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Roberto Conduruii
Tradução de Marina Santos revista pelo autor
A afro-modernidade no Brasil
As questões afro-brasileiras são simultaneamente inerentes e
essenciais à compreensão da cultura brasileira. Contudo, essas
ligações assumem formas diversificadas, com uma intensidade
variável ao longo do tempo e do espaço, sendo que certos
momentos e lugares são de particular importância para o processo
de modernização artística. Uma dessas conjunturas ocorreu, entre
finais do século XIX e princípios do século XX, nos meios artísticos
académicos do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, no contexto da
intensificação do processo abolicionista, do fim da escravatura e do
início do regime republicano. Refletindo a complexidade dos
processos de representação e auto-representação – nomeadamente
das imagens que construíam de si mesmos e dos outros – pintores
negros como Estêvão Silva, Antônio Firmino Monteiro, Antônio
Rafael Pinto Bandeira e os irmãos João e Arthur Thimótheo da
Costa moviam-se dentro dos géneros da pintura ocidental, evitando
temas afro-brasileiros, cuja abordagem foi feita por artistas de
ascendência não africana – como Belmiro de Almeida, Pedro
Américo, Antônio Parreiras, Rodolpho e Henrique Bernardelli –
embora com sentidos depreciativos que contribuíram para
estabelecer uma posição marginal dos negros na sociedade.
Um outro momento singular ocorreu por volta de 1910 em São
Paulo, Recife e Rio de Janeiro, antecipando uma nova apreciação da
componente africana na cultura brasileira. Deixando de ser
encarada como negativa ou degenerativa, como um mal social a ser
erradicado, a miscigenação transformou-se num valor cultural
positivo – um paradigma para as relações artísticas e culturais. As
referências recorrentes a mulheres e religiões sobressaem como
parte do mapa artístico da cultura popular do Brasil. A imagem da
baiana – como mãe-de-santo, vendedora de acarajéiii ou de fruta –
chamou a atenção de Brocos, Anita Malfatti, Cecília Meireles,
Oswaldo Goeldi e Cândido Portinari, entre muitos outros, e
culminou no ícone internacional que foi Carmen Miranda. A mulata
passou a símbolo da miscigenação, tendo sido homenageada, em
especial, nas elegias pictóricas de Di Cavalcanti, o que ajudou a
transformá-la num padrão de beleza brasileira, subvertendo, por
um lado, os padrões estéticos ocidentais impostos pela cultura das
belas artes, mas perpetuando, por outro, a objectivação sexual das
mulheres negras. Este processo foi criticado de forma, a um tempo,
monumental e afectiva por Tarsila do Amaral em A Negra, 1923, e
por Anna Bella Geiger em Am.Lat, 1976, em que a mulata é
integrada na perspectiva crítica da artista em relação à América
Latina como parte de um repertório subserviente de sexualidade e
de misticismo.
MACUMBA DE ARTISTA?
No Brasil, grande parte do diálogo artístico com o universo afro-
brasileiro centrou-se nas religiões afro-brasileiras, ocupando-se das
suas imagens e reforçando a tradição de representação das suas
práticas iniciada no tempo em que o Brasil era uma colónia
portuguesa. Enquanto as obras de Carybé e Verger têm muitas
vezes um caráter etnográfico por se centrarem na cultura material,
ritos e mitos afro-brasileiros, as investigações de Valentim exploram
a sintaxe e a semântica características da simbologia presente nessas
religiões. Valentim alude a várias religiões, em especial, mas não em
exclusivo, às religiões afro-brasileiras, propondo combinações
hieráticas e abstratas, reivindicando a respectiva universalidade.
Araújo refere especificamente o candomblé, com um dinamismo
que parece derivar do construtivismo lírico disseminado no Brasil e
do poder do orixá Exu.vi Rego aproxima as estruturas plásticas
rituais destas religiões a modalidades da arte contemporânea
(quadros-objectos, instalações). Dos Anjos, influenciado pelos neo-
concretistas no seu ‘construtivismo crioulo’, explora a tensão
inerente à reversibilidade dos signos abstractos geométricos.
