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COLEÇÃO PERSPECTIVAS DO MUNDO E H I C II F K O M M

Planejada e Dirigida por RUTH NANDA ANSHEN

CONSELHO EDITORIAL,
Niels Bohr, Richard Courant, Hu Shih, Ernest Jackh, Robert M.
Maclver, Jacques Maritain, J. Robert Oppenheimer, Radhakrishnan.
Alexander Sachs, I. I. Rabi
A
1. ARTE
DE A M A R
TRADUÇÃO DE

MILTON AMADO

EDITÔKA jr0r/0/a LIMITADA


EDITORA ITATIAIA LIMITADA
BELO HORIZONTE
Rua São Geraldo, 53 - Fone: 222-8630
Rua da Bahia, 902 - Fones: 224-5151 e 226-6997
BELO HORIZONTE Rua São Geraldo, 67 - PABX: 212-4600 e 222-7002
O que esta Coleção significa

DO MUNDO é um plano de apre-


livros sucintos sobre setores variados, de
autoria de pensadores contemporâneos dos mais
responsáveis. Seu objetivo é revelar novas tendências
básicas da civilização moderna, interpretar as forças
criadoras que agem no Oriente assim como no Ocidente,
e apontar a uma nova consciência aquilo que possa con-
tribuir para mais profunda compreensão das relações
mútuas entre o homem e o universo, o indivíduo e a
sociedade, e dos valores de que todos os povos compar-
tilham. PERSPECTIVAS DO MUNDO representa "a
comunidade mundial de ideias num universo de debate,
acentuando o princípio da unidade na humanidade, da
permanência dentro da mutação.
Desenvolvimentos recentes em muitos campos do
pensamento abriram possibilidades insuspeitadas de mais
profunda compreensão da situação do homem e de mais
adequada apreciação dos valores e aspirações humanos.
Tais possibilidades, ainda que produto de estudos pura-
mente especializados em setores restritos, exigem, para
ser analisadas e sintetizadas, nova estrutura, novo en-
quadramento, em que possam ser exploradas, enriqueci-
das e levadas avante em todos os seus aspectos, para pro-
veito do homem e da sociedade. Tal estrutura e tal

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enquadramento, PERSPECTIVAS DO MUNDO procura a inflexível necessidade de descobrir um princípio de
defini-los no esperançoso rumo de uma doutrina do diferenciação, e contudo de relação» bastante lúcido para
homem. justificar e purificar o conhecimento científico, filosófico
Pretende ainda esta Coleção: vencer uma enfermi- e qualquer outro, ao mesmo tetnpo que aceitando sua
dade principal da humanidade, a saber, os efeitos da mútua interdependência. Esta é a crise da consciência
atomização do conhecimento produzida pela acabrunhante que se articula através da crise da ciência. É o novo
acumulação de fatos que a ciência criou; esclarecer e despertar.
sintetizar ideias por meio da profunda fertilização dos Esta Coleção se dedica a reconhecer que todas as
espíritos; mostrar, de diversos e importantes pontos de grandes mudanças são precedidas de vigorosa reavaliação
vista, a correlação de ideias, fatos e valores que estão em e reorganização intelectuais. Nossos autores estão cons-
perpétuo jogo mútuo; demonstrar o caráter, a conexão, cientes de que o pecado da arrogância pode ser evitado
a lógica e a operação do organismo inteiro da realidade, mostrando-se que o próprio processo criador não é uma
mostrando ao mesmo tempo a persistente interrelação atividade livre, se por livre entendermos o arbitrário ou
dos processos da mente humana e, nos interstícios do o não relacionado com a lei cósmica. De fato, o processo
conhecimento, revelar a síntese interior e a unidade or- criador na mente humana, o processo de desenvolvimento
gânica da própria vida. na natureza orgânica e as leis básicas do reino inorgâ-
PERSPECTIVAS DO MUNDO sustenta a tese de nico podem ser apenas expressões variadas de um pro-
que, apesar da diferença e diversidade das disciplinas cesso formativo universal. Assim, PERSPECTIVAS DO
representadas, existe forte acordo comum entre seus au- MUNDO espera mostrar que, embora o presente período
tores, no que diz respeito à esmagadora necessidade de apocalíptico seja de tensões excepcionais, também existe
contrabalançar a multidão de incitantes atividades cientí- em ação um movimento excepcional no rumo de uma
ficas e investigações de fenómenos objetivos, da física à unidade compensadora que não possa violar o derradeiro
metafísica, da história e da biologia, relacionando-as com poder moral que embebe o universo, esse mesmo poder
experiências significativas. A fim de oferecer esse equi- de que todos os esforços humanos devem, afinal, depen-
líbrio, é necessário estimular a compreensão do fato bá- der. Desse modo, podemos chegar a compreender que
sico de que, afinal, a personalidade humana individual existe uma independência de crescimento espiritual e
deve atar todas as pontas soltas em um conjunto orgâ- mental que, embora condicionada por circunstâncias,
nico, deve relacionar-se consigo mesma, com a humani- nunca é pelas circunstâncias determinada. De modo
dade e com a sociedade, ao mesmo tempo que aprofunda idêntico, a grande pletora de conhecimentos humanos pode
e incentiva sua comunhão com o universo. Alicerçar esse ser correlacionada com a penetração na natureza da na-
espírito e gravá-lo na vida espiritual e intelectual da tureza humana, ao ser sincronizada com a ampla e pro-
humanidade, nos que pensam como nos que atuam, é em funda escala do pensamento e da experiência humanos.
verdade enorme e desafiante tarefa, que não pode per Realmente, o que falta não é o conhecimento da estrutura
deixada totalmente à ciência natural, de um lado, nem à do universo, mas a consciência da unicidade qualitativa
religião organizada, do outro. Confronta-nos, realmente, da vida humana.
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E, por fim, esta Coleção sustenta a tese de que o
homem se acha em processo de desenvolver uma nova
compreensão que, apesar de seu aparente cativeiro espi-
ritual e moral, pode vir a erguer a raça humana acima e
além do medo, da brutalidade, da ignorância e do isola-
mento que hoje a afligem. A essa nascente consciência,
a esse conceito do homem nascido de uma viçosa
visão da realidade é que PERSPECTIVAS DO MUNDO ÍNDICE
é dedicada.

Nova York, 1958. O que esta coleção significa . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9


Preâmbulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
EUTH NANDA ANSHEN I É o amor uma arte? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
II A teoria do amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
1 — Amor resposta ao problema da existên-
cia humana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
2 — Amor entre pais e filhos . . . . . . . . . . . . 63
3 — Dos objetos do amor . . . . . . . . . . . . . . . . 71
III O amor e sua desintegração na Sociedade
Ocidental Contemporânea . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
IV A Prática do Amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

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Preâmbulo

x-—^ /J LEITURA deste livro seria decepcionante


f sjrf experiência para quem esperasse fácil
\*..*S %J instrução sobre a arte de amar. Este
livro, ao contrário, quer mostrar que o amor não
é um sentimento em que qualquer um se possa /
comprazer, sem levar em conta o nível de matu- /
ridade que alcançou. Deseja convencer o leitor
de que todas as suas tentativas de amar estão
fadadas a falhar se ele não procurar, com o
máximo de atividade, desenvolver sua persona-
lidade total, de modo a conseguir uma orientação
produtiva; convencê-lo de que a satisfação no
amor individual não pode ser atingida sem a
capacidade de amar ao próximo, sem verdadeira
humildade, coragem, fé e disciplina. Numa cul-
tura em que tais qualidades são raras, o alcance
da capacidade de amar deve permanecer uma
conquista rara. O u . . . qualquer um pode per-
guntar a si mesmo quantas pessoas tem conhe- /
eido que verdadeiramente amam. '
Contudo, a dificuldade da tarefa não deve
ser razão para que nos abstenhamos de tentar
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conhecer-lhe os óbices, assim como as condições
de sua realização, para evitar complicações des-
necessárias, tentei tratar do problema em lin-
guagem que, tanto quanto possível, não é técnica.
Pela mesma razão, também reduzi ao mínimo as
referências à literatura sobre o amor.
Para outro problema não encontrei solução
completamente satisfatória: foi o de evitar re-
petição de ideias expressas em anteriores livros Quem nada conhece, nada ama.
meus. O leitor familiarizado, especialmente, com Quem nada pode fazer, nada compreende.
Evasão da Liberdade, O Homem para Si Mesmo Quem nada compreende, nada vale. Mas
e A Sociedade Sadia encontrará neste livro mui- quem compreende também ama, observa,
tas ideias manifestadas nessas obras precedentes. vê... Quanto mais conhecimento houver
Contudo, A Arte de Amar de modo algum é prin- inerente numa coisa, tanto maior o
cipalmente uma recapitulação. Apresenta muitas amor... Aquele que imagina que todos
ideias além das previamente expressas e, muito os frutos amadurecem ao mesmo tempo,
naturalmente, mesmo ideias antigas às vezes ga- como as cerejas, nada sabe a respeito
nham perspectivas novas pelo fato de se centra- das uvas.
lizarem todas em torno de um tópico, o da arte
de amar. PARACELSO

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I
É o Amor uma Arte?

S ó AMOR uma arte? Se o é, exige conhe-


cimento e esforço. Ou será o amor uma l
sensação agradável, que se experimente
por acaso, algo ettn que se "cai" quando se tem
sorte? Este livrinho baseia-se na primeira hipó-
tese, embora indubitavelmente a maioria das pes-
soas, hoje, acredite na segunda.
Não é que se pense que o amor não é im-
portante. Todos sentem fome dele; assistem a
infindável número de filmes sobre história de
amor, felizes e infelizes, ouvem centenas de so-
vadas canções que falam de amor; e, contudo,
quase ninguém pensa haver alguma coisa a res-
peito do amor que necessite ser aprendida.
Essa atitude peculiar baseia-se em várias
premissas que, isoladas ou combinadas, tendem
a sustentá-la. A maioria das pessoas vê o pro-
blema do amor, antes de tudo, como o de ser
amado, em lugar do de amar, da capacidade de
alguém para amar. Assim, para essas pessoas o
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problema é como serem amadas, como serem matrimonial, ou sem o auxílio desses intermediá-
amáveis. Na busca desse alvo, seguem diversos rios; consumava-se na base de considerações so-
caminhos. Um deles, especialmente utilizado ciais e julgava-se que o amor se desenvolveria
pêlos homens, é ter sucesso, ter todo o poder e depois de efetuado o casamento. Nas últimas
riqueza que a sua posição social permitir. Ou- poucas gerações^ o conceito de amor romântico
tro, especialmente utilizado pelas mulheres, é tornou-se quase universal no mundo do Ocidente.
tornarem-se atraentes, pelo cuidado com o corpo, Nos Estados Unidos, ainda que considerações de f
o vestuário, etc. Outros modos de se fazer al- natureza convencional não estejam de todo au-
guém atraente, usados tanto por homens como sentes, vasto número das pessoas anda à busca
por mulheres, são o desenvolvimentò de maneiras do "amor romântico", da experiência pessoal de
agradáveis, conversação interessante, a prèstati- amor que acabe por levar ao matrimonio. Esse
vidade, a modéstia, a inofensividade. Muitas das novo conceito de libeirdade no amor deve ter
maneiras de uma pessoa se tornar amável são as acentuado grandemente a importância do òbjeto /
mesmas empregadas para obter sucesso, "para em contraste com a importância da função. l
conquistar amigos e influenciar os outros". Na Eelaciona-se estreitamente com esse fator
realidade, o que a maioria dos de nossa cultura outro aspecto característico da cultura contem-
/*>onsidera ser amável é, essencialmente, uma mis- porânea. Toda a nossa cultura se baseia no ape-
/ t tura
i de ser popular e possuir atração sexual. tite da compra, na ideia de uma troca mutua-
Segunda premissa por trás dessa atitude de mente favorável. A felicidade do homem moder- |
que nada há a aprender a respeito do amor é a no consiste na sensação de olhar as vitrinas das
ideia de que o problema do amor é o problema lojas e em comprar tudo quanto esteja em con-
de um òbjeto e não o de uma faculdade. Pensa-se dições de comprar, quer a dinheiro, quer a prazo.
que amar è simples, mas que é difícil encontrar Ele (ou ela) encara as pessoas de maneira seme-
o òbjeto certo a amar — ou pelo qual ser amado. lhante. Para o homem, uma mulher atraente (e,
Tal atitude tem muitas razões enraizadas no de- para a mulher, um homem atraente), eás o lucro
senvolvimento da sociedade moderna. Uma des- a obter. "Atraente" vem a significar, normal-
sas razões é a grande mudança ocorrida no século mente, um bom fardo de qualidades que sejam
XX com relação à escolha de um "òbjeto de populares e muito procuradas no mercado da ff
amor". Na época vitoriana, como em muitas personalidade. O que torna especificamente uma ''
culturas tradicionais, não era o amor principal- pessoa atraente depende da moda da época, tanto
mente uma experiência pessoal espontânea que física como mentalmente. Na década de 1920,
a seguir pudesse levar ao casamento. Ao con- uma moça que bebesse e fumasse, fosse decidida
trário, o casamento se contratava por convenção e sensual, era atraente; hoje, a moda pede mais
— ou pelas famílias respectivas, ou por um agente domesticidade e recato. No fim do século XIX
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e no começo do atual, um homem tinha de ser experiências da vida. Ê tudo o que há de mais
agressivo e ambicioso, para ser "mercadoria" admirável e miraculoso para quem. tem estado
atraente: hoje, tem de ser sociável e tolerante. fechado em si, isolado, sem amor. Esse milagre *
De qualquer modo, a sensação de cair enamorado de súbita intimidade é muitas vezes facilitado
só sej desenvolve normalmente com relação aos quando se combina, ou se inicia, com a atração
artigos humanos que estejam ao alcance das pos- sexual e sua satisfação. Contudo, tal tipo de //
sibilidades de transação de alguém. Saio para amor, por sua própria natureza, não é duradouro, (f
uma troca: o objeto deve ser desejável, sob o As duas pessoas tornam-se bem conhecidas, sua
aspecto de seu valor social, e ao mesmo tettnpo intimidade perde cada vez mais o caráter mira-
deve desejar-me, levando em consideração minhas culoso, e seu antagonismo, suas decepções, seu
potencialidades e recursos expostos e ocultos. mútuo fastio acabam por matar tudo quanto res-
Assim, duas pessoas se apaixonam quando sentem tava da excitação inicial. Entretanto, r o começo,
haver encontrado o melhor objeto disponível no elas de nada disso sabem; de fato, tomam a
mercado, considerando as limitações de seus pró- intensidade da paixão, a "loucura" que sentem
prios valores cambiais. Muitas vezes, como na uma pela outra, como prova da intensidade de
compra de um imóvel, as potencialidades ocultas seu amor, quando isso apenas provaria o grau y
que possam ser desenvolvidas desempenham con- de sua anterior solidão. /
siderável papel na transação. Numa cultura em Essa atitude — a de que nada é mais fácil
que prevalece a orientação mercantil, e em que do que amar — tem continuado a ser a ideia
o sucesso material é o valor predominante, pouca predominante a respeito do amor, apesar da es-
razão há para surpresa no fato de seguirem as magadora prova em contrário. Dificilmente ha-
relações do amor humano os mesmos padrões de verá qualquer atividade, qualquer empreendimen-
troca que governam os mercados de utilidades e to que comece com tão tremendas esperanças e
de trabalho. expectativas e que, contudo, fracasse com tanta
O terceiro erro que leva à ideia de nada haver regularidade, quanto o amor. Se isso se desse
para ser aprendido a respeito do amor consiste com qualquer outra atividade, todos estariam
na confusão entre a experiência inicial de "cair" ansiosos por saber das razões do fracasso, por
^enamorado e o estado permanente de estar aman- aprender como se poderia fazer melhor — ou
do, ou, como poderíamos dizer melhor, de "per- então desistiriam de tal atividade. Como esta
manecer" em amor. Se duas pessoas estranhas última alternativa é impossível no caso do amor,
uma à outra, como todos somos, subitamente dei- parece Jiaver apenas um meio adequado de su-
xam ruir a parede que as separa e se sentem perar a .falência amorosa: examinar as razões ,
próximas, se sentem uma só, esse momento de dessa falência e passar a estudar significação /
unidade é uma das mais jubilosas e excitantes do amor.

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O primeiro passo a dar é tornar-se consci- amor, quase tudo mais é considerado mais impor-
ente de que o amor é wma arte, assim.como viver tante do que o amor: o sucesso, o prestígio, o
é uma arte; se quisermos aprender como se ama, dinheiro, o poder. Quase toda a nossa energia é
devemos proceder do mesmo modo por que agi- utilizada em aprender como alcançar esses alvos
ríamos se quiséssemos aprender qualquer outra e quase nenhuma é dedicada a aprender a arte
arte, seja a música, a pintura, a carpintaria, ou de amar.
a arte da medicina ou da engenharia. Dar-se-á que só se considerem dignas de ser
Quais são os passos necessários para apren- í i prendidas aquelas coisas com as quais se pode
der qualquer arte? ooter dinheiro ou prestígio, e que o amor, que
"só" traz proveito à alma, mas não é proveitoso
O processo de aprendizado de uma arte pode no sentido moderno, seja um luxo, em que não te-
ser adequadamente dividido em duas partes: uma, nhamos o direito de gastar muita energia? Seja
o domínio da teoria: outra, o domínio da prática. como for, *ò debate em que vamos entrar tratará
Se eu quiser aprender a arte da medicina, devo a arte de amar no sentido das seguintes divisões:
primeiro conhecer os fatos a respeito do corpo primeiramente, discutirei a teoria do amor — e
humano e de várias doenças. Quando tiver todo isto compreenderá a maior parte do livro; em
esse conhecimento teórico, de modo, algum serei seguida, discutirei a prática do amor — o pouco
competente na arte da medicina. Só me tornarei que pode ser dito a respeito de prática, neste como
mestre nessa arte depois de grande prática, até em qualquer outro campo.
que os resultados de meu conhecimento teórico e
os de minha prática acabem por mesclar-se numa
só coisa: em minha intuição, essência do domínio
de qualquer arte. Além, entretanto, de aprender
a teoria e a prática, há um terceiro fator neces-
sário para que me torne mestre em qualquer arte:
o domínio da arte deve ser questão de extrema
preocupação; nada deve existir no mundo de mais
importante do que essa arte. Isto é verdade
quanto à música, à medicina, à carpintaria — e
quanto ao amor. E talvez aí esteja a resposta
à indagação sobre os motivos pêlos quais a gente
de nossa cultura tão raramente tenta aprender
essa arte, *a despeito de seus evidentes íracassos:
apesar da profundamente enraizada avidez pelo

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It
A Teoria do Amor

l — AMOR, RESPOSTA AO PROBLEMA DA


EXISTÊNCIA HUMANA

UALQUEB teoria do amor deve começar com


uma teoria do homem, da existência hu-
mana. Se encontramos amor, ou antes, o
equivalente do amor nos animais, seus afetos são
principalmente parte do seu equipamento instin-
tivo; só remanescentes desse equipamento instin-
tivo podem ser vistos em ação no homem. Es-
sencial na existência do homem é o fato de que
ele emergiu do reino animal, da adaptação ins-
tintiva, transcendeu a natureza — embora sem
nunca a deixar; é parte dela — e, contudo, uma
vez desviado da natureza, não pode voltar a ela;;
uma vez expulso do paraíso — estado de unidade
original com a natureza — um querubim de es-
pada flamejante barra-lhe o caminho, caso tente
retornar. O homem só pode ir á frente desen-

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volvendo sua razão, encontrando uma nova har- as coisas e as pessoas, de modo ativo; signi-
monia, que seja humana, em lugar da harmonia fica que o mundo nos pode invadir sem que
pre-humana irrecuperàvelmente perdida. tenhamos condições para reagir. Assim, a se-
Quando o homem nasce — a raça humana paração é a fonte de intensa ansiedade. Além
assim como o indivíduo — é lançado fora de uma disso, ela dá origem à vergonha e ao sentimento
situação que era definida, tão definida quanto de culpa. Esta experiência de culpa e vergonha
os instintos, para uma situação indefinida, incer- na separação está expressa na história Bíblica
ta e exposta. Somente há certeza com relação de Adão e Eva. Depois que Adão e Eva come-
ao passado — e, quanto ao futuro, apenas com ram da "árvore do conhecimento do bem e do
relação à morte. mal", depois que desobedeceram (pois não há
O homem é dotado de razão; é a vida cons- bem nem mal a menos que haja a liberdade de
ciente de si mesma; tem, consciência de si, de desobedecer), depois que se tornaram humanos
seus semelhantes, de seu passado e das possibi- por se terem emancipado da original harmonia
lidades de seu futuro. Essa 'consciência de si animal com a natureza, isto é, depois de seu nas-
mesmo como entidade separada, a consciência de cimento como seres humanos, — viram que "es-
seu próprio e curto período de vida, do fato de tavam nus e ficaram envergonhados". Devería-
haver nascido sem ser por vontade própria e de mos imaginar que um mito tão antigo e elementar
ter de morrer contra sua vontade, de ter de como este tenha a moral pudica da concepção do
morrer antes daqueles que ama, ou estes antes século XIX e que o ponto importante que a his-
dele, a consciência de sua solidão e separação, j tória deseja mostrar-nos é a confusão por esta-
de sua impotência ante as forças da natureza e rem visíveis seus órgãos genitais? Dificilmente
da sociedade, tudo isso faz de sua existência poderia ser assim e, se entendermos a história
apartada e desunida uma prisão insuportável. com espírito vitoriano, perderemos o ponto prin-
Ele ficaria louco se não pudesse libertar-se de cipal, que parece ser o seguinte: depois que o
tal prisão e alcançar os homens, unir-se de uma homem e a mulher ficaram conscientes de si mes-
forma ou de outra com eles, com o mundo ex- mos e cada um do outro, tiveram a consciência
terior. de que eram separados, de sua diferença, tanto '
/ A experiência da separação desperta a an- quanto de pertencerem a diferentes sexos. Mas,
( siedade; é, de fato, a fonte de toda ansiedade. ao reconhecerem sua separação, permaneceram n
Ser separado significa ser cortado, sem qualquer estranhos, porque ainda não haviam aprendido
capacidade de usar os poderes humanos. Eis a amar um ao outro (o que é também tornado
claro pelo fato de que Adão se defende culpando
porque ser separado é o mesmo que ser de- Eva, em vez de tentar defendê-la). A consciên-
samparado, incapaz de apreender o mundo, cia da separação humana, sem a reunião pelo j
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y amor, é a fonte da vergonha. JÊ, ao mesmo tempo, rio, desde que ignoremos as diferenças menores,
a fonte da culpa e da ansiedade. que mais pertencem à periferia do que ao centro,
A mais profunda necessidade do homem, descobrimos que só um limitado número de res-
assim, é a necessidade de superar sua separação, postas pode ser dado, e só tem podido ser dado
.de deixar a prisão em que está só. A falência pelo homem, nas várias culturas em que tem vi-
absoluta em alcançar esse alvo significa loucura, vido. A história da religião e da filosofia é a
porque o pânico do isolamento completo só pode história dessas respostas e de sua diversidade,
ser ultrapassado por um afastamento do mundo assim como de sua limitação em número.
exterior de tal modo radical que o sentimento Dependem as respostas, em certa extensão, do *
/ da separação desapareça — porque o mundo ex- grau de individualidade que um indivíduo alcan-'
terior, de que se está separado, também desapa- çou. Na criança, o ego desenvolveu-se apenas
receu. pouco ainda; ela ainda se sente unida à mãe, não
O homem — de todas as idades e culturas tem sentimento de separação enquanto a mãe está /
— vê-se diante da solução de uma só e mesma presente. Seu sentimento de solidão é curado
/ questão: a de como superar a separação, a de pela presença física ,da mãe, seu seio, sua pele.
/ como realizar a união, a de como transcender a Só chegado o grau em que a criança desenvolve
-própria vida individual e encontrar sintonia. A seu sentimento de separação e individualidade é
questão é a mesma para o homem primitivo da que a presença física da mãe já não mais basta,
vida em cavernas, para o nómade a cuidar de surgindo a necessidade de superar por outros
seus rebanhos, para o camponês do Egito, o mer- meios a separação.
cador fenício, o soldado romano, o monge me- De igual modo, a raça humana, em sua in-
dieval, o samurai japonês, o escriturário e o fância, sente-se ainda unida à natureza. O solo,
operário modernos. E a questão é a mesma por- os animais, as plantas ainda são o mundo do
que se ergue do mesmo campo: a situação hu- homem. Ele se identifica com os animais e isto
mana, as condições da existência humana. A se expressa pelo uso de máscaras de animais, pela
resposta varia. Pode a questão ser respondida adoração de um totem animal ou de deuses ani-
pelo culto animal, pelo sacrifício humano ou pela mais. Quanto mais, porém, a raça humana emer-
conquista militar, pelo comprazimento na luxúria, ge desses laços primários, tanto mais se separa
pela renúncia ascética, pelo trabalho obcecado, do mundo natural, tanto mais intensa se torna a
pela criação artística, pelo amor de Deus e pelo necessidade de encontrar meios novos de fugir à
amor do Homem. Se há, porém, muitas respos- separação.
tas — e seu registro forma a história humana — Um meio de alcançar esse objetivo está em
não são elas, entretanto, inúmeras. Ao contra- todas as espécies de estado orgíacos. Podem ter

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eles a forma de um transe auto-provocado, às socialmente modelada, tais indivíduos sofrem sen-
vezes com a ajuda de drogas. Muitos ritos de timentos de culpa e remorso. Ao tentarem fugir
tribos primitivas oferecem vivo quadro desse tipo da separação pelo refúgio no álcool e nos entor-
de solução. Num estado transitório de exaltação, pecentes, sentem-se "ainda mais separados depois
o mundo externo desaparece, e, com ele, o senti- que termina a experiência orgíaca, e assim são
mento de estar dele separado. E como esses ritos levados a recorrer a ela com frequência e inten-
são praticados em comum, acrescenta-se tuna ex- sidade aumentadas. Pouquíssimo diferente dis-
periência de fusão com o grupo que dá a tal so é o recurso a uma solução orgíaca sexual. Até
solução o máximo de eficiência. Estreitamente certo ponto, é uma forma natural e normal de
relacionada com essa solução orgíaca e muitas stiperar a separação e uma resposta parcial ao /
vezes mesclada a ela está a experiência sexual. problema do isolamento. Mas, em muitos indiví-
O orgasmo sexual pode produzir um estado se- duos em que a separação não é aliviada por outros
melhante ao produzido por um trance, ou pêlos meios, a procura do orgasmo reveste-se de uma
efeitos de certas drogas. Eitos de orgias sexuais função que não a faz muito diferente do alcoo-
comunitárias faziam parte de muitos rituais pri- lismo e do vício das drogas. Torna-se uma ten-
mitivos» Parece que, depois da experiência or- tativa desesperada para fugir à ansiedade en-
gíaca, o homem pode continuar por algum tempo gendrada pela separação e resulta num sempre
sem sofrer demais com sua separação. Vagaro- crescente sentimento de separação, visto como o
^ samente, a tensão da ansiedade sobe, e é de novo ato sexual sem amor nunca lança uma ponte sobre
reduzida pela realização repetida do rito. o abismo entre dois seres humanos, senão mo-
Enquanto esses estados orgíacos forem motivo mentaneamente.
de prática comum numa tribo, não produzem eles Todas as formas de união orgíaca têm três
ansiedade ou culpa. Agir de tal modo é reto, características: são intensas, violentas até; ocor-
virtuoso mesmo, pois é um modo de que todos rem na personalidade total, no corpo e no espírito;
compartilham, aprovado e requerido pelo pagé são transitórias e periódicas. Exatamente o opos-
ou pêlos sacerdotes; daí não haver razão para to é verdadeiro quanto àquela forma de união
que alguém se sinta culpado ou envergonhado. que é, em muito, a solução mais frequente esco-
Bem diferente é o caso quando a mesma solução lhida pelo homem .no presente e no passado: a
é escolhida por um indivíduo em uma cultura união baseada na conformidade com o grupo, seus /
que deixou para trás essas práticas comuns. O costumes, práticas e crenças. Aqui, mais uma /
f alcoolismo e o uso de drogas são as formas que vez, encontramos considerável desenvolvimento.
o indivíduo escolhe numa cultura não orgíaca. Numa sociedade primitiva o grupo é peque-
Em contraste com os que tomam parte na solução no; consiste daqueles com que alguém compar-

