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Lucília Salgado (coord.)

A Educação de Adultos :
uma dupla
oportunidade
na família

Perspectivas e Reflexões
LISBOA, 2010

A Educação de Adultos :
uma dupla
oportunidade
na família
Textos apresentados no I Encontro Internacional de Literacia Familiar

Lucília Salgado, António Candeias, Lourdes Mata, Susana Coimbra,


Ana Teberosky, Núria Ribera, Michael F. DiPaola, Manuela Castro Neves,
Cristina Pinto, Joana Cruz, Catarina Costa, Célia Silva, Micaela Silva,
Patrícia Pinto, Sara Almeida, Tânia Santos, Pierre Dominicé, Patrícia Ávila,
Cláudia Andrade, Carolina Cardoso, Joana Ferreira

Perspectivas e Reflexões
Ficha Técnica
Título:
A Educação de Adultos:
uma dupla oportunidade na família

Editor:
Agência Nacional para a Qualificação, I.P.
(1ª edição, Dezembro 2010)

Coordenação
Lucília Salgado

Autores
Lucília Salgado, António Candeias, Lourdes Mata,
Susana Coimbra, Ana Teberosky, Núria Ribera,
Michael F. DiPaola, Manuela Castro Neves,
Cristina Pinto, Joana Cruz, Catarina Costa, Célia Silva,
Micaela Silva, Patrícia Pinto, Sara Almeida, Tânia Santos,
Pierre Dominicé, Patrícia Ávila, Cláudia Andrade,
Carolina Cardoso, Joana Ferreira

Organização
Lucília Salgado, Cláudia Andrade, Joana Ferreira
e Carolina Cardoso

Design Gráfico:
Modjo Design, Lda.

Adaptação do Design Gráfico e Paginação:


Regina Andrade

Revisão:
ANQ, I.P.

Execução Gráfica: Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação


Eurodois, Lda.

Depósito Legal: A EDUCAÇÃO DE ADULTOS


000 000/00 A educação de adultos : uma dupla oportunidade nas famílias /
Lucília Salgado...[et al.]. – (Perspectivas e reflexões ; 2)
ISBN 978-972-8743-68-0
Tiragem:
1 500 exemplares I - SALGADO, Lucília

ISBN: CDU 374


978-972-8743-68-0 331

Agência Nacional para a Qualificação, I.P.


Av. 24 de Julho, nº138 1399-026 Lisboa Tel. 213 943 700 Fax. 213 943 799 www.anq.gov.pt
ÍNDICE
Prefácio 5
Maria do Carmo Gomes 00
Agência Nacional para a Qualificação 00
Nota de Apresentação 7
Lucília Salgado 00
Escola Superior de Educação de Coimbra 00

Introdução
As Novas Potencialidades da Educação de Adultos 11
na Construção do Sucesso Escolar dos Filhos 00
Lucília Salgado 00
00
Parte I
A Génese do (In)sucesso Escolar: na Escola e na Família 29
A Persistência do Atraso Educativo Português nos Nossos Dias: 31
Portugal nos Processos de Alfabetização, Escolarização 00
e Criação de Capital Humano nos Séculos XIX, XX e XXI 00
António Candeias 00
Literacia Familiar – Diversidade, Desafios e Princípios Orientadores 51
Lourdes Mata 00
Uma Questão de Confiança: o que (Des)motiva a Geração Actual? 59
Susana Coimbra 00
Los Juegos de Lenguaje y Alfabetización Inicial 77
Ana Teberosky e Núria Ribera 00
00
Parte II
A Construção do Sucesso Escolar 89
Systemic Educational Reform in the United States: 91
The No Child Left Behind Act of 2001 00
Michael F. DiPaola 000

 05
Envolver a Família no e através 099
do Programa Nacional do Ensino do Português (PNEP) 00
Cristina Pinto
“A Ler Vamos…”: Um Projecto da Câmara Municipal de Matosinhos 117
Joana Cruz, Catarina Costa, Célia Silva, Micaela Silva,
Patrícia Pinto, Sara Almeida, Tânia Santos

Parte III
O Projecto de Escolarização 127
para os Filhos e a Literacia Familiar: Contexto e Práticas
La Formation Entendue Comme 129
Processus Construit dans L’histoire d’une Vie 00
Pierre Dominicé
Adultos pouco Escolarizados e Literacia. 135
Um Olhar sobre a Literacia em Contexto Familiar 00
Patrícia Ávila 00
Conciliação Trabalho-Família em Adultos 149
em Formação nos Centros Novas Oportunidades 00
Cláudia Andrade 00
Os Adultos no Contexto do Processo de RVCC: Uma Abordagem 157
das Representações e Práticas da Leitura e da Escrita 00
Carolina Cardoso e Joana Ferreira 00
Os Adultos no Contexto do Processo de RVCC: Uma Abordagem 169
das Representações e Práticas do Processo de Escolarização 00
Joana Ferreira e Carolina Cardoso 00
00


Maria do Carmo Gomes1

Prefácio
It takes a village to raise a child é um provérbio popular africano que tem sido usado frequentemente para salientar o papel conjunto da comunidade,
dos pais e das instituições na educação das crianças e dos jovens. E é verdade que os estudos mais recentes têm vindo a demonstrar que quanto
maior é o envolvimento dos pais e da comunidade na vida escolar dos seus filhos mais elevado é o seu desempenho e mais tranquila é a sua
transição para a vida adulta. Maior envolvimento dos pais é, pois, um dos caminhos para o sucesso escolar dos filhos.

Mas se são verdadeiras estas conclusões e resultados demonstrados pela investigação científica também é verdade que algumas correlações
existem e que delas se devem retirar as devidas ilações – os pais que mais se envolvem são, em norma, pais mais escolarizados e com profissões
mais qualificadas, com pertenças sociais a classes mais letradas e com práticas e hábitos culturais diferenciados e mais frequentes.

Ora, o nosso país tem em média, num número muito superior aos outros países da OCDE e da União Europeia, pais pouco escolarizados, os
quais pertencem à larguíssima faixa de adultos que não completaram o ensino básico ou secundário e que, em 2001, perfaziam cerca de 75%
da população activa. Estávamos no início do século XXI e em Portugal a situação estrutural das qualificações da população adulta era esta, pese
embora o enorme esforço e o progresso assinalável realizados.

Desde o 25 de Abril que a escolarização da população portuguesa tem sofrido melhorias consideráveis, não só em termos de taxa de escolarização
das gerações mais jovens mas também na elevação dos níveis de escolaridade. Se esta é uma realidade inquestionável, também se sabe que
muitos dos que já tiveram oportunidade de prosseguir os seus estudos acabaram por abandonar precocemente a escola ou por ter a marca
do insucesso nos seus percursos escolares. São estes os pais de baixa qualificação que hoje acompanham os seus filhos na vida escolar. E
é a estes pais que, muitas vezes, se pede um maior envolvimento na vida escolar dos seus filhos e uma maior participação cívica e social na
comunidade.

A investigação coordenada por Lucília Salgado sobre Literacia Familiar e Sucesso Escolar que deu origem ao I Encontro Internacional de Literacia
Familiar e ao livro que aqui se publica tem demonstrado que há, neste momento, em Portugal um conjunto de políticas públicas na área da
educação-formação de adultos que está a contribuir de modo decisivo para que esse maior envolvimento aconteça, ao mesmo tempo que se
alcança o objectivo de elevação dos níveis de qualificação dos portugueses. 

