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UMA QUESTAO DE PRINCiPIO Ronald Dworkin ‘Traduglo Luis CARLOS BORGES Martins Fontes Sdo Paulo 200! 216 UMA QUESTO DE PRINCIPIO que torne plausivel supor que nenhuma de tais teorias pode ser preferida em detrimento da autra com base na moralidade politica. Nao acho que tal argumento tenha sido fornecido, apesar de certamente nao ter demonstrado que isso seja im- possivel. Capitulo 6 De que maneira o Direito se assemelha @ literatura* Sustentarei que a pritice juridica é um exercicio de inter- pretacdo néio apenas quando os juristas interpretam documen- tos ou leis especificas. mas de modo geral. O Direito, assim concebido, é profunda e inteiramente politico. Juristas e juizes rio podem evitar a politica no sentido amplo da teoria politica. Mas o Direito nao é uma questo de politica pessozl ou parti- déria, ¢ uma critica do Direito que nao compreenda essa dife- renga forneceré uma compreensao pobre ¢ uma orientagéo mais pobre ainda. Proponho que podemos melhorar nossa com- preensio do Direito comparando a interpretago juridica com a interpretagdo em outros campos do conhecimente, especial- mente a literatura. Também suponho que o Direito, sendo mais bem compreendido, propicier’ um entendimento melhor do que é a interpretacio em geral. * ODireito problema central da doutrina juridica analitica diz res- peito ao sentido que se deve dar as proposigdes de Direito, Re- firo-me aos varios enunciados que os juristas fazem ao descre~ ver o que € o Direito com relacdo a uma certa questio. As pro- posigdes juridicas podem ser muito abstratas e gerais — como a * Publicado orginalmente em Critical Inquiry, setembco de 1982, Rein ‘presso em W. J.T. Mitzell (org), The Politics of Interpretation (Chicago ¢ Lon ‘res: Chicago University Press, 1983). © Ronald Dworkin 218 UMA QUESTO DE PRINCIPIO de que 0s estados dos Estados Unidos no podem fazer discri- minagdes raciais na prestagdo de servicos bisicos aos seus cidadaos -, ou relativamente concretas —como a proposigao de que alguém que aceita um cheque no curso normal de uma traasagio, sem notar nenhum defeito no titulo, tem o direito de saque ante 0 emitente ~, ou muito concretas ~ como a proposi- «do de que a sra. X é responsdvel por danos perante o sr. Y, na ‘quantia de § 1.150, porque ele escorregou em sua calgada es- corregadia e quebrou a bacia. Em cada caso surge uma dificul- dade. De que tratam as proposigies juridicas? O que pode tor- fclas verdadeiras ou falsas? ‘A dificuldade surge porque as proposigies de Direito pa- recem ser deseritivas — dizem respeito a come as coisas s&0 NO Direito, nao como deveriam ser —e, no entanto, revelou-se €x- tremamente dificil dizer exatamente 0 que é que elas descre- ‘vem, Os positivistas juridicos acreditam que zs proposigbes de Direito so, na verdade, inteiramente descritivas: sio trechos da histéria. Uma proposicao juridica, a seu ver, somente é ver- dadeira caso tenha ocorrido algum evento de natureza legisla- tiva do tipo citado; caso contritio, nao é. Isso parece funcionar razoavelmente bem em casos muito simples. Se 0 legislative de Ilinois aprova as palavras “Nenhum testamento sera vilido sem trés testemunhas”, a proposicio de Direito, de que um tes- tamento de Illinois precisa de trés testemunhas, parece ser ver~ dadeira apenas devido a esse evento histérico. ‘Mas, em casos mais dificeis, a andlise falha. Considere a proposigio de que um esquema de acéo afirmativa (ainda nfo ‘examinado pelos tibunais) € constitucionalmente valido. Se isso é verdade, nao pode ser por causa do texto da Constituigao nem de decisées anteriores dos tribunais, porque juristas razoa- veis, que sabem exatamente 0 que diz a Constituigdo e 0 que fizeram os tribunais, ainéa assim podem discordar quanto aser 01 ao verdade. (Duvido de que a analise dos positivistas seja vvallda mesmo no caso simples do testamento, mas essa é uma outra questio, sobre a qual nao discutirei aqui.) Quais sto as outras possibilidades? Uma € supor que pro- posigdes de Direito controvertidas, como o enunciado da aio O DIREITO COMO INTERPRETAGAO 219 afirmativa, no sto, de modo algum, descritivas, mas expres ses do que 0 falante quer que o Direito seja. Outra ¢ mais am- biciosa: enunciados controvertidos sio tentativas de descrever algum Direito objetivo puro ou natural, que existe em virtude da verdade moral objetiva, nao da decisao histérica, Mas os dois esquemas consideram alguns enunciados juridicos, pelo me- ‘hos, como puramente valorativos, distintos de enunciados des- ctitivos: expressam 0 que o falante prefere ~ sua politica pes- soal — 01 0 que ele acredita ser objetivamente exigido pelos principias de uma moralidade politica ideal. Nenhum desses esquemas é plausivel, pois alguém que diga que um determi- nado plano de acdo afirmativa, que nao foi examinado pelos tribunais, é constitucional, realmente pretende descrever v Di- reito como é, no como quer que seja ou como pensa que ceve- ria ser, de acordo com a melhor teoria moral. Poderia dizer que lamenia que 0 plano seja constitucional e que, segundo ame Ihor teoria moral, ndo deveria sé-lo, Hé uma alternativa melhor: as proposigdes de Direito nao sto meras descrigdes da histétia juridica, de maneira inequivoca, nem sio simplesmente valorativas, em algum sentido disso- ciado da histéria juridica. Sao interpretativas da historia juridi- ca, que combina elementos ‘anto da descrigdo quanto da va- leracdo, sendo porém diferente de ambas. Essa sugestio pare- cera adequada, pelo menos & primeira vista, para muitos juris- tas € filésofos juridicos. Eles tém o costume de dizer que o Direito é uma questio de interpretacao — mas, talvez, somente por causa do que entendem por interpretago. Quando uma lei (cu a Constituigio) é obscura em algum ponto, porque algum termo crucial é impreciso ou uma sentenga é ambigua, os juris- tas dizem que a lei deve ser interpretada, e aplicam o que cha- ‘mam “técnicas de interpretagdo da lei”. A maior parte da lite- ratura presume que a interpretagao de um documento coasiste ‘em descobrir 0 que seus autores (os legisladores ou os consti- ‘uintes) queriam dizer ao usar as palavras que usaram, Nas os juristas reconhecem que, em muitas questdes, 0 autor nao teve ‘nenhuma inteng&o e que, em outras, é impossivel conhecer sua intengéo. Alguns juristas adotam uma posigao mais cética. Se-

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