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tilha do sangue e do solo. Com o desenvolvi- de estar que poucos passos fora do rebanho,
mento crescente da cultura, o grupo amplia-se; quando se compreendem as profundidades da ne-
consta dos cidadãos de uma polis, dos cidadãos cessidade de não ser separado. Ás vezes, esse
de um grande estado, dos membros de uma igreja. medo do não-conformismo é racionalizado como
Mesmo o pobre romano sentia orgulho de poder temor a perigos reais que podem ameaçar a não-
dizer: "civis romanus suwi"; Roma e o Império conformista. Mas, na realidade, as pessoas que-
eram sua família, seu lar, seu mundo. Também rem conformar-se em grau muito mais alto do
na sociedade ocidental contemporânea, a união que são forçadas a conformar-se, pelo menos nas
com o grupo é o modo predominante de superar democracias ocidentais.
a separação. É uma união em que o ser indi- Na maioria, o povo nem sequer tem consci-
/ ência de sua necessidade de conformar-se. Vive
vidual desaparece em ampla escala, em que o
alvo é pertencer ao rebanho. Se sou como todos sob a ilusão de seguir suas próprias ideias e
os mais, se não tenho sentimentos ou pensamentos inclinações, de ser individualista, de ter chegado
que me façam diferentes, se estou em conformi- a suas opiniões como resultado de seus próprios
dade com os costumes, ideias, vestes, padrões do pensamentos — apenas acontecendo que suas
ideias são as mesmas da maioria. O consenso de
grupo, estou salvo; salvei-me da terrível expetri-
ência da solidão. Os sistemas ditatoriais utili- todos serve como prova da correção de "suas"
zam ameaças e terror para levar a essa confor- ideias. Havendo ainda necessidade de sentir
certa individualidade, essa necessidade é satis-
midade; os países democráticos usam a sugestão
e a propaganda. Há, na verdade, uma grande feita com relação a diferenças menores; o mono-
grama na pasta ou no suéter, a placa com o nome
diferença entre os dois sistemas. Nas democra- do caixa do banco, o fato de pertencer ao Partido
cias, o não-conformismo é possível e, de fato, não
está de modo algum inteiramente ausente; nos Democrático contra o Republicano, ou a esta as-
sociação em vez de àquela, tornam-se expressão
sistemas totalitários, só uns poucos e insólitos
heróis e mártires podem ser considerados capa- de diferenças individuais. O "slogan" de anúncios
zes de recusar obediência. Apesar, entretanto, de de que uma coisa *'é diferente" demonstra essa
tal diferença, as sociedades democráticas mostram necessidade patética de diferença, quando na rea-
lidade quase nenhuma resta.
esmagador grau de conformismo. A razão está
no fato de que é preciso haver uma resposta ao A tendência crescente para eliminação das
anseio de união e, se não houver outro meio me- diferenças relaciona-se de perto com o conceito e /
lhor, então a união da conformidade no rebanho a experiência da igualdade, tal como se desen- '
se torna a predominante. Só se pode compre- volve nas mais adiantadas sociedades industriais.
ender a força do medo de ser diferente, do medo A igualdade tem significado, num contexto reli-

A A R T E D E A M A R 35
34 E R I C H F R O M M
gioso, sermos todos filhos de Deus, participar- mas ideias. A este respeito, deve-se também
mos todos da mesma substância humano-divina, olhar com certo ceticismo certas conquistas que
sermos todos um. Significa também que as pró- são costumeiramente louvadas como marcos de
) prias diferenças entre indivíduos devem ser res- nosso progresso, tais como igualdade das mulhe-
' peitadas, pois, se é verdade que somos todos, um, res. É desnecessário dizer que não estou falan-
não menos verdade é que cada um de nós é uma do contra a igualdade das mulheres; mas os
entidade única, um cosmos por si mesmo. Tal aspectos positivos dessa tendência para a igual-
convicção da singularidade do indivíduo é mani- dade não devem enganar ninguém. Ela é parte
festada, por exemplo, na afirmativa Talmúdica: da inclinação para a eliminação de diferenças. /
"Quem salva uma só vida faz como se salvasse A igualdade é adquirida exatamente a este pré-'
o mundo inteiro; quem destrói uma só vida faz ço: as mulheres são iguais, porque já não são
como se houvesse destruído o mundo / inteiro". mais diferentes. A proposição da filosofia das
Igualdade como condição para o desenvolvimento Luzes, V ame n'a pás de sexe, a alma não tem
da individualidade era também a significação sexo, tornou-se a prática geral. A polaridade
desse conceito na filosofia ocidental das Luzes. dos sexos está desaparecendo, e com ela o amor
Significava (mais claramente formulada por erótico, que se baseia nessa polaridade. Ho-
Kant) que nenhum homem deve servir de meio mens e mulheres tornam-se os mesmos poios,
para os fins de outro homem; que todos os ho- e não poios iguais, como opostos. A sociedade
mens eram iguais visto como aram fins, somente contemporânea advoga esse ideal de igualdade não
fins, e nunca meios para qualquer outro. Acom- individualizada, porque necessita de átomos hu-
panhando as ideias da Filosofia das Luzes, pen- manos, cada qual o mesmo, a fim de fazê-los
sadores socialistas de várias escolas definiram a funcionar numa agregação de massa, suavemente,
igualdade como a abolição da exploração, do uso sem fricções, obedecendo todos ao mesmo coman-
do homem pelo homem, não importando que esse do e, contudo, convencido cada qual de estar se-
uso fosse cruel ou "humano". guindo seus próprios desejos. Assim como a mo-
Na sociedade capitalista contemporânea, o derna produção em massa exige a padronização
significado de igualdade transformou-se. Por dos artigos, também o processo social requer a
igualdade, faz-se referência à igualdade dos autó- padronização do homem, e tal padronização é
matos, dos homens que perderam sua individua- chamada "igualdade".
, lidade. Igualdade, hoje significa "mesmice", em
l vez de "unidade". É a mesmice das abstrações, A união pela conformidade não é intensa e j
dos homens que trabalham nos mesmos serviços, violenta; é calma, ditada pela rotina e, por essa
têm as mesmas diversões, lêem os mesmos jornais, mesma razão, é muitas vezes insuficiente para
experimentam os mesmos sentimentos e as mes- apaziguar a ansiedade da separação. A incidên-

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cia do alcoolismo, do vício de drogas, do sexua- os filmes pêlos donos dos cinemas e pelas su-
lismo forçado e do suicídio na sociedade ocidental gestões de anúncios que eles pagam; o resto é
contemporânea é sintoma dessa falência relativa também uniforme: o passeio dominical de auto-
da conformidade de rebanho. Além do mais, tal móvel, a sessão de televisão, o jogo de cartas, as
solução diz respeito principalmente à mente e festas sociais. Do nascimento à morte, de se-
gunda a segunda-feira, de manhã à noite, todas
não ao corpo e, por essa razão, é demasiado falha
as atividades são rotinizadas e prefabricadas. (
em relação às soluções orgíacas. O conformismo Como poderia um homem apanhado nessa rede
de rebanho tem apenas uma vantagem: é perma- de rotina deixar de esquecer que é um homem,
nente e não espasmódico. O indivíduo é intro-
um indivíduo único, alguém a quem só é dada
duzido no padrão conformista com a idade de esta oportunidade única de viver, com esperanças
três ou quatro anos e daí por diante nunca perde e decepções, com tristezas e temores, com a ânsia /
o contacto com o rebanho. Mesmo seu funeral, de amar e o horror ao nada e à separação? /
que ele antevê como o último de seus grandes
eventos sociais, está em estreita conformidade Terceiro meio de alcançar a união está a
com os padrões. atividade criadora, seja ela a do artista ou do
Além da conformidade como meio de aliviar artesão. Em qualquer espécie de trabalho cria-
a ansiedade que nasce da separação, outro da dor, a pessoa que cria une-se a seu material, que
vida contemporânea deve ser considerado: o papel representa o mundo que lhe é exterior. Faça
do trabalho de rotina e do prazer de rotina. O um marceneiro uma mesa, ou um ourives uma
homem torna-se "sujeito a ponto", é parte da jóia, cultive o camponês seu cereal, ou pinte o
força de trabalho, ou da força burocrática de pintor um quadro, em todos os tipos de obra
escreventes e gerentes. Tem pouca iniciativa, criadora o trabalhador ç seu objeto tornam-se
suas tarefas são prescritas pela organização do um, o homem se une ao mundo no processo da
trabalho; existe mesmo pouca diferença entre os criação. Isto, porém, só permanece verdadeiro
que estão no alto da escada e os que ficam em para o trabalho produtivo, para a obra que eu
baixo. Todos realizam tarefas prescritas pela planejo, produzo e em que vejo o resultado de
estrutura total da organização, a velocidade pres- meu trabalho. No moderno processo de trabalho
crita, da maneira prescrita. Mesmo os sentimeji- de um escrevente, do operário na plataforma sem
tos são prescritos: cordialidade, tolerância, leal- fim, pouco resta dessa qualidade unidora da obra.
dade, ambição e capacidade de conviver com todos O trabalhador torna-se apêndice da máquina ou
sem atritos. A diversão é rotinizada de maneiras da organização burocrática. Deixou de ser ele
semelhantes, embora não de todo tão drásticas. mesmo; daí porque não se verifica outra união
Os livros são escolhidos pêlos clubes de livros, fora da do conformismo.

38 E R I C H F R O M M A A R T E D E A M A R 39
A unidade realizada na obra produtiva não mas imaturas do amor que podem ser chamadas
é interpessoal; a unidade conseguida na fusão união simbiótica? Nas páginas seguintes, darei
orgíaca é transitória; a unidade alcançada pelo o nome de amor apenas à primeira. Começa-
conformismo é apenas pseudo-unidade. Eis por- rei a discussão sobre o "amor" com a última.
que são todas, apenas, respostas parciais ao pro-
blema da existência. A resposta completa está A união simbiótica tem seu modelo biológico
na realização da unidade interpessoal, da fusão na relação entre a mãe grávida e o feto. São
coíïi outra pessoa: está no a/mor. dois e, contudo, um. Vivem "juntos" (sym-bio-
.çií), necessitam um do outro. O feto é parte da
O desejo de fusão interpessoal é o mais po- mãe, recebe dela tudo de que necessita; a mãe é
deroso anseio do homem. Í3 a paixão mais fun- seu mundo, em suma: alimenta-o, protege-o, mas
damental, é a força que conserva juntos a raça também a própria vida dela é acrescida por ele.
humana, clã, a família, a sociedade. O fracasso Na união simbiótica psíquica, os dois corpos são
em realizá-la significa loucura ou destruição — independentes, mas a mesma espécie de ligação
auto-destruição ou destruição de outros. Sem existe psicologicamente.
amor, a humanidade não poderia existir um só
dia. Contudo, se .chamarmos "amor" a realiza- A forma passiva da união simbiótica é a da
ção^ * da união interpessoal, poderemos encon- submissão, ou, se usarmos um termo clínico, a
trar-nos em séria dificuldade. A fusão pode ser do masoquismo. A pessoa masoquista foge ao
obtida de diversos modos — e as diferenças não insuportável sentimento de isolamento e separa-
são menos significativas do que aquilo que é ção tornando-se parte e porção de outra pessoa,
comum às várias formas de amor. Devem ser que a dirige, guia, protege; que, em suma, é sua
vida e seu oxigénio. ^O poder daquele a quem
todas chamadas amor? Ou devemos reservar a
palavra "amor" somente para um tipo específico alguém se submete é expandido, trate-se de uma
de união, aquele que tem sido a virtude ideal
pessoa ou de um deus; é tudo, e o submisso nada,
para todas as grandes religiões humanísticas e exceto naquilo em que é parte dele. Como parte,
sistemas filosóficos dos últimos quatro mil anos é parcela da grandeza, da força, da certeza. A
de história ocidental e oriental. pessoa masoquista não tem de tomar decisões,
não precisa assumir quaisquer riscos; nun-
Como se dá com todas as dificuldades se- ca está só — mas não é independente; não
mânticas, a resposta só pode ser arbitrária. O tem integridade; ainda não nasceu de todo. Num
que importa é sabermos de que espécie de união contexto religioso, o objeto da adoração é cha-
estamos falando, quando falamos de amor. Re- mado ídolo; num contexto secular de relações
f erimo-nos ao amor como à resposta amadurecida de amor masoquista, o mecanismo essencial, o da
ao problema da existência, ou falamos das for- idolatria, é o mesmo. A relação masoquista
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pode-se misturar com o desejo físico, sexual; neira sadista para com o povo, mas masoquista-
neste caso, não é só uma submissão de que par- mente para com o destino, a história, o "poder
ticipe o espírito de alguém, mas também todo o mais alto" da natureza. Seu fim — o suicídio
corpo. Pode haver submissão masoquista ao des- em meio à destruição geral — é tão característico
tino, à enfermidade, à música rítmica, ao estado quanto o foi seu sonho de sucesso, de dominação
orgíaco produzido por drogas ou sob transe hip- total. (Fears of Escape from Freedom, E.
nótico: em todos esses exemplos a pessoa renun- Fromm, Londres, Eoutledge, 1942).
cia à sua integridade, torna-se o instrumento de Em contraste com a união simbiótica, o amor
alguém ou de algo fora dela própria; não precisa amadurecido é união sob a condição de preservar
de' resolver o problema de viver por meio da ati- a integridade própria, a própria individualidade,
vidade produtiva.
O amor é uma força ativa no homem; uma força
que irrompe pelas paredes que separam o homem
A forma ativa da fusão simbiótica é a do-
de seus semelhantes, que o une aos outros; o
minação, ou, para empregar o termo psicológico
amor leva-o a superar o sentimento de isolamento
correspondente ao masoquismo, o sadismo. A
e de separação, permitindo-lhe, porém, ser ele
pessoa sadista quer escapar de sua solidão e de mesmo, reter sua integridade. No amor, ocorre
sua sensação de encarceramento, fazendo de ou-
o paradoxo de que dois seres sejam um e, con-
tra pessoa uma parte, uma parcela de si mesma. tudo, permaneçam dois.
Expande-se e valoriza-se incorporando outra pes-
Ao dizermos que o amor é uma atividade,
soa, que a adora. enfrentamos uma dificuldade que reside na sig-
A pessoa sadista depende tanto da pessoa nificação ambígua desta palavra. Por "ativida-
submissa quanto esta daquela; uma não pode de", no emprego moderno do termo, queremos
viver sem a outra. A diferença só está em que normalmente referir-nos a uma ação que produz
a pessoa sadista ordena, explora, fere, humilha, mudança numa situação existente, por meio de
e a masoquista é mandada, explorada, ferida, gasto de energia. Assim, um homem é conside-
humilhada. Tal diferença é considerável num rado ativo quando faz negócios, estuda medicina,
sentido realista; num sentido emocional mai s trabalha numa usina, fabrica uma rriesa ou dedica
profundo, a diferença não é tão grande quanto a esportes. Todas essas atividades têm sido em
o que ambas têm em comum: fusão sem inte- comum: dirigem-se para um alvo exterior a ser
gridade. Se se compreende isto, também não é alcançado. O que não se leva em conta é a mo-
surpreendente verificar que normalmente uma tivação da atividade. Veja-se, por exemplo, um
pessoa reage tanto da maneira sadista como da homem impelido a incessante trabalho por um
masoquista, de modo geral para com objetos sentimento de profunda insegurança e solidão;
diversos. Hitler reagia primordialmente de ma- ou outro impulsionado pela ambição, ou pela

42 E R I C H F R O M M A A R T E DE A M A R 43
avidez por dinheiro. Em todos esses casos a pode ser descrito afirmando-se que o amor, antes
pessoa é escrava de uma paixão, e sua atividade de tudo, consiste em dar, e não em receber.
é de fato uma "passividade", porque ela é im- Que é dar? Embora pareça simples a res-
pelida; é o paciente, não o "ator". De outro posta a esta pergunta, ela em verdade é cheia
lado, alguém que se assente calmo e contempla- de ambiguidades e complexidades. O equívoco
tivo, sem outro alvo que não o de experimentar-se mais vastamente espalhado é o que entende que
e à sua unidade com o mundo, é considerado dar é "abandonar" alguma coisa, ser privado de
como "passivo", porque não está "fazendo" coisa algo, sacrificar. A pessoa cujo caráter não se
alguma. E, na verdade, esta atitude de medita-
ção concentrada é a mais alta atividade que existe, desenvolveu além da etapa da orientação recep-
uma atividade da alma, só possível sob condições tiva, explorativa, ou amealhadora, experimenta
de independência e liberdade interiores. Um con- o ato de dar dessa maneira. O caráter mercantil
ceito de atividade, o moderno, refere-se ao uso deseja dar, mas só em troca de receber; dar sem
de energia para consecução de metas externas; receber, para ele, é ser defraudado. (Man for
o outro conceito de atividade refere-se ao uso Himself, E. Fromm, Londres, Eoutledge, 1949.)
dos poderes inerentes ao homem, sem que im- Aqueles cuja principal orientação é não-produ-
porte a produção de qualquer mudança exterior. tiva sentem que dar é um empobrecimento. A
Este último conceito de atividade foi formulado maioria dos indivíduos desse tipo, portanto, re-
com muita clareza por Spinoza. Diferencia ele cusa dar. Alguns fazem do ato de dar uma vir-
os afetos entre ativos e passivos, "ações" e "pai- tude, no sentido de um sacrifício. Sentem que,
xões". No exercício de um afeto ativo, o homem por ser doloroso dar, deve~se dar; a virtude de"
é livre, é o senhor de seu afeto; vno exercício de dar, para eles, reside no próprio ato de aceitação
um afeto passivo, o homem é impelido, é objeto do sacrifício. Para eles, a norma de que é me-
de motivações de que ele próprio não tem cons- lhor dar da que receber significa que é melhor
ciência. Assim Spinoza chega à afirmação de sofrer privação do que experimentar alegria.
que virtude e poder são uma só e a mesma coisa. Para o caráter produtivo, dar tem um sen-
(Spinoza, Ética, IV, Def. 8) a inveja, o ciúme, tido inteiramente diverso. Dar é a mais alta
a ambição, qualquer espécie de cobiça são pai- expressão da potência. No próprio ato de dar,
xões; o amor é uma ação, a prática de um poder ponho à prova minha força, minha riqueza, meu
humano, que só pode ser exercido na liberdade poder. Essa experiência de elevada vitalidade
e nunca como resultado de uma compulsão. e potência enche-me de alegria. Provo-me como
O amor é uma atividade, e não um afeto superabundante, pródigo, cheio de vida e, por-
passivo; é um "erguimento" e,não uma "queda". tanto, como alegre. (Compare-se a definição de
De modo mais geral, o caráter ativo do amor alegria dada por Spinoza.) Dar é mais alegre

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do que receber, não por ser uma privação, mas
porque, no ato de dar, encontra-se a expressão ráter quanto de suas posses efetivas. É bem
sabido que os pobres são mais inclinados a dar
de minha vitalidade.
do que os ricos. Não obstante, a pobreza além
Não é difícil reconhecer a validez desse prin- de certo ponto pode tornar impossível dar, e
cípio aplicando-o a vários fenómenos específicos. assim é degradante, não só pelo sofrimento que
O exemplo mais elementar está na esfera do causa diretamente, mas pelo fato de privar o
sexo. A culminação da função sexual masculina pobre da alegria de dar.
reside no ato de dar; o homem se dá à mulher, A mais importante esfera de dar, entre-
dá-lhe seu órgão sexual. No momento do or- tanto, não é a das coisas materiais, mas está
gasmo, dá-lhe seu sêinen. Não pode deixar de no reino especificamente humano. Que dá uma
dar, se for potente. Se não pode dar, é impo- pessoa a outra? Dá de si mesma, do que tem
tente. Para a mulher, o processo não é diverso, de mais precioso, dá de sua vida. Isto não
embora algo mais complexo. Ela também se dá; quer necessariamente dizer que sacrifique sua
abre as portas de seu centro feminino; dá, no vida por outrem, mas que lhe dê daquilo que
ato de receber. Se for incapaz desse ato de dar, em si tem de vivo; dê-lhe de sua alegria, de seu
se só puder receber, é frígida. Nela, o ato de interesse, de sua compreensão, de seu conheci-
dar volta a ocorrer, não na função de amante, mento, de seu humor, de sua tristeza — de todas
mas na de mãe. Dá de si ao filho que cresce as expressões e manifestações daquilo que vive
dentro dela, dá seu leite à criança, dá-lhe o em si. Dando assim de sua vida, enriquece a
calor de seu corpo. Não dar seria doloroso. outra pessoa, valoriza-lhe o sentimento de vita-
Na esfera das coisas materiais, dar signi- lidade ao valorizar o seu próprio sentimento de
fica ser rico. Não é rico quem muito tem, mas vitalidade. Não dá a fim de receber; dar é, em
quem muito dá. O avaro que ansiosamente re- si mesmo, requintada alegria. Mas, ao dar, não
ceia perder alguma coisa é, psicologicamente fa- pode deixar de levar alguma coisa à vida da
lando, a homem pobre, o empobrecido, não im- outra pessoa, e isso que é levado à vida reflete-se
porta quanto possua. Quem é capaz de dar si de volta no doador; ao dar verdadeiramente,
é rico. Põe-se à prova como quem pode conceder não pode deixar de receber o que lhe é dado de
de si aos outros. Só quem for privado de tudo retorno. Dar implica fazer da outra pessoa tam-
quanto vá além das mais simples necessidades bém um doador e ambos compartilham da ale-
da existência será incapaz de gozar o ato de gria de haver trazido algo à vida. No ato de
dar coisas materiais. Mas a experiência diária dar, algo nasce, e ambas as pessoas envolvidas
mostra que aquilo que alguém considera como são gratas pela vida que para ambas nasceu.
necessidades mínimas depende tanto de seu ca- Com relação especificamente ao amor, isso signi-
fica: o amor é uma força que produz amor;
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A A R T E DE A M A R 47
impotência é a incapacidade de produzir amor. produtiva; nessa orientação a pessoa superou a
Este pensamento foi belamente expresso por dependência, a onipotência narcisista, o desejo de
Marx: "Imaginai — diz ele — o homem como explorar os outros, ou de amealhar, e adquiriu
homem e sua relação com o mundo como uma re- fé em seus próprios poderes humanos, coragem
lação humana, e só podereis trocar amor por amor, de confiar em suas forças para atingir seus alvos.
confiança por confiança, etc. Se quiserdes gozar No mesmo grau em que faltarem essas qualida-
a arte, devereis ser uma pessoa de preparo artís- des é ela temerosa de dar-se — e, portanto, de
tico; se quereis ter influência sobre outras pesso- amar.
as, devereis ser uma pessoa que tenha sobre outras ,Além do elemento de dar, o caráter ativo do
pessoas influência realmente estimuladora e pro- amor torna-se evidente no fato de implicar sem-
motora. Cada uma de vossas relações com o pre certos elementos básicos, comuns a todas as
homem e com a natureza deve ser uma expres- formas de amor. São eles: cmdado, rêvponsa-
são definida de vossa vida real, individual, cor- lãidade, rtêptite e c&Mb&ÚMwto.
respondente ao objeto de vossa vontade. Se
amais sem atrair amor, isto é, se vossa amor é Que amor implica cuidado é mais do que
tal que não produz amor, se através de uma evidente no amor da mãe pelo filho. Nenhuma
expressão de vida como pessoa amante não fa- afirmativa sobre seu amor nos impressionaria
zeis de vós mesmo uma pessoa amada, então como sincera se a víssemos sâ«í^(yiádado para
vosso amor é impotente, é um infortúnio." com a criança, se se desleixassem em ^HffientáJla,
("Nationalõkonomie und Philosophie", 1844, pu- banhá-la, dar-lhe conforto 'físico; ao passo que
plicado em Die Frühschriften de Karl Marx, seu amor nos impressiona se a vemos cuidar do
filho. O caso não difere mesmo quanto ao amor
Alfred Kròner Verlag, Stuttgart, 1953, pags.
por animais ou flores. Se uma mulher nos diz
300, 301. A tradução é minha.) Mas não é só que ama as flores e vemos que ela se esquece
no amor que dar significa receber. O mestre é de regá-las, não acreditamos em seu "amor" pe-
ensinado por seus alunos, o ator é estimulado las flores. Amor é preocupação ativa pela,-*vida,
por sua audiência, o psicanalista é curado por e crescimento daquilo* que > amamos. Onde falta
seu cliente — contanto que não se tratem uns essa preocupação ativa não há amor. Esse ele-
aos outros como objetos, mas se relacionem uns mento do amor é belamente descrito no livro de
com os outros genuina e produtivamente. Jonas. Deus disse a Jonas que fosse a Nínive
Quase não é necessário acentuar o fato de advertir os habitantes de que seriam punidos, a
que a capacidade de dar depende do desenvolvi- menos que se emendassem de sua má conduta.
mento do caráter da pessoa. Pressupõe o alcan- Jonas foge de sua missão, por temer que o povo
çamento de uma orientação predominantemente de Nínive se arrependa e Deus o perdoe. É um

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homem de forte senso de ordem e lei, mas sem muitas vezes se entende a responsabilidade como
amor. Contudo, em sua tentativa de evasão, denotando dever, algo imposto de fora a alguém.
vê-se no ventre de uma baleia, simbolizando p AiMMqpVMÉrilÉiMte, porém, em seu verdadeiro
estado de isolamento e encarceramento que a sentido, é ato inteiramente voluntário; éi&*ü
falta de amor e solidariedade lhe trouxe. Deus portítaqiue d»m0teàf*í^^
o salva e Jonas vai a Nínive. Prega aos habi- lifijuiBITjJffiit^^ Ser Ate«B-
tantes como Deus lhe dissera, e a própria coisa ponsável" significa ter de íkaatpmter", estar
que temera acontece. Os homens de Nínive ar- pronto para isso. Jonas não se sentiu respon-
rependem-se de seus pecados, emendam-se e Deus sável pêlos habitantes de Nínive. Como Caim,
lhes dá perdão e decide não destruir a cidade. poderia indagar: "Sou acaso o guarda de meu
Jonas fica intensamente encolerizado e decepcio- irmão?" A pessoa que ama responde. A vida
nado; queria que se fizesse "justiça" e não mi- de seu armão não importa somente a seu irmão,
sericórdia. Afinal, encontra certo conforto à mas também a ela. Sente-se responsável^"por
sombra de uma árvore que Deus fizera crescer se;uife*8fim©lhantes, como se sente respiwiáffleVpftr
para ele, a fim de protegê-lo do sol. Mas quan- sip^meszna.1 Essa responsabilidade, no caso da
do Deus faz a árvore murchar, Jonas fica de- mãe e do filho, refere-se principalmente ao cui-
primido e colericamente se queixa a Deus. Res- dado das necessidades físicas. No amor entre
ponde-lhe Deus: "Tu te lastimas por causa de adultos, refere-se principalmente às necessidades
uma aboboreira que não te custou trabalho al- psíquicas da outra pessoa.
gum, nem a fizeste crescer; que nasceu numa A responsabilidade poderia facilmente cor-
noite e numa noite pereceu. E então não hei
de poupar a grande cidade de Nínive, onde há
romper-se em dominação e possessividade se não
houvesse um terceiro elemento do amor, o res-
mais de cento e vinte mil pessoas que não sabem peito. Beat]*eií0 não é medo e temor; denota, de ü
discernir entre a sua mão direita e a sua mão acordo com a raiz da palavra (rMpice$m\mià^
esquerda, e ainda um grande número de ani- para), a capacidade de ver uma^fesoa- tal <com<f"tt
mais?" A resposta de Deus a Jonas deve ser conhecimento de sua individualidade ain-
entendida simbolicamente. Deus explica a Jonas Respeito significa a preocupação de que
que a essência do amor é VJU^blÉÍMir" por al-
guma coisa e "fazer alguma coisa crescer", que a outra pessoa owfftxríe se defiflwrol^a^^uwiíF ^.
amor e tr^lmüwW»6iM^ii^f>á?^veis, Ama-se aqui- Respeito, assim, implica ausência de exploração.
lo por que se trabalha e trabalha-se por aquilo Quero que a pessoa amada cresça e se desenvolva
que se ama. poj^^u^âfliü; por sôu^^tv^i^ii^^^, e não
Cuidado e preocupação implica outro aspecto para o fim de servir-me. Se amo a outra pessoa,
S
do amor: o da responsabilidade. Hoje em dia, *B&^!§!MM ele, mas com ela tal

50 E R I C H F R O M M A A R T E D E A M A R 51
como é, não como eu necessito que seja para desejo especificamente humano, o de conhecer "o
objeto de meu uso. É claro que o respeito só segredo do homem". Se a vida, em seus aspectos
é possível se ^i««iiiiEM«jmiri^ , meramente biológicos, é um milagre e um se-
se puder levatltarTjoap- e caminhar sem precisar gredo, o homem, em seus aspectos humanos, é
de muletas, sem ter de dominar e explorar qual- um segredo insondável para si mesmo — e para
quer outro. O r^peiiosatsóm^^ seus semelhantes. Nós nos conhecemos, e con-
b^iade : "Pamour est l *enf ant de Ia liberte", tudo, mesmo apesar de todos os esforços que
como diz velha canção francesa; o amor é filho possamos fazer, não nos conhecemos. Conhece-
da liberdade, nunca da dominação. mos nosso semelhante, e contudo não o conhece-
uma
pessoa, mos, porque não somos uma coisa, nem o nosso
; cuidado e responsabilidade seriam semelhante é uma coisa. Quanto mais penetra-
cegos se não fossem guiados pelo conhecimento. mos nas profundezas de nosso ser, ou do ser de
vazio se não fosse moti- outrem, tanto mais nos escapa o alvo do conhe-
'Há muitas camadas de cimento. Não podemos, todavia, evitar o desejo
conhecimento; o conhecimento que é um aspecto de penetrar no segredo da alma do homem, no
do amor é aquele que não fica na periferia, mas mais interno núcleo do que "ele" é.
penetra até o âmago. Só é possível quando pos- Há um meio, um desesperado meio, de co-
so transcender a preocupação por -m\m mesmo e nhecer o segredo: é o do completo poder sobre
ver a outra pessoa em seus próprios termos. a outra pessoa; poder que a obrigue a fazer o
Posso saber, por exemplo, que uma pessoa está que quisermos, sentir o que quisermos, pensar
encolerizada, ainda que ela não o mostre aber- o que quisermos; que a transforme numa coisa,
tamente; mas posso conhecê-la mais profunda- nossa coisa, possessão nossa. O grau derradei-
mente do que isso; sei então que ela está ansiosa ro dessa tentativa de conhecer reside nos extre-
e preocupada; que se sente só, que se sente cul- mos do sadismo, desejo e capacidade de fazer
pada. Sei então que sua cólera é apenas a ma- um ser humano sofrer: torturá-lo, forçá-lo a trair
nifestação de algo mais profundo, e vejo-a como seu segredo em seu sofrimento. Nesta avidez
ansiosa e preocupada, isto é, como pessoa que de penetrar no segredo do homem, no seu e,
sofre, em vez de como a que se encoleriza. portanto, no nosso próprio, está uma motivação
essencial da profundidade e da intensidade da
O conhecimento tem mais uma relação — e crueldade e da destruição. De modo muito su-
mais fundamental — com o problema do amor. cinto, essa ideia foi expressa por Isaac Babel.
A necessidade básica de fusão com outra pessoa Cita ele um sujeito, oficial na guerra civil russa,
de modo a transcender a prisão da própria se- Que acabava de espezinhar seu antigo patrão até
paração relaciona-se muito de perto com outro a morte, como dizendo: "Com um tiro — vou