A Iniciativa Novas Oportunidades através do seu eixo de intervenção destinado à população adulta – objecto empírico do trabalho de investigação
realizado pela equipa da Escola Superior de Educação de Coimbra – enquadra, assim, as medidas de política de qualificação que têm tido efeitos
(in)directos nas práticas familiares. Por um lado, há consequências directas nas práticas de leitura, escrita e cálculo, incrementando o uso de suportes
escritos (e em grande parte das situações usando suportes electrónicos); por outro lado, há efeitos indirectos, tais como o acompanhamento mais
regular das tarefas escolares dos filhos, maior participação em reuniões escolares, e maior atenção aos resultados obtidos pelas crianças e jovens
destas famílias. Há também a expectativa, numa dimensão mais projectiva, de que os seus filhos possam ter trajectórias escolares de maior sucesso
que os próprios conseguindo assim concretizar aspirações de mobilidade social para os seus descendentes, as quais passam em grande medida pela
obtenção de níveis de escolaridade superiores. Este estudo pretende ainda, ao longo do segundo ano de pesquisa, obter resultados sobre a relação
que estes contextos familiares mais ricos em práticas de literacia possam ter no sucesso escolar das crianças e jovens.

 Vice-Presidente da Agência Nacional para a Qualificação, I.P.

 05
Os resultados obtidos são muito encorajadores e reveladores da enorme potencialidade que as dinâmicas de qualificação de adultos podem ter
na promoção de práticas de literacia de maior complexidade na vida quotidiana, na maior participação dos pais nas comunidades escolares e no
desenvolvimento de hábitos culturais mais diferenciados e frequentes. Veremos também se poderão contribuir do mesmo modo para a existência
de vidas escolares mais bem sucedidas por parte dos filhos.

Neste contexto, tive oportunidade na abertura dos trabalhos do encontro realizado em Coimbra, em Novembro de 2009, de considerar a Iniciativa
Novas Oportunidades como uma revolução silenciosa no contexto da educação em Portugal. Revolução, sim! Revolução nas práticas, nos
públicos, nas metodologias, nas pedagogias, nas referências curriculares, nos técnicos – seus perfis e funções – , nas soluções organizacionais,
nas respostas aos cidadãos. Muitas vezes desconhecida (ou mal conhecida) a Iniciativa Novas Oportunidades é constituída por um conjunto muito
diversificado de soluções de educação-formação procurando responder de modo ajustado aos diferentes públicos que a ela poderão recorrer. E
está a ser concretizada no terreno com um empenho técnico e profissional por milhares de docentes, técnicos, conselheiros de orientação, entre
outros. São também centenas as organizações que nela se envolveram – escolas públicas e privadas, centros de formação, escolas profissionais,
entidades privadas, empresas, associações empresariais e sindicais, e associações de desenvolvimento local e regional. E, por último, como
um dos aspectos mais importantes a salientar, a Iniciativa é reconhecida por mais de um milhão de adultos portugueses como uma resposta
adequada à sua vontade de voltar a estudar, de aprender mais, de fazer mais formação ou de completar o 12º ano, como muitos afirmam.

O estudo que a Lucília Salgado e a sua equipa está a desenvolver é um bom princípio para explorarmos novas pistas de investigação, novos
efeitos (in)directos, novas consequências (im)previstas, novos desafios para a intervenção das políticas públicas de qualificação de adultos. Este
seminário deu um importantíssimo contributo para que a análise e reflexão científica neste domínio se tenha intensificado.

Um dia será possível compreender de modo mais aprofundado de que forma é que educando e formando os nossos adultos, educámos e formámos
melhor as gerações dos seus filhos. E que esses filhos tornando-se pais e avós mais escolarizados, mais integrados e mais participativos tiveram
também eles o seu papel de reprodução social criando gerações futuras de portugueses e portuguesas mais despertos para o conhecimento e para
as aprendizagens. É esse o futuro das sociedades mais desenvolvidas. Espero sinceramente que também possa passar por aqui o futuro de Portugal!


Lucília Salgado1

Nota de Apresentação
O presente livro propõe-se dar conta das comunicações apresentadas no I Encontro Internacional de Literacia Familiar realizado na Escola
Superior de Educação de Coimbra (ESEC), em Novembro de 2009.1
Procurava este Encontro cruzar os quadros teóricos que, de uma forma transversal, fundamentaram e deram origem ao Estudo que temos em
curso em colaboração com a Agência Nacional para a Qualificação, I.P. (ANQ) sobre a importância da frequência dos pais, com baixos níveis de
escolaridade, nos processos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) para o sucesso escolar dos seus filhos.

O livro abre com uma apresentação das principais problemáticas fundamentadoras desta hipótese de investigação desenvolvidas por Lucília
Salgado, Professora da ESEC, que tendo iniciado a sua actividade no domínio da Educação de Adultos, transporta estas perspectivas educativas
para a compreensão da génese do insucesso escolar das crianças à entrada para a escola básica. No artigo As novas potencialidades da Educação
de Adultos na construção do sucesso escolar dos filhos, identifica-se as principais causas do insucesso escolar, quer junto das famílias de baixo
nível de escolaridade, quer junto do sistema educativo que nem sempre oferece respostas adequadas às necessidades destas crianças. É esta
compreensão que permite construir a hipótese de que através da educação de adultos (processo de RVCC), será possível criar condições de base
para o sucesso das crianças logo no início da vida escolar.

A Parte I desta obra procura questionar A génese do (in)sucesso escolar: na escola e na família. Assim, António Candeias, Professor na
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com o artigo: A persistência do atraso educativo português nos nossos
dias: Portugal nos processos de alfabetização, escolarização e criação de Capital Humano nos séculos XIX, XX e XXI evoca uma perspectiva
histórica explicativa da razão dos baixos níveis de competências escolares das famílias portuguesas equacionados numa escolaridade tardia,
comparada com a maior parte dos países considerados desenvolvidos, sobretudo os europeus.

Após a apresentação da sua comunicação em Coimbra e já depois de corrigido o seu artigo para esta obra, faleceu inesperadamente António
Candeias e assim a possibilidade de nos poder continuar a elucidar sobre as razões históricas das nossas baixas qualificações. Pela disponibilidade
que sempre manifestou a este projecto os nossos agradecimentos. Pela extraordinária pessoa e investigador que foi aqui queremos registar a
nossa homenagem.

Esclarecendo a temática chave deste Encontro, Lourdes Mata, Professora do Instituto Superior de Psicologia Aplicada apresenta o artigo: Literacia
familiar – diversidade, desafios e princípios orientadores evidenciando o modo como a Literacia na família é portadora de potencialidade da
aprendizagem da leitura e da escrita nas crianças.

Procurando desvendar a importância da família na construção do sucesso escolar dos filhos começamos por evidenciar os trabalhos de Anne-
Marie Fontaine sobre a motivação das crianças para o sucesso escolar2. Na impossibilidade da sua participação neste Encontro, Susana Coimbra,
da sua equipa na Faculdade de Psicologia e Ciência da Educação da Universidade do Porto, apresenta o artigo: Uma questão de confiança: o que
(des)motiva a geração actual.