Ao mesmo tempo, é possível observar apropriações directas ou
indirectas de imagens pertencentes a religiões afro-brasileiras como
consequência de investigações, conduzidas directamente em
terreiros (espaços de culto) e disseminadas na paisagem ou na
história da arte do Brasil. Macumba de Arthur Bispo do Rosário é
uma obra particularmente notável, pela auto-representação e,
simultaneamente, pela rearticulação de objectos e sentidos, na sua
representação sintética das religiões afro-brasileiras, através do
poder interventivo – ao mesmo tempo rude e poético – de múltiplos
objetos. Alguns artistas tiveram, contudo, um considerável
envolvimento e experiência com religiões afro-brasileiras, sem que
tivessem sido necessariamente iniciados nelas. Algumas das
melhores realizações nesta área recorrem tanto às consonâncias,
como às descontinuidades entre arte, religião e cultura, entre o
universal e o local. Em geral, essas obras rearticulam os
procedimentos de desmaterialização característicos da arte
contemporânea – performances, instauraçõesvii e instalações – em
relação a práticas religiosas, em que ritos e objectos são
fundamentalmente inseparáveis. Os rituais raramente se realizam
sem a introdução ou a utilização de certos objetos que, de acordo
com a tradição, têm de ser fabricados e apresentados segundo
rituais específicos.
Em Nimbo/Oxalá 2004, Ronald Duarte articula um acontecimento
químico/físico com a divindade Oxalá, apresentando uma breve e
incontrolável nuvem formada pela expulsão de todo o conteúdo de
alguns extintores, como uma oferenda ao orixá da criação para os
nagôs. Esta relação é reforçada por algumas características de
Oxalá: o dia da performance (sexta-feira); a cor do fumo, que é
também a cor dominante das vestes da congregação (branco); o
elemento de formação temporária (uma nuvem) e uma das suas
características (a sua omnipresença difusa). Numa obra que se
repete tal ex voto, o artista explora a amplitude semântica das
religiões e a disseminação clandestina dos seus signos no interior
dos códigos culturais brasileiros. De modo similar, prescindindo de
representações icónicas e explorando a multiplicidade semântica
dos signos através de uma intervenção performativa fugaz, Marepe
realizou Pérola de água doce, 2007, lançando treze mil pérolas de
água doce no rio Tietê, em S. Paulo. Situando-se na fronteira entre
o artístico e o religioso, a performance foi apresentada como uma
oferenda ritual a Oxum (a divindade afro-brasileira mais poderosa e
directamente associada à água doce) e também como um manifesto
contra a poluição do rio e a degradação ambiental.
É, então, legitimo perguntarmo-nos se alguns dos diálogos artísticos
com religiões afro-brasileiras não deveriam ser classificados de
‘macumba de artista’: a exploração deliberadamente ‘exótica’ destas
religiões para efeitos estéticos. Sem dúvida que a abundância de
obras ligadas a religiões afro-brasileiras é importante para a
integração social dessas religiões. No entanto, a esteticização de
certos elementos dessas religiões constitui uma dimensão da sua
transformação em espectáculo através da arte que pode estar ligada
à ‘hipertrofia ritual das religiões afro-brasileiras’ dada a ênfase
colocada no seu valor estético e mercantil.viii
ARTE DE MACUMBEIRO?
Há que distinguir entre uma esteticização dos cultos religiosos, que
decorre de uma desvalorização dos valores éticos e que tem como
consequência a redução do seu significado a mera aparência, e a
dimensão estética intrínseca a essas religiões. Isto leva-nos a refletir
sobre a inserção de objectos e práticas religiosas no mundo da arte,
naquilo que poderíamos denominar de ‘arte de macumbeiro.’ A
obra de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, mais conhecido por
Mestre Didi, presente nas instituições de arte no Brasil e no
estrangeiro desde os anos de 1960, testemunha a possibilidade de
conservação das características ou atributos requeridos pela religião
e pela sua expansão a outros domínios. Embora a obra e a carreira
de Mestre Didi anunciem transições mais amplamente influentes e
culturalmente inclusivas entre os mundos da religião e da arte,
estabelecendo precedentes para as obras de Lena Martins,
Wuelyton Ferreiro e Júnior de Odé, não deixam de ser excepções
no que respeita ao estatuto marginal da arte religiosa afro-brasileira
no circuito artístico. Para entender a invisibilidade desta tendência
artística é necessário compreender a posição social dos negros
brasileiros e de suas práticas culturais.O que nos leva a reflectir
sobre realizações artísticas vinculadas à causa da negritude, uma
tendência que ganhou maior relevância recentemente.
ATIVISMO ARTÍSTICO?