52 E R I C H F R O M M A A R T E DE A M A R 53
dizer a coisa deste jeito — com um tiro a gente descubro-me, descubro-nps a ambos, descubro o
apenas fica livre de um camarada... Com um homem.
tiro, .hunca se alcança a alma, onde ela está num A ardente aspiração de nos conhecermos e
sujeito, nem como se mostra. Mas eu não me de conhecer nossos semelhantes encontrou ex-
canso e mais de uma vez já pisoteei um inimigo pressão na sentença délfica: "Conhece-te a ti
por mais de uma hora. Vocês sabem, eu quero mesmo". Esta é a fonte principal de toda psi-
chegfar a saber o que a vida realmente é, como cologia. Como, porém, o desejo é o de conhecer
é a vida aqui no nosso mundo". (L Babel, The tudo sobre o homem, seus mais íntimos segredos,
Collected Stovies, Criterion Book, Nova York, tal desejo nunca pode ser efetivado no conhe-
1955.) cimento de tipo normal, no conhecimento só pelo
Quando crianças, muitas vezes vemos com pensamento. Ainda que conheçamos mil vezes
toda a clareza esse caminho para o conhecimento. mais sobre nós mesmos, nunca alcançaremos o
A criança apanha alguma coisa e quebra-a a fim fundo. Permaneceremos ainda um enigma para
de conhecê-la; ou apanha um animal; cruelmente nós próprios, como nossos semelhantes continua-
arranca as asas de uma borboleta a fim de co- rão sendo um enigma para nós. O meio único
nhecê-la, de forçar seu segredo. A crueldade, de conhecimento completo está no ato do amor:
em si, é motivada por algo mais profundo: o esse ato transcende o pensamento, transcende as
desejo de conhecer o segredo das coisas e da vida. palavras. Ê o mergulho ousado na experiência
O outro caminho de conhecer o "segredo" da união. Contudo, o conhecimento pelo pensa-
é amar. O amor é penetração ativa na outra mento, que é conhecimento psicológico, torna-se
pessoa, em que meu desejo de conhecer é disti- condição necessária para o pleno conhecimento
lado pela união. No ato da fusão, eu te conhe- no ato do amor. Preciso conhecer-me, e à outra
ço, eu me conheço, conheço a todos — e nada pessoa, objetivãmente, a fim de poder ver sua
"conheço". Conheço pelo único meio por que é realidade, ou melhor, de superar as ilusões, o
possível, para o homem, o conhecimento do que retrato irracionalmente desfigurado que tenho
é vivo — pela experiência da união —, e não dela. Só se conhecer objetivamente um ser hu-
por qualquer conhecimento que nosso pensamen- mano poderei conhecê-lo em sua essência última,
to possa dar. O sadismo é motivado pelo desejo no ato de amor. (*)
de conhecer o segredo, e contudo permaneço tão
ignorante quanto antes era. Despedacei o outro í*) A afirmação acima tem Importante significação quanto
ser membro a membro, e entretanto tudo o que ao papel da psicologia na cultura ocidental contemporânea. Embora
fiz foi destrui-lo. O amor é o único meio de a grande popularidade da psicologia certamente indique interesse
pelo conhecimento do homem, ÍBSO também revela a falta funda-
conhecimento que, no ato da união, responde à mental de amor nas relações humanas hoje em dia. O conheci-
minha pergunta. No ato de amar, de dar-me, mento psicológico torna-se, aasim, substituto do pleno conhecimento
no ato de amor, em vez de ser um passo para ele.
no ato de penetrar a outra pessoa, encontro-me,

54 E R I C H F R O M M A A R T E DE A M A R 55
O problema de conhecer o homem é paralelo que abandonou os sonhos narcisistas de onisciên-
ao problema religioso de conhecer Deus. Na cia e onipotência, que adquiriu humildade alicer-
teologia convencional ocidental, faz-se a tenta- çada na força íntima somente dada pela genuína
tiva de conhecer Deus pelo pensamento, de fazer atividade produtiva.
afirmações a respeito de Deus. Presume-se que Até aqui falei do amor como a superação
eu possa conhecer Deus em meu pensamento. da separação humana, como o cumprimento da
No misticismo, que é o resultado lógico do mo- aspiração de união. Acima, porém, da necessi-
noteismo (como tentarei mostrar mais adiante),
abandon^-se a tentativa de conhecer Deus pelo dade universal e existencial de união ergue-se
pensamento, que é substituída pela experiência outra, mais específica, biológica: o desejo de
de união com Deus, na qual não há mais lugar união entre os poios masculino e feminino. A
para o conhecimento a respeito de Deus — nem ideia dessa polarização é ^mais fortemente ma-
há necessidade disso. nifestada no mito de que, originalmente o ho-
mem e a mulher eram um só, de que foram
A experiência de união com o homem, ou, partidos ao meio e, de então em diante, cada
religiosamente falando, com Deus, não é de modo ser masculino vem procurando a perdida parte
algum irracional. Ao contrário, é, como Albert feminina de si mesmo, a fim de voltar a unir-se
Schweitzer mostrou, a consequência do raciona-
lismo, sua consequência mais audaciosa e radical. com ela. (A mesma ideia da unidade original
Baseia-se em nosso conhecimento das limitações dos sexos está contida na história Bíblica de
fundamentais, e não acidentais, do que nos é Eva feita da costela de Adão, embora nessa
possível conhecer. É o conhecimento de que história, no espírito do patriarcalismo, a mulher
nunca poderemos "apreender" o segredo do ho- seja considerada secundária em relação ao ho-
mem e do universo, más que, não obstante, po- mem.) A significação do mito é bastante clara.
demos conhecer no ato de amor. A psicologia, A polarização sexual leva o homem a procurar
como a ciência, tem suas limitações e, assim como a união de maneira específica, a da união com
a consequência lógica da teologia é o misticismo, o outro sexo. A polaridade entre os princípios
também a consequência derradeira da psicologia masculino e feminino existe também dentro de
é o amor. cada homem e cada mulher. Assim como, fisio-
Cuidado, responsabilidade, respeito e conhe- lògicamente, o homem e a mulher têm, cada qual,
cimento são mutuamente interdependentes. Cons- hormônios do sexo oposto, também no sentido
tituem uma síndrome de atitudes que vamos psicológico são ambos bissexuais. Levam em si
encontrar na pessoa amadurecida, isto é, na pes- mesmos o princípio de receber e de penetrar, da
soa que desenvolve produtivamente seus próprios matéria e do espírito. O homem, tal como a
poderes, que só quer ter aquilo por que trabalhou. mulher, só encontra união dentro de si na união

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de sua polaridade masculina e feminina. Essa Ao olhar dos sábios, o Céu é homem e a Terra é
polaridade é a base de toda criatividade. mulher: a Terra cria o que o Céu deixa cair.
A polaridade masculino-feminina é também Quando à Terra falta calor o Céu o envia; quando
ela perde seu frescor e umidade, o Céu os
a base da criatividade interpessoal. Isto se restaura.
torna biològicamente evidente no fato de ser a Anda o Céu às voltas como um marido a buscar
união do esperma e do ovo a base do nascimento provisões para a esposa;
de uma criança. Não há diferença, entretanto, E a Terra se atarefa com as coisas de casa: cuida
no reino puramente psíquico: no amor entre dos nascimentos e de amamentar aquilo que
homem e mulher, cada um deles torna a nascer. dá à luz.
(O desvio homossexual é o fracasso em atingir Olha a Terra e o Céu como dotados de inteligência,
essa união polarizada, e por isso o homossexual pois fazem o trabalho de seres inteligentes.
sofre a dor da separação nunca solucionada, Se ambos não extraem .prazer um do outro, por que
então se adulam mutuamente como namorados?
fracasso, entretanto, de que com ele compartilha Sem a Terra, como poderiam as árvores florir?
o heterossexual comum que não consegue amar.) Para que, então produziria o Céu água e calor?
A mesma polaridade dos princípios masculi- Assim como Deus colocou o desejo no homem e na
no e feminino existe na natureza; não só, como mulher, para que o mundo seja preservado por
é evidente, em animais e planta, mas na polari- sua união.
dade das duas funções fundamentais, a de re- Também implantou em cada parte da existência o
ceber e a de penetrar. É a polaridade da terra desejo da outra parte.
e da chuva, do rio e do oceano, da noite e do Dia e Noite são inimigos externamente; contudo,
ambos servem a uma finalidade.
dia, da escuridão e da luz da matéria e do es- Cada qual ama o outro, a fim de aperfeiçoar sua
pírito. Tal ideia foi belamente expressa pelo obra mútua.
grande poeta e místico muçulmano Bumi: Sem a Noite, a natureza do homem não receberia
qualquer rendimento e nada haveria para que
Nunca, em verdade, procura o amante sem ser bus- o Dia gastasse.
cado pelo ente amado.
(R. A. NICHOLSON, Rumi, George Allen and
Quando o raio do amor se atirou neste coração, sabe Unwin, Ltd., Londres, 1950, págs. 122-123.)
que existe amor naquele coração.
Quando o amor de Deus cresce em teu coração, sem
dúvida alguma Deus tem amor por ti. O problema da polaridade masculino-femi-
Nenhum som de palmas vem de uma só mão sem a nina leva a mais alguma discussão sobre o as-
outra mão. sunto do amor e do sexo. Já falei anteriormente
A Divina Sabedoria é destino e decreto que nos do erro de Preud em ver no amor exclusiva-
fazem amantes uns dos outroe. mente a expressão — ou uma sublimação — do
Por este pre-ordenamento, cada parte do mundo se instinto sexual, em vez de reconhecer que o de-
acasala com seu par. sejo sexual é uma manifestação da necessidade
58 E R I C H F R O M M A A R T E DE A M A R 59
de amor e união. O erro de Freud, porém, vai A atração sexual entre os sexos é apenas
mais fundo. Na linha de seu materialismo fi- em parte motivada pela necessidade de remover
siológico, ele vê no instinto sexual o resultado a tensão; é, principalmente, necessidade de união
de uma tensão quimicamente produzida no cor- com o outro polo sexual. De fato, a atração
po, que é dolorosa e procura alívio. O alvo do erótica de modo algum somente se expressa na
desejo sexual é a remoção dessa tensão dolorosa; atração sexual. Há masculinidade e feminilida-
a satisfação sexual reside em concretizar tal re- de no caráter, tanto quanto na função sexual.
moção. Este conceito tem validez até ao ponto O caráter masculino pode ser definido como
em que o desejo sexual opera da mesma forma tendo as qualidades de penetração, orientação,
que a f orne e a sede, quando o organismo está atividade, disciplina e aventura; o caráter femi-
subnutrido. O desejo sexual, em tal concepçãp, nino, pelas qualidades de receptividade produ-
é um prurido, e a satisfação sexual é a remoção tiva, proteção, realismo, paciência, maternidade.
do prurido. De fato, até onde esse conceito de (Deve-se sempre ter em mente que, em cada
sexualidade abrange, a masturbação seria a sa- indivíduo, ambas as características se mesclam,
tisfação sexual ideal. O que Freud ignora, bas- mas com a preponderância das que pertencem ao
tante paradoxalmente, é *o aspecto psico-biológico sexo "dele" ou "dela".) Muitas vezes, se os
da sexualidade, a polaridade masculino-femim- traços do caráter masculino de um homem se
na, e o desejo de ligar essa polaridade pela união. enfraquecem porque ele permanece emocional-
Tão curioso erro foi provavelmente facilitado mente criança, tentará compensar essa falta pela
pelo extremo patriarcalismo de Freud, que o acentuação exclusiva sobre seu papel masculino
levou à ideia de que a sexualidade, por si, é no sexo. O resultado é o Dom Juan, que ne-
masculina, fazendo-o ignorar assim a sexualida- cessita de provar sua potencialidade masculina
de feminina específica. Expressou essa ideia em no sexo, por estar inseguro de sua masculini-
Três Contribuições à Teoria do Sexo, dizendo dade no sentido caracterológico. Quando a pa-
que a libido tem regularmente "uma natureza ralisia da masculinidade é mais extrema, o sa-
masculina", não importa seja a libido num ho- dismo (uso da força) torna-se o substituto prin-
mem ou numa mulher. A mesma ideia é tam- cipal — e pervertido — da masculinidade. Se
bém expressa em forma racionalizada na teoria a sexualidade feminina se enfraquece ou perver-
de Freud de que o menino experimenta a mulher te, transforma-se em masoquismo, ou possessivi-
como um homem castrado, e que ela própria dade.
procura várias compensações para a perda do Freud tem sido criticado pelo excesso de
órgão genital masculino. Mas a mulher não è importância que ,dá ao sexo. Tais críticas mui-
um homem castrado, e sua sexualidade é espe- tas vezes foram incentivadas pelo desejo de re-
cificamente feminina, e não de "natureza mas- mover um elemento do sistema de Freud que
culina". despertava censuras e hostilidade entre pessoas
60 E R I C H F R O M M A A R T E D E A M A R 61
de mentalidade convencional. Freud sentiu agu- listas ortodoxos, tal aceitação não levou a uma
damente essa motivação e, por essa própria ra- revisão fundamental do conceito de libido, espe-
zão, combateu qualquer tentativa de alterar sua cialmente na parte referente ao trabalho clínico.)
teoria do sexo. De fato, em seu tempo, a teoria
de Freud teve um caráter desafiador e revolu- 2 — AMOR ENTRE PAIS E FILHOS
cionário. O que, porém, era exato por volta de
1900, já não o é mais cinquenta anos depois, A criança, no momento de nascer, sentiria
Os costumes sexuais mudaram tanto que as o temor de morrer, se um destino amável não
teorias de Freud não mais escandalizam as clas- a preservasse de qualquer consciência da ansie-
ses médias ocidentais, e quando, hoje, analistas dade ligada à separação da mãe e da existência
ortodoxos ainda pensam que são corajosos e ra- intra-uterina. Mesmo depois de nascer, a crian-
dicais por defenderem a teoria sexual de Freud, ça quase não difere do que era antes do nasci-
apenas mostram um tipo quixotesco de radica- mento ; não pode reconhecer objetos, não tem
lismo. De fato, seu ramo de psicanálise é con- ainda ciência de si, nem do mundo como enti-
fpnnista e não tenta suscitar questões psicológi- dade que lhe é exterior. Apenas sente o estí-
cas que possam levar a uma crítica da sociedade mulo positivo do calor e do alimento e não di-
contemporânea. ferencia ainda calor e alimento de sua fonte: a
Minha crítica da teoria de Freud não é a mãe. A mãe é calor, a mãe è alimento, a mãe é
de que ele deu ênfase excessiva ao sexo, mas a o estado eufórico de satisiação e segurança.
de que falhou em compreender o sexo com bas- Esse estado é o de narcisismo, para usar o termo
tante profundidade. Deu o primeiro passo ao de Freud. A realidade externa, pessoas e coisas,
descobrir a significação das paixões interpesso- só têm significado nos termos em que satisfaçam
ais; de acordo com suas premissas filosóficas,
explicou-as fisiològicamente. No ulterior desen- ou frustrem o estado interno do corpo. Só é
volvimento da psicanálise, é necessário corrigir real o que está por dentro; o que está por fora
e aprofundar o conceito de Freud, transladan- apenas é real em termos das necessidades . da
do-se o que ele discerniu, das dimensões fisio- criança, e nunca em termos das qualidades ou
lógicas, para as biológicas e existenciais. (O necessidades que tenha.
próprio Freud deu um passo nesta direção, em Quando a criança cresce e se desenvolve,
sua concepção posterior dos instintos de vida e torna-se capaz de perceber as coisas tais como
de morte. Seu conceito do primeiro (eros) como são; a satisfação de ser alimentada torna-se di-
um princípio de síntese e unificação, acha-se em ferenciada da mamadeira, o seio diferencia-se
plano inteiramente diferente do de seu conceito da mãe. Acaba a criança por sentir sua sede,
da libido. Apesar, porém, de haver sido a teoria o leite que a satisfaz, o seio e a mãe, como
dos instintos de vida e de morte aceita por anã- entidades diferentes. Aprende a perceber mui-
62 ERICH FROMM A A R T E D E A M A R 63
as outras coisas como sendo diferentes, como amado pelo que se é. A criança até essa idade
endo existência própria. Neste ponto, aprende ainda não ama; corresponde gratamente, alegre-
dar-lhes nomes. Ao mesmo tempo, aprende a mente, a ser amada. Nesse ponto do desenvol-
idar com elas; aprende que o fogo é quente e vimento infantil, entra em cena um novo fator:
oloroso, que o corpo da mãe é aquecido e agra- o de um novo sentimento de produzir amor pela
ável, que um pau é duro e pesado, que o própria atividade. Pela primeira vez a criança
apel é leve e pode ser rasgado. Aprende a pensa em dar alguma coisa à mãe (ou ao pai),
ratar com as pessoas: mamãe sorrirá quando de produzir alguma coisa: um poema, um dese-
u comer, tomar-me-á nos braços quando eu cho- nho, seja o que for. Pela primeira vez na vida
ar, louvar-me-á quando eu fizer um movimento da criança a ideia de amor se transforma de ser
anhestro. Todas essas experiências cristali- amada em amar; em criar amor. Muitos anos
am-se e integram-se na experiência: sou amado. vão deste primeiro início ao amadurecimento do
ou amado por ser o filho de minha mãe; sou amor. Mas por fim a criança, que agora pode
tnado pôr ser indefeso; sou amado por ser belo, ser um adolescente, supera seu egocentrismo; a
dmirável. Sou amado porque minha mãe pre- outra pessoa não é mais primariamente una meio
isa de mim. Usando uma fórmula mais geral: de satisfação de suas próprias necessidades. As
>w amado pelo que sou; ou, talvez com exatidão necessidades da outra pessoa são tão importantes
laior: sou amado porque sou. Esta experiência quanto as suas próprias — de fato, tornaram-se
e ser amado pela mãe é passiva. Nada tenho mais importantes. Dar tornou-se mais satisfa-
e fazer a fim de ser amado; o amor de minha
lãe é incondicional. Tudo o que tenho a fazer tório, mais alegre do que receber; amar, mais
ser — ser o seu filho. O amor da mãe é cego, importante mesmo do que ser amado. Amando,
pacífico, não precisa ser adquirido, não ne- a criança deixou a cela da prisão da solidão" e
ïssita ser merecido. Mas há um lado negativo, do isolamento, que era constituída pelo estado
imbém, na qualidade incondicional do amor dç de narcisismo e de centralização em si mesma.
tãe. Não só ele não precisa ser merecido; não Experimenta um sentimento de nova união, de
ode, igualmente, ser adquirido, produzido, con- participação, de unidade. Mais do que isso, sen-
fiado. Se existe, é como uma bênção; se não te a potência de produzir amor pelo fato de
dste, é como se desaparecesse da vida toda a amar — em lugar da dependência de receber
3leza — e nada posso fazer para criá-lo. pelo fato de ser amada — e, por essa razão, de
Para a maior parte das crianças antes da ter de ser pequena, indefesa, enferma — ou
lade de entre oito e meio e dez anos, (conf. "boa". O amor infantil segue o princípio:
he Interpersonal Theory of Psychiatry, Sulli- "Amo porque sou amado". O amor amadurecido
m, Londres, Tavistock, 1955) o problema é segue o princípio: "Sou amado porque amo".
aase exclusivamente o de ser amado — de ser O amor imaturo diz: "Amo-te porque necessi-

i- E R I C H F R O M M A A R T E D E A M A R 65
to de ti". Diz o amor maduro: "Necessito de profundas aspirações, não só da criança, mas
ti porque te amo". de qualquer ente humano; por outro lado, ser
Estreitamente relacionado ao desenvolvimen- amado em razão dos próprios méritos, por me-
to da capacidade de amar é o desenvolvimento recê-lo, sempre deixa dúvida; talvez eu não agra-
do óbjeto do amor. Os primeiros meses e anos de à pessoa que desejo que me ame, talvez isto,
da criança são aqueles em que sua ligação mais ou aquilo — há sempre o temor de que o amor
estreita é com a mãe. Essa ligação começa antes possa desaparecer. Além do mais, o amor "me-
do instante do nascimento, quando mãe e filho recido" facilmente deixa o amargo sentimento
ainda são um, embora sejam dois. O nascimen- de que não se é amado por si mesmo, de que se é
to muda a situação sob certos aspectos, mas não amado apenas por agradar, de que, em última
tanto quanto pareceria* A criança, se agora vive análise, não se é amado em absoluto, mas utili-
fora do ventre, ainda depende completamente zado. Não é de admirar que todos nos ape-
da mãe. Dia a dia, porém, torna-se mais inde- guemos ao anseio pelo amor materno, como
pendente: aprende a andar, a falar, a explorar crianças e também como adultos. A maioria
o mundo por si; a relação com a mãe perde das crianças é bastante feliz em receber amor
algo*de sua significação vital e, em lugar disso, materno (até que extensão, discutiremos mais
a relação com o pai torna-se cada vez mais im- adiante). Quando adultos, a mesma aspiração é
portante. muito mais difícil de efetivar-se. No mais sa-
A fim de compreender essa mudança da mãe tisfatório desenvolvimento, permanece como um
para o pai, devemos considerar as essenciais componente do amor erótico normal; muitas ve-
diferenças de qualidade entre o amor materno zes encontra expressão em formas religiosas, e
e o paterno. Já falamos a respeito do amor mais vezes ainda em formas neuróticas.
materno. Por sua própria natureza, o amor ma- A relação para com o pai é inteiramente
terno é incondicional. A mãe ama a criança diferente. A mãe é o lar de que proviemos, é
recém-nascida porque ó seu filho, e não porque
a natureza, o solo, o oceano; o pai não representa
o filho tenha preenchido qualquer condição es-
pecífica ou correspondido a qualquer expectativa qualquer desses lares naturais. Tem pouca li-
específica. (Naturalmente, ao falar aqui do gação com o filho nos primeiros anos de sua vida,
amor de mãe e de pai, falo dos "tipos ideais" e sua importância para a criança, nesse período
— no sentido de Max Weber, ou de um arqué- primitivo, não pode ser comparada com a da
tipo no sentido de Jung — e não pretendo que mãe. Se, porém, não representa o mundo na-
todos os pais e mães amem de tal modo. Ée- tural, o pai representa o outro polo da existên-
firo-me .ao princípio paternal e maternal, que é cia humana: o mundo do pensamento, das coisas
representado na pessoa paterna e materna.) O feitas pelo homem, da lei e da ordem, da dis-
amor incondicional corresponde a uma das mais ciplina, das viagens e da aventura. O pai é

66 E R I C H F R O M M A A R T E D E A M A R 67
aquele que ensina ao filho, que lhe mostra a ridade e orientação. A mãe tem a função de
estrada do mundo. fazê-lo seguro na vida, o pai tem a de ensiná-lo
Relacionada de perto com essa função acha-se guiá-lo a enfrentar os problemas com que a so-
a que se liga ao desenvolvimento socio-econô- ciedade particular em que o filho nasceu o con-
mico. Quando a propriedade privada veio a fronta. No caso ideal, o amor de mãe não tenta
existir, e quando a propriedade privada pôde impedir o filho de crescer, não tenta premiar-lhe
ser herdada por um dos filhos, o pai começou o desamparo. A mãe deve ter fé na vida, não
a escolher aquele filho a quem deixaria seus ficando portanto excessivamente ansiosa e, assim,
bens. Naturalmente, era aquele que o pai con- não contagiando o filho com sua preocupação.
siderava em melhores condições de tornar-se seu Parte de sua vida deve ser o desejo de que o
sucessor, o filho que mais se parecesse com ele filho se torne independente e acabe por sepa-
e de que, conseqüentemente, gostasse mais. O rar-se dela. O amor do pai deve ser guiado
amor paterno é amor condicional. Seu princí- por princípios e expectativas; deve ser paciente
pio é: "Amo-te porque preenches minhas ex- e tolerante, mais do que ameaçador e autoritário.
pectativas, porque cumpres o teu dever, porque Deve dar à criança que se desenvolve um sen-
és como eu". No amor paterno condicional en- timento crescente de competência e acabar por
contramos, como se dá com o incondicional amor permitir-lhe que se torne sua própria autoridade
materno, um aspecto negativo e um positivo. e dispense a do pai.
O aspecto negativo está no próprio fato de que Afinal, chega a pessoa amadurecida ao ponto
o amor paterno tem de ser merecido, de que em que se torna seu próprio pai e sua própria
pode ser perdido se não se faz o que é esperado. mãe. Tem, por assim dizer, uma consciência
Pertence à natureza do amor paterno o fato de materna e paterna. A consciência materna diz:
tornar-se a obediência a principal virtude e a "Não há ação má nem crime que possa privar-te
desobediência o principal pecado — sendo sua de meu amor, do que desejo para tua vida e
punição a retirada do amor paterno. O lado felicidade". A consciência paterna diz: "Agis-
positivo é igualmente importante. Sendo seu te mal, não podes deixar de aceitar certas conse-
amor condicionado, posso fazer algo para adqui- quências de teus erros, e, antes de tudo, deves
ri-lo, posso trabalhar por ele; seu amor não está mudar de conduta se quiseres que eu goste de
fora de meu controle, como está o amor materno. ti". A pessoa amadurecida libertou-se dos vul-
As atitudes do pai e da mãe para com o tos externos do pai e da mãe e construiu-os
filho correspondem às próprias necessidades dentro de si. Em contraste com o conceito do
deste. A criança necessita do amor incondicio- super-ego, de Freud, entretanto, não os cons-
nal da mãe, de seu cuidado, fisiològicamente e truiu ela dentro si incorporando pai e mãe, mas
psicologicamente. O filho, após seis anos, co- pela edificação de uma consciência materna so-
meça a necessitar do amor do pai, de sua auto- bre sua própria capacidade de amar, e de uma
68 ERICH FROMM A A R T E D E A M A R 69
consciência paterna sobre sua razão e j ulga- pessoa transferir a necessidade de proteção ma-
niento. Além disso, a pessoa amadurecida ama terna para seu pai e as subsequentes imagens
tanto com a consciência materna quanto com a do pai, caso em que o resultado final é seme-
paterna, apesar do fato de parecerem elas con- lhante ao do anterior, ou em que se desenvolverá
tradizer-se mutuamente. Se quisesse reter ape- numa pessoa de orientação unilateralmente pa-
nas a consciência paterna, tornar-se-ia áspera e terna, completamente entregue aos princípios da
inumana. Se quisesse apenas reter a consciên- lei, da ordem e da autoridade, faltando-lhe a
cia materna, estaria em condições de perder a capacidade de esperar ou receber amor incon-
capacidade de julgar e de impedir o desenvol- dicional. Tal desenvolvimento é ainda mais in-
vimento seu e dos outros. tensificado se o pai for autoritário e, ao mesmo
Nesse desenvolvimento do afeto centralizado tempo, fortemente ligado ao filho. Caracterís-
na mãe para o afeto centralizado no pai e em tico de todos esses desenvolvimentos neuróticos
sua síntese ulterior reside a base da saúde men- é o fato de que um princípio, o paterno ou o
tal e da completação da maturidade. Nas falhas materno, deixa de se desenvolver, ou — e é o
de tal desenvolvimento acham-se as causas bá- que ocorre no desenvolvimento neurótico mais
sicas da neurose. Embora esteja fora dos alvos grave — de que os papéis do pai e da mãe se
deste livro o trato mais amplo de tal tendência tornam confusos, tanto com relação às pessoas
do pensamento, algumas breves observações po- exteriores quanto com relação a esses papéis no
dem servir para esclarecer esta afirmativa. interior da pessoa. Mais extenso exame pode
Uma causa de desenvolvimento neurótico mostrar que certos tipos de neurose, como a
pode residir no fato de ter um menino uma neurose obsidente, desenvolvem-se mais sobre a
mãe amorosa, mas ultra-indulgente ou domina- base de um afeto paterno unilateral, ao passo
dora, e um pai fraco e desinteressado. Neste que outras, como a histeria, o alcoolismo, a
caso,-pode ele permanecer agarrado a um afeto incapacidade de afirmar-se e de enfrentar a vida
materno antigo, desenvolvendo-se numa pessoa realisticamente, e as depressões, resultam da cen-
que depende da mãe, que se sente desamparada tralização na mãe.
e tem as características de empenho da pessoa
receptiva, isto é, receber, ser protegida, ser 3 _ DOS OBJETOS DO AMOR
cuidada, faltando-lhe as qualidades paternas:
disciplina, independência, capacidade de domi- O amor não é, primacialmente, uma relação
nar a vida por si mesma. Pode tentar encon- para com uma pessoa específica; é uma atitude,
trar "mães" em toda gente, às vezes em mulhe- uma orientação de caráter, que determina a re-
res, às vezes em homens em situação de auto- lação de alguém para com o mundo como um
ridade e poder; Se, por outro lado, a mãe for todo, e não para com um "objeto" de amor. Se
fria, sem correspondência e dominadora, pode a uma pessoa ama apenas a uma outra pessoa e é