Emília Ferreiro e Ana Teberosky nos seus trabalhos sobre Psicogénese da Linguagem Escrita3, apresentam os resultados da sua investigação,
numa perspectiva piagetiana, sobre o tipo de motivação para a leitura e escrita e o modo como se desenvolvem as condições prévias para a sua

 05
aprendizagem no interior da família. Neste sentido, Ana Teberosky e Núria Ribera da Universidade de Barcelona trabalham um dos aspectos desta
problemática com o artigo: Los juegos de lenguaje y alfabetización inicial 4.

Poderíamos ser levados a considerar que dado o baixo nível de escolaridade das famílias, as crianças de meios pouco letrados estariam fatalmente
condenadas ao insucesso escolar. As autoras acima referidas participaram num Encontro na América Latina5 onde mostraram como, em vários
países, escolas e comunidades se organizaram para construir respostas adequadas a estas crianças.

Na Parte II deste livro, sobre A construção do sucesso escolar quisemos trazer a experiência dos Estados Unidos convidando Michael F. DiPaola
de Williamsburg, Virginia, que nos apresentou o Systemic Educational Reform in the United States: The No Child Left Behind Act Of 20016.
Procurando experiências que têm por objectivo dar respostas ao insucesso escolar, apresentamos dois testemunhos e projectos de referência
realizados em Portugal: uma experiência da escola do 1º ciclo do ensino básico que promove a participação das famílias na escrita dos filhos,
Envolver a Família no e através do PNEP7, por Cristina Pinto e “A Ler Vamos…”: Um projecto da Câmara Municipal de Matosinhos que visa a
promoção de competências de literacia emergente como estratégia de promoção do sucesso escolar, por Joana Cruz, Catarina Costa, Célia Silva,
Micaela Silva, Patrícia Pinto, Sara Almeida e Tânia Santos.

Na Parte III – O projecto de escolarização para os filhos e a Literacia Familiar: contexto e prácticas, debruçamo-nos sobre as duas grandes
mais-valias que a Educação de Adultos, mais precisamente através do processo de RVCC desenvolvido nos Centros Novas Oportunidades (CNO),
pode constituir para o desenvolvimento de um Projecto de Escolarização para os Filhos e para o desenvolvimento da Literacia Familiar. Neste
capítulo entra-se no âmbito da Educação de Adultos, com Pierre Dominicé da Faculté de Psychologie et des Sciences de l’Éducation da Université
de Genève que nos apresenta um depoimento: La formation entendue comme processus construit dans l’histoire d’une vie extraído de uma
extensa bibliografia neste domínio.

Patrícia Ávila, professora no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), apresenta no seu artigo: Adultos pouco escolarizados
e literacia. Um olhar sobre a literacia em contexto familiar alguns elementos de caracterização do perfil de literacia dos adultos em Portugal e
sistematiza alguns resultados de um estudo qualitativo realizado junto de adultos pouco escolarizados recentemente envolvidos em processos
de educação e formação.

Apresentam-se, seguidamente, três artigos com os resultados de investigação desenvolvidos na primeira fase do projecto “CNO uma Oportunidade
Dupla: da promoção da literacia familiar ao sucesso escolar das crianças”. Este estudo exploratório teve por base entrevistas semi-estruturadas
efectuadas a 40 adultos que realizaram o processo de RVCC de nível básico e que têm filhos a frequentar o 1º ciclo do ensino básico8.

Cláudia Andrade, investigadora sénior deste projecto, professora na ESEC e investigadora sobre a família no Centro de Psicologia da Faculdade
de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, apresenta o seu artigo: Conciliação trabalho-família em adultos em formação
nos Centros Novas Oportunidades, debruçando-se sobre o contexto familiar onde se operam as transferência entre pais e filhos.

Carolina Cardoso e Joana Ferreira, assistentes de investigação neste projecto analisam, através do artigo: Os adultos no contexto do processo de
RVCC: Uma abordagem das representações e práticas da leitura e da escrita, de que modo o processo de RVCC facilita e potencia a introdução de
hábitos e práticas de Leitura e Escrita na família, fundamentais na aprendizagem da linguagem escrita no início da escolaridade.

As mesmas autoras, no artigo: Os adultos no contexto do processo de RVCC: Uma abordagem das representações e práticas do processo de
escolarização, procuram compreender se o adulto que realizou o processo de RVCC modifica a sua interacção com os filhos e em que medida
as novas competências e conhecimentos adquiridos permitem aos pais incutir nos filhos valores que passem pela vontade e interesse pela
escolarização.

1 Professora na Escola Superior de Educação de Coimbra.


2 Fontaine, A-M. (1990). Motivation pour la réussite scolaire. Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica e Centro de Psicologia da Universidade do Porto.
3 Ferreiro, E. & Teberosky, A. (1985). Psicogénese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas.
4 Os jogos de linguagem e a alfabetização inicial.
5 Ferreiro, E. (1992). Os filhos do analfabetismo: Propostas para a alfabetização escolar na América Latina. Porto Alegre: Artes Médicas.
6 Reforma do Sistema Educativo: A Lei de 2001 “Não deixar crianças para traz”.
7 Alguns resultados do PNEP (Programa Nacional de Ensino do Português) promovido pelo Ministério da Educação em escolas do 1º ciclo do ensino básico e
coordenado por Inês Sim-Sim (entre 2006 e 2010), mostram já a transformação efectuada em escolas envolvidas passíveis de ajudar a modificar a situação de
insucesso escolar.
8 Esta fase do estudo foi realizada também por Filipa Moraes, docente da ESEC e Inês Cruz e Cláudia Ferreira, assistentes de investigação, que apresentaram
a metodologia do Projecto numa comunicação, neste Encontro.


Introdução

 05
10
As novas potencialidades
da educação de adultos na construção
do sucesso escolar dos filhos

11 05
Lucília Salgado1, 2

Resumo
Marcado por um atraso na escolarização para todos – acesso e permanência na
escola do 1º ciclo – a situação histórica portuguesa no século XX colocou os
nossos níveis educativos numa escala de valores entre os mais baixos da Europa.

A ausência de uma cultura de escolarização na família e a fraca utilização da leitura


e escrita estarão na origem do insucesso e desinteresse pela escola que dificultam
uma escolarização das crianças. Embora a perspectiva sócio-institucional de
atribuição causal do insucesso escolar (Benavente, 1976) não escuse a escola da
resposta a atribuir a estes destinatários verificamos que, apesar de existentes, são
raras as situações em que a Escola consegue vencer esta dificuldade de partida.

A procura massiva dos Centros Novas Oportunidades por uma população com
baixos níveis de escolaridade conduziu à criação da hipótese de que a situação
nas famílias com filhos à entrada para o ensino básico estaria a mudar em relação
ao envolvimento dos pais na sua escolaridade. O estudo que temos em curso
tem vindo a produzir resultados que confirmam esta hipótese. Assim, poderemos
ser levados a concluir que o envolvimento em Educação de Adultos, mais
especificamente no processo de RVCC (Reconhecimento, Validação e Certificação
de Competências) estará a ter uma importância indirecta na subida dos níveis de
qualidade da educação escolar em Portugal.

