trash, para os americanos) disse à
GQ americana: •A escumalha branca com dinheiro é o pior pesadelo da América.• (N. da T.)
206 ü ' CONNOR
sou que, bem, as maneiras dela não beneficiaram nada com isso.
«Eu quase que preferia que ele estivesse doente o tempo
todo», disse a mulher rasca da escumalha branca, forçando de
novo a atenção na sua direcção. « É chato como a potassa
quando não está. Insuportável. Parece que algumas crianças
são naturalmente más. Algumas tornam-se más quando
ficam doentes, mas ele saiu ao contrário. Adoeceu e ficou
bem comportada. Agora não me dá chatices nenhumas. Sou
eu quem está à espera da consulta do médico», terminou.
Se mandasse alguém para África, pensou Mrs Turpin, seria os .
da tua espécie, mulher. «Sim, claro», disse alto, mas olhando para
o tecto, «há um montão de coisas piores que um preto.» E mais
sujos do que um porco, acrescentou para si própria.
«Penso que as pessoas mal-humoradas merecem mais
pena do que quaisquer outras no mundo», disse a senhora
simpática numa voz propositadamente baixa.
[ 1 2]
College de grande qualidade, cotado todos os anos entre os dez melhores dos Estados
Unidos. À época, só admitia meninas. (N. da T.)
[1 3 ]
Estado que foi sempre considerado horrivelmente liberal pelos sulistas americanos. No
passado, foi aqui que começou a libertação dos escravos. No presente, é daqui que vem Ted
Kennedy, de longe o político mais liberal com assento no Senado. (N. da T.)
REVELAÇÃO 207
Tinha que ser nas costas. Não havia forma d e contornar esse
problema. Uma vaga inspiração começou a animar a sua
mente. Visualizou uma tatuagem nas suas costas a que Sarah
Ruth não pudesse resistir - um tema religioso. Pensou num
livro aberto com a inscrição «B ÍB LIA SAGRADA» tatuada por
baixo e um versículo autêntico inscrito na página. Durante uns
tempos, esta pareceu-lhe ser a aproximação mais correcta ;
depois começou a ouvi-la dizer: «Então e eu não tenho uma
Bíblia verdadeira? Porque é que eu hei-de passar o tempo a ler
sempre o mesmo versículo quando posso ler o texto todo?»
Precisava de uma coisa ainda melhor que a Bíblia ! Pensou
tanto nisso que começou a ter insónias. Também estava a per
der peso - Sarah Ruth limitava-se a atirar a comida para den
tro da panela e deixá-la cozer. Não percebia ao certo porque é
que continuava a viver com uma mulher que era feia e estava
grávida, que não sabia cozinhar e deixava-o nervoso e irritá
vel, e começou a ter um ligeiro tique de um dos lados da cara.
Uma ou duas vezes surpreendeu-se a virar-se abruptamente
para trás, como se andasse alguém a persegui-lo. Tivera um
avô que acabara num manicómio estadual, embora isso só lhe
tivesse acontecido aos setenta e cinco anos, mas por muito
urgente que fosse para ele arraajar uma tatuagem, era ainda
mais urgente arranj ar a tatuagem certa, para despertar as
emoções de Sarah Ruth. À medida que se preocupava cada
vez mais com isso, os seus olhos adquiriram uma expressão
vazia e preocupada. A mulher velha para quem ele trabalhava
disse-lhe que se ele não conseguia manter um mínimo de
concentração durante o trabalho ela sabia muito bem onde
encontrar um miúdo preto de catorze anos que conseguiria.
Parker estava demasiadamente preocupado para chegar
sequer a sentir-se ofendido. Em qualquer outra altura tê-la
-ia abandonado naquele mesmo instante, dizendo secamente :
«Muito bem, vá buscá-lo.»
Duas ou três manhãs mais tarde estava a fazer fardos de
palha com a enfardadeira espatifada da mulher velha e o seu
tractor desconjuntado num campo grande, completamente nu
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[ 1 4] Jogo de linguagem entre o apelido Coleman e coai man, carvoeiro. (N. da T.)
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