70 E R I C H F R O M M A A R T E D E A M A R 71
indiferente ao resto dos seus semelhantes, seu o teu próximo como a ti mesmo. O amor fra-
amor não é amor, mas um afeto simbiótico, ou terno é amor por todos os seres humanos; ca-
ttm egoísmo ampliado. Contudo, a maioria crê racteriza-se pela própria falta de exclusividade.
que o amor é constituído pelo objeto e não pela Se desenvolvi a capacidade de amar, então não
faculdade. De fato, acredita-se mesmo que a posso deixar de amar meus irmãos. No amor
prova da intensidade do amor está em não amar fraterno há a experiência da união com todos
ninguém além da pessoa "amada". Este o mes- os homens, da solidariedade humana, do sincro-
mo equívoco de que acima j á falamos. Por nismo humano. O amor fraterno baseia-se na
não se ver que o amor é uma atividade, uma experiência de que todos somos um. As dife-
força da alma, acredita-se'que tudo quanto é ne- renças de talento, inteligência, conhecimento são
cessário encontrar é o objeto certo — e tudo o mesquinhas em comparação com a identidade do
mais irá depois por si. Tal atitude pode ser núcleo humano comum ^a todos os homens. A
comparada à de alguém que queira pintar mas, fim de sentir essa identidade é necessário pe-
em vez de aprender a arte, proclama que lhe netrar da periferia até ao núcleo. Se percebe
basta esperar pelo objeto certo, passando a pin- em outra pessoa principalmente a superfície,
tá-lo belamente quando o encontrar. Se verda- percebe principalmente as diferenças que nos
deiramente amo alguém, então amo a todos, amo separam. Se penetro até ao núcleo, percebo
o mundo, amo a vida. Se posso dizer a outrein, nossa identidade, o fato de nossa fraternidade.
"Eu te amo", devo ser capaz de dizer: "Amo Essa relação de centro a centro, em vez da de
em ti a todos, através de ti amo o mundo, amo-me periferia a periferia, é "relação central". Ou,
a mim mesmo em ti". como Simone Weil expressou com tanta beleza:
Dizer que o amor é uma orientação que se "As mesmas palavras (por ex., um homem diz
refere a todos e não a um não implica, entre- à sua esposa, "Eu te amo") podem ser lugares
tanto, a ideia de que não haja diferenças entre comuns ou extraordinárias, de acordo com a ma-
vários tipos de amor, que dependem da espécie neira por que sejam faladas. E essa maneira
ïe objeto que é amado. depende da profundidade da região de um ser
humano de que procedam, sem que a vontade
a) Amor fraterno. seja capaz de fazer qualquer coisa. E, por um
A mais fundamental espécie de amor, que maravilhoso concerto, elas alcançam a mesma
alicerça todos os tipos de amor, é o amor fra- região em quem as ouve. Assim, o ouvinte pode
terno. Entendo por isto o sentimento de res- discernir, se tiver algum poder de discernimento,
ponsabilidade, de cuidado, de respeito por qual- qual é o valor das palavras". (Gravity and
juer outro ser humano, o seu conhecimento, o Grace, Simone Weil, Londres, Routledge, 1955).
lesejo de aprimorar-lhe a vida. Desta espécie O amor fraterno é amor entre iguais; mas,
ie amor é que a Bíblia fala, quando diz: ama na verdade, mesmo como iguais não somos sem-

12 E R I C H F R O M M A A K T E DE A M A R 73
pré "iguais"; e por sermos humanos, temos todos
necessidade de ajuda. Hoje eu, amanhã tu. 6) Amor materno
Essa necessidade de ajuda, todavia, não significa Já tratamos da natureza do amor materno no
que um seja desamparado e o outro poderoso. capítulo anterior, em que discutimos a diferença
O desamparo é uma condição transitória; a entre o amor materno e o paterno. Como disse
permanente e comum é a capacidade de erguer-se ali, o amor materno é uma afirmação incondicio-
e caminhar pêlos próprios pés. nal da vida do filho e de suas necessidades.
Contudo, o amor ao desamparado, o amor ao Adição importante, porém, a essa descrição deve
pobre e ao estranho é o começo do amor fraterno. ser feita aqui. A afirmação da vida do filho tem
Amar a própria carne e sangue de alguém não é dois aspectos; um é o do cuidado e responsabili-
dade absolutamente necessários para preservação
completa realização. O animal ama suas crias e da vida do filho e o seu crescimento. O outro
cuida delas. O desamparado ama seu protetor, aspecto vai mais longe do que a simples preser-
pois sua vida depende dele; o filho ama os pais, vação. É a atitude que infunde no filho o amor
pois precisa deles. Só no amor aos que não à vida, que lhe dá o sentimento de ser bom viver,
servem a uma finalidade começa o amor a des- de ser bom ser um menino ou uma menina, de
dobrar-se. De modo significativo, no Velho ser bom estar nesta terra! Estes dois aspectos
Testamento, o objeto central do amor humano é do amor materno expressam-se muito sucinta-
o pobre, o estrangeiro, a viuva, o órfão, e por mente na história Bíblica da criação. Deus
fim o inimigo nacional, o egípcio e o edomita. criou o mundo e o homem. Isto corresponde
ao simples cuidado e à afirmação da existência.
Tendo compaixão pelo desamparado, o homem Mas Deus vai além desse requisito mínimo. Cada
começa a desenvolver o amor por seu irmão; e dia, depois que a natureza — e o homem — são
em seu amor por si mesmo ama também o que criados, Deus diz: "É bom". O amor materno,
necessita de auxílio, o frágil, o inseguro ser hu- neste segundo passo, faz o filho sentir: é bom
mano. A compaixão envolve o elemento de conhe- ter nascido. Instila na criança o amor pela vida
cimento e de identificação. "Conheceis o coração o não só o desejo de permanecer vivo. A mesma
do estrangeiro — diz o Velho Testamento — ideia pode ser expressa em outro simbolismo Bí-
pois fostes estrangeiros na terra do Egito;... blico. A terra prometida (a terra é sempre um
portanto, amai o estrangeiro!" (A mesma ideia símbolo materno) é descrita como aquela em q\ie
foi expressa por Hermann Cohen em seu livro "corre leite e mel". O leite é o símbolo do pri-
Beligion der Vernnnft aus den Quellen dês Ju- meiro aspecto do amor, o do cuidado e afirma-
dentiims, 2.a edição, J. Kaufmann Verlag, Prank- ção. O mel simboliza a doçura da vida, o amor
por ela e a felicidade de estar vivo. Muitas mães
furt sobre o Meno, 1929, pag. 168 seg.). são capazes de dar "leite*, mas só a minoria o
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é também de dar "mel". A fim de ser capaz de mente humanos responsáveis por esse tipo de
dar mel, a mãe deve não só ser uma "boa mãe", amor materno. Um deles pode ser achado no
mas ainda uma pessoa feliz — e este alvo não é elemento narcisista do amor de mãe. Visto como
alcançado por muitas. O efeito sobre o filho a criança é ainda considerada parte da própria
dificilmente poderá ser exagerado. O amor da mãe, o amor e a ufania desta podem ser uma
mãe pela vida é tão contagioso quanto o é a sua satisfação de seu narcisismo. Outra motivação
ansiedade. Ambas as atitudes têm profundo pode ser encontrada no desejo da mãe de poder,
efeito sobre toda a personalidade do filho; pode- ou possessão. A criança, por ser desamparada
se, em verdade, distinguir, entre crianças — e e inteiramente submetida à sua vontade, é um
adultos —, aqueles que só receberam "leite" e objeto natural de satisfação para uma miúher
aqueles que tiveram "leite e mel". dominadora e possessiva.
Em contraste com o amor fraterno e o amor Embora frequentes, tais motivações são pro-
erótico, que são amor entre iguais, a relação de vavelmente menos importantes e menos universais
mãe e filho é, por sua própria natureza, de do que a que pode ser chamada necessidade de
desigualdade; nela, um necessita de toda a ajuda, transcendência. Esta é uma das necessidades
o outro a dá. Por esse caráter altruísta, abne- mais básicas do homem, com raiz no fato de sua
gado, é que o amor de mãe tem sido considerado consciência de si mesmo, no fato de não se satis-
a mais alta espécie de amor, o mais sagrado de fazer com o papel de criatura, de não poder
todos os laços emocionais. Parece, porém, que aceitar-se como um dado lançado do copo. Ele
a concretização real do amor materno não está necessita sentir-se como o criador, como alguém
no amor da mãe pela criancinha, mas em seu que transcende o papel passivo de ser criado.
amor ao filho que cresce. De fato, a vasta Há muitos meios de realizar essa satisfação de
maioria das mães compõe-se de mães amorosas criação; o mais natural e mais fácil de efetuar
enquanto o filho é pequenino e ainda completa- é o cuidado e o amor da mãe por sua criatura.
mente dependente delas. A maioria das mulhe- Ela se transcende na criança, seu amor por ela
res quer filhos, sente-se feliz com o recém-nas- dá à sua vida sentido e significação. (Na pró-
cido, ansiosa em seu cuidado por ele. Isto é pria incapacidade do ser masculino para satis-
assim, apesar do fato de que elas nada "recebem" fazer essa necessidade de transcendência por meio
do filho em retribuição, à exceção de um sorriso da criação de filhos está sua insistência em
ou uma expressão de satisfação no rosto. Pa- transcender-se pela criação de coisas e ideias de
rece que essa atitude de amor enraiza-se em parte feitura humana.)
num equipamento instintivo que se encontra entre O filho, porém, deve crescer. Deve sair do
os animais, como no ente humano feminino. Seja ventre da mãe, do seio da mãe; deve acabar por
qual for, entretanto, o peso desse fator instin- tornar-se um ente humano completamente sepa-
tivo, também há fatôres psicológicos especïfica- rado. A própria essência do amor materno é
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cuidar do crescimento do filho, e isso significa
querer o filho separado dela mesma. Aqui está c) Amor erótico
a diferença básica em relação ao amor erótico.
No amor erótico, duas pessoas que eram separadas O amor fraterno é amor entre iguais; o
tornam-se uma. No amor materno, duas pessoas amor materno é amor pelo desamparado. Dife-
que eram uma tornam-se separadas. A mãe não rentes embora um do outro, têm em comum o fato
só deve tolerar como deve desejar e ajudar a de, por sua própria natureza, não se restringirem
separação do filho. Só nessa etapa é que o amor a uma só pessoa. Se amo meu irmão, amo todos
materno representa uma tarefa tão difícil que os meus irmãos; se amo meu filho, amo todos os
requer abnegação, a capacidade de dar tudo e meus filhos; mais ainda: além disso, amo todos
nada querer senão a felicidade do ejite amado. os filhos, todos os que necessitem de minha
É também nessa etapa que muitas mães falham ajuda. Em contraste com esses dois tipos de
em sua tarefa de amor materno. A mulher nar- amor, o amor erótico é o anseio de fusão com-
cisista, dominadora, possessiva pode conseguir pleta, de união com uma outra pessoa. É, por
ser mãe "amorosa" enquanto o filho é pequenino. sua própria natureza, exclusiva e não universal;
Só a mulher realmente amorosa, a que é mais é também, talvez, a mais enganosa forma de
feliz em dar do que em receber, firmemente ali- amor que existe.
cerçada em sua própria existência, só esta con- Antes de tudo, confunde-se ele muitas vezes
segue ser mãe amorosa quando o filho se acha no com a experiência explosiva de "cair" enamora-
processo da separação. do, o súbito colapso das barreiras que até certo
O amor materno pelo filho que cresce, o amor momento existiam entre dois estranhos. Mas,
que nada quer para si, talvez seja a mais difícil como já antes apontamos, esta experiência de
forma de amor a realizar, tanto mais enganadora súbita intimidade é, por sua própria natureza,
em razão da facilidade com que a mãe pode de vida curta. Depois que o estranho se tornou
amar o filho pequenino. Justamente, porém, em pessoa intimamente conhecida, não há mais b^r-
vista de tal dificuldade é que â mulher-somente reiras a superar, não há mais proximidade súbita
pode ser mãe em verdade amorosa se puder a ser realizada. A pessoa "amada" fica sendo
amar; se for capaz de amar seu marido, outras tão bem conhecida como a gente mesma. Ou
crianças, estranhos, todos os seres humanos. Â talvez seja melhor dizer: tão pouco conhecida.
mulher que não for capaz de amar nesse sentido Se houvesse mais profundidade na experiência
poderá ser mãe afetuosa enquanto o filho estiver da outra pessoa, se se pudesse experimentar a
pequeno, mas não poderá ser mãe amorosa, pois infinidade de sua personalidade, a outra pessoa
a prova disto é a boa vontade em suportar a nunca seria tão familiar — e o milagre de
separação — e, mesmo depois da separação, con- superar as barreiras poderia ocorrer de novo a
tinuar amando. cada dia. Mas, para a maioria, a própria pessoa,
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assim como as outras, é logo explorada e logo dão, pela vontade de conquistar ou ser conquis-
exaurida. Para a maioria, a intimidade se esta- tado, pela vaidade, pelo gosto de ferir e mesmo
belece antes de tudo pelo contacto sexual. Desde destruir, assim como pode ser estimulado pelo
que primeiramente se experimente a separativi- amor. Parece que o desejo sexual pode ser
dade da outra pessoa como separatividade física, misturado facilmente a qualquer emoção forte,
a união física significa a superação da separação. nela encontrando incitamento; e o amor é apenas
Além disso, há outros fatores que, para uma dessas emoções. Por estar o desejo sexual
muitos, denotam a superação da separação. emparelhado na mente de muitos com a ideia de
Falar da própria vida pessoal, das próprias es- amor, são eles com facilidade levados à má
peranças e ansiedades, mostrar-se nos seus aspec- t-onclusão de que amam um ao outro quando se
tos infantis ou pueris, estabelecer um interesse querem um ao outro fisicamente. O amor pode
comum em face do mundo — tudo isso é tomado inspirar o desejo de união sexual; neste caso,
como superação da separação. Mesmo mostrar falta à relação física a avidez, a vontade de
cólera, ódio, falta completa de inibição é tomado conquistar ou ser conquistado, mas mistura-se
por intimidade, e isso pode explicar a atração nela a ternura. Se o desejo de união física não
pervertida que casais muitas vezes sentem um for estimulado pelo amor, se o amor erótico
pelo outro, só parecendo íntíjmos quando se também não for amor fraterno, nunca levará à
achem na cama ou quando dêem expansão a seu união mais do que num sentido orgíaco e transi-
ódio e raiva mútuos. Todos esses tipos de proxi- tório. A atração sexual cria, no momento, a
midade, entretanto, tendem a reduzir-se cada vez ilusão de união, mas, sem amor, essa "união"
mais com o correr do tempo. A consequência é deixa os estranhos tão afastados quanto antes se
buscar-se amor em outra pessoa, em novo es- achavam; muitas vezes, faz com que se enver-
tranho. E de novo o estranho se transforma gonhem um do outro, ou mesmo faz com que
em pessoa "íntima", de novo a experiência de mutuamente se odeiem, pois, partida a ilusão,
cair enamorado é jubilosa e intensa, e de novo, sentem sua estranheza ainda mais acentua clamen-
vagarosamente, vai perdendo intensidade, para te do que antes. A ternura de modo algum é,
terminar no desejo de nova conquista novo amor como acreditava Freud, uma sublimação do ins-
— sempre com a ilusão de que o novo amor será tinto sexual; é o produto direto do amor fraterno
diferente dos anteriores. Essas ilusões são gran- e existe tanto nas formas físicas do amor quanto
demente incentivadas pelo caráter enganador do nas não físicas.
desejo sexual.
No amor erótico há uma exclusividade que
O desejo sexual objetiva a fusão — e não falta ao amor fraterno e ao materno. Esse
é, de modo algum, apenas um apetite físico, o caráter exclusivo do amor erótico permite um
alívio de uma tensão dolorosa. Mas o desejo se- pouco mais de debate. Frequentemente a exclusi-
xual pode ser estimulado pela ansiedade da soli- vidade do amor erótico é mal interpretada como
80 ERICH FROMM
A A R T E DE A M A R 81
Assim, ambas as concepções, a do amor eró- Educação Cristã, Filadélfia, 1928, Cap. 7, par.
10 como atração completamente individual, 4, pag. 622). Freud fala do amor próprio em
liça, entre duas pessoas específicas, e a outra termos psiquiátricos mas, não obstante, seu jiúga-
inião de que o amor erótico apenas é um ato mento de valor é o mesmo de Calvino. Para ele,
vontade, são verdadeiras; ou, como se pode arnor próprio é idêntico a narcisismo, a volta da
ser mais adequadamente, a verdade não é esta libido para a própria pessoa. O narcisismo é
m aquela. Eis porque a ideia de que uma a mais antiga etapa do desenvolvimento humano
lação pode ser facilmente dissolvida se não se e a pessoa que, mais tarde na vida, retorna à
7e sucesso nela é tão errónea como a ideia de etapa narcisista, é incapaz de amar; no caso
e sob circunstância alguma deva a relação ser extremado, é louco. Freud considera que o amor
solvida. é a manifestação da libido e que a libido ou se
volta para os outros — amor —, ou se volta
d) Amor próprio (*) para a própria pessoa — amor próprio. Amor
e amor próprio são, assim, mutuamente exclusi-
Embora não haja objeções à aplicação do vos, no sentido de que, quanto mais houver de
aceito de amor a vários objetos, é crença das um, menos haverá do outro. Se o amor próprio
lis espalhadas a de que, se é virtuoso amar os é mau, conclui-se que a abnegação é virtuosa.
tros, é pecaminoso amar a si mesmo. Admite- Suscitam-se estas questões: Sustenta a obser-
que, no grau em que me amo a mim mesmo, vação psicológica a tese de haver uma contra-
o amo os outros, que o amor próprio é o dição básica entre o amor por si mesmo e o amor
ismo que egoismo. Essa concepção recua longe pêlos outros? É o amor por si próprio o mesmo
pensamento ocidental. Calvino fala do amor fenómeno que o egoismo, ou são opostos? Além
óprio como "uma peste". (João Calvino, do mais, é o egoismo do homem moderno real-
stitutes of the Christian Religion, tradução mente uma preocupação por si mesmo como
ïlesa de J. Albau, Comissão Presbiteriana de indivíduo, com todas as suas potencialidades
intelectuais, emocionais e sensoriais? Não se
(*) Paul Tillich, numa crítica de The Sane Society, em Pas- tornou "ele" um apêndice de seu papel socio-
il Paychology, de setembro de 1955, sugeriu que melhor seria econômico? Ê seu egoismo idêntico ao amor
.ndonar a expressão ambígua "amor próprio" e substitui-la por
irmação natural de si" ou "auto-aceitação paradoxal". Por próprio^ ou não será causado pela própria falia
ito que encare os méritos desta sugestão, não posso concordar
i ele em tal ponto. Na expressão "amor próprio" o elemento
deste?
adoxal do amor de si mesmo acha-se mais claramente contido. Antes de começarmos a discutir o aspecto
3ressa-se o fato de ser o amor uma atitude que é a mesma
a com todos os objetos, incluindo eu próprio. Também não s«
psicológico do egoismo e do amor próprio, deve
e esquecer que a expressão "amor próprio", no sentido em que ser frisado o erro lógico da noção de que o amor
ti é usada, tem uma história. A Bíblia fala de amor próprio pêlos outros e o amor por si mesmo mutuamente
indo manda: "ama teu próximo como a ti mesmo", e Meister
chart fala de amor próprio no mesmíssimo sentido. se excluam. Se é uma virtude amar o meu

ERICH PEOMM A A R T E DE A M A R 85
próximo, como um ser humano, deve ser uma pessoa amada, enraizado na própria capacidade
virtude — e não um vício — amar a mim mesmo, de amar que alguém tem.
pois também sou um ser humano. Não existe Amar alguém é a atualização e a concentra-
conceito de homem em que eu próprio não esteja ção da força de amar. A afirmação básica con-
incluído. TJma doutrina que proclame tal ex- tida no amor dirige-se para a pessoa amada como
clusão demonstra-se intrinsecamente contraditó- uma encarnação de qualidades essencialmente
ria. A ideia expressa no Bíblico "ama teu humanas. Amar uma pessoa implica amar o
próximo como a ti mesmo" implica que o res- homem como tal. A espécie de "divisão de tra-
peito pela própria integridade e singularidade balho", como a chama William James, pela qual.
de alguém, o amor e a compreensão de seu alguém ama sua família mas não tem sentimentos
próprio ser, não se podem separar do respeito, pelo " estranho", é um sinal de incapacidade
do amor e da compreensão para com outro indi- básica de amor, O amor ao homem não é, como
víduo. O amor por meu próprio ser liga-se inse- frequentemente se supõe, uma abstração que
paravelmente ao amor por qualquer outro ser. acompanhe o amor a uma pessoa específica, mas
Chegamos agora às premissas psicológicas é sua premissa, embora geneticamente se adquira
básicas sobre que se edificam as conclusões de amando indivíduos específicos.
nossa argumentação. Em geral, essas premissas Daí se segue que meu próprio ser deve
são as seguintes: não só os outros, mas nós mes- tornar-se tanto objeto de meu amor quanto outra
mos, somos o "objeto" de nossos sentimentos e pessoa. A afirmação da vida própria de alguém,
atitudes; as atitudes para com os outros e para de sua felicidade, crescimento, liberdade, enraíza-
conosco mesmos, longe de serem contraditórias, se na sua capacidade de amar, isto é, no cuidado,
são basicamente conjuntivas. Com referência ao respeito, responsabilidade e conhecimento. Se
problema em discussão, isto significa: o amor um indivíduo é capaz de amar produtivamente,
aos outros e o amor a nós mesmos não são alter- também ama a si mesmo; se só puder amar os
nativas. Ao contrário, a atitude de amor para outros, não pode amar, em absoluto.
consigo mesmo é encontrada em todos aqueles Admitido que o amor por si mesmo e pêlos
capazes de amar aos outros. O amor, em prinpí- outros, em princípio, é conjuntivo, como expli-
pio, é indivisível até onde se trata da conexão caremos o egoismo, que evidentemente exclui
vntre os "òbjetotf* e o próprio ser de alguém. qualquer preocupação genuína pêlos outros? A
O amor genuíno é uma expressão de produtivi- pessoa egoísta só se interessa por si mesma, tudo
dade e implica cuidado, respeito, responsabili- quer para si? não sente prazer em dar, mas só
dade* e conhecimento. Não é um "afeto", no em tomar. O mundo exterior é encarado apenas
sentido de ser afetado por alguém, mas um es- do ponto de vista daquilo que ela pode extrair
forço ativo pelo crescimento e felicidade da dele; falta-lhe interesse pelas necessidades

86 ERÏCH FBOMM A A R T E D E A M A R 87
ilheias, respeito por sua dignidade e integridade. pada, não por amar o filho demais, mas por ter
STão pode ela ver senão a si mesma; julga tudo de compensar sua falta de capacidade para de
> todos pela utilidade que lhe possam ter; é
tàsicamente incapaz de amar. Não prova isto qualquer modo amá-lo.
[ue a preocupação pêlos outros e a preocupação Esta teoria da natureza do egoismo origina-
K>r si mesmo sejam alternativas inevitáveis ? se da experiência psicanalítica com a "abnega-
Seria assim, se o egoismo e o amor próprio fôs- ção" neurótica, sintoma de neurose observado em
em idênticos. Mas esta concepção é o próprio número não pequeno de pessoas que normalmente
ngano que tem levado a tantas conclusões erro- são perturbadas, não por esse sintoma, mas por
eas relativas a nosso problema. O egoísmo e outros a ele ligados, como a depressão, o cansaço,
amor próprio, longe de serem idênticos, são a incapacidade de trabalhar, o fracasso nas rela-
fetivãmente opostos. A pessoa egoista não ama ções amorosas e assim por diante. Não só a
si mesma demais, mas demasiado pouco; de abnegação deixa de ser sentida como um "sin-
ato, odeia-se. Esta falta de efeição e cuidado toma"; muitas vezes, é o único traço redentor
or si mesma, que apenas é expressão de sua de caráter de que tais pessoas se orgulham. A
ilta de produtividade, deixa-a vazia e frustrada. pessoa "abnegada" "nada quer para si"; "vive
necessariamente infeliz e ansiosamente preocu- só para os outros", orgulha-se de não se consi-
ada em furtar da vida as satisfações que a si derar importante. Fica perplexa por verificar
rópria impede de atingir. Parece cuidar de- que, apesar de sua falta de egoismo, é infeliz,
tasiado de si mesma, mas de fato apenas faz que suas relações com oa que lhe são mais che-
ma tentativa mal sucedida de encobrir e com- gados não se mostram satisfatórias. O trabalho
3nsar seu fracasso em cuidar de seu ser real, analítico vem mostrar que sua abnegação não é
reud sustenta que a pessoa egoista é narcisista, algo separado de seus outros sintomas, mas um
uno se tivesse retirado seu amor dos outros, deles, muitas vezes, de fato, o mais importante;
)ltando-o para si própria. Ê verdade que as que a pessoa está paralisada em sua capacidade
assoas egoístas são incapazes de amar os outros, de amar ou de gozar de qualquer coisa; que está
as também não são capazes de amar a si mes- invadida pela hostilidade para com a vida e que,
as.
por trás da fachada de abnegação, esconde-se
É mais fácil compreender o egoismo compa- uma sutil, mas não menos intensa, centralização
ndo-o com a ávida preocupação pêlos outros, em si mesma. Tal pessoa só poderá ser curada
mo a vemos, por exemplo, na mãe super- se sua abnegação for também interpretada como
lícita. Se, em consciência, ela acredita gostar um sintoma juntamente com os outros, de modo
rticularmente do filho, na verdade tem uma que sua falta de produtividade, que está na raiz
stilidade profundamente reprimida para com tanto de sua abnegação como na de seus outros
Dbjeto de sua preocupação. Vive ultra-preocu- incómodos, possa ser corrigida.
EKICH FROMM
A A R T E DEJ A M A R 89
A natureza da abnegação torna-se especial- exclusão de ti, amá-los-ás como uma só pessoa,
mente evidente em seu efeito sobre os outros e, e essa pessoa é tanto Deus quanto homem. Assim,
com frequência maior em nossa cultura, no efeito grande e reto é aquele que, amando-se, ama a
que a mãe "abnegada" tem sobre os filhos. Ela todos igualmente". (Meister Eckhart, tradução
acredita que, por sua abnegação, seus filhos inglesa de K. B. Blakeny, Londres, Watkins,
experimentarão o que significa serem amados e 1955).
aprenderão, por sua vez,. o que significa amar.
O efeito de sua abnegação, entretanto, não cor- e) Amor de Deus.
responde em absoluto a tais expectativas. Os Dissemos acima que a base de nossa necessi-
filhos não mostram a felicidade de pessoas con- dade de amar reside na experiência da separação
vencidas de que são amadas; vivem preocupados, e na necessidade resultante de superar a ansie-
tensos, temerosos da desaprovação da mãe, dade da separação pela experiência de união.
ansiosos por corresponder a suas expectativas. A forma religiosa de amor, que se chama amor
Comumente são afetados pela oculta hostilidade de Deus, não é diferente, psicologicamente fa-
da mãe para com a vida, que mais sentem do lando. Surge da necessidade de superar a sepa-
que reconhecem claramente, e acabam por ficar
imbuídos dela. De igual modo, o efeito da mãe ração e realizar, a união. De fato, o amor de
"abnegada" não é demasiado diferente do da Deus tem muitas qualidades e aspectos diferentes,
egoista; na verdade, muitas vezes é pior, porque como o amor do homem — e em grande extensão
a abnegação da mãe impede os filhos de criticá- encontramos as mesmas diferenças.
la. Ficam com a obrigação de não a decepciona- Em todas as religiões teístas, sejam politeís-
rem; são ensinados, sob a máscara da virtude, tais ou monoteístas, Deus representa o mais alto
a não gostar da vida. Quem tem oportunidade valor, o bem mais desej ável. Eis porque a
de estudar o efeito de uma mãe com genuíno significação específica de Deus depende de qual
amor próprio pode ver que nada é mais indicado seja, para uma pessoa, esse mais desejável bem.
para dar a uma criança a experiência do que A compreensão do conceito de Deus, portanto,
são o amor, a alegria e a felicidade, do que ser deve começar com uma análise da estrutura do
amada por uma mãe que ame a si mesma. caráter da pessoa que o adora.
Estas ideias sobre o amor próprio não pode- O desenvolvimento da raça humana, até onde
riam ser melhor sintetizadas do que citando a temos algum conhecimento dela, pode ser carac-
respeito Meister Eckhart: "Se te amas, amas terizado como a ascensão do homem a emergir
a todos os demais como a ti mesmo. Enquanto da natureza, da mãe, dos laços de sangue e solo.
amares outra pessoa menos do que amas a ti No começo da história humana, o homem, embora
mesmo, não conseguirás realmente amar a ti lançado fora da unidade original com a natureza,
mesmo, mas se a todos amares igualmente, sem ainda se aferra a esses elos primários. Sente-se