1. Introdução passar, para além da resolução dos problemas imediatos e


quotidianos, por uma mudança profunda na educação de
Marcada por níveis muito baixos de qualidade da educação, a construção e acesso de uma formação que permita a todos o
sociedade portuguesa entra neste milénio numa situação difícil para bem-estar possível numa economia de carácter sustentável.
recuperar o seu atraso secular em relação aos países da Europa
central e para enfrentar os novos desafios que anunciou na sua Após uma análise da situação da educação em Portugal que
conferência de Lisboa 2000, os da sociedade do conhecimento.,  se apresentava sem esperança (Salgado, 2003) cumpre agora
anunciar o início de recuperação, ao identificar sinais de
As medidas políticas lançadas nos últimos cinco anos parecem mudança positiva na educação das crianças e, sobretudo, na
querer inverter a situação sendo, eventualmente, portadoras de educação de adultos. É o que nos propomos fazer neste capítulo,
uma reforma estrutural no campo educativo antevendo impactos apoiado pelos artigos que a seguir fundamentam o diagnóstico
esperados a nível económico e de cidadania dos portugueses. e as mudanças que conseguimos visualizar na educação em
De facto, o quadro da luta contra a nossa pobreza secular parece Portugal. Foi já esse o sentido que encontramos no 1º Encontro
de Literacia Familiar que realizámos em Coimbra, no mês de
Novembro, de 2009, e cuja memória escrita apresentaremos
 Coordenadora do projecto: “CNO - uma oportunidade dupla: da promoção
da literacia familiar ao sucesso escolar das crianças”. Professora na Escola nos próximos capítulos deste livro.
Superior de Educação de Coimbra.

 Com a colaboração do assistente de investigação Carlo Patrão. Vamos, numa primeira parte deste capítulo, identificar as

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nossas preocupações de necessidade educativa na sociedade do grupos “marginais da população como os idosos, deficientes
conhecimento perspectivando o futuro a partir de um passado de diverso tipo e imigrantes” mas sim, referindo que “cidadãos
marcado por contingências históricas identificadas. adultos, por vezes com mais de dez anos de frequência de
escola básica, revelam actualmente uma absoluta incapacidade
Numa segunda parte, tentaremos perceber como se constroem de recorrer à leitura e à escrita para a resolução dos problemas
os nossos baixos níveis educativos logo à entrada no 1º do seu quotidiano.”
ciclo do ensino básico. Da situação charneira entre a escola
e a família, iremos reflectir e apurar quais os factores que, O Estudo Nacional da Literacia, publicado em 1996, vem mostrar
para além de eventuais fatalismos sociológicos, podem ser que a nossa realidade cruza uma situação de analfabetismo
identificados e eventualmente removidos através de medidas tradicional de não acesso ou abandono precoce da escola, típica
políticas – e pedagógicas – adequadas. Nesse sentido, dos países periféricos, com a situação apresentada no estudo da
procuraremos recuperar, a nível nacional e mundial, políticas OCDE referido em que cidadãos que já tiveram acesso à escola
potencialmente portadoras de mudança no sistema educativo revelam níveis reduzidos de competência de leitura – literacia
e na comunidade. – quando confrontados com um texto escrito necessário ao
seu quotidiano. De facto, podemos aí verificar que 47,3%
Feito o diagnóstico e focalizadas as medidas de mudança no da população inquirida se situa nos níveis 0 e 1 de literacia
sistema educativo, desvendaremos, no campo das práticas da revelando que praticamente metade da nossa população adulta
Iniciativa Novas Oportunidades, impactos na relação dos pais não lê no seu quotidiano. Os nossos indicadores são não só os
com os filhos, com o sistema escolar e com a necessidade de mais baixos dos países da OCDE como semelhantes aos países
aprender que se apresentam hoje como factor de remoção do do chamado terceiro mundo onde a maioria da população ainda
principal obstáculo ao sucesso às aprendizagens das crianças: não tem acesso à escola. Estaremos em presença de uma dupla
a baixa escolaridade dos pais. situação adversa ou serão apenas as duas faces de uma mesma
moeda?
2. Das necessidades de aprendizagem na sociedade
actual O acesso tardio à escolarização da população portuguesa
(Candeias, 1996) justifica o nosso atraso educativo. Enquanto
Nas sociedades actuais, marcadas pela globalização da produção praticamente toda a Europa escolarizou toda a sua população
e das respectivas formas de regulação, assim como pelo nos finais do século XIX, princípios do XX, nós, tendo perdido
desenvolvimento célere das tecnologias, a educação tem vindo esta oportunidade, acabámos por poder garantir a presença na
a ser considerada e questionada como capaz de resolver ou de escola de toda a população apenas nos anos 70. No entanto,
contribuir fortemente para atenuar grandes problemas actuais escolarização não significou alfabetização e, apesar do acesso
que vão desde a tradicionalmente considerada exclusão social, à escola, muitas crianças vêem vedado o acesso aos saberes
ao desemprego estrutural, até aos entraves e aos avanços na considerados fundamentais para viver com direitos de cidadania,
produtividade que o desenvolvimento tecnológico exige. na sociedade actual. Não aprendem a ler e começam assim um
ciclo de insucesso escolar nas suas vidas (Salgado, 2003).
Em 1992, a OCDE, através da edição do relatório Analfabetismo
Funcional e Rentabilidade Económica, lança o desafio aos seus Questionando a génese deste insucesso escolar deparamo-nos
estados membros para que no âmbito da educação, tomem com dois grandes problemas convergentes nesta resposta, uma
especial atenção aos processos de aquisição da literacia, delas centrada na origem do problema: o que caracteriza as
indo assim mais longe do que falar apenas, globalmente, em crianças que não adquirem as competências previstas à entrada
Educação como vinha sendo corrente. Com este relatório estava
lançado o alerta aos estados membros ligando a dificuldade
 Ver, nesta obra o artigo de António Candeias, “A persistência do atraso
com que se debatem devido às baixas competências de leitura educativo português nos nossos dias: Portugal nos processos de alfabetiza-
e escrita dos seus trabalhadores, referindo que não se trata de ção, escolarização e criação de Capital humano nos séculos XIX, XX e XXI”.