A articulação entre a arte, a política e a condição negra no Brasil
nos conduz à intervenção do Movimento Negro no campo das artes
e, consequentemente, à militância intelectual e política de Abdias
do Nascimento em prol das populações afro-brasileiras.ix Tendo
desenvolvido a sua actividade nas áreas da poesia e do teatro, bem
como na da política, A. do Nascimento procurou, quando passou a
dedicar-se às artes visuais nos anos 1950, criar uma nova imagem
pública para os negros, fundar um museu e divulgar o
conhecimento sobre a arte negra. O caso de Araújo é semelhante,
uma vez que também se tem dedicado ao ativismo político no
campo institucional da arte, em especial como editor de livros,
curador de exposições e director de museu – actividades essas que
acabariam por culminar na criação, em 2004, do Museu Afro-Brasil
em S. Paulo, a maior e mais importante iniciativa museológica
dedicada à reflexão sobre a participação de africanos e seus
descendentes na formação do Brasil.
No grupo de artistas que tem procurado ligar a causa afro-brasileira
à tradição da arte engajada, que denuncia a exclusão social e chama
a atenção para a situação do socialmente abjecto, incluem-se
Johann Moritz Rugendas, Lucílio de Albuquerque, Cândido
Portinari, António Henrique Amaral, Sebastião Salgado e Vik
Muniz. Dentro desta tendência, há que salientar as representações
críticas de Lasar Segall do sofrimento ou da melancolia dos homens
negros. Bananal, 1927, retrata a sabedoria humilde de negros
idosos, feita de um misto de culturas ancestrais e de sofrimento, de
marginalidade e de resistência gerados pela escravatura, em que se
baseia a figura do preto velho,x que relaciona a condição política do
trabalhador rural com o universo religioso afro-brasileiro.
Hoje em dia, os artistas mais jovens referem frequentemente as
obras de Meireles e Pape por levantarem a questão da exclusão
racial. A obra Inserções em circuitos antropológicos: Black Pente, 1971-
1973, de Meireles fala explicitamente das políticas de exclusão no
Brasil, sendo apresentada do seguinte modo:
Projeto de produção e distribuição a preço de custo de
pentes para negros. Na série Inserções em circuitos ideológicos
o dado fundamental é a constatação da existência do(s)
circuito(s), e a inserção verbal constitui uma interferência
nesse fluxo de circulação, isto é, sugere um ato de
sabotagem ideológica contra o circuito estabelecido. Já nas
‘Inserções em circuitos antropológicos’ (Black Pente, Token),
importa mais a noção de ‘inserção’ do que a de circuito: a
confecção de objetos, elaborados em analogia com os do
circuito institucional, tem por objetivo induzir a um hábito
e, daí, à possibilidade de caracterizar um novo
comportamento. No caso específico de Black Pente, o
projeto trabalharia no sentido de afirmação de uma etnia.xi
ARTE+RELIGIÃO+POLÍTICA+
Na maior parte dos diálogos artísticos com temas afro-brasileiros, a
religião e a política misturam-se com outras matérias, sejam elas de
índole artística ou pertencentes a outros domínios, tempos e
lugares, já que as referências africanas e afro-brasileiras raramente
são exclusivas. O trabalho de Rosana Paulino constitui um exemplo
desta amplitude de expressão.
Vivendo em São Paulo, a artista tem desempenhado um papel
pioneiro na recente intensificação destes diálogos, com uma
perspectiva original que abarca o individual e o colectivo, a partir
da sua experiência como artista negra. Na sua obra, R. Paulino
utiliza material impresso e objectos manufacturados e alude a
fetiches e sortilégios (adivinhação ou profecia) que podem estar
relacionados – embora não exclusivamente – com as religiões afro-
brasileiras. Parede de memória, 1994, que consiste em imagens das
suas antepassadas impressas em patuás (talismãs, fetiches ou
amuletos africanos), versa sobre as crenças, a memória e a
transmissão de geração em geração de conhecimentos e práticas
que tornam possível a sobrevivência cultural em contextos adversos.
Noutras obras – que não se referem explicitamente ao âmbito
religioso –, Rosana Paulino alude às interdições quotidianas
impostas às mulheres negras, que se prendem com
constrangimentos sociais antigos e actuais, bem como aos
condicionamentos à sua própria actividade e expressão como artista
e mulher negra.
Alexandre Vogler, Tridente de Nova Iguaçu, Foto, 110 x 70 cm, 2006 / 2009. Foto:
João Laet.