90 E R I C H F R O M M A A R T E DE A M A R 91
ainda identificado com o mundo dos animais e da r e j eição que receberam de muitos círculos
das árvores e tenta encontrar a unidade perma- académicos, pouca dúvida pode existir quanto
necendo unido ao mundo natural. Muitas reli- a ter havido uma fase matriarcal da religião a
giões primitivas dão testemunho dessa etapa de preceder a patriarcal, pelo menos em muitas cul-
desenvolvimento. Um animal é transformado turas. Na fase matriarcal, o ser mais elevado
em totem; usam-se máscaras de animais nos atos é a mãe. Ela é a deusa, é também a autoridade
religiosos mais solenes e na guerra; adora-se um na família e na sociedade. A fim de entender a
animal como Deus. Numa etapa ulterior de essência da religião matriarcal, basta-nos lembrar
desenvolvimento, quando a capacidade humana se o que ficou dito acerca da essência do amor
desenvolve até ao ponto de habilidade artesanal materno. O amor de mãe é incondicional, tudo
e artística, quando o homem não mais depende protege, tudo envolve; por ser incondicional, não
exclusivamente das dádivas da natureza — do pode também ser controlado ou adquirido. Sua
fruto que acha e do animal que mata — trans- presença dá à pessoa amada um sentimento de
forma ele num deus o produto de suas próprias bemaventurança; sua ausência produz um senti-
mãos. Esta é a etapa da adoração de ídolos mento de abandono e de extremo desespero.
feitos de barro, prata ou ouro. O homem projeta Visto como a mãe ama os filhos por serem seus
seus próprios poderes e capacidades nas coisas filhos, e não por serem "bons" e obedientes, nem
que faz e assim, de modo alienado, adora sua por cumprirem seus desejos e ordens, o amor de
potência, suas posses. Num estágio ainda pos- mãe se baseia na igualdade. Todos os homens
terior, dá a seus deuses a forma de seres huma- são iguais, porque são todos filhos de uma só
nos. Parece que isto só pode ocorrer quando ele mãe, por serem todos filhos da Mãe Terra.
se torna ainda mais cônscio de si mesmo e A etapa seguinte da evolução humana, única
quando descobre o homem como a mais elevada de que temos completo conhecimento sem necessi-
e digna "coisa" existente no mundo. Nesta fase dade de confiar em inferências e reconstruções,
do culto do deus antropomórfico, encontramos é a fase "patriarcal. Nessa fase, a mãe é destro-
um desenvolvimento em duas dimensões. Uma nada de sua posição excelsa e o pai se torna o
refere-se à natureza feminina ou masculina dos Ente Supremo, na religião como na sociedade.
deuses, a outra ao grau de maturidade que o A natureza do amor paterno é a de fazer exi-
homem atingiu e que determina a natureza de gências, estabelecer princípios e leis; seu amor
seus deuses e a natureza de seu amor por eles. pelo filho depende da obediência deste àquelas
Falemos primeiramente do desenvolvimento exigências. Ele gosta mais do filho que mais se
das religiões de centralização materna para as lhe assemelhe, que lhe seja mais obediente e mais
de centralização paterna. De acordo com as preparado se mostre para tornar-se seu sucessor,
grandes e decisivas descobertas de Bachofen e como quem lhe deve herdar os bens. (O desen-
Morgan nos meados do século XIX e a despeito volvimento da sociedade patriarcal caminha a

92 E R I C H F R O M M A A R T E D E A M A R 93
par do desenvolvimento da propriedade privada.) é ter fé (como diz o Salmista: "Tu me confiaste
Em consequência, a sociedade patriarcal é hierár- aos seios de minha mãe" — Salm., 22:10), e
quica; a igualdade dos irmãos abriria caminho transformar-me na criança desamparada e sem
à competição, à luta entre eles. Quer pensemos forças. Mas é peculiar à fé luterana ter sido a
nas culturas indiana, egípcia ou grega, ou nas figura da mãe eliminada do quadro à mostra, e
religiões judáico-cristã ou islamita, estaremos em substituída pela do pai; em vez da certeza de
meio de um mundo patriarcal, com seus deuses ser amado pela mãe, o aspecto culminante tornou-
masculinos, sobre os quais reina um deus chefe, se a dúvida intensa, esperando contra a espe-
ou em que todos os deuses foram eliminados com rança pelo amor incondicional do pai.
exceção do Único, o Deus. Entretanto, como o
desejo do amor materno não pode ser erradicado Tive de discutir esta diferença entre os ele-
dos corações humanos, não é de surpreender que mentos matriareais e patriarcais na religião a
a figura da mãe amorosa jamais possa ser plena- fim de mostrar que o caráter do amor de Deus
mente tirada do panteão. Na religião judaica, depende do peso respectivo dos aspectos matri-
os aspectos maternos de Deus são reintroduzidos arcais ou patriarcais da religião. O aspecto
especialmente nas várias correntes de misticismo. patriarcal faz-me amar a Deus como a um pai;
Na religião Católica, a Mãe é simbolizada pela imagino que ele é justo e estrito, que pune e
Igreja e pela Virgem. Mesmo no protestantismo, recompensa; e que poderá eleger-me seu filho
a figura da Mãe não foi inteiramente arrancada, favorito, como Deus elegeu Abraão-Israel, como
embora permaneça oculta. Lutero estabeleceu, Isaac escolheu Jacob, como Deus escolhe sua
como seu princípio mais importante, que nada nação favorita. No aspecto matriarcal da reli-
que o homem faça pode obter o amor de Deus. gião, amo a Deus como a uma mãe que tudo
O amor de Deus é Graça, e a atitude religiosa abraça. Tenho fé em seu amor; ela me há de
é ter fé nessa graça, fazer-se pequenino e desam- amar, não importa que eu seja pobre e impo-
parado ; nenhuma boa ação pode influenciar tente, não importa que eu tenha pecado; não
Deus, ou fazer com que Deus nos ame segundo preferirá a mim qualquer de seus outros filhos;
postula a doutrina católica. Podemos verificar aconteça o que acontecer, redimir-me-á, salvar-
aqui que a doutrina católica das boas obras é me-á, perdoar-me-á. Desnecessário é dizer que
parte do quadro patriarcal: posso alcançar o meu amor a Deus e o amor de Deus por mim
amor paterno pela obediência, pelo cumprimento não podem ser separados. Se Deus é um pai,
de suas exigências. A doutrina luterana, de outra ama-me como filho e amo-o como pai. Se Deus
parte, a despeito de seu caráter manifestamente é mãe, o seu e o meu amor são determinados por
patriarcal, leva consigo um elemento matriarcal esse «fato.
oculto. O amor materno não pode ser adquirido; Esta diferença entre os aspectos materno e
ou existe, ou não existe; tudo quanto posso fazer paterno do amor de Deus é, porém, apenas um

94 ERICH FROMM A A R T E DE 1 A M A R 95
fator na determinação da natureza desse amor; obrigado por seu próprio princípio, o da justiça,
o outro fator é o grau de maturidade alcançado e sobre tal base Deus pode ceder ao pedido de
pelo indivíduo e, daí, em seu conceito de Deus Abraão para que poupe Sodoma caso ali haja
e em seu amor a Deus. pelo menos dez homens justos. O desenvolvimento,
Visto a evolução da raça humana haver-se entretanto, vai mais além do que a transformação
desviado de uma estrutura da sociedade, assim de Deus da figura de chefe tribal despótico na
como da religião, centralizada na mãe, para uma de pai amoroso, pai que se restringe a si mesmo
centralizada no pai, podemos acompanhar o pêlos princípios que ele próprio postulou; marcha
desenvolvimento de um amor em maturação na direção de transformar Deus, da figura de
principalmente no desenvolvimento da religião pai, em símbolo de seus princípios, os da justiça,
patriarcal. (Isto é especialmente certo com re- verdade e amor. Deus é verdade, Deus é justiça.
lação às religiões monoteístas do Ocidente. Nas Nesse desenvolvimento, Deus deixa de ser uma
religiões indianas, a figura da mãe retém boa pessoa, um homem, um pai; torna-se o símbolo
parte de influência, como por exemplo na deusa do princípio de unidade por trás da multiplici-
Kali; no budismo e no taoismo, o conceito de um dade dos fenómenos, da visão da flor que crescerá
Deus — ou uma Deusa — não tem significação da semente espiritual dentro do homem. Deus
essencial, quando não é de todo eliminado.) No não pode ter nome. Um nome sempre denota
começo daquele desenvolvimento, encontramos um uma coisa, ou uma pessoa, algo finito. Como
Deus ciumento, despótico, que considera o ho- pode ter Deus um nome, se não é uma pessoa,
mem, por ele criado, como propriedade sua e •nem uma coisa?
tem o direito de fazer com ele o que lhe aprouver. O mais impressionante incidente desta mu-
Esta é a fase da religião em que Deus expulsa o dança está na história Bíblica da revelação de
homem do paraíso, para que ele não coma da Deus a Moisés. Quando Moisés lhe diz que os
árvore do conhecimento e assim não fique igual hebreus não acreditarão que Deus o, enviou, a
a Deus; é a fase em que Deus decide destruir a menos que ele possa dizer-lhes o nome de Deus
raça humana pelo dilúvio, porque ninguém lhe (e como poderiam adoradores de ídolos com-
agrada, com exeeção do filho favorito, Noé; é preender um Deus sem nome, uma vez que ter
a fase em que Deus exige de Abraão que mate nome faz parte da própria essência de um ídolo?),
seu único e amado filho Isaac, para provar seu Deus faz uma concessão. Diz a Moisés que seu
amor a Deus através do ato da extrema obediên- nome é "Eu-sou-quem-sou". "Eu-sou é meu
cia. Mas, simultaneamente, nova fase começa; nome". O "Eu-sou" significa que Deus não é
Deus faz uma aliança com Noé, em que promete finito, nem uma pessoa, nem um "ser". A tra-
nunca voltar a destruir a raça humana, aliança dução mais adequada da sentença seria: dize-
pela qual ele mesmo se restringe. Não só é Ihes que "meu nome é Inominado". A proibição
obrigado por suas promessas, como também é de fazer qualquer imagem de Deus, de pronunciar

A A R T E DE A M A R 97
96 ERICH FROMM
u nome em vão, ou mesmo de pronunciar seu objetividade de verificar minhas limitações como
>me de qualquer forma, visa o mesmo alvo, o ser humano, minha ignorância, meu desamparo.
s libertar o homem da ideia de que Deus é um Ainda proclamo, como uma criança, que deve
d, de que é uma pessoa. No desenvolvimento haver um pai que me socorra, que me vigie, que
ológico subsequente, a ideia é levada mais me puna, um pai que goste de mim quando sou
Liante, no princípio de que não se deve sequer obediente, que se lisongeie com meu louvor e se
ir a Deus qualquer atributo positivo. Dizer encolerize com a minha desobediência;. Muito
le Deus é sábio, forte, bom, implica de novo evidentemente, a maioria das pessoas, em seu
r ele uma pessoa; o máximo que posso fazer desenvolvimento pessoal, não suplantou essa etapa
dizer o que Deus não é, apresentar atributos infantil; daí ser a crença em Deus, para a maio-
ïgativos, postular que ele não é limitado, nem ria, a crença num pai auxiliador, uma ilusão de
justo, nem mau. Quanto mais sei o que Deus criança. Apesar do fato de ter sido tal conceito
Io é, tanto mais conhecimento tenho de Deus. de religião superado por alguns dos mestres da
Hf. o conceito de Maimonides quanto aos atri- raça humana e por uma minoria de homens, é
itos negativos, no Gma aos Perplexos.) ele ainda a forma predominante de religião.
Acompanhar o amadurecimento da ideia do Considerando isso assim, a crítica da ideia
onoteismo em suas ulteriores consequências só de Deus, tal como Freud a expressou, é inteira-
)de levar a uma conclusão: não mencionar em mente correta. O erro, entretanto, está no fato
>soluto o nome de Deus, não falar acerca de de que ele ignorou o outro aspecto da religião
eus. Então, Deus se torna o que potencial- monoteísta, seu verdadeiro núcleo, cuja lógica
ente é numa teologia monoteísta, o Inominado, leva exatamente à negação de tal conceito de
n balbuciar inexprimível, que se refere à Deus. A pessoa verdadeiramente religiosa, se
lidade que alicerça o fenómeno universal, o segue a essência da ideia monoteísta, não pede
impo de toda a existência; Deus torna-se verda- coisa alguma, nada espera obter de Deus; não
ï, amor, justiça. Torna-se Eu, da mesma forma ama a Deus como um filho ama seu pai ou sua
le sou humano. mãe; adquiriu a humildade de sentir suas limita-
Com toda evidência, esta evolução do princí- ções até o grau de saber que nada sabe a respeito
LO antropomórfico para o puramente monoteísta de Deus. Deus torna-se para ela um símbolo em
LZ toda a diferença quanto à natureza do amor que o homem, numa etapa anterior de sua evolu-
ï Deus. O Deus de Abraão pode ser amado ou ção, expressou a totalidade daquilo por que o
mido como um pai, sendo às vezes o aspecto homçm luta, o reino do mundo espiritual, do
redominante a sua misericórdia, ou a sua cólera. amor, da verdade, da justiça. Tem fé nos prin-
ssim como Deus é o pai, eu sou o filho. Não cípios que "Deus" representa; pensa verdade,
nergi completamente do desejo autístico de vive amor e justiça e considera a sua vida inteira
lisciência e onipotência. Ainda não adquiri a como só valiosa enquanto lhe dá ocasião de

ERICH FBOMM A A R T E DE A M A R 99
alcançar um sempre mais amplo desdobramento ceito teísta e que, para mim, o conceito de Deus
de seus poderes humanos — como a única reali- é apenas um conceito historicamente condicionado,
dade que importa, como o único obj eto de em que o homem expressou sua experiência de
"preocupação última"; e acaba não falando a poderes mais altos, sua aspiração à verdade e à
respeito de Deus, nem mesmo mencionando seu unidade, em dado período histórico. Mas tam-
nome. Amar a Deus, se tal pessoa fosse usar bém acredito que as consequências do monoteísmo
esta expressão, significaria, então, ansiar pelo estrito e uma extrema preocupação não-teísta
atragimento da plena capacidade de amar, pela com a realidade espiritual são duas concepções
realização daquilo que "Deus" representa em que, diferentes embora, não precisam combater-
alguém. se mutuamente.
Deste ponto de vista, a consequência lógica Neste ponto, porém, surge outra dimensão
do pensamento monoteísta é a negação de qual- do problema do amor de Deus que deve ser
quer "teo-logia", de qualquer "conhecimento a discutida, a fim de sondarmos a complexidade
respeito de Deus". Contudo, permanece uma do problema. Refiro-me a uma diferença fun-
diferença entre essa concepção não-teológica ra- damental na atitude religiosa entre o Oriente
dical e um sistema não-teísta, como o que encon- (China e índia) e o Ocidente; esta diferença
tramos, por exemplo, no budismo primitivo ou pode ser expressa em termos de conceitos lógicos.
no taoismo. Desde Aristóteles, o mundo ocidental tem seguido
Em todos os sistemas teístas, mesmo num os princípios lógicos da filosofia aristotélica.
não-teológieo, místico, há a ideia da realidade do Esta lógica se baseia na lei da identidade, que
reino espiritual, como transcendendo o homem, afirma que A é A; na lei da contradição (A não
dando significação e validade aos poderes espiri- é não-A), e na lei do meio excluido (A não pode
tuais do homem e à sua luta pela salvação e pelo ser A e não-A, nem A nem não-A). Aristóteles
nascimento interior. Num sistema não-teísta, explica sua posição muito claramente na seguinte
não existe reino espiritual fora do homem, ou sentença: "É impossível para a mesma coisa ao
que o transcenda. O reino do amor, da razão e mesmo tempo pertencer e não pertencer à mesma
da justiça só existe como realidade porque, e coisa e ao mesmo respeito; e quaisquer outras
visto como, o homem foi capaz de desenvolver distinções que possamos acrescentar para enfren-
essas faculdades em si mesmo através de todo o tar objeções dialéticas devem ser acrescentadas.
processo de sua evolução. Sob este aspecto, não Este, pois, é o mais certo de todos os princí-
há sentido para a vida, a não ser o sentido que pios. .." £ Aristóteles, Metafísica,}.
o próprio homem lhe dá; o homem é extrema- Este axioma da lógica aristotélica imbuiu
mente só, a não ser quando ajuda outro. tão profundamente nossos hábitos de pensamento
Falando do amor de Deus, quero tornar claro que é considerado "natural" e evidente por si
que eu mesmo não penso em termos de um con- mesmo, ao passo que, de outro lado, a afirmação

100 E R I C H P R O M A ARTE DE A M A R 101


de que X é A e não-A parece ser insensata. toda existência. "Não compreendem — diz ele
(Naturalmente, a afirmação refere-se ao sujeito — que o Um-total, conflagrando-se em si mesmo,
X em um tempo dado, e não a X agora e a X é idêntico a si mesmo: harmonia em conflito,
mais tarde, ou a um aspecto de X posto em como no arco e na lira". (W. Capelle, Die
contradição com outro aspecto.) Vorsokratiker, Alfredo Kroener Verlag, Stut-
Em oposição à lógica aristotélica acha-se o tgart, 1953, pag. 134.) Ou, ainda mais clara-
que se poderia chamar lógica paradoxal, que mente: "Entramos no mesmo rio, e contudo não
admite que A e não-A não se excluem mutua- no mesmo; somos nós e não somos nós". (Ibid.,
mente como predicados de X. A lógica paradoxal pag. 132). Ou: "Um e o mesmo manifestam-se
predominou no pensamento indiano e chinês, na nas coisas como vivas e mortas, despertas e ador-
filosofia de Heráclito e mais tarde, sob o nome mecidas, jovens e velhas". (IbuZ./pag. 133).
de dialética, tornou-se a filosofia de Hegel e de Na filosofia de Laotsé, a mesma ideia se
Marx. O princípio geral da lógica paradoxal foi expressa de maneira mais poética. Um exemplo
claramente descrito por Lao-tsé: "As palavras característico do pensamento paradoxal taoista
que são estritamente verdadeiras parecem ser é a seguinte afirmação: "A gravidade é a raiz
paradoxais". (Cf. a edição inglesa, por F. Max da leveza; a quitetude, a norma do movimento".
Mueller, das obras de Lao-tsé, The Tão Teh (Mueller, ob. cit, pag. 69) Ou: "O Tão em seu
King, The Sacred Books of the East, Vol. 39, curso regular nada faz, e assim nada há que ele
Oxford, Londres, TJniversity Press, 1927, pag. não faça". (Ibid., pag. 79) Ou: "Minhas pa-
120.) E por Chuang-tzu: "O que é um, é um, lavras são muito fáceis de saber e muito fáceis
O que é não-um, também é um". Estas formula- de praticar; mas ninguém há no mundo capaz
ções da lógica paradoxal são positivas: é e não é. de sabê-las e capaz de praticá-las". (Ibid., pag.
Outra formulação é negativa: não é isto nem 112). No pensamento taoista, como no indiano
aquilo. A primeira expressão de pensamento é e no socrático, o mais alto passo a que o pensa-
encontrada no pensamento taoista, em Heráclito, mento pode levar é saber que não sabemos. "Sa-
e de novo na dialética hegeliana; a segunda for- ber e contudo (pensar) que não sabemos é o
mulação é frequente na filosofia indiana. mais alto (objetivo); não saber (e contudo pen-
Embora ultrapasse o âmbito deste livro dar sar) que sabemos é uma doença", (ttiá., pag.
mais detalhada descrição da diferença entre a 113) Consequência apenas desta filosofia é não
lógica aristotélica e a paradoxal, mencionarei poder ser nomeado o Deus mais alto. A última
alguns exemplos a fim de tornar o princípio mais realidade, o último Um não pode ser apreendido
compreensível. A lógica paradoxal no pensa- em palavras ou em pensamentos. Como diz
mento ocidental teve sua mais antiga expressão Lao-tsé: "O Tão que se pode trilhar não é o
filosófica na filosofia de Heráclito. Concebe Tão permanente e imutável. O nome que pode
ele o conflito entre os opostos como a base de ser nomeado não é o nome permanente e imu-
102 ERICH FROMM A A R T E DE A M A R 103
rei". (Ibid., pág. 47) Ou, em formulação di- percebe. O pensamento percebedor deve trans-
ante: "Olhamos para ele, e não o vemos, e cender-se, se quer atingir a realidade verdadeira.
aominamo-lo o "Uniforme". Ouvimo-lo, e não A oposição é uma categoria da mente do homem,
tuvimos, e denominamo-lo o "Inaudível". Ten- e não em si mesma um elemento da realidade.
nos apreendê-lo, e não o apanhamos, e deno- No Rig-Veda, o princípio é expresso desta forma:
namo-lo o "Sutü". Com estas três qualida- "Sou os dois, a força da vida e a vida material,
*, ele não pode ser feito objeto de descrição; os dois ao mesmo tempo". A consequência final
p isso, misturamo-las e obtemos o Um." (HM.f da ideia de que o pensamento só pode perceber
g. 57). E ainda outra formulação da mesma em contradições encontrou seguimento ainda mais
ia: "Quem conhece (o Tão) não (se preocupa drástico no pensamento vedântico, que postula
.) falar (a respeito dele); quem entretanto ser o pensamento — com toda a sua fina distin-
á pronto a) falar a respeito dele, não o co- ção — "apenas um horizonte mais sutil de igno-
ece". (Ilid., pág. 100.) rância, de fato o mais sutil de todos os enga-
A filosofia bramânica preocupava-se com a nadores recursos do maya" (Ibid., pag. 424.)
ação entre a multiplicidade (dos fenómenos) A lógica paradoxal tem significativa impor-
i unidade (brâmane). Mas a filosofia para- tância para o conceito de Deus. Como Deus
cal, nem na índia, nem na China, deve ser representa a realidade final, e como a mente
ifundida com um ponto de vista dualista. A humana percebe a realidade em contradições,
rmonia (unidade) consiste na posição confli- nenhuma positiva afirmação de Deus pode ser
ite de que ela é feita. "O pensamento bra- feita. Nos Vedantes, a ideia de um Deus onis-
nico centralizou-se desde o começo em torno ciente e onipotente é considerada a forma extre-
paradoxo dos antagonismos simultâneos — e ma da ignorância. (Cf. Zimmer, ibid., p. 424.)
itudo
f
— identidade das forças e formas ma- Vemos aqui a conexão com a inominabilidade
estas do mundo fenomenal..." (Philosophies do Tão, o nome sem nome do Deus que se revela
índia, H. R. Zimmer, Londres, Routledge, a Moisés e o "Nada absoluto" de Meister Eckhart.
>5.) O último poder no Universo, assim como O homem só pode conhecer a negação, nunca a
homem, transcende ao mesmo tempo a esfera posição da realidade última. "Embora o homem
ï conceitos e a dos sentidos. É, portanto, "nem não possa saber o que Deus é, mesmo assim ele
), nem assim". Mas, como nota Zimmer, "não pode estar sempre bem cônscio do que Deus não
antagonismo entre "real e irreal" nesta rea- é... Assim, satisfeita com nada, a mente clama
ição estritamente não-dualista". (I&iá.) Em pelo mais elevado de todos os bens". (Meister
L procura da unidade por trás da multiplici- Eckhart, em tradução inglesa de R. B. Blakney,
le, os pensadores bramãnicos chegaram à con- Harper & Brothers, Nova York, 1941, pag. 114).
são de que o par percebido de opostos reflete Para Meister Eckhart, "O Divino é uma nega-
mtureza não das coisas, mas da mente que os ção das negações, um desmentido dos desmenti-
ERICH PROMM A A R T E DE A M A R 105
dos... Toda criatura contém uma negação: uma reta, mas a ação reta. Encontramos. a mesma
nega o que é a outra". (Ilid., pag. 247. Cf. ênfase na religião judaica. Quase nunca houve
também a teologia negativa de Maimonides.) É um cisma sobre a crença na tradição judaica
apenas consequência ulterior torna-se Deus, para (a única exceção grande, a diferença entre fa-
Meister Eckhart, "o Nada absoluto", assim como riseus e saduceus, era essencialmente a de duas
a realidade última, para a Cabala, é o "En Sof", classes sociais opostas). A ênfase da religião
o Sem-Fim. judaica colocava-se (especialmente a partir do
Discuti a diferença entre a lógica aristotélica início de nossa era) no modo reto de viver, o
e a paradoxal a fim de preparar o campo para "Halacha" (tendo esta palavra, efetivamente, a
uma diferença importante no conceito do amor mesma significação do "Tão").
de Deus. Os mestres da lógica paradoxal dizem Na história moderna, o mesmo sentido se
que o homem só pode perceber a realidade em expressa no pensamento de Spinoza, Marx e
contradições e nunca podem perceber em pensa- Freud. Na filosofia de Spinoza, a ênfase des-
mento a realidade-unidade final, o próprio Um. via-se da reta crença para a reta conduta de
Isto leva á consequência de que não se busca vida. Marx expõe o mesmo princípio, quando
como alvo derradeiro encontrar a resposta em diz: "Os filósofos têm interpretado o mundo
pensamento. O pensamento só nos pode levar de maneiras diferentes: a tarefa é transfor-
ao conhecimento de não nos poder dar a última má-lo". A lógica paradoxal de Freud leva-o ao
resposta. O inundo do pensamento permanece processo da terapia psicanalítica, à experiência
presa do paradoxo. O único meio pelo qual o de alguém, sempre mais profunda.
mundo pode ser apreendido de forma final não Do ponto de vista da lógica paradoxal, a
está no pensamento, mas no ato, na experiência ênfase não se situa no pensamento, mas no ato.
da unidade. Assim, a lógica paradoxal leva à Esta atitude tem várias outras consequências.
conclusão de que o amor de Deus não é o co- Antes de tudo, leva à tolerância que encontramos
nhecimento de Deus em pensamento, nem o pen- no desenvolvimento religioso indiano e chinês.
\samento do amor de alguém a Deus, mas o ato Se o reto pensamento não é a verdade final, se
de experimentar a unidade com Deus. não é o caminho da salvação, então não há razão
Isto conduz à ênfase sobre o modo- reto de para combater os outros, aqueles cujo pensa-
viver. Tudo o que há na vida, toda ação pte- mento tenha chegado a formulações diferentes.
quena, e toda importante, devotam-se ao conhe- Esta tolerância vem belamente expressa na histó-
cimento de Deus, mas a um conhecimento não ria de diversos homens a que se pediu que des-
em reto pensamento, e sim em reta ação. Isto crevessem um elefante no escuro. TTm, tocan-
pode ser claramente visto nas religiões orientais. do-lhe a tromba, disse:-"este animal é como um
No bramanismo, assim como no budismo e no cano de agua"; outro, tocando-lhe a orelha, disse:
taoismo, a meta final da religião não é a crença "este animal assemelha-se a um leque"; um ter-
106 ERICH FROMM A A R T E DE A M A E 107
afeições, sendo o pai um princípio orientador indivíduo retém ern â, ao seu inconsciente, coino
]( do pensamento e da ação; nesta etapa, tem como Freud mostrou, todas as etapas, a partir da
motivo a necessidade de adquirir o louvor do criança desamparada. A questão está em ver
pai e evitar o seu descontentamento. Na etapa até que ponto ele cresceu. Uma coisa é certa:
da plena maturidade, liberta-se da pessoa da mãe a natureza de seu amor a Deus corresponde à
e da do pai como forças de proteção e de co- natureza de seu amor 10 homem; e, além disso,
mando; estabelece os princípios materno e pa- a real qualidade d« seu amor a Deus e ao homem
terno dentro de si. Torna-se o pai e a mãe de é muitas vezes inconsáente — encoberta e ra-
si mesma: é pai e mãe. Na história da raça cionalizada por um pensamento mais maduro
humana vemos — e podemos prever — o mesmo daquilo que seu amor t Mais ainda, o seu amor
desenvolvimento: do início do amor por Deus ao homem, embora direcamente plantado em suas
como a ligação desamparada a rima Deusa mãe, relações com sua família, é determinado, em úl-
e pela ligação obediente a um Deus paternal, tima análise, pela estrutura da sociedade em que
até ao estado amadurecido em que Deus deixa ele vive. Se a estrutura social é de submissão
de ser uma força exterior, em que o homem à autoridade — autoridade declarada, ou a auto-
incorpora a si mesmo os princípios de amor e ridade anónima do mercado e da opinião pública
justiça, em que se torna um com Deus, e em que — seu conceito de Deus deve ser infantil e
pode chegar ao ponto de só falar de Deus em afastado do conceito maduro, cujas sementes se
sentido poético e simbólico. vão encontrar na história da religião monoteísta.
Destas considerações segue-se que o amoi
por Deus não pode ser separado do amor pêlos
pais. Se uma pessoa não emerge da ligação
incestuosa com a mãe, o clã, a nação, se conserva
a dependência infantil para com um pai que pune
e recompensa, ou para com qualquer outra au-
\toridade, não pode desenvolver amor mais ama-
durecido por Deus; então, sua religião é a da
primitiva fase religiosa, em que Deus era sen-
tido como mãe que tudo protegia, ou como pai
que castigava e premiava.
Na religião contemporânea, encontramos to-
das as fases ainda presentes, do mais antigo e
mais primitivo desenvolvimento ao mais elevado.
A palavra "Deus" indica o chefe tribal assim
como o "Nada absoluto". Do mesmo modo, cada
110 ERICH FROMM A A R T E DE A M A R 111
III
O Amor e sua Desintegração na Sociedade
Ocidental Contemporânea

E o AMOB é uma capacidade do caráter


'produtivo e maduro, segue-se daí que a
capacidade de amar, num indivíduo que
viva em qualquer cultura dada, depende da in-
fluência dessa cultura sobre o caráter da pessoa
comum. Se falamos de amor na cultura ociden-
tal contemporânea, temos de indagar se a estru-
tura social da civilização ocidental e o espírito
dela resultante são de molde a conduzir ao de-
senvolvimento do amor. Suscitar a pergunta é
responder pela negativa. Nenhum observador
objetivo de nossa vida ocidental pode duvidar
de que o amor — amor fraterno, amor materno
e amor erótico — seja fenómeno relativamente
raro, sendo seu lugar tomado por numerosas
formas de pseudo-amor que, em realidade, são
outras tantas formas de desintegração do amor.