13 05
para escola. A outra centra-se no modo como a escola responde arrastam o insucesso durante toda a escolaridade, enquanto
a estas características. De facto, se a escola é para todos – se aguentam na escola (Salgado, 2003). Países como a França,
princípio constitucionalmente admitido – poderemos dizer que em que a participação de todas as crianças em pelo menos um
existe uma inadequação da resposta a estes destinatários. ano de jardim-de-infância é conhecida há mais de quarenta
anos, onde as bibliotecas de bairro proliferam há muitos mais,
3. Do atraso da escolarização ao insucesso escolar onde existem programas com associações para a mediação
da leitura em quase todos os lugares, debatem-se hoje com
Apesar da nossa abordagem das políticas educativas, nos problemas sérios devido às dificuldades de leitura à saída da
últimos anos, se ter preocupado com o tipo de resposta que sua escola primária. Um recente alerta do Haut Conseil de
a escola oferece às crianças oriundas de meios baixamente l’Éducation (2007) diz-nos que apenas 60% das suas crianças
escolarizados (Salgado, 2003) a emergência de uma nova que terminam o 1º ciclo do ensino básico (de cinco anos) está
resposta, inesperada, obriga-nos a centrar a nossa atenção em condições de prosseguir uma escolaridade com sucesso. E
nas necessidades e nos modos de aprendizagem das crianças qual será a nossa percentagem?
na sua entrada no sistema escolar, focalizando a atenção na
herança familiar. O insucesso escolar não é, de modo nenhum, um fatalismo.
E a solução não é administrativa: passar todos de ano sem
De facto, há mais de trinta anos que conseguimos que todas as saberem. O desafio estará mesmo em conseguir que todos
nossas crianças frequentem a escola, no entanto, apenas uma aprendam devidamente à entrada para a escola. Adquirir as
parte consegue usufruir plenamente do acesso à educação, mais competências básicas nos dois primeiros anos de escolaridade
precisamente, ao sucesso nas aprendizagens. Muitos jovens é o passaporte de sucesso para toda a vida.
abandonam a escola sem a escolaridade obrigatória e quase
metade tem que repetir pelo menos um ano para conseguir obter No sentido de evitar que muitas crianças arrastem o insucesso
uma certificação mínima (Capucha, Albuquerque, Rodrigues e através de toda escolaridade os Estados Unidos promulgaram
Estevão, 2009). o No Child Left Behind Act  de modo a que nenhuma criança
fique sem adquirir as competências básicas à entrada para a
Socializadas em famílias com baixos níveis de escolarização escola.
encontramos uma população que, na sua maioria, revela o que
a escola chama de dificuldades de aprendizagem, desmotivação Em Portugal muitos professores, trabalhando em meios sociais
precoce, insucesso ou abandono escolar. De outras diríamos adversos, conseguem ter todas as crianças a ler na Primavera
ainda que conseguem ir avançando mal no sistema, portadoras do ano de iniciação da escolaridade. Os vários materiais e estudo
da chamada morbilidade escolar, uma vez que os seus níveis de produzidos pelo e sobre o Movimento da Escola Moderna são
aprendizagem são inseguros, fracos. testemunho da possibilidade de ensinar a ler a todas as que se
iniciam na escolaridade.
Sabemos também que uma das principais causas do insucesso
escolar tem como base uma deficiente aprendizagem da De passagem gostaríamos ainda de referir as mudanças
leitura e da escrita: muitas crianças lêem mal, lentamente, ou
não compreendem o que lêem. Estas crianças ou começam  Alguns cálculos permitem-nos aventar para cerca de 60%. Ora, 60% de crian-
cedo com insucesso e desinteresse escolar reprovando logo ças que não tem um bom domínio da leitura não é uma minoria e estará na base
dos nossos baixos níveis educativos.
na primeira avaliação sumativa – mais de 10% no 2º ano de
escolaridade – ou acabam por reprovar no 2º ciclo, ou ainda,  Ver a comunicação nesta obra de Michel Di Paola “Systemic Educational Re-
form in the United States: The No Child Left Behind Act of 2001”.
 De facto, este segundo vector do problema não será objecto desta obra, em-
7 Referimo-nos às crianças não portadoras de deficiência sabendo que um
bora as nossas preocupações caminhem igualmente nesse caminho. Centrar-
meio social deficitário não gera automaticamente crianças com dificuldades de
nos-emos, neste contexto, apenas na génese do problema, as características
aprendizagem perante uma pedagogia adequada.
dos destinatários.

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que parecem estar a efectuar-se na própria escola do ensino quais os obstáculos e os facilitadores que, à entrada para a
básico. O Programa Nacional de Ensino do Português (PNEP) escola, podem contribuir para inverter a situação facilitando
será portador de novas maneiras de propor a aprendizagem o acesso à aprendizagem de todas as crianças qualquer que
às crianças, à entrada do 1º ciclo facilitadoras de aquisição da seja o seu meio social de origem. Nesta linha de preocupações
competência de ler e escrever com maior funcionalidade na encontrámos duas características na maioria das famílias
sociedade do conhecimento. Apesar de não haver ainda estudos que se considera de meios socioeconómicos considerados
realizados neste domínio permitimo-nos, através de pequenos desfavorecidos que estarão na génese da produção do
trabalhos exploratórios, aventar que crianças cujos professores insucesso escolar:
têm estado envolvidos na formação deste Programa revelam,
nas provas aferidas, melhores resultados em língua portuguesa 4.1. Ténue existência de um projecto de escolarização para
do aquelas cujos professores não se voluntariaram para esta os filhos
formação. Um número significativo de crianças poderá mais
facilmente aceder à literacia mas, a dificuldade de vencer a Uma primeira característica prende-se com a ausência, ou
situação de base – iliteracia nas famílias – será forçosamente presença ténue, de um projecto de escolarização para os
apoiada por outros programas de desenvolvimento na educação seus filhos. As suas vidas decorreram sem os levar a passar
de infância e nas comunidades para que as dificuldades de adequadamente pela escola e conseguiram sobreviver. Por
partida sejam um obstáculo removido. essa razão, às primeiras dificuldades que os filhos registam
consideram que “Não dão para a escola”. Estas famílias
4. “Deficits” nas famílias aceitam o fatalismo desta reprodução social, e o afecto aos
filhos (“coitadinhos não conseguem, a escola é muito difícil”)
Apesar dos sociólogos da educação dos anos 70 (Baudelot &
aliado à falta de consciência da sua auto-eficácia própria neste
Establet, 1974; Bourdieu & Passeron, 1970) evidenciarem a
domínio evadem-lhes a intervenção no processo escolar dos
relação entre meio social e sucesso escolar apontando para a
seus descendentes directos.
função da escola de manutenção da estrutura de classe, cumpre
questionar se no tempo da sociedade do conhecimento esta
Estas famílias não escolarizadas não constituem modelo para
necessidade de recusar o acesso à aprendizagem a uma grande
os filhos na formação da sua identidade na relação positiva – a
maioria das crianças ainda seria útil à hegemonia dos grupos
conducente ao sucesso escolar – com a escola. As preocupações
dominantes ou se a escola apenas mantém esta função por
na família são de outra ordem não sentindo, as crianças que, à
inércia reaccionária ao desenvolvimento a que se propõe. No
escola, seja atribuída grande importância. Para os rapazes, este
entanto, o investigador social preocupa-se em entender o modo
problema acentua-se uma vez que todo o universo escolar é
como a escola se organiza para que, após garantir o acesso
composto por mulheres. As educadoras e professoras e todos
a todas as crianças, apenas grupos minoritários consigam a
os que trabalham na escola são mulheres, quem se preocupa
aprendizagem cabal dos objectivos enunciados. Mandato ou
de organizar a vida familiar para enviar os filhos à escola são,
inércia? O facto é que apesar do discurso acerca da burguesia e
maioritariamente, as mães. Nos modelos parentais e sociais de
do proletariado em que se polarizava a sociologia dos anos 70,
adultos que a criança encontra para construir a sua identidade,
a escola continua a reproduzir as classes sociais.
a escola não existe como algo determinante10.
Interessa, pois, saber, numa perspectiva contra hegemónica,

8 O PNEP organiza-se através de um Formador Residente por Agrupamento de


Sabemos também que as dificuldades de relação destes pais
Escolas que, tendo sido sujeito a uma formação específica, forma e apoia os
professores do 1º ciclo do seu Agrupamento que se voluntariaram para esta  Consideramos que o factor “desfavorecido”, na sociedade do conhecimento,
formação. Este trabalho é acompanhado por textos e materiais realizados por remete para a sua relação com a escolarização enquanto projecto de vida para
uma Comissão Nacional de Acompanhamento coordenada por Inês Sim-Sim si e para os seus filhos, com a ausência de práticas correntes de leitura e escrita
e por um Coordenador Regional docente na Instituição de Ensino Superior de no quotidiano.
Educação do respectivo Distrito. Apesar do carácter voluntário da formação
calcula-se que cerca de metade dos professores do 1º ciclo já terão sido objecto 10 Em Inglaterra, a Pré-school Learning Alliance desenvolve um programa especial
desta formação realizada dentro e fora da sala de aula. para que sejam os pais – homens – a relacionar-se com a vida escolar dos filhos rapazes.