A A R T E DE A M A R 113
A sociedade capitalista baseia-se no princí- centração de capital. As grandes empresas cres-
pio da liberdade política, de um lado e, do outro, cem continuamente de tamanho e as menores vão
no do mercado como o regulador de todas as sendo expulsas. A propriedade do capital in-
relações económicas e, portanto, sociais. O mer- vertido nessas empresas é cada vez mais sepa-
cado das utilidades determina as condições sob rada da função de geri-las. Centenas de milha-
que os artigos se trocam; o mercado de trabalho res de acionistas "são donos" da empresa; uma
regula a aquisição e a venda do trabalho. Tanto burocracia gerencial, que é bem paga mas não
as coisas úteis, .como a energia e a capacidade possui a empresa, encarrega-se de dirigi-la. Esta
humanas úteis, são transformadas em artigos que burocracia está menos interessada em fazer o
são trocados, sem o uso da força e sem fraude, máximo de lucros do que na expansão da em-
sob as condições do mercado. Sapatos, por úteis presa e de seu próprio poder. A crescente con-
e necessários que possam ser, não terão valor centração de capital e o aparecimento de uma
económico (valor de troca) se no mercado não poderosa burocracia de gerência são acompanha-
houver procura deles; energia e capacidade hu- dos, paralelamente, pelo desenvolvimento do mo-
manas não terão valor de troca se não houver vimento trabalhista. Através da sindicalização
procura delas sob as condições de mercado exis- do trabalho, o trabalhador individual não tem
tentes, O possuidor de capital pode comprar de transacionar no mercado de trabalho por si
trabalho e ordenar que ele trabalhe em bem do e para si; está unido em grandes associações
proveitoso investimento de seu capital. O pos-
suidor de trabalho deve vendê-lo aos capitalis- trabalhistas, também dirigidas por poderosa bu-
tas sob as condições de mercado existentes, a rocracia e que o representam em face do colosso
menos que vá morrer de fome. Essa estrutura industrial. A iniciativa se transladou, para me-
económica reflete-se numa hierarquia de valores. lhor ou para pior, nos campos do capital como
O capital comanda o trabalho; as coisas acumu- nos do trabalho, do indivíduo para a burocracia.
ladas, que são mortas, têm valor superior ao Crescente número de pessoas deixa de ser inde-
trabalho, às forças humanas, àquilo que é vivo. pendente e torna-se dependente dos que dirigem
Esta tem sido a estrutura básica do capita- os grandes impérios económicos.
lismo desde seu início. Mas, se ela ainda é ca- Outro aspecto decisivo resultante dessa con-
racterística do capitalismo moderno, alterou-se centração de capital e característico do capitalis-
certo número de fatôres, que dão ao capitalismo mo moderno está no modo específico de organi-
contemporâneo qualidades específicas e que têm zação do trabalho. Empresas vastamente cen-
profunda influência sobre a estrutura do caráter tralizadas, com uma divisão de trabalho radical,
do homem moderno. Como resultado do desen- levam a uma organização de trabalho em que o
volvimento do capitalismo, testemunhamos um indivíduo perde sua individualidade, em que se
processo sempre crescente de centralização e con- torna um parafuso a ser gasto na máquina. O

114 ERICH FROMM A A K T E DE A M A R 115


problema humano do capitalismo moderno pode civilização oferece muitos paliativos que ajudais
ser formulado assim: as pessoas a se tornarem conscientemente incons-
O capitalismo moderno necessita de homens cientes dessa solidão: antes de tudo, a estrita
que cooperem sem atrito e em amplo número; rotina do trabalho mecânico, burocratizado, que
que queiram consumir cada vez mais; e cujos as auxilia a permanecerem sem conhecimento de
gostos sejam padronizados e possam ser facil- seus desejos humanos mais fundamentais, da
mente influenciados e previstos. Necessita de aspiração de transcendência e unidade. Como a
homens que se sintam livres e independentes, rotina, por si só, não o consegue, o homem su-
não submissos .a qualquer autoridade, ou princí- pera seu desespero inconsciente através da rotina
pio, ou consciência — e contudo desejosos de ser da diversão, do consumo passivo de sons e visões J
mandados, de fazer o que se espera deles, de ade- oferecidos pela indústria do divertimento; e, '
quar-se em fricção à máquina social; que possam além disso, pela satisfação de comprar sempre
ser guiados sem força, dirigidos sem líderes, im- coisas novas e de logo trocá-las por outras. O
pulsionados sem alvos — exceto o de produzir homem moderno está efetivamente próximo do
bem, estar em movimento, funcionar, ir adiante. quadro que Huxley descreve em seu Admirável t
/
Qual é o resultado? O homem moderno é Mundo Novo: bem alimentado, bem trajado, se- /
alienado de si mesmo, de seus semelhantes e da xualmente satisfeito, e contudo sem personali- r
natureza. (Veja-se mais detalhada discussão do dade, sem qualquer contacto com seus semelhan-
problema da alienação e da influência da socie- tes a não ser o mais superficial, guiado pêlos
dade moderna sobre o caráter do homem em The lemas que Huxley formulou tão sucintamente,
Sane Society, E. Promm, Routledge (Kegan como estes: "Quando o indivíduo sente, a co-
Paul, Londres.) Transformou-se num artigo, munidade vacila"; "Nunca deixes para amanhã
experimenta suas forças de vida como um inves- o prazer que podes ter hoje", ou, como afirma-
timento que lhe deva produzir o máximo lucro tiva culminante: "Todos agora são felizes". A
alcançável sob as condições de mercado existen- felicidade do homem, hoje em dia, consiste em
tes. As relações humanas são essencialmente as "divertir-se". E divertir-se consiste na satisfa-
de autómatos alienados, cada qual baseando sua ção de consumir e "obter" artigos, panoramas,
segurança na posição mais próxima do rebanho alimentos, bebidas, cigarros, gente, conferências,
e em não ser diferente por pensamentos, senti- livros, filmes — tudo é consumido, engolido. O
mentos ou ações. Ao mesmo tempo que todos inundo é um grande objeto de nosso apetite, uma

\
tentam estar tão próximos quanto é possível dos
demais, todos se sentem extremamente sós, inva-
didos pelo profundo sentimento de insegurança,
ansiedade e culpa que sempre ocorre quando a
separação humana não pode ser superada. Nossa
grande maçã, uma grande garrafa, um grande
seio; somos os sugadores, os eternamente em ex-
pectativa, os esperançosos — e os eternamente
decepcionados. Nosso caráter é engrenado para
trocar e receber, para transacíonar e consumir:

116 ERICH FROMM A A R T E DE A M A R 117


tudo, os objetos espirituais como os materiais, tável sentimento de solidão. No "amor" encon-/
torna-se objeto de troca e de consumo. tra-se, afinal, um porto ao abrigo da. solidão.
A situação, no que refere ao amor, corres- Forma-se uma aliança de dois contra o mundo,
ponde, como não pode deixar de ser, a esse caráter e esse egoismo a dois é enganosamente tomado
social do homem moderno. Autómatos não po- por amor e intimidade.
dem amar; podem trocar seus "fardos de perso- Esta acentuação do espírito de equipe, da
nalidade" e esperar um bom negócio. Uma das tolerância mútua e assim por diante é um de-
expressões mais significativas do amor, e espe- senvolvimento relativamente recente. Foi pre-
cialmente do casamento, nessa estrutura alienada, cedido, nos anos que se seguiram à primeira
é a ideia de "equipe". Em qualquer número de guerra mundial, por um conceito de amor em
artigos escritos sobre o casamento feliz, o ideal que a satisfação sexual mútua se supunha ser
descrito é o da equipe que funcione lubrifica- a base de, relações de amor * satisfatórias e, espe-
damente. Essa descrição não difere muito da cialmente, de um casamento feliz. Acreditava-se
ideia de um empregado que funcione lubrifica-
que as razões das frequentes infelicidades no
damente: ele deve ser "razoavelmente indepen- casamento estavam no fato de que os .nubentes
dente", cooperativo, tolerante e, ao mesmo tempo, não haviam feito um "ajustamento sexual" cor-
ambicioso e agressivo. Assim, diz-nos o conse-
lheiro matrimonial, o marido deve "compreen- reto; via-se o motivo desta falta na ignorância
der" sua mulher e ser-lhe de auxílio. Deve fazer em encarar a conduta sexual "correta" e, por-
comentários favoráveis sobre seu vestido novo, tanto, na técnica sexual falha de um ou de ambos
sobre um prato gostoso. Ela, por sua vez, deve os parceiros. A fim de "curar" essa falha e
compreendê-lo quando ele chega à casa cansado ajudar os casais infelizes que não conseguiam
e resmungão, deve ouvi-lo atentamente quando amar-se mutuamente, muitos livros davam instru-
ele fala de seus aborrecimentos nos negócios, não ções e conselhos relativos á correta conduta sexual
deve encolerizar-se, mas mostrar-se compreensiva, e prometiam, implícita ou explicitamente, que
se ele se esquece de que ela faz anos. Toda felicidade e amor viriam em seguida. A ideia
esta espécie de relações, na verdade, vem a dar subjacente era a de que o amor é filho do prazer
na bem lubrificada relação entre pessoas que sexual, a de que, se duas pessoas aprendem a
permanecem estranhas a vida inteira, que nunca satisfazer-se sexualmente, amar-se-ão uma à ou-
chegam a uma "relação central", mas que mutua- tra. Adequava-se à ilusão geral da época ima-
mente se tratam com cortesia e que tentam fazer ginar que o uso das técnicas corretas é a solução
com que a outra pessoa se sinta melhor. não só dos problemas técnicos da produção indus-
Neste conceito de amor e casamento, a prin- trial, como também de todos os problemas huma-
cipal ênfase é colocada no encontro de um refú- nos. Ignorava-se que a verdade está no oposto
gio para o que, de outra forma, seria insupor- a essa ideia subjacente.
A A R T E DE A M A R 119
118 ERICH FROMM
O amor não é o resultado da adequada sa- para ele, o protótipo de toda felicidade, deve ter
tisfação sexual, mas a felicidade sexual — e sido por isso impelido a buscar ainda mais sua
mesmo o conhecimento da chamada técnica sexual felicidade pelo caminho das relações sexuais, a
— é que é o resultado do amor. Se, à parte a fazer do erotismo genital o ponto central de sua
observação quotidiana, esta tese precisasse ser vida." (S. Freud, A Civilização e sew Des-
provada, poder-se-ia encontrar tal prova em am- contentes.} A experiência do amor fraterno é,
plo material de dados psicanalíticos. O estudo para Freud, um produto do desejo sexual, mas
dos mais frequentes problemas sociais — a fri- o instinto sexual a transformar-se num impulso
gidez nas mulheres e as formas mais ou menos de "alvo inibido". "A amor de alvo inibido, na
graves de impotência psíquica nos homens — verdade, era originariamente cheio de amor sen-
mostra que a causa não está numa falta de sual, e na mente inconsciente do homem ainda
conhecimento da técnica correta, mas nas ini- o é." (Ibid.) Quanto ao sentimento de fusão,
bições que tornam impossível amar. O medo do de unidade ("sentimento oceânico"), que é a
outro sexo, ou o ódio para com ele, acham-se no essência da experiência mística e a raiz do mais
fundo das dificuldades que impedem uma pessoa intenso sentido de união com outra pessoa, ou
de entregar-se completamente, de agir esponta- com os semelhantes, era ele interpretado por
neamente, de confiar no parceiro sexual numa Freud como um fenómeno patológico, como uma
direta e imediata proximidade física. Se uma regressão a um estado de primitivo "narcisismo
pessoa sexualmente inibida puder emergir do ilimitado". (Ibid.)
medo ou do ódio e, portanto, tornar-se capaz de Só mais um passo e, para Freud, o amor,
amar, seus problemas sexuais, dele ou dela, es- em si mesmo, é um fenómeno irracional. A di-
tarão resolvidos. Se não, nenhum total de co- ferença entre o amor irracional e o amor como
nhecimento a respeito de técnicas sexuais servirá expressão da personalidade amadurecida não
de ajuda. existe para ele. Num artigo sobre o amor de
Mas, ao mesmo tempo que os dados da transferência (Freud, Gesamte Werke, Londres,
terapia psicanalítica indicam o erro da ideia de 1940->52, Vol. X), indicou ele que o amor de
que o conhecimento da técnica sexual .correta transferência essencialmente não difere do fe-
leva à felicidade sexual e ao amor, fato é que nómeno "normal" do amor. Cair enamorado
a concepção subjacente de que o amor logo se sempre fica à beira do anormal, sempre é acom- ,
segue à satisfação sexual mútua foi amplamente panhado pela cegueira à realidade, pela compul- /
influenciada pelas teorias de Freud. Para Freud, sividade, e é uma transferência dos objetos de
o amor era basicamente um fenómeno sexual. amor da infância. O amor como fenómeno ra-
"O homem, tendo descoberto pela experiência cional, como realização coroadora da maturida-
que o amor sexual (genital) lhe concedia a maior de, não era assunto sujeito à investigação para
de suas satisfações, de modo a tornar-se de fato. pois não tinha existência real.

120 E R I C H FR.OMM A A R T E DE A M A R 121


Seria, contudo, um engano superestimar a lismo predominante no século XIX. Acredita-
influência da ideia de Freud sobre o conceito va-se que o substrato de todos os fenómenos men-
de que o amor é o resultado da atração sexual, tais se encontrava nos fenómenos fisiológicos:
ou antes, de que é a mesma coisa que a satisfação daí serem o ódio, o amor, a ambição, o ciúme
sexual, refletida no sentimento consciente. Es- explicados por Freud coiüo outros tantos produ-
sencialmente, o nexo causal anda por outro rumo. tos das várias formas do instinto sexual. Ele
As ideias de Freud foram em parte influencia- não via que a. realidade básica está na totalidade
das pelo espírito do século XIX; em parte se da existência humana, antes de tudo na situação
tornaram populares em vista do espírito domi- humana comuna a todos os homens, e depois na
nante nos anos que seguiram à primeira guer- prática da vida determinada pela estrutura es-
ra mundial. Entre os fatôres que influenciaram pecífica da sociedade. (O passo decisivo além
tanto os conceitos populares quanto os de Freud desse tipo de materialismo foi dado por Marx,
está, primeiro, a reação contra o estrito mora- em seu "materialismo histórico", em que não o
lismo da era vitoriana. O segundo fator deter- corpo, nem um instinto como a necessidade de
minante da teoria de Freud reside no conceito alimento ou posse, serve de chave e compreensão
vigente do homem, que se baseia na estrutura do homem, e sim o total processo vital do homem,
do capitalismo. A fim de provar que o capita- sua "prática da vida".) De acordo com Freud,
lismo correspondia às necessidades naturais do a satisfação plena e sem inibições de todos os
homem, tinha-se de mostrar que o homem, por desejos instintivos criaria a saúde mental e a
natureza, era competitivo e cheio de hostilidade felicidade. Mas 09 fatos clínicos evidentes mos-
mútua. Enquanto os economistas o "provavam" tram que os homens — e as mulheres — que
em termos do desejo insaciável de lucro econó- devotam as vidas à irrestrita satisfação sexual
mico, e os Darwinistas em termos da lei bioló- não alcançam a felicidade, e muitas vezes sofrem
gica da sobrevivência dos mais aptos, Freud che- de graves conflitos ou sintomas neuróticos. A
gava ao mesmo resultado pela ideia de que o completa satisfação de todas as necessidades ins-
homem é impelido por um desejo ilimitado de tintivas não só não é base da felicidade, como
conquista sexual de todas as mulheres, e que só nem mesmo assegura a sanidade. Contudo, a
a pressão da sociedade impede que ele aja de ideia de Freud apenas poderia ter-se tornado
acordo com seus desejos. Em resultado, os ho- tão popular no «período posterior à primeira
mens são necessariamente ciumentos uns dos ou- guerra mundial em razão das mudanças que
tros, e esse ciúme mútuo, essa competição, con- ocorreram no espírito do capitalismo, passando
tinuariam ainda que desaparecessem todas as da acentuação dada à poupança para a dada no
suas razões económicas e sociais* gasto e da auto-frustração como meio de sucesso
Mais tarde, Freud foi amplamente influen- económico para o consumo como base de um
ciado em seu pensamento pelo tipo de materia- mercado sempre a expandir-se e como a princi-
A A R T E DE A M A R 123
122 ERICH FROMM
pai satisfação do indivíduo ansioso e automati- melhante ao amor pleno, psiquiàtricamente de-
zado. Não adiar a satisfação de qualquer desejo finido".) Se libertarmos a afirmação de Sülli-
tornou-se a tendência principal na esfera do van da sua linguagem um tanto enrolada, a
sexo, assim como na de todo consumo material. essência do amor é vista numa situação de co-
laboração em que duas pessoas sentem: "Jo-
É interessante comparar os conceitos de gamos de acordo com as regras do jogo, para
Freud, que correspondem ao espírito do capi- preservar nosso prestígio e nosso sentimento de
talismo tal como existia, ainda incólume, por superioridade e merecimento". (Ibid., pag. 246.
volta dos começos deste século, com os conceitos Outra definição de amor, dada por Süllivan, a
teóricos de mn dos mais brilhantes psicanalistas de que o amor começa quando uma pessoa sente
contemporâneos, o falecido H. S. Süllivan. No que as necessidades de outra pessoa são tão im- /
sistema psicanalítico de Süllivan encontramos, portantes quanto as suas próprias, é menos co-
em contraste com Freud, uma estrita divisão lorida de aspecto transacional do que a formu-
entre sexualidade e amor.
lação acima.)
Qual é a significação de amor e intimidade Assim como o conceito de amor de Freud
na conceituação de Süllivan? "Intimidade é é uma descrição da experiência do macho patri-
Jaquêle tipo de situação que envolve duas pessoas arcal em termos do capitalismo do século XIX,
'e que permite a validação de todos os compo- a descrição de Süllivan refere-se à experiência
nentes de valor pessoal. A validação do valor da personalidade alienada, mercantil, do século \
pessoal requer um tipo de relações que chamo XX. É a descrição de um "egoismo a dois", de * óf
colaboração, querendo com isso referir-me a ajus- duas pessoas que reúnem seus interesses comuns
tamentos claramente formulados da conduta de e ficam juntas contra um mundo hostil e alie-
uma pessoa às necessidades expressas de outra nado. De fato, sua definição de intimidade é
pessoa, na busca de satisfações crescentemente um princípio válido para o sentimento de qual-
idênticas — isto é, cada vez mais quase mútuas quer equipe em cooperação, em que cada qual /
— e na manutenção de operações de segurança "ajusta sua conduta às necessidades expressas
crescentemente similares". (H. S. Süllivan, The da outra pessoa, na busca de alvos comuns".
Interpersonal Theory of Psychiatry, W. W. (É digno de nota que Süllivan fale aqui de
Norton, Co, Nova York, 1953, pag. 246. Deve-se necessidades expressas, quando o mínimo que se
notar que, embora Süllivan dê esta definição poderia dizer a respeito do amor é que ele im-
em conexão com os esforços da pre-adolescência, plica uma reação a necessidades não expressas
fala delas como tendências integrantes, que apa-
recem durante a pre-adolescência, "as quais, entre duas pessoas.)
quando são completamente desenvolvidas, cha- Amor como satisfação sexual mútua e amor /
mamos amor", e diz que este amor na pre-ado- como "trabalho de equipe" e como porto ao abri- /
lescência "representa o início de algo muito se- go da solidão são as duas formas "normais" da

124 ERICH FROMM A A R T E DE A M A R 125


desintegração do amor na sociedade ocidental querem o amor incondicional da mãe, amor que
moderna, a patologia do amor socialmente mo- é dado pela única razão de necessitarem dele,
delada. Muitas formas individualizadas existem de serem o filho de sua mãe, de serem desam-
da patologia do amor, que resultam em sofri- parado». Esses homens frequentemente são mui-
mento consciente e são consideradas neuróticas to afetuosos e encantadores ao tentarem induzir /
pêlos psiquiatras e também por número crescente uma mulher a amá-los, e até mesmo depois que o
de leigos. Algumas das mais frequentes vão conseguem. Mas suas relações com a mulher
sucintamente descritas nos exemplos que se se- (como, de fato, com todas as outras pessoas)
guem. permanecem superficiais e irresponsáveis. Exis-
A condição básica do amor neurótico está te comumente boa quantidade de vaidade nesse
/no fato de que um dos "amantes" (ou ambos) tipo de homens, com ideias grandiosas mais ou
permaneceu aferrado a figura de um dos pais e menos ocultas. Se encontrassem a mulher certa,
transfere os sentimentos, expectativas e temores sentir-se-iam seguros, na cumieira do mundo, e
que outrora experimentou para com o pai, ou poderiam exibir muito aíeto e encanto; • eis a
a mãe, para a pessoa amada na vida adulta; as razão por que esses homens são muitas vezes tão
pessoas envolvidas nunca emergiram de um pa- decepcionantes. Mas quando, após algum tempo,
drão de relação infantil e procuram esse padrão a mulher não continua a corresponder a suas
em suas exigências afetivas da vida adulta. Em fantásticas expectativas, conflitos e ressentimen- /
tais casos, a pessoa permaneceu, afetivamente, tos começam a desenvolver-se. Se a mulher nem
uma criança de dois, de cinco, ou de doze anos, sempre os admira, se reivindica uma vida pró-
ao passo que intelectual e socialmente se acha pria, se também ela deseja ser amada e prote-
no nível de sua idade cronológica. Nos casos gida, e, em casos extremos, se não se mostra
mais graves, essa imaturidade emocional conduz disposta a perdoar as questões amorosas deles
a perturbações em sua eficiência social, nos me- com outras mulheres (ou mesmo a ter por elas
nos graves, limita-se o conflito à esfera das re- um interesse de admiração), tais homens sen-
lações pessoais íntimas. tem-se profundamente feridos e decepcionados e
* Referindo-nos à nossa anterior discussão da habitualmente racionalizam esse sentimento com
f personalidade centralizada na mãe — ou pai — o a ideia de que a mulher "não os ama, é egoísta.,
seguinte exemplo desse tipo de relação de amor ou é dominadora". Qualquer falha na atitude
neurótico, frequentemente encontrado hoje, trata de mãe amorosa para com um filho encantador
de homens que, em seu desenvolvimento emo- é tomada como prova de falta de amor. Tais ,\
cional, permaneceram fincados num apego in- homens usualmente confundem sua conduta afe- j
fantil à mãe. São homens que, por assim dizer, tuosa, seu desejo de agradar, com o genuino amor j
nunca se "desmamaram" da mãe. Tais homens e chegam, assim, à conclusão de que estão sendo
ainda sentem como crianças; querem a proteção
da mãe, seu amor, calor, cuidado e admiração: tratados com inteira injustiça; imaginam-se os

126 ERICH FROMM A A R T E DE A M A R 127


grandes amorosos e queixam-se amargamente da o adolescente, o homem; ele não deve ser capaz
ingratidão de sua parceira de amor. de respirar senão por meio delas; não deve ser
Em casos raros, uma dessas pessoas centra- capaz de amar senão num superficial nível sexual
lizadas na mãe pode funcionar sem graves per- — degradando todas as outras mulheres; não deve
turbações. Se sua mãe, de fato o "amava" de ser capaz de tornar-se um ser livre e indepen-
maneira ultra-protetora (talvez sendo domina- dente, mas sim um eterno aleijado ou um cri-
dora, mas sem ser destrutiva), e se ele encontra minoso.
uma mulher do mesmo tipo materno, se os dons Este aspecto da mãe, o destrutivo, o engol-
e talentos especiais que ele tem lhe permitem fante, é o aspecto negativo da figura materna.
usar seu encanto e ser admirado (como muitas A mãe pode dar vida, e pode tirar a vida. Ela
vezes ocorre com políticos de sucesso), o homem é a que revive, e a que aniquila; pode produzir
está "bem ajustado" num sentido social, sem milagres de amor — e ninguém pode ferir mais
jamais alcançar um rível mais alto de maturi- do que ela. Em imagens religiosas (como a da
dade. Mas, sob condições menos favoráveis — deusa indu Kali) e no simbolismo dos sonhos,
e estas, naturalmente, são as mais frequentes — os dois aspectos opostos da mãe podem ser mui-
sua vida amorosa, quando não sua vida social, tas vezes encontrados.
será uma séria decepção; conflitos, ansiedade
frequentemente intensa e depressão surgem quan- Forma diferente da patologia neurótica
do esse tipo de personalidade é deixado entregue acha-se em casos em que a principal ligação é
a si mesmo. para com o pai.
Numa forma ainda mais grave de patologia, Caso desses é o do homem cuja mãe seja
a fixação à mãe é mais profunda e mais irra- fria e negligente, ao passo que o pai (em parte
cional. Neste nível, o desejo não é, simbolica- como resultado da frieza da esposa) concentra
mente falando, o de voltar aos braços protetores no filho todo o seu afeto e interesse. É um
da mãe, nem a seu seio nutriente, mas a seu "bom pai", mas, ao mesmo tempo, autoritário.
ventre oni-receptivo — e oni-destrutivo. Se a Sempre que lhe agrada o comportamento do filho,
natureza da sanidade é crescer fora do ventre e louva-o, dá-lhe presentes, é afetuoso; sempre quel
dentro do mundo, a natureza da severa enfermi- o filho lhe desagrada, retira-se, ou censura-o. \
dade mental é ser atraido pelo ventre, ser sugado O filho, que tem como única afeição a do pai,
de volta para dentro dele — e isto é ser arreba- torna-se ligado ao pai de maneira escravizada.
tado da vida. Tal espécie de fixação comumente Seu alvo principal na vida é agradar o pai —
ocorre em referência a mãe que se relacionam e, quando o consegue, sente-se feliz, seguro e
com seus filhos deste modo engolidor e destruidor. satisfeito. Quando, porém, comete um engano,
As vezes em nome do amor, ás vezes em nome do uma falta, ou não consegue agradar ao pai, sen-
dever, querem elas guardar
^ dentro de si o filho, te-se deprimido, desamado, repelido. Na vida

128 ERICH FROMM A A R T E DE A M A R 129


mite estreito contacto com o pai ou a mãe, dei-
posterior, tal homem procurará encontrar uma xando-a por isso intrigada e temerosa. Nunca
figura paterna a que se prenda de maneira se- está certa do que sentem ou pensam os pais;
inelhante. Toda a sua vida se torna uma sequên- existe sempre um elemento do desconhecido, do
cia de altos e baixos, dependendo de ter ou não misterioso, no ambiente. Em consequência, a
conseguido ganhar o louvor do pai. Homens menina refugia-se num mundo próprio, sonha /
assim muitas vezes têm sucesso em sua carreira
social. São conscienciosos, dignos de confiança, acordada, permanece distante e conserva a mesma /
prestativos — contanto que a imagem de pai que atitude, mais tarde, em suas relações de amor.
escolheram compreenda como tratar com eles. Além do mais, essa fuga resulta no desen-
Mas, em suas relações com as mulheres, man- volvimento de veemente ansiedade, do sentimento
têm-se retraídos e afastados. A mulher não tem de não pisar com firmeza no mundo, e leva mui-
significação central para eles; costumeiramente tas vezes a tendências masoquistas, como o único
sentem leve desprezo por ela, muitas vezes mas- meio de experimentar intensa excitação. Mulhe-
carado de preocupação paternal para com uma res assim, muitas vezes, prefeririam que o ma-
mocinha. Podem impressionar inicialmente uma rido fizesse uma cena e lhes gritasse, a vê-lo
mulher por sua qualidade masculina, mas tor- manter conduta mais normal e sensata, porque
nam-se crescentemente decepcionantes, quando a isso, pelo menos, retiraria delas a carga de ten-
mulher que desposam descobre que está desti- são e medo; e não é raro que inconscientemente
nada a desempenhar papel secundário, em face provoquem tal comportamento, a fim de pôr ter-
da primordial afeição à figura do pai, que é mo à culminância atormentadora da neutralidade
saliente na vida do marido, a qualquer tempo; afetiva.
isto é, a menos que aconteça ter a mulher per- Outras formas frequentes de amor irracio-
manecido ligada ao pai — sendo assim feliz com nal são descritas nos parágrafos que se seguem,
um marido que se relaciona com ela como uma sem entrar na analise dos fatôres específicos do
criança caprichosa. desenvolvimento infantil que se acham em suas
Mais complicada é a espécie de perturbação raizes.
neurótica no amor que se baseia num tipo dife- Uma forma de pseudo-amor não incomum,
rente de situação dos pais, que ocorre quando muitas vezes experimentada (e mais vezes ainda
os pais não se amam mutuamente, mas são por descrita em filmes e romances comoventes) como
demais fechados para brigar ou para mostrar "o grande amor", é o amor idólatra. Se alguém /
externamente qualquer sinal de insatisfação. Ao não alcançou o nível em que tenha um sentido '
mesmo tempo, seu distanciamento os torna tam- de identidade, de seu Eu, enraizado no desdo-
bém sem espontaneidade nas relações com os fi- bramento produtivo de suas próprias forças,
lhos. O que uma menina experimenta é uma tende a "idolizar" a pessoa amada. Aliena-se
atmosfera de " correção", mas que nunca per-
A A R T E DE A M A R 131
130 E R I C H F R O M M
de suas próprias forças e projeta-as no ente infeliz história de amor do casal na tela. Para
amado, que é adorado como o summum ~bonum, muitos casais, ver tais histórias na tela é a única
o portador de todo amor, toda luz, toda ventura. ocasião em que experimentam amor — não entre
Neste processo, a pessoa se priva de qualquer si, mas juntos, como espectadores do "amor"
sentido de vigor, perde-se no ser amado em vez alheio. Enquanto o amor é um sonho acordado,
de encontrar-se. Como normalmente ninguém podem ter parte nele; logo que voltam à reali-
pode, a longo prazo, corresponder às expectativas dade das relações entre duas pessoas reais — eu-
de seu adorador idólatra, a decepção tende a regelam-se.
ocorrer e, como remédio, novo ídolo é procurado,
ás vezes num círculo infindável. Característica Outro aspecto do amor sentimental é a abs-
desse tipo de amor idólatra é, no início, a inten- tratificação do amor em termos de tempo. Um
sidade e subitaneidade da experiência amorosa. casal pode comover-se profundamente com as re-
Este amor idólatra é muitas vezes descrito como cordações de seu amor passado, embora, quando j
o grande, verdadeiro amor; mas, embora preten-
esse passado era presente, nenhum amor se ex-
da retratar a intensidade e a profundidade do perimentasse — e com as fantasias de seu amor
futuro. Quantos noivos, ou recem-casados, não
amor, apenas mostra a fome e o desespero do sonham com sua felicidade amorosa, a verificar-se
idólatra. Desnecessário é dizer que não é raro no futuro, ao passo que, no momento que estão
acharem-se duas pessoas em idolatria mútua, o vivendo, já começam a enfastiar-se um do outro?
que, às vezes, em casos extremos, representa o Esta tendência coincide com uma atitude geral
quadro da folie à deux. característica do homem moderno. Ele vive no
Outra forma de pseudo-amor é a que pode passado ou no futuro, mas não no presente. Ee-
ser chamada "amor sentimental". Sua essência corda sentimentalmente sua infância e sua mãe
reside no fato de que o amor só é experimentado — ou faz planos felizes para o porvir. Quer
em fantasia e não nas relações concretas com seja o amor experimentado substitutivamente
outra pessoa, que é real. A mais difundida for- pela participação V nas experiências fictícias de
ma desse tipo de amor encontra-se na substi- outrens, quer se traftisfira do presente para o
tutiva satisfação amorosa experimentada pelo passado ou o futuro, essa forma abstratificada
consumidor de filmes de cinema, contos amorosos e alienada de amor serve como um ópio que alivia
de revistas e canções de amor. Todos os dese- a dor da realidade, a solidão e a separação do
jos não cumpridos de amor, união e proximidade indivíduo.
encontram satisfação no consumo de tais pro- Ainda outra forma de amor neurótico está
dutos. TJm homem e uma mulher que, em rela- no uso de mecanismos de projeção, para o fim
ção a seus esposos, sejam incapazes de chegar de evitar os próprios problemas e preocupar-se,
a penetrar a parede da separação, comovem-se em vez disso, com os defeitos e fragilidades da
até às lágrimas quando participam da feliz ou pessoa "amada". Os indivíduos se comportam,
132 ERICH FROMM A A R T E DE A M A R 133
a este respeito, muito semelhantemente às nações, a fim de não privar os filhos das bênçãos de
grupos ou religiões. Têm excelente avaliação até um lar unificado. Qualquer estudo pormenori-
mesmo das menores deficiências da outra pessoa, zado, entretanto, mostraria que a atmosfera de
e vão bemaventuradamente a ignorar as próprias tensão e infelicidade dentro da "família unifi-
— tentando sempre acusar ou reformar o outro. cada" é mais prejudicial aos filhos do que o seria
Se duas pessoas fazem o mesmo — como muitas um rompimento claro — o qual pelo menos lhes
vezes acontece — a relação de amor transfor- ensinaria que o homem é capaz de pôr termo a
ma-se numa de mútua projeção. Se sou domi- uma situação intolerável por meio de uma deci-
nador, ou indeciso, ou avaro, acuso meu compa- são corajosa.
nheiro disso e, dependendo de meu caráter, quero Outro erro frequente deve ser mencionado
curá-lo ou puni-lo. A outra pessoa faz o mesmo aqui. Isto é, a ilusão de que amor significa
— e ambas assim conseguem ignorar seus pró- necessariamente ausência de conflito. Assim como
prios problemas, deixando portanto de dar qual- é costumeiro acreditar que dores e tristezas, em
quer passo que as possa auxiliar em seu próprio quaisquer circunstâncias, poderiam ser evitadas,
desenvolvimento. também se acredita que o amor significa a au-
Outra forma de projeção é a dos problemas sência de qualquer conflito. E boas razões se
próprios de alguém sobre os filhos. Antes de encontram para essa ideia, no fato de que as
tudo, essa projeção se verifica, de modo não lutas em torno só parecem ser intercâmbios des-
incomum, no desejo de ter filhos. Neste caso, trutivos, que não trazem bem a qualquer dos
tal desejo primordialmente se determina proje- envolvidos. Mas a razão disto está em que os
tando-se os problemas próprios da existência de "conflitos" da maioria das pessoas efetivamente
alguém na dos filhos. Quando uma pessoa sente são tentativas para evitar conflitos reais. São
que não foi capaz de dar sentido à sua vida, desacordos sobre questões menores ou superficiais,
tenta dar-lhe sentido em termos da vida de seus que, por sua própria natureza, não se prestam
—filhos. Mas é-se susceptível de falhar, em si a esclarecimento ou solução. Os conflitos reais
mesmo e para os filhos. No primeiro caso, por- entre duas pessoas, aqueles que não servem para
que o problema da existência só pode ser resol- encobrir ou para projetar, mas são experimen-
vido por cada qual para si mesmo, e não por tados no nível profundo da realidade interior a
procuração; no último caso, por faltarem à pessoa que pertencem, não são destrutivos. Levam ao
aquelas qualidades necessárias a guiar os filhos esclarecimento, produzem tuna catarse de que
em sua própria procura de uma resposta. Os ambas as pessoas emergem com mais conheci-
filhos servem para fins de projeção, também, mento e mais vigor. Isto nos conduz a acentuar
quando surge a questão de dissolver um casa- de novo algo dito acima.
mento infeliz. O argumento comum dos pais em O amor só é possível se duas pessoas se co-
tal situação é a de que não se podem separar municam mutuamente a partir do centro de suas

134 ERICH FROMM A A R T E DE A M A R 135


^existências e, portanto, se cada uma se experi- venha em seu auxílio quando ajuda for necessá-
(y menta a partir do centro de sua própria exis- ria.
I tência. Só nesta "experiência central" existe Em verdade, em culturas religiosas como a
realidade humana, só aí há vivacidade, só aï da Idade Média, o homem comum também en-
está a base do amor. Assim experimentado, o carava Deus como o pai e a mãe auxiliadores.
amor é um desafio constante; não é um lugar Mas, ao mesmo tempo, também considerava Deus
de repouso, mas é mover-se, crescer, trabalhar seriamente, no sentido de que o alvo culminante
juntamente; haja harmonia ou conflito, alegria de sua vida era viver de acordo com os princí-
ou tristeza, isso é secundário em relação ao fato pios de Deus, fazer da "salvação" a preocupação
fundamental de que duas pessoas se experimen- suprema, a que se subordinavam todas as demais
tam mutuamente a partir da essência de sua atividades. Hoje, nada de tal esforço se apre-
existência, que são uma com a outra por serem senta. A vida diária é estritamente separada de
uma consigo mesmas, em vez de fugir de si mes- quaisquer valores religiosos. Ë devotada à luta <;
mas. Só há uma prova da presença do amor: pêlos confortos materiais, pelo sucesso no mer- j
a profundidade da relação e a vivacidade e o cado da personalidade. Os princípios sobre que
vigor em cada pessoa envolvida; este é o fruto se edificam nossos esforços seculares são os da
pelo qual o amor é reconhecido. indiferença e do egoismo (este último, muitas
vezes, rotulado como "individualismo" ou "ini-
Os autómatos, assim como não podem amar-se ciativa individual"). O homem de culturas ver-
mutuamente, também não podem amar a Deus. dadeiramente religiosas pode ser comparado a
A desintegração do amor de Deus alcançou as crianças de oito anos de idade, que necessitam
mesmas proporções da desintegração do amor do da ajuda do pai, mas começam a adotar em suas
homem. Este fato está em gritante contradição vidas os ensinamento .e os princípios dele. O
com a ideia de que testemunhamos um renasci- homem contemporâneo é antes como uma criança
mento religioso em nossa época. Nada poderia de três anos, que grita pelo pai quando precisa
estar mais afastado da verdade. O que teste- dele e, fora disso, é inteiramente auto-suficiente
munhamos (ainda que haja exceções) é uma re- quando pode brincar.
gressão a um conceito idólatra de Deus, e uma A este respeito, na dependência infantil de
transformação do amor de Deus numa relação um retrato antropomórfico de Deus sem a trans-
conveniente a uma estrutura de caráter alienada. formação da vida de acordo com os princípios
A regressão a um conceito idólatra de Deus é de Deus, estamos mais próximos de uma tribo
fácil de ver. As pessoas são ansiosas, sem prin- idólatra primitiva do que da cultura religiosa
cípios ou fé, acham-se sem alvo a não ser o de da Idade Média. A outro respeito, nossa situa-
seguir para diante; portanto, continuam a per- ção religiosa mostra feições que são novas, ca-
manecer crianças, esperando que o pai, ou a mãe, racterísticas apenas da sociedade capitalista oci-
136 ERICH FROMM A A R T E DE A M A R 137
dental contemporânea. Posso referir-me a afir- Neste livro religioso, nem mesmo se discute se
mativas feitas em parte anterior deste livro. O a nossa preocupação predominante com o sucesso
homem moderno transformou-se num artigo; ex- está, em si mesma, de acordo com o espírito
perimenta sua energia vital como um investi- da religião monoteísta. Ao contrário, este alvo
mento com que pode alcançar o mais alto lucro, supremo nunca é posto em dúvida, mas a crença
considerando sua posição e a situação do mer- em Deus e a oração são recomendadas como meios
cado de personalidade. Alienou-se de si, de seus de aumentar a capacidade de alguém para ter
semelhantes e da natureza. Seu objeto principal sucesso. Assim como os psiquiatras modernos
/ é a troca proveitosa de suas capacidades, conhe- recomendam a felicidade do empregado, a fim de
i citnentos e de si mesmo, de seu "fardo de per- que seja mais atraente para os fregueses, certos
sonalidade", com outros que pretendam igual- ministros recomendam o amor de Deus a fim de
mente uma troca justa e proveitosa. A vida obter mais sucesso. "Fazer de Deus um com-
\ não tem meta exceto a de movimentar-se, nem panheiro" significa fazer de Deus um parceiro
l princípio a não ser o da boa troca, nem satisfa- de negócios, um sócio, em vez de tornar-se al-
ção que não seja a de consumir. guém um com Ele, no amor, na justiça, na ver-
Que pode, sob tais circunstâncias, significar dade. Assim como o amor fraterno foi substi-
o conceito de Deus? Transformou-se ele, de sua tuído pela correção impessoal, Deus, foi trans-
significação religiosa original, num que se adapta formado num distante Diretor G-eral da Com-
à cultura alienada do sucesso. No renascimento panhia Universo S.A.; ele está lá, realiza o
religioso dos tempos recentes, a crença em Deus espetáculo embora este também provavelmente
mudou-se num instrumento psicológico para tor- se realizasse sem ele), nunca o vemos, mas lhe
nar alguém maia adaptado à luta competitiva. reconhecemos a liderança enquanto vamos "fa-
A religião alia-se à auto-sugestão e à psi- zendo a nossa parte".
coterapia, para ajudar o homem em suas ativi-
dades de negócios. Na década de 1920, ainda
não se havia apelado a Deus para os fins de
"aprimorar a personalidade". O be-st-seller do
ano de 1938, o livro de Dale Carnegie Como
fazer Amigos e influenciar Pessoas, permanecia
num nível estritamente secular. A função do
livro de Carnegie naquele tempo é a função de
nosso maior "best-seller de hoje, O Poder do Pen-
samento Positivo1, de autoria do Eev. N. V. Peale.
(i) Publicado no Brasil.

138 ERICH FROMM A A R T E DE A M A R 139


IV

A Prática do Amor

x^ Jj PÓS tratarmos dos aspectos teóricos da


f ^rarte de amar, vemo-nos agora em face
\^S t/de um problema muito mais difícil, o
da prática da arte de amar. Pode-se aprender
algo sobre a prática de uma arte, a não ser
praticando-a?
A dificuldade do problema é acentuada pelo
fato de que a maioria das pessoas de hoje, e
portanto muitos leitores deste livro, espera re-
ceber, prescrições sobre "como fazê-lo" e isso, em
nosso caso, significa ser ensinado a amar. Re-
ceio que quem quer que chegue a este último
capítulo com tal espírito fique gravemente de-
cepcionado. Amar é uma experiência pessoal
que cada qual só pode ter por si e para si; de
fato, quase não há quem não tenha tido tal ex-
periência, de modo rudimentar pelo menos, como
criança, adolescente, ou adulto. O que a dis-
cussão da prática do amor pode fazer é discutir
as premissas da arte de amar, o meio de rumar
para ela, por assim dizer, e a prática dessas

A A R T E DE A M A R 141
premissas e marchas. Os passos para a meta só do trabalho, o homem se rebela e sua rebelião
podem ser praticados por quem os vai dar e a toma a forma de uma auto-complacência infantil.
discussão termina antes que se dê o passo de- Em acréscimo, na batalha contra o autoritaris-
cisivo. Contudo, acredito que a discussão dos mo, ele se tornou desconfiado de qualquer dis-
meios de chegar à arte podem ser úteis para o ciplina, da imposta pela autoridade irracional
seu domínio — pelo menos para aqueles que se assim como .da disciplina racional imposta por
libertaram de esperar "prescrições". ele mesmo. Sem tal disciplina, contudo, a vida
A prática de qualquer arte tem certos re- se torna estilhaçada, caótica e falha de concen-
quisitos gerais, inteiramente independentes de tração.
lidarmos com arte da carpintaria, da medicina Dificilmente seria necessário provar que a
ou a arte de amar. Antes de tudo, a prática concentração é condição necessária para o domí-
de uma arte exige disciplina. Nunca serei bom nio de uma arte. Quem quer que já tenha ten-
em coisa alguma, se não a fizer de modo disci- tado aprender uma arte sabe disso. Todavia,
plinado; tudo que eu só puder fazer quando mais ainda do que a auto-disciplina, a concentra-
"estiver disposto" pode ser uma diversão bonita ção é rara em nossa cultura. Pelo contrário,
ou aprazível, mas nunca me tornarei mestre nossa cultura leva a um modo de vida descon-
nessa arte. O problema, porém, não é só o da centrado e difuso, que em qualquer outra parte
disciplina na prática da arte particular (diga- mal tem paralelo. Fazem-se muitas coisas ao
mos, praticando-a certo número de horas todos mesmo tempo: lê-se, ouve-se rádio, fala-se,
os dias), mas é o da disciplina na vida inteira fuma-se, bebe-se, come-se. Somos o consumidor
da pessoa. Pode-se pensar que nada é mais de boca aberta, ávido, pronto a tragar tudo:
fácil, para o homem moderno, do que aprender filmes, bebidas, conhecimentos. Esta falta de
disciplina. Não passa ele oito horas por dia, da concentração facilmente se mostra em nossa di-
maneira mais disciplinada, num trabalho que é ficuldade de ficar sós conosco mesmos. Sentar-se
estritamente rotinizado? O fato, entretanto, é quieto, sem falar, fumar, ler, beber, é impossível
que o homem moderno tem excessivamente pouca para a maioria das pessoas. Ficam nervosas e
auto-disciplina fora da esfera do trabalho. Quan- inquietas, precisam de fazer alguma coisa com
do não trabalha, quer ficar ocioso, espreguiçar-se a boca ou as mãos. (Fumar é um dos sintomas
ou, para usar uma palavra mais bonita, "repou- dessa falta de concentração; ocupa as mãos, a
sar". Este próprio desejo de ociosidade é, em boca, os olhos e o nariz).
grande parte, uma reação contra a rotinização Terceiro fator é a paciência. Mais uma vez,
da vida. Precisamente por ser forçado, durante quem quer que já tenha tentado dominar uma
oito horas diárias, a gastar energia para fins arte sabe que a paciência é necessária, se se
que não são os seus próprios, de maneiras que quer alcançar alguma coisa. Quem anda atrás
não são as suas, mas lhe são prescritas pelo ritmo de resultados rápidos nunca aprende uma arte.
142 E R I C H F R O M M
A A R T E DE A M A K 143
Contudo, para o homem moderno, a paciência Deve-se aprender grande número de outras coi-
é prática tão difícil quanto a disciplina e a sas — às vezes aparentemente desconexas —
concentração. Todo o nosso sistema industrial antes de começar com a arte propriamente dita.
incentiva exatamente o oposto: a rapidez. To- TJm aprendiz de carpintaria começa aprendendo
das as nossas máquinas são planejadas para a aplainar madeira; um aprendiz da arte de tocar
rapidez: o automóvel e o aeroplano levam-nos piano começa praticando escalas; um aprendiz
rapidamente à nosso destino — quanto mais de- da arte de atirar com arco e flecha começa fa-
pressa, melhor. A máquina que pode produzir zendo exercícios respiratórios. (Zen in tJie Art
a mesma quantidade na metade do tempo é duas of Archery, E: Herrigel, Londres, Boutledge,
vezes melhor que a mais antiga e mais vagarosa. 1954). Se alguém quer tornar-se mestre em
Sem dúvida, há para isso importantes razões alguma arte, deve ter a vida inteira devotada a
económicas. Mas, como em muitos outros as- ela, ou pelo menos relacionada com ela. A pró-
pectos, os valores humanos tornaram-se determi- pria pessoa se torna um instrumento para a prá-.
nados por valores económicos. O que é bom para tica da arte e deve ser conservada em condições
as máquinas deve ser bom para os homens — adequadas, de acordo com as funções específicas
assim diz a lógica. O homem moderno pensa que tem a desempenhar. Com relação à arte de
que perde alguma coisa — o tempo — quando amar, isto significa que quem aspire a tornar-se
não faz as coisas rapidamente; todavia, ele não mestre nessa arte deve começar por praticar a
sabe o que fazer com o tempo que ganha — a disciplina, a concentração e a paciência, em todas
não ser matá-lo. as fases de sua vida.
Afinal, condição do aprendizado de qualquer Como se pratica a disciplina? Nossos avós
arte é uma preocupação suprema com o domínio estariam muito melhor preparados para respon-
dela. Se a arte não for coisa de suprema im-
portância, o aprendiz nunca a aprenderá. Fi- der a esta pergunta. Sua recomendação era le-
cará, no máximo, como um bom amador, mas vantar-se cedo pela manhã, não se comprazer
nunca se tornará um mestre. Esta condição é em prodigalidades desnecessárias, trabalhar duro.
tão necessária para a arte de amar como para Este tipo de disciplina tinha deficiências evi-
qualquer outra arte. Parece, entretanto, que a dentes. Era rígido e autoritário, centralizado em
proporção entre mestres e amadores pesa mais torno das virtudes da frugalidade e da poupança,
fortemente em favor dos amadores da arte de e de muitos modos hostil à vida. Mas, em rea-
amar do que no caso das outras artes. ção a essa espécie de disciplina, tem havido uma
tendência crescente a suspeitar de qualquer dis-
Ainda um ponto deve ser tratado com rela- ciplina, a fazer da complacência indisciplinada
ção às condições gerais de aprendizado de uma e ociosa pelo resto da vida o contrapeso e o
arte. Não se deve começar a aprender uma arte equilíbrio do modo rotinizado de vida que nos é
diretamente, mas, por assim dizer, indiretamente. imposto durante as oito horas de trabalho. Le-
144 ERICHFROMM A A R T E DE A M A R 145
vantar-se a hora regular, dedicar razoável parte ficar só é a condição da capacidade de amar.
do tempo, durante o dia, a atividade como me- Quem quer que tente ficar só consigo mesmo
ditar, ler, ouvir música, passear; não ceder, pelo descobrirá quão difícil isso é. Começará a sentir-
menos não além de certo mínimo, a ativiçlades se inquieto, nervoso, ou mesmo a experimentar
escapistas como histórias de mistério e fitas de considerável ansiedade. Estará disposto a racio-
cinema, não comer nem beber demais — são nalizar sua má vontade em continuar com essa
algumas regras evidentes e rudimentares. É prática pensando que ela não tem valor, é sim-
essencial, contudo, que a disciplina não seja pra- plesmente tola, toma muito tempo, e assim por
ticada como regra imposta do exterior, e sim diante. Observará também que lhe vêm à mente
que seja a expressão da vontade própria de todas as espécies de pensamento, que tomam
alguém; que seja sentida como agradável, e que conta dele. Ver-se-á a pensar em seus planos
a pessoa vagarosamente se acostume a uma es- para o resto do dia, ou numa dificuldade no
pécie de comportamento que acabaria por esque- trabalho que tem a fazer, ou aonde ir à noite,
cer se parasse de praticá-lo. Fm dos aspectos ou em qualquer número de coisas que lhe enche-
infelizes de nosso conceito ocidental de disciplina rão a mente — em lugar de permitir que ela
(como das outras virtudes) é o de supor-se sua se esvazie. Seria útil praticar uns poucos e
prática algo dolorosa, só podendo ser "boa" se muito simples exercícios como, por exemplo,
for dolorosa. O oriente reconheceu há muito sentar-se em posição repousada (nem espregui-
tempo que aquilo que é bom para o homem — çada, nem rígida), fechar os olhos e tentar ver
para seu corpo e sua alma — deve também ser em frente deles uma tela branca, tentar remover
agradável, ainda que no princípio se torne neces- todos os pensamentos e imagens que interferem,
sário superar certas resistências. tentar acompanhar 3. própria respiração; não
A concentração é bem mais difícil de praticar pensar a respeito dela, nem forçá-la, mas sim-
em nossa cultura, em que tudo parece agir contra plesmente acompanhá-la — e, ao fazê-ío, senti-la;
a capacidade de concentrar-se. O passo mais tentar, além do mais, ter o senso do seu "Eu";
importante no aprendizado da concentração é eu = mim mesmo, como o centro de minhas
aprender a ficar só consigo mesmo, sem ler, sem forças, como o criador de meu mundo. Deveis
ouvir rádio, sem fumar, sem beber. Na verdade, se-ia, pelo menos, fazer esse exercício de concen-
ser capaz de concentrar-se significa ser capaz de tração todas as manhãs durante vinte minutos
ficar só consigo mesmo — e esta capacidade é (se possível, mais) e todas as noites antes de
precisamente uma condição da capacidade de deitar-se. (Embora haja considerável volume de
amar. Se me ligo a outra pessoa porque não teoria e prática a este respeito nas culturas
posso suster-me por meus próprios pés, ele ou orientais, especialmente na indiana, alvos seme-
ela podem ser um salva-vidas, mas a relação não lhantes têm sido objetivados em anos recentes,
é a de amor. Paradoxalmente, a capacidade de também no Ocidente A escola de maior signifü-
146 ERICH FBOMM A A R T E DE A M A R 147
cação, a meu ver, é a de Gindler, cujo objetivo é também da companhia dos zumbis, da gente que
sentir o próprio corpo. Para compreensão do tem a alma morta, embora seu corpo esteja vivo;
método de Gindler, veja-se também a obra de daqueles cujos pensamentos e conversas são tri-
Charlotte Selver, em suas conferências e cursos viais ; que tagarelam em vez de falar e que emitem
na "New School", em Nova York.) opiniões estereotipadas em vez de pensar. Nem
Além de tais exercícios, deve-se aprender a sempre, entretanto, é possível evitar a companhia
ficar concentrado em tudo o que se faz, em ouvir de tal gente, e nem mesmo isso é necessário. Se
música, em ler um livro, em falar com uma pes- não se reage de modo esperado — isto é, por
soa, em ver uma paisagem. A atividade do meio de lugares-comuns e trivialidades —, mas
momento presente deve ser a única coisa que direta e humanamente, muitas vezes se verá que
importa, a que merece plena entrega. Se se que tais pessoas mudam seu comportamento, aju-
está concentrado, pouco importa aquilo que se dadas pela surpresa que o choque do inesperado
esteja fazendo; as coisas importantes, assim como causou.
as sem importância, assumem nova dimensão de Ficar concentrado em relação aos outros
realidade, porque detêm a integral atenção da significa, antes de tudo, ser capaz de ouvir.
pessoa. Aprender concentração exige que se Muitas pessoas ouvem as outras, e até dão con-
evite, tanto quanto possível, a conversação trivial, selhos, sem ouvir realmente. Não levam a sério
isto é, a conversação que não é genuina. Se duas o que a outra pessoa fala, nem também levam a
pessoas falam a respeito do crescimento de uma sério suas próprias respostas. Em consequência,
árvore que ambas conhecem, ou do gosto do pão a conversação deixa-as cansadas. Têm a ilusão
que acabam de comer juntas, ou acerca de uma de que ficariam ainda mais fatigadas se ouvissem
experiência comum em seu serviço, tal conversa com concentração. A verdade, porém, é o oposto.
pode ser importante, clesde que elas experimentem Qualquer atividade, se feita de maneira concen-
aquilo de que falam e não tratem disso de ma- trada, torna-nos mais despertos (embora depois
neira abstraída; por outro lado, uma conversação sobrevenha um cansaço natural e benéfico), ao
pode tratar de assuntos de política ou religião e, passo que qualquer atividade não concentrada
contudo, ser trivial; isto acontece quando as nos deixa sonolentos — e ao mesmo tempo torna
duas pessoas falam usando lugares-comuns, quan- difícil adormecer ao fim do dia.
do seus corações não estão naquilo que dizem. Ficar concentrado significa viver plenamente
Poderia acrescentar aqui que tão importante no presente, agora, aqui, e não pensar na coisa
quanto evitar a conversação trivial é evitar as seguinte a ser feita enquanto estou fazendo outra
más companhias. Por más companhias não me coisa neste instante. Desnecessário é dizer que
refiro apenas a pessoas que sejam viciadas e a concentração deve ser praticada, acima de
destruidoras; deve-se evitar a companhia destas tudo, por pessoas que mutuamente se amam.
porque sua órbita é venenosa e deprimente. Falo Devem aprender a estar próximas uma da outra,
148 E R I C H P R O M M A A R T E DE A M A R 149
sem fugir pêlos muitos modos por que isso é Se encararmos a situação de ser sensível a
costumeiramente feito. O começo da prática da outro ente humano, encontramos o exemplo mais
concentração será difícil; parecerá que nunca se evidente na sensibilidade e na correspondência
alcançará o alvo. Nem é mister dizer que isso da mãe para com o seu filhinho. Ela nota certas
implica a necessidade de ter paciência. Se não mudanças corporais, exigências, ansiedades, antes
se sabe que tudo tem seu tempo, se se quer que se expressem claramente. Desperta por
forçar as coisas, então, na verdade, nunca se causa do choro do filho, quando outro som, muito
conseguirá sucesso em ficar concentrado — nem mais alto, não a acordaria. Tudo isto significa
na arte de amar. Para ter uma ideia do que é que ela é sensível às manifestações da vida do
a paciência, basta quê se observe uma criança filho; não está ansiosa nem preocupada, mas em
aprendendo a andar. Ela cai, torna a cair, cai estado de alertado equilíbrio, receptiva a qual-
outra vez, e, no entanto, continua tentando, me- quer comunicação significativa que provenha da
lhorando, até que um dia anda sem cair. Que criança. Do mesmo modo, pode-se ser sensível
não poderia o adulto realizar se tivesse a paciên- para consigo mesmo. Tem-se consciência, por
cia da criança e sua concentração nos objetivos exemplo, de uma sensação de cansaço e depres-
são e, em vez de ceder a ela e sustentá-la por
que lhe são de importância! sentimentos deprimentes, que sempre estão à
Ninguém pode aprender a concentrar-se sem mão, indaga-se de si mesmo: "que aconteceu $"
tornar-se sensível a si mesmo. Que significa Por que estou deprimido? O mesmo se faz
isso f Deve alguém pensar acerca de si mesmo notando-se quando se está irritado ou encoleri-
todo o tempo, "analisar-se", ou o quê? Se fôs- zado, ou com tendência a sonhar acordado, ou a
semos falar em ser sensível a uma máquina, outras atividades de evasão. Em cada uma des-
haveria pouca dificuldade em explicar o que sas situações, o importante é estar cônscio delas,
isso significa. Qualquer pessoa que guie um e não racionalizá-las pêlos mil e um modos por
automóvel, por exemplo, é sensível a ele. Mesmo que isso pode ser feito; além do mais, estar
um ruído pequeno, inabitual, é notado, como o é aberto à nossa própria voz interior, que nos dirá
uma pequena alteração no arranque do motor. — muitas vezes quase de imediato — porque
Do mesmo modo, o motorista é sensível às mu- estamos ansiosos, deprimidos, irritados.
danças na superfície da estrada, aos movimentos A pessoa comum tem sensibilidade com rela-
dos carros atrás e à frente do seu. Contudo, ele ção a seus processos corporais; nota mudanças,
não está pensando em todos esses fatôres; sua ou mesmo pequenas manifestações de dor; esta
mente está em estado de repouso alertado, aberta espécie de sensibilidade corporal é relativamente
a todas as coisas de relevo na situação em que fácil de elperimentar, porque a maioria das pes-
ele se concentra: a de guiar seu carro com segu- soas tem uma imagem do que é sentir-se bem.
rança. A mesma sensibilidade para com os próprios
150 ERICH FROMM A A R T E DE A M A R 151
processos mentais é muito mais difícil, porque ao homem comum o sucedâneo de um sentimento
muitos nunca conheceram uma pessoa que fun- de satisfação. Estrelas de cinema, animadores de
cionasse otimamente. Tomam como a norma o rádio, colunistas, figuras importantes do governo
funcionamento psíquico de seus pais e parentes, ou dos negócios — esses são os modelos a imitar.
ou do grupo social em que nasceram, et enquanto Sua principal qualificação para essa função está,
não diferem deles, sentem-se normais e sem in- muitas vezes, em terem conseguido tornar-se no-
teresse em observar qualquer coisa. Muitas pes- tícia. Contudo, a situação não parece ser inteira-
soas há, por exemplo, que nunca viram uma mente desesperada. Se se considera o fato de
pessoa amorosa, ou uma pessoa de integridade, que um homem como Albert Schweitzer pôde
coragem ou concentração. É de todo evidente tornar-se famoso nos Estados Unidos, se se têm
que, a fim de ser sensível a si mesmo, tem-se de em vista as muitas possibilidades de familiarizar
possuir uma imagem de funcionamento humano a juventude com personalidades vivas e histó-
completo, saudável — e como se adquire tal ricas que mostram o que os seres humanos podem
experiência, quando não foi ela tida na própria realizar como seres humanos e não como entre-
infância, ou mais tarde na vida? Por certo, tenedores (no amplo sentido da palavra), se se
não há resposta simples para esta pergunta; mas pensa nas grandes obras de literatura e arte de
ela indica um dos mais críticos fatôres de nosso todas as épocas, parece haver uma oportunidade
sistema educacional. de criar uma visão de bom funcionamento humano
Enquanto ensinamos conhecimentos, estamos e, portanto, a sensibilidade ao mau funcionamento.
perdendo aquele ensinamento que é o mais im- Caso não consigamos manter viva uma visão de
portante para o desenvolvimento humano: o ensi- vida amadurecida, então, na verdade, confrontar-
namento que só pode ser dado pela simples nos-á a probabilidade de ver ruir toda a nossa
presença de uma pessoa amadurecida e amorosa. tradição cultural. Esta tradição não se baseia
Em épocas anteriores de nossa própria cultura, primordialmente na transmissão de certos tipos
ou na China e na índia, o homem mais altamente de conhecimento, nas na de certas espécies de
apreciado era a pessoa de eminentes qualidades traços humanos. Se as gerações vindouras não
espirituais. Mesmo o professor não era só, nem mais virem esses traços, desmoronar-se-á uma
sequer primariamente, uma fonte de informação, cultura velha de cinco mil anos, mesmo que seus
mas sua função era transmitir certas atitudes conhecimentos se transmitam e ainda mais se
humanas. Na sociedade capitalista contemporâ- desenvolvam.
nea — e o mesmo é exato quanto à Rússia Comu- Até aqui discuti o que é necessário para a
nista — os homens sugeridos à admiração e à prática de qualquer arte. Agora discutirei as
emulação podem ser tudo, menos portadores de qualidades que são de significação específica para
qualidades espirituais significativas. Ficam es- a capacidade de amar. De acordo com o que já
sencialmente às vistas do público aqueles que dão disse sobre a natureza do amor, a principal con-
152 ERICH FROMM A A R T E DE A M A R 153
dição para realização do amor é a superação do mulher, por exemplo, telefona a um médico, di-
narcisismo. A orientação narcisista é aquela em zendo que quer ir ao seu consultório nessa mesma
que só se experimenta como real o que existe tarde. O médico responde que não tem tempo
dentro da pessoa, ao passo que os fenómenos do livre nessa tarde, mas poderá vê-la no dia
inundo exterior não têm realidade em si mesmos, seguinte. A resposta dela é: "Mas, doutor, eu
mas são experimentados somente do ponto de moro só a cinco minutos de seu consultório..."
vista de serem úteis ou perigosos. O polo oposto Ela não pode compreender a explicação do mé-
ao narcisismo é a objetividade; é a faculdade dico de que o fato de ser a distância tão curta
de ver pessoas e coisas tais como são, objetiva- para ela não economizará o tempo dele. Experi-
mente, e* a capacidade de separar esta imagem menta ela a situação narcisistamente: uma vez
objetiva de uma imagem formada pêlos desejos que ela poupa tempo, ele poupará tempo; a
e temores que se tenham. Todas as formas de única realidade, para ela, é ela mesma.
psicose mostram a incapacidade de ser objetivo,
em extremo grau. Para a pessoa insana, a única Menos extremas — ou talvez apenas menos
realidade que existe está dentro dela, é a de seus evidentes — são as distorções que constituem
temores e desejos. Vê o mundo externo como lugares-comuns nas relações interpessoais. Quan-
símbolo de seu mundo interno, como criação sua. tos pais não experimentam as reações do filho
Todos fazemos a mesma coisa, quando sonhamos. em termos de ser-lhes obediente, de dar-lhes
No sonho, produzimos acontecimentos, encenamos prazer, de sentirem orgulho dele, e assim por
dramas, que são a expressão de nossos desejos diante, em vez de perceber, ou mesmo interessar-
e temores (embora às vezes também de nossas Ihes, aquilo que o filho sente, por si e para si
penetrações e julgamentos) e, enquanto dormi- mesmo? Quantos maridos não formam uma ima-
mos, estamos convencidos de que o produto de gem de suas esposas como sendo dominadoras,
nossos sonhos é tão real como a realidade que porque seu próprio apego à mãe os leva a
percebemos estando acordados. interpretar qualquer solicitação como uma res-
A pessoa insana, ou o sonhador, falha cow- trição à sua liberdade? Quantas esposas não
pletamente em ter uma visão objetiva do mundo acham seus maridos ineficientes ou estúpidos,
exterior; mas todos nós somos mais ou menos porque não correspondem à imagem fantasiosa
insanos, ou mais ou menos adormecidos; todos de um brilhante cavaleiro que elas podem ter
nós temos uma visão não objetiva do inundo, formado quando crianças?
falseada pela nossa orientação narcisista. Ne- A falta de objetividade, no que se refere às
cessito dar exemplos? Qualquer üítt pode eiï- nações estrangeiras, é notória. De um dia para
contrá-los facilmente, observando-se, observando outro, uma nação se transforma em extrema-
os vizinhos, lendo os jornais. Variam no grau mente depravada e diabólica, ao passo que a
de adulteração narcisista da realidade. Uma nação do julgador se ergue como modelo de tudo