15 05
com a escola, os leva a afastar-se contactando pouco com os nem as manipulam com as crianças. De facto, segundo
professores dos filhos. Para além da dificuldade de relação Teberosky, (2001) a aprendizagem da escrita, enquanto
marcada pela diferença das classes sociais de pertença, os artefacto cultural, não passa só pela presença no universo da
professores consideram que estes pais se entendem mal com a criança mas pelo seu envolvimento, com outros indivíduos, na
escola levando a atribuir as ausências à falta de interesse pelos sua manipulação.
filhos. O conflito, mesmo latente, está instalado o que dificulta
ainda mais a comunicação (Perrenoud & Montandon, 1987). Semelhante ao modo como se aprende a falar a criança
precisa, em primeiro lugar, de ter necessidade de ler. Esta
Também a consciência da necessidade de ajudar os filhos a fazer necessidade, em famílias letradas11 cria-se pelo gosto adquirido
os trabalhos escolares está ausente das suas preocupações. ao ouvir os seus adultos significativos a contar-lhes histórias,
Acreditam que a escola ensinará os seus filhos, não tendo fundamentais para o seu crescimento, respondendo às suas
consciência da cumplicidade que a escola exige com a família angústias e inseguranças (Bettelheim, 1985). Perceberá então
para ajudar os filhos nas aprendizagens escolares (Meirieu, que, se tiver a capacidade de ser ela própria a fazê-lo, se torna
1987). Muitas vezes, quando se dispõem a ajudar temem não mais autónoma ao conseguir ler sozinha as histórias. O gosto
saber fazê-lo ou por não saberem mesmo as matérias ou por pela leitura instala-se e, com ele, a vontade de aprender a ler e,
não ser capazes de responder às expectativas dos professores sabemos (Ferreiro & Teberosky, 1985) que ela própria, sozinha
(Salgado & Reis, 1993). ou em grupo, enceta a descoberta da organização do texto
escrito e, amiúdes vezes surgem casos de aprendizagem da
4.2. Fraca (ou nula) existência da literacia na família leitura sem o seu ensino explícito.

Uma segunda característica passa pelas dificuldades de Também, nas famílias letradas, as crianças aprendem para que
aprender a ler e a escrever à entrada para a escola. Para além serve ler e escrever à medida que, de um modo funcional, a criança
da inadequação da oferta educativa já referida, estas crianças vê os seus adultos significativos a fazê-lo. No seu quotidiano,
não possuem um projecto de leitor que lhes possibilite lêem instruções de aparelhos ou para fazer receitas de cozinha,
envolvimento nesta aprendizagem. Vários autores (Ferreiro, escrevem por razões diversas no computador, lêem notícias de
1985; Martins, 1996) referem que a aprendizagem da leitura jornais ou revistas, tiram dúvidas em livros ou na internet, para
passa pela criação ou desenvolvimento da necessidade de comunicar com amigos ou familiares. Vêem igualmente como os
aprender a ler – porque as suas pessoas significativas lêem e adultos se relacionam com o texto escrito onde escrevem e como
lhes lêem, pela compreensão da funcionalidade da leitura e da o fazem, que materiais utilizam e com que funções.
escrita – saber onde, para quê e como se lê (Chauveau, 2001)
e pelo desenvolvimento de conceptualizações sobre como se Numa família onde não existam estas práticas quotidianas
dificilmente as crianças têm oportunidade de adquirir esta
lê e escreve, praticada anteriormente ao processo técnico de
familiaridade com o texto escrito. Ao chegar à escola, na maior
aquisição da competência de leitura e escrita (Salgado, 2000).
parte dos casos, são-lhe apresentados textos sem nexo, letras
O termo corrente para esta fase de aprendizagem é o de literacia
para decifrar fora dos contextos reais, num manual escolar
emergente (Clay, 1991). Sabemos também que as crianças de
muitas vezes com palavras desfasadas do quotidiano (pua,
meios letrados, onde a literacia familiar se desenvolve, entram
águia…). O texto escrito surge-lhes como um jogo escolar,
nas escolas com níveis elevados de literacia emergente, algumas
muitas vezes fastidioso, que dificilmente poderá criar o gosto,
tendo mesmo aprendido a ler quando inseridas num “banho de
o interesse, a necessidade de ler. A leitura fica, deste modo
escrita” de natureza familiar (Chauveau & Martine, 1997).
remetida para a esfera escolar não passado a consciência da
sua utilidade no quotidiano social.
Inseridas em famílias não letradas, as crianças não têm
oportunidade de ver os seus progenitores relacionar-se com a
escrita. Mesmo se existem palavras escritas nas embalagens
utilizadas no quotidiano doméstico, os adultos não as referem 11 As que utilizam no seu quotidiano a leitura e a escrita.

16
Os trabalhos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1985) vêm Foi esta hipótese que colocámos perante a informação de que
desvendar o conhecimento prévio que as crianças, que cerca de 900 000 de pessoas, de baixos níveis de escolaridade
contactam com a escrita antes da sua iniciação formal em procuravam os Centros Novas Oportunidades envolvendo-se
contexto escolar, adquirem através da sua construção numa num projecto de escolarização (www.novasoportunidades.gov.pt).
aprendizagem por descoberta (Piaget, Bruner, 1999). Dizem-nos
que não só constroem um projecto pessoal de leitor (Martins, Os dados disponíveis (Idem) permitem precisamente concluir que
1991), como descobrem como o texto se organiza, evoluindo, a procura de Centros advém de uma faixa de população situada na
passo a passo nessa compreensão, através de estágios idade de ter filhos – entre os 25 e 44 anos – (61,5%), sobretudo
de conhecimento evolutivos numa perspectiva piagetiana. mulheres (53,5%) o que leva permitir criar a hipótese de que
Nesse processo adquirem a consciência fonológica e mesmo sendo a população que procura os Centro Novas Oportunidades
fonémica, facilitada pelo desenvolvimento da sua linguagem situada na idade de ter filhos em idade escolar e sendo as
oral, sobretudo lexical (Duarte, 2008; Sim-Sim, 2007). mulheres quem maioritariamente se ocupa da vida escolar dos
filhos algo poderia acontecer na mudança de relação.
Pelas razões expostas, a dificuldade de aprender a ler e o gosto
e facilidade da leitura torna-se mais difícil para as crianças Sendo a falta de projecto de escolarização para os filhos e a
oriundas de famílias onde não se lê nem escreve. Toda a ausência de literacia nas famílias as duas grandes diferenças
retaguarda cultural e linguísta necessária à aprendizagem da encontradas junto das famílias com mais altos níveis de
leitura e escrita não existe ou só aparece deficientemente, e a escolarização cujos filhos têm sucesso escolar, conhecendo as
criança sente-se desprovida de um background fundamental práticas desenvolvidas em contexto de RVCC (Reconhecimento,
para a aprendizagem. O jardim-de-infância não tem, muitas Validação e Certificação de Competências) podemos pensar que
vezes, esta preocupação diferenciada e sistemática, a escola do as mudanças no interior das famílias poderiam ser portadoras
1º ciclo também não e, a não aprendizagem ou aprendizagem de novas estratégias na escolarização dos filhos.
deficiente da leitura vai-se arrastando, criando o acto de ler
em algo fatigante e mesmo fastidioso. A presença de livros de Por um lado, o facto de um dos pais procurar elevar o seu
histórias que, para muitas crianças constitui fonte de satisfação, nível de escolaridade significaria a existência, aquisição ou
para as crianças que começam, deste modo, a sofrer o seu desenvolvimento da importância da escola para si próprio,
primeiro insucesso, torna-se um instrumento de sofrimento e primeiro passo para considerar a sua importância no futuro dos
descriminação. seus filhos. Por outro lado, a manipulação de materiais de escrita
na presença do seu filho trariam a esta família as condições
5. Centros Novas Oportunidades (CNO) – Uma prévias referidas para a aprendizagem da leitura e da escrita.
oportunidade dupla: da promoção da literacia
familiar ao sucesso escolar das crianças Pierre Dominicé considera que a expressão da sua história
de vida, contando-a a outro, é portadora de aprendizagens
5.1. A procura dos Centros Novas Oportunidades quer seja no domínio do aprofundamento dos conhecimentos
construídos quer na sua organização e sistematização12.
Transportando esta preocupação pretendemos com o presente
trabalho dar conta de novos movimentos na sociedade A construção de um projecto de investigação feito com estas
portuguesa com potencialidades de modificar a actual situação premissas permitiria verificar a hipótese percebendo as
educativa. mudanças ocorridas no interior das famílias com a realização
de um processo de RVCC pelos seus progenitores.
A menos que a situação de partida se altere e as crianças
originárias de famílias menos escolarizadas passem a ter
12 Ver o seu depoimento neste obra “La formation entendue comme processus
na família uma interacção com a leitura e a escrita e maior construit dans l´Histoire de Vie“  mais desenvolvido na obra “L’Histoire de Vie
motivação para se envolverem na sua escolarização. comme Processus de Formation (1997), Paris: L’Harmattan.

17 05
6. Conceitos quais as transferências pais-filhos, pelo envolvimento parental,
no que se refere à motivação criada, ao conhecimento da sua
Embora sabendo que quando interrogados acerca do processo funcionalidade e ao desenvolvimento de conceptualizações
de mudança, os inquiridos apenas nos dariam as suas sobre a leitura e escrita facilitadoras da iniciação à sua
percepções acerca do processo de mudança. Por outro lado, pela aprendizagem. Em seguida serão apresentados os conceitos-
impossibilidade temporal de proceder a um estudo longitudinal base envolvidos neste estudo.
optamos por, numa primeira fase, proceder à realização de
entrevistas de carácter exploratório a indivíduos que realizaram 6.1. “Auto-eficácia e envolvimento em actividades com o filho”13
um processo de RVCC de nível básico – equivalente ao 9º ano
de escolaridade – e que têm filhos que frequentam o 1º ciclo A família desempenha um papel fundamental no sucesso
de escolaridade. Optámos por esta amostra uma vez que se escolar das crianças, sendo muitas vezes referenciado pela
entende este ciclo como definidor decisivo de construção do literatura que os pais são os primeiros professores e que a
sucesso escolar das crianças. casa é a primeira escola (Bandura, 1997, Morrow, 1995).
No domínio das relações pais-filhos as investigações são
Este estudo exploratório partiu de conceitos definidores das consensuais no sentido de evidenciar que os pais exercem um
questões colocadas aos sujeitos inquiridos. Um primeiro grupo papel activo e influente no modo como as crianças aprendem a
de questões procurava inquirir acerca dos contextos pessoais e ser pró-activas nas suas aprendizagens (Schneewind, 1995). O
familiares de inserção dos filhos. Remetiam para a consciência estudo de Mondell e Tyler (1981) demonstrou que quanto mais
da auto-eficácia dos indivíduos no envolvimento em actividades competentes os pais são (sendo esta competência definida
com o filho e para o modo de Gestão de Papéis no interior da como níveis gerais elevados de auto-eficácia) mais apoio dão
família com a introdução das novas práticas desenvolvidas aos seus filhos. Para além disto, também evidenciam níveis
com a realização do processo de RVCC. Um segundo grupo de mais frequentes de interacção positiva com as crianças e dão
conceitos fundamentam as questões referentes às mudanças menos ordens às crianças. Nesta linha, Grolnick, Ryan e Deci
no projecto de vida atribuído ao processo de escolarização dos (1991) afirmam que o comportamento dos pais não afecta
filhos através do envolvimento nesse processo e, por fim, um directamente as capacidades das crianças, como foi defendido
quarto grupo remete para as mudanças nas representações e em alguns estudos, mas antes que tem um impacto nas atitudes
nas práticas da leitura e da escrita. e motivações das crianças em relação ao contexto escolar e
escolarização em geral. Um estudo de Bandura, Barbaranelli,
No estudo que aqui se apresenta, procura compreender-se a Caprara e Pastorelli (1996) demonstrou ainda a existência
importância de um adulto fazer um processo de RVCC na vida de uma ligação entre a percepção de eficácia académica e
escolar dos filhos que frequentam o 1º ciclo do ensino básico. A aspirações dos pais e as mesmas percepções e aspirações nos
auto-eficácia que o adulto desenvolve no seu processo de RVCC filhos; o autor destaca, então, que o sentido de auto-eficácia dos
permite-lhe relacionar-se melhor com os outros, nomeadamente pais promove as aspirações educacionais dos filhos, actuando
sentindo-se mais bem preparado para responder às perguntas como incentivo e reforço constante em relação às aprendizagens
do seu filho e para falar com os seus professores. e contribuindo para que as dificuldades encontradas pelas
crianças sejam ultrapassadas de forma construtiva (Bandura,
Pretende-se, igualmente, saber quais as transferências realizadas 1993). Corroborando esta perspectiva, Henk e Melnick (1995)
no interior da família e o modo como estas facilitam o empenho argumentam que o modo como o indivíduo adulto se vê a si
e o acompanhamento da vida escolar; mais especificamente, próprio enquanto leitor influencia, de forma activa, o tipo de
como as competências adquiridas e/ou reconhecidas trazem actividades de leitura e a frequência das mesmas. Estas vão
maiores e melhores expectativas em relação à escola na vida ser observadas pelos filhos e, como tal, desenvolvem nestes
do seu filho e facilitam um maior envolvimento no seu projecto
de escolarização. Sabendo que a aprendizagem da leitura é 13 A partir de um texto de Cláudia Andrade no 1º Relatório Progresso – fase 1
decisiva na construção do sucesso escolar, procura saber-se – 1ª parte, Julho 2009.

18
um interesse crescente por este tipo de actividades. Assim, trazer benefícios importantes para a compreensão da vida das
e retomando a perspectiva de Bandura et al. (1996), a auto- famílias. As mulheres são responsáveis não só pelo cuidado e
eficácia académica dos pais promove a auto-eficácia académica sustento dos seus filhos mas também por todos os aspectos
dos filhos, embora esta relação seja mediada pelas crenças de associados ao seu desenvolvimento emocional e intelectual.
sucesso académico das crianças. As expectativas parentais têm, deste modo, sofrido também
alterações significativas. Um “bom pai” já não é um ganha-
De um modo geral, a perspectiva defendida pelos diversos pão ausente e benevolente. É esperado que esteja intimamente
autores permite-nos, pela sua relevância, considerar no presente envolvido nos aspectos da vida da criança, desde o brincar ao
estudo a importância da auto-eficácia geral e a importância da cuidar, ao alimentar e ajudar nas tarefas da escola (Jacobs &
mesma para as dinâmicas relacionais pais-filhos como variável Gerson, 2004). Estes dados parecem ser também válidos em
importante para a análise da promoção da literacia familiar. Portugal, onde se considera que o elemento masculino do casal
deve também dedicar-se à família, colocando os interesses
6.2. “Gestão de Papéis”14 desta acima de outros assuntos (Poeschl, 2000). Outro aspecto
particularmente relevante para as exigências crescentes da
A análise das relações entre a vida profissional e familiar tem maternidade e da paternidade diz respeito ao papel privilegiado
sofrido alterações ao longo do tempo. Se durante alguns anos que a criança ocupa no contexto da família. De facto, ter uma
se analisou cada um dos domínios em separado, sendo o criança implica actualmente maiores investimentos nos planos
trabalho e família perspectivados como esferas independentes, afectivos, relacionais e mesmo materiais que possibilitem
mais recentemente tem-se assistido a um crescente interesse percursos escolares mais longos tendo em vista a sua futura
na relação e interdependência destas duas esferas. De facto, a inserção profissional. Adicionalmente, a preocupação, em
questão que se coloca actualmente na análise dos processos particular dos pais, em promover o desenvolvimento “cultural”
pelos quais estas esferas estão ligadas, reporta-se aos efeitos das crianças, inscrevendo-as num sem número de actividades
que cada um dos sistemas pode ter no outro e no indivíduo. extra-escolares, acrescenta um maior número de exigências
Para este crescente interesse contribuíram as novas tendências aos pais. As actividades centradas na criança dominam a vida
sociais, nomeadamente o aumento do número de famílias de familiar e criam um ritmo familiar e doméstico muito intenso
duplo-rendimento. Assim, a temática da conciliação entre vida (Lareau, 2002 cit. por Jacobs & Gerson, 2004). O envolvimento
familiar e profissional surge como consequência das mudanças crescente com as crianças que se espera dos pais torna as
sociais ocorridas nos países industrializados, onde se verificou longas horas de trabalho mais problemáticas e, como tal, pode
a entrada da mulher no mercado de trabalho e o aumento do gerar sentimentos de conflito entre papéis.
número de papéis por ela desempenhados bem como um
aumento da participação dos homens no desempenho de tarefas Assim, e na linha do que foi apresentado, o modo como as
não remuneradas (apesar deste aumento ser considerado relações entre papéis familiares e profissionais são articuladas
insuficiente para equilibrar a distribuição do trabalho em casa). parece-nos ser uma dimensão importante para o presente
Paralelamente, mudanças ao nível das expectativas profissionais, estudo, na medida em que podem fornecer informação relevante
familiares e mesmo parentais contribuem, certamente, para sobre a interacção pais-filhos e seu impacto nos processos de
o aumento das exigências sobre os indivíduos e influenciam aprendizagem destes últimos.
a articulação entre os papéis familiares e profissionais. Nesta
linha, verifica-se actualmente que os indivíduos desempenham 6.3. “Representações e práticas de envolvimento no processo
cada vez mais papéis com diferentes exigências; o estudo de escolarização”
da forma como estes são geridos e a análise das suas
consequências individuais, familiares e profissionais, podem O envolvimento das famílias nos processos de escolarização
dos filhos é hoje reconhecido como condição de sucesso
14 A partir de um texto de Cláudia Andrade no 1º Relatório Progresso – fase 1 escolar das crianças. Não basta enviá-las à escola diariamente
– 1ª parte, Julho 2009. para que o processo de escolarização se efective. Entre as

19 05
necessidades decorrentes do empenhamento dos pais na sua A recusa à escola constitui-se como uma situação de evasão às
escolarização parecem ressaltar: a implicação das pessoas dificuldades de inserção neste sistema. A valorização através do
significativas no empenho dos filhos na relação pedagógica, a trabalho permitiu a muitos adultos encontrarem o seu caminho
atribuição de sentido às aprendizagens e a necessidade de uma na sociedade, à revelia da escola. Quando, em Portugal, a
pedagogia diferenciada para acesso ao saber (Salgado, 2003) Educação de Adultos enquadrada pelo sistema oficial de ensino
que a maioria da escola de massas dificulta. e ministrada nos mesmo moldes do sistema educativo, os
adultos de baixos níveis de escolaridade, não aderiam à oferta,
Sabendo que uma das primeiras condições de aprendizagem ou então desmotivavam-se, não aprendiam ou/e abandonavam
se situa na necessidade/vontade de aprender algo, poder-se-á (Salgado, 1985).
encontrar a génese dessa apetência nas tarefas propriamente
ditas ou na vontade comunicada pelas pessoas significativas As relações da escola com os pais de famílias de meios populares
através da sua experiência de vida. No seu crescimento, a criança também não são pacíficas. As dificuldades de entendimento
procura, por um lado, imitar essas pessoas, na maior parte das dos códigos escolares dificultam a relação com a escola que se
vezes os progenitores, por outro – se a relação é positiva ou acentua quando os seus filhos começam a sentir dificuldades
pretende que seja – procura agradar-lhes. Assim, se do projecto e são colocados em situação de insucesso. (Perrenoud &
de vida dos pais faz parte a escolarização e o sucesso dos filhos, Montandon, 1987).
estes senti-lo-ão no seu quotidiano e procurarão responder a
essas expectativas. O momento de fazer os trabalhos de casa, Não se poderá, no entanto, dizer que os adultos de baixos
acompanhados por um dos progenitores, poderá constituir um níveis de escolaridade menosprezavam o saber e recusavam
momento privilegiado para sentirem esse empenho. Igualmente, a aprendizagem. No tempo da República e início do Estado
da parte dos filhos, o tempo de realizar as tarefas escolares Novo criaram associações de “instrução” e “academias”. No
acompanhados pelos pais acaba por ter a contrapartida positiva período a seguir ao 25 de Abril, as associações populares
destes lhe dedicarem, especialmente, alguma atenção em torno foram reconhecidas com contexto educativo (Lei 3/79) dado
do seu apoio. Também a relação pedagógica, que é fundamental o empenho dos adultos em actividades de aprendizagem
para que a criança consiga aprender, deveria ser acompanhada (Melo e Benavente, 1978; Salgado e et al, 1980). Em contextos
por um adulto significativo que fosse capaz de desenvolver as migratórios, e independentemente de sistemas formais de
oito competência inter-pessoais que Maria Emília Brederode ensino, os trabalhadores emigrantes procuravam informação e
Santos (1985) considera: empatia, respeito, calor, autenticidade, acesso ao saber (Gago, 1978). Não será, pois de estranhar que,
especificidade, auto-exposição, confronto e imediaticidade. perante uma possibilidade organizada de educação