154 ERICHFROMM A A R T E DE A M A R 155


quanto é bom e nobre. Cada ação do inimigo é meus interesses, necessidades e temores. Adqui-
julgada por um padrão, — cada uma das pró- rir a capacidade de objetividade e de razão ó
prias, por outro. Mesmo os atos bons praticados meio caminho andado para assenhorear-se da
pelo inimigo são considerados um sinal de par- arte de amar, mas isso deve ser adquirido com
ticular satanismo, com o intuito de enganar-nos relação a todos aqueles com quem se entra em
e ao mundo, ao passo que nossas más ações são contacto. Se alguém quer reservar sua objetivi-
necessárias e justificadas pêlos nobres alvos a dade para a pessoa amada, pensando poder
que servem. Na verdade, quando se flyq.Tninfl.ni
as relações entre nações, assim como entre indiví- dispensá-la em suas relações com o resto do
duos, chega-se à conclusão de que a objetividade inundo, logo descobrirá que falhou tanto numa
é exceção e um grau maior ou menor de distorção como noutra coisa.
narcisista é a regra. A capacidade de amar depende da capaci-
A faculdade de pensar objetivamente é a dade de emergir do narcisismo e da fixação
razão; a atitude emocional por trás da razão é a incestuosa à mãe e ao clã; depende de nossa capa-
da humildade. Ser objetivo, usar a razão, só é cidade de crescer, de desenvolver uma orientação
possível quando se consegue uma atitude de produtiva em nossas relações para com o mundo
humildade, quando se emerge dos sonhos de onis- e para conosco mesmos. Esse processo de
ciência e onipotência que se tem quando criança. emersão, de nascimento, de despertar requer,
Em termos desta discussão da prática da como condição necessária, uma qualidade: a fé.
arte de amar, isto significa; o amor, por ser A prática da arte de amar exige a prática da fé.
dependente da relativa ausência de narcisismo, Que é fé? Será a fé, necessariamente, uma
requer o desenvolvimento da humildade, da obje- questão de crença em Deus ou em doutrinas
tividade e da razão. A vida inteira deve ser religiosas? Estará a fé, por força, em contraste
devotada a esta finalidade. Humildade e objeti- com a razão e o pensamento racional, ou divor-
vidade são indivisíveis, como o é o amor. Não ciada deles? Mesmo para começar a entender
posso ser verdadeiramente objetivo a respeito de o problema da fé, deve-se diferenciar entre a
minha família, se não posso ser objetivo com fé racional e a irracional. Por fé irracional
relação ao estranho, e vice-versa. Se quero apren- compreendo a crença (numa pessoa ou numa
der a arte de amar, devo esforçar-me pela ideia) baseada na submissão à autoridade irra-
objetividade em todas as situações e tornar-me cional. Em contraposição, a fé racional é uma
sensível às situações em que não sou objetivo. convicção enraizada na própria experiência que
Devo tentar ver a diferença entre o retrato que se tem de pensamento ou sentimento. A fé
eu faço de uma pessoa e de seu comportamento, racional não é primordialmente a crença em algo,
quando narcisistamente distorcido, e a realidade mas a qualidade de certeza e firmeza que nossas
da pessoa, tal como existe, independentemente de convicções possuem. Fé é um traço de caráter
156 E R I C H F R O M M A. A R T E DE A M A R 157
que embebe toda a personalidade, em vez de uma de uma teoria, a fé é necessária: fé na visão,
crença específica. como alvo racionalmente válido a alcançar; fé na
A fé racional tem raízes na atividade produ- hipótese, como proposição igualmente provável;
tiva intelectual e emocional. No pensamento e fé na teoria final, pelo menos até que se
racional, em que para a fé se supõe não haver atinja um consenso geral sobre sua validez. Esta
lugar, a fé racional é componente importante. fé se enraíza na experiência própria, na confi-
Como, por exemplo, chega o cientista a uma nova ança depositada no próprio poder de pensamento,
descoberta? Começa fazendo experiência após de observação e de julgamento. Enquanto a fé
experiência, reunindo fato após fato, sem ter irracional é a aceitação de alguma coisa como
uma visão do que espera encontrar? Raras verdade apenas porque uma autoridade ou a
vezes uma descoberta verdadeiramente importan- maioria o afirmam, a fé racional tem raízes
te, em qualquer campo, foi efetuada dessa ma- numa convicção independente} baseada na própria
neira. Nem se chega a conclusões importantes observação produtiva e no pensamento, apesar
quando simplesmente se anda a perseguir uma da opinião da maioria.
fantasia. O processo do pensamento criador, em Pensamento e julgamento não são o único
qualquer setor do esforço humano, muitas vezes reino da experiência em que a fé racional se ma-
começa com o que se pode chamar "visão racional", nifesta. Na esfera das relações humanas, a f é é
e que em si é resultado de considerável estudo qualidade indispensável a qualquer amizade ou
prévio» de pensamento refletido e de observação. amor significativos. "Ter fé" em outra pessoa
Quando o cientista consegue reunir bastantes significa estar certo de que ela merece confiança,
dados, ou elaborar uma formulação matemática da imutabilidade de suas atitudes fundamentais,
para tornar sua visão original altamente plausí- do núcleo de sua personalidade, de seu amor. Não
vel, pode-se dizer que ele chegou a uma hipótese quero dizer com isto que uma pessoa não possa
experimentativa. Cuidadosa análise da hipótese, mudar de opinião, e sim que suas motivações
a fim de discernir o que ela implica, e a coleção básicas permanecem as mesmas; que, por exem-
de dados que a sustentem, levam a tuna hipótese plo, seu respeito à vida e à dignidade humana
mais adequada e talvez, finalmente, à sua inclusão é parte dela própria, não sujeita a mudanças.
numa teoria de amplo alcance. No mesmo sentido temos fé em nós mesmos.
A história da ciência está repleta de exem- Somos conscientes da existência de um ser, de
plos de fé na razão e de visões de verdade. um núcleo em nossa personalidade que é imutá-
Copérnico, Kepler, Galileu e Newton estavam vel e que persiste através de toda a nossa vida,
todos imbuídos de inabalável fé na razão. Por apesar das circunstâncias variáveis e independen-
isso Bruno foi queimado na fogueira e Spinoza temente de certas alterações em opiniões e senti-
sofreu excomunhão. A cada passo dado da con- mentos. Esse núcleo é que constitui a realidade
cepção de uma visão racional até à formulação por trás da palavra "Eu", e sobre ele se baseia
158 ERICH FROMM AARTEDEAMAR 159
a nossa convicção de nossa própria identidade é potencialidades. A presença dessa fé estabelece
ameaçado e tornamo-nos dependentes de outras a diferença entre a educação e a manipulação.
pessoas, cuja aprovação se torna, então, a base A educação identifica-se com o auxílio à criança
de nosso sentimento de identidade. Só quem tem para que realize suas potencialidades. (A raiz
fé em si mesmo é capaz de ser fiel aos outros, da palavra educação é e-ãucere, literalmente,
porque só assim pode estar certo de que será levar adiante, ou fazer brotar algo que se acha
num tempo futuro o mesmo que é hoje e, portanto, potencialmente presente.) O contrário da edu-
de que agirá e sentirá como agora se espera que cação é a manipulação, que se baseia na ausência
o faça. A fé em si mesmo é uma condição de da fé no crescimento das potencialidades e na
nossa capacidade de prometer, e se o homem, convicção de que uma criança só se sairá bem se
como disse Nietzsche, pode ser definido por sua os adultos introduzirem nela o que é desejável e
capacidade de prometer, então a f é é uma das suprimirem o que pareça ser indesejável. Não
condições da existência humana.. O que importa há necessidade de ter fé num "robot", porque nele
em relação ao amor é a f é no .amor que se tem, também não há vida.
em sua capacidade de produzir amor em outros A fé nos outros tem sua culminação na fé na
e em seu merecimento de confiança. 'humanidade. No mundo ocidental, essa fé expres-
Outro significado de ter fé numa pessoa sou-se, em termos religiosos, na religião judaico-
refere-se á fé que temos nas potencialidadea cristã e, em linguagem secular, encontrou a ex-
alheias. A mais rudimentar forma em que esta pressão mais forte nas ideias humanísticas polí-
fé existe é a f é que a mãe tem para com o filho ticas e sociais dos últimos cento e cinquenta
recém-nascido: ele viverá, crescerá, andará, fala- anos. Como a f é na criança, baseia-se ela na
rá. Contudo, o desenvolvimento da criança a tal ideia de que as potencialidades do homem são
respeito ocorre com tal regularidade que a tais que, dadas as condições adequadas, ele será
expectativa disso parece não requerer fé. O capaz de edificar uma ordem social governada
caso é diferente quando se trata das potenciali- pêlos princípios da igualdade, da justiça e do
dades que podem deixar de desenvolver-se: as amor. O homem ainda não conseguiu a cons-
potencialidades da criança para amar, ser feliz, trução de tal ordem, e, portanto, a convicção de
utilizar sua razão, além das mais específicas, que ele o possa fazer exige fé. Mas, como toda
como os dons artísticos. Suas sementes crescem fé racional, esta também não é um pensamento
e se tornam manifestas se forem dadas condições só desejável, mas se baseia na evidência das
adequadas a seu desenvolvimento, e secam-se, se realizações passadas da raça humana e na expe-
estas condições estiverem ausentes. riência interior de cada indivíduo, em sua própria
Uma das mais importantes entre essas con- experiência de razão e amor.
dições é a de que a pessoa que tem significação Se a fé irracional se enraíza na submissão
para a vida de uma criança tenha fé nessas a uma força que se sente ser esmagadoramente
160 E R I C H F R O M M A A R T E DE A M A R 161
vigorosa, onisciente e onipotente, e na abdicação a dor e a decepção. Quem quer que insista na
da força e do vigor que se tenham, a fé racional íncolumidade e na segurança como condições
se baseia na experiência oposta. Temos essa fé primárias de vida não pode ter fé; quem quer
num pensamento porque este é o resultado do que se feche num sistema de defesa, em que a
que nós mesmos observamos e pensamos. Temos distância e a possessividade sejam seus principais
fé nas potencialidades alheias, nas nossas, nas meios de segurança, faz de si um prisioneiro.
da humanidade, porque, e só até o grau em que, Ser amado e amar requerem coragem, a coragem
experimentamos o crescimento de nossas próprias de julgar certos valores como sendo de extrema
potencialidades, a realidade do crescimento em preocupação, de saltar á frente e apostar tudo
nós, a força de nosso próprio poder de razão e nesses valores.
de amor. A ~base da fé racional é a produtivi- Esta coragem é muito diferente daquela de
dade: viver por nossa fé significa'viver produti- que falava o famoso fanfarrão Mussolini, ao
vamente. Daí se segue que a crença no poder usar o lema: "viver perigosamente". Sua espé-
(no sentido de dominação) e o uso do poder são cie de coragem é a coragem do niilismo. En-
o reverso da fé. Acreditar no poder que existe raiza-se numa atitude destrutiva para com a vida,
é o mesmo que descrer do crescimento das poten- na predisposição a lançar fora a vida por se ser
cialidades que ainda não foram realizadas. É incapaz de amá-la. A coragem do desespero é
uma predição do futuro exclusivamente baseada o contrário da coragem do amor, assim como a
no presente manifesto; mas isso se demonstra fé no poder é o contrário da fé na vida.
um grave equívoco, profundamente irracional em Existe algo que se possa praticar acerca de
sua consideração das potencialidades humanas e fé e coragem? Na verdade, a fé pode ser prati-
do crescimento humano. Não há fé racional no cada a cada momento. Criar um filho exige fé;
poder. Há submissão a ele, ou, da parte dos que adormecer exige fé; começar qualquer trabalho
o têm, o desejo de conservá-lo. Se para muitos exige fé. Mas todos estamos acostumados a ter
o poder parece ser a mais real de todas as coisas, esta espécie de fé. Quem não a tem sofre de
a história do homem tem provado que ele é a excesso de ansiedade por seu filho, ou de insónia,
mais instável de todas as realizações humanas. ou da incapacidade de fazer qualquer espécie de
Em vista do fato de se excluírem mutuamente a trabalho produtivo; ou é suspeitoso, refreando-
f é e o poder, todas as religiões e todos os siste- se de aproximar-se de qualquer pessoa, ou
mas políticos originalmente construídos sobre a hipocondríaco, ou incapaz de fazer quaisquer
fé racional se tornam corruptos e acabam por planos de longo alcance. Apegar-se ao julga-
perder o vigor que têm, quando confiam no poder mento que se tem a respeito de uma pessoa, ainda
ou a ele se aliam. que a opinião pública ou certos fatos imprevistos
Ter fé requer coragem, a capacidade de pareçam invalidá-lo, aferrar-se às próprias con-
correr um risco, a disposição de aceitar mesmo vicções, ainda que sejam impopulares — tudo
162 ERICH FROMM A A R T E DE A M A R 163
isso requer fé e coragem. Tomar as dificuldades, entendia "fazer alguma coisa", e sim uma ativi-
obstáculos e tristezas da vida como um desafio dade interna, o uso produtivo dos próprios po-
que devemos superar para tornar-nos mais fortes, deres. O amor é uma atividade; se amo, estou
em vez de como uma punição injusta que não em constante estado de -ativa preocupação pela,
nos devia sobrevir, requer fé e coragem. pessoa amada, mas não só por ela ou ele. De
A prática da fé e da coragem começa com fato, eu seria incapaz de relacionar-me ativamente
os pequenos detalhes da vida diária. 'O primeiro com a pessoa amada se fosse preguiçoso, se não
passo é verificar onde e quando se perde a fé, estivesse em permanente estado de alerta, de
olhar através das racionalizações que se usam conhecimento, de atividade. O sono é a única
para encobrir essa perda de fé, reconhecer onde situação adequada à inatividade; o estado des-
se age de modo covarde, e, de novo, como se perto não deve ter lugar para a preguiça. A
procura justificar isso. Eeconhecer como cada situação paradoxal de vasto número de pessoas,
traição à fé nos enfraquece e como a fraqueza hoje, é estarem semi-adormecidas quando acor-
aumentada leva a nova traição, e assim por dadas ë semi-acordadas quando a dormir, ou
diante, num círculo vicioso. Então, também se quando querem dormir. Estar plenamente acor-
reconhecerá que quando se tem conscientemente dado é a condição para não aborrecer nem ficar
medo de não ser amado, o medo real, embora aborrecido — e, na verdade, não aborrecer nem
habitualmente inconsciente, é o de amar. Amar
significa entregar-se sem garantia, dar-se com- ficar aborrecido é uma das principais condições
pletamente na esperança de que nosso amor para amar. Ser ativo em pensamento, senti-
produzirá amor na pessoa amada. Amar é um mento, olhos e ouvidos, o dia inteiro; evitar a
ato de fé, e quem tiver mesquinha fé terá tam- ociosidade interior, a forma de ser receptivo,
bém mesquinho amor. Poder-se-á dizer mais amealhador, o mero desperdício do tempo — isto
acerca da prática da fé? Poder-se-ia; se eu é condição indispensável para a prática da arte
fosse um poeta, ou um pregador, tentá-lo-ia. de amar. É uma ilusão crer que se possa dividir
Mas, como não sou nenhum dos dois, nem mesmo a vida de modo tal que se seja produtivo na
posso tentar dizer mais acerca da prática da esfera do amor e improdutivo em todas as outras
fé, senão que estou seguro de que quem estiver esferas. A produtividade não permite essa divi-
realmente interessado pode aprender a ter fé são de trabalho. A capacidade de amor reclama
como uma criança aprende a caminhar. um estado de intensidade, de alerta, de vitalidade
TJma atitude indispensável à prática da arte acentuada, que só pode ser o resultado de uma
de amar e que até aqui só tem sido mencionada orientação ativa e produtiva em muitas outras
de modo implícito deve ser discutida explicita- esferas da vida. Se não se é produtivo em
mente, pois é básica para a prática do amor; é outras esferas, também não se é produtivo no
a atividade. Disse antes que por atividade não amor.
164 ERICH FROMM A A R T E DE A M A R 165
A discussão da arte de amar náo se pode Quer tratemos do mercado de artigos, do mer-
restringir ao reino pessoal de adquirir e desen- cado de trabalho, ou do mercado de serviços,
volver as características e atitudes descritas cada pessoa troca aquilo que tem para vender
neste capítulo. Liga-se ela inseparavelmente ao por aquilo que deseja adquirir, sob as condições
reino social. Se amar significa ter uma atitude do mercado, sem uso da força ou da fraude.
amorosa para com todos, se o amor é um traço A ética da probidade presta-se à confusão
do caráter, deve ele necessariamente existir nas com a ética da Regra Áurea. A máxima "faze
relações que se tenham, não só com a própria aos outros como queres que te façam" pode ser
família e amigos, mas também com aqueles com interpretada como significando "sê probo em tuas
os quais se tem contacto, através do trabalho, trocas com os outros". Mas, de fato, ela foi
dos negócios, da profissão. Não há "divisão de formulada como uma versão mais popular do
trabalho" entre o amor pêlos nossos e o amor Bíblico "ama a teu próximo como a ti mesmo".
pêlos estranhos. Ao contrário: a condição para Na verdade, a norma judaico-cristã do amor
a existência do primeiro é a existência do último. fraterno é inteiramente diferente da ética da
Levar bem a sério esta concepção representa, probidade. Significa amar ao próximo, isto é,
deveras, mudança bastante drástica do que é sentir-se responsável por ele, um com ele, ao
costumeiro nas relações sociais. Ao mesmo tem- passo que a ética da probidade significa não se
po que muito se fala de boca para fora sobre o sentir responsável, nem um, mas distante, sepa-
ideal religioso do amor ao próximo, nossas rela- rado; significa respeitar os direitos do próximo,
ções são efetivamente determinadas, no melhor mas não amá-lo. Não é por acaso que a Kegra
dos casos, pelo princípio da probidade. Probi- Áurea se tornou, hoje em dia, a mais popular
dade significa não usar fraude e enganos na máxima religiosa; por poder ser interpretada em
troca de artigos e serviços, bem como na troca de termos da ética da probidade, é a máxima reli-
sentimentos. "Dou-te tanto quanto me dás", em giosa que todos podem compreender e desejam
bens materiais assim como em amor, eis a máxi- praticar. Mas a prática do amor deve começar
ma ética predominante na sociedade capitalista. pelo reconhecimento da diferença entre probidade
Pode-se mesmo dizer que o desenvolvimento da e amor.
ética da probidade é a peculiar contribuição ética Aqui, porém, surge uma questão importante.
da sociedade capitalista. Se toda a nossa organização social e económica
As razões deste fato estão na própria natu- se baseia em procurar cada qual sua própria
reza da sociedade capitalista. Nas sociedades vantagem, se é governada pelo princípio do
pre-capitalistas, a troca de bens era determinada egoismo temperado apenas pelo princípio ético
pela força direta, ou pela tradição, ou por laços da probidade, oomo se poderá fazer negócios,
pessoais de amor e amizade. No capitalismo, o como se poderá agir dentro da moldura da socie-
f ator que tudo determina é a troca no mercado. dade existente e, ao mesmo tempo, praticar o
166 ERICH PROMM A A R T E DE A M A R 167
amor? Não implica este último o abandono de fenómeno complexo. O vendedor de um artigo
todas as preocupações seculares, para comparti- inútil, por exemplo, não pode funcionar econo-
lhar da vida dos mais pobres f Esta questão foi micamente sem mentir; um trabalhador capaci-
suscitada e respondida de maneira radical pêlos tado, um químico, um físico, podem. Do mesmo
monges cristãos e por pessoas como Tolstoi, modo, um fazendeiro, um operário, um professor,
Albert Schweitzer e Simone Weil. Outros há e muitos tipos de homens de negócios podem
(cf. o artigo de Herbert Marcuse sobre "As tentar praticar o amor sem deixar de funcionar
implicações sociais do revisionismo psicanalítico" economicamente. Mesmo que se reconheça ser
em Disaent, Nova York, verão de 1955) que o princípio do capitalismo incompatível com o
compartilham da opinião de haver básica incom- princípio do amor, deve-se admitir que o "capita-
patibilidade entre o amor e a vida secular normal lismo" é, em si, uma estrutura complexa e cons-
em nossa sociedade. Chegam ao resultado de que tantemente mutável, que ainda permite boa
falar de amor, hoje, apenas significa participar porção de não-conformismo e de latitude pessoal.
da fraude geral; proclamam que só um mártir Ao dizer isto, porém, não quero implicar
ou um louco pode amar no mundo de hoje e, que possamos esperar continui indefinidamente
portanto, que toda discussão a respeito do amor
não passa de sermão, Este ponto de vista muito o presente sistema social, esperando ao mesmo
respeitável presta-se docilmente a uma racionali- tempo a realização do ideal do amor pelo nosso
zação de cinismo. Na realidade, é implicitamente irmão. Pessoas capazes de amar, sob o presente
partilhado pela pessoa comum que sente: "Eu sistema, são necessariamente exceções. O amor
gostaria de ser um bom cristão.,. mas teria de é, por necessidade, um fenómeno marginal nos
morrer de f orne se levasse isso a sério." Este dias atuais da sociedade ocidental. Não tanto
"radicalismo" resulta em niilismo moral. Tanto porque muitas ocupações não permitiriam uma
os "pensadores radicais" como a pessoa comum atitude amorosa, mas porque o espírito de uma
são áutOmatos sem amor e a única diferença sociedade centralizada na produção, ávida de
entre eles está em que a última não tem cons- artigos, é tal que só o não-coníormista pode
ciência disso, ao passo que os primeiros sabem defender-se com sucesso contra ele. Aqueles que
disso mas reconhecem esse fato como uma "ne- se preocupam seriamente com o amor como a
cessidade histórica". única resposta racional ao problema da existência
Estou convencido de que a resposta da abso- humana devem, então, chegar à conclusão de
luta incompatibilidade entre o amor e a vida que importantes e radicais mudanças em nossa
"normal" só é correta num sentido abstraio. estrutura social são necessárias, para que o amor
O princípio que alicerça a sociedade capitalista se torne um fenómeno social, e não um fenómeno
e o principio do amor são incompatíveis. Mas a altamente individualista e marginal. Dentro do
sociedade moderna, concretamente vista, é um alcance deste livro, o rumo de tais mudanças
168 E R I G H F R O M M A ARTE A M A * 169
apenas pode ser sugerido. (Em The Sane So- geral ausência hoje em dia e criticar as condições
ciety, Routiedge, (Kegan Paul), Londres, tentei sociais responsáveis por essa ausência. Ter fé
tratar detalhadamente deste problema.) Nossa na possibilidade do amor como fenómeno social,
sociedade é dirigida por uma burocracia gerencial, e não apenas excepcional-individual, é uma fé
por políticos profissionais; o povo é motivado racional baseada em penetração na própria na-
pela sugestão dá massa, seu alvo é produzir mais tureza do homem.
e consumir mais, como finalidades em si. Todas
as atividades se subordinam a metas económicas;
os meios tornarain-se fins; o homem é um autó- FIM
mato — bem alimentado, bem vestido, mas sem
qualquer preocupação última pelo que constitui
sua qualidade e função peculiarmente humanas*
Para que o homem seja capaz de amar, deve
ele ser colocado em seu lugar supremo. A má-
quina económica deve servi-lo, em vez de servir-
se dele. Deve ele ficar capacitado a compartilhar
da experiência, a compartilhar do trabalho, em
vez de, no melhor dos casos, compartilhar dos
lucros. A sociedade deve ser organizada de modo
tal que a natureza social e amorosa do homem
não se separe de sua existência social, mas se
unifique com ela. Se é verdade, como venho
tentando mostrar, que o amor é a única resposta
sadia e satisfatória ao problema da existência
humana, então qualquer sociedade que exclua,
relativamente, o desenvolvimento do amor deve,
no fim de contas, perecer vitimada por sua pró-
pria contradição com as necessidade básicas da
natureza humana. Na verdade, falar de amor
não é "pregar sermão", pela simples razão de
que significa falar da última e real necessidade
de todo ser humano, O obscurecimento dessa
necessidade não significa que ela não exista.
Analisar a natureza do amor é descobrir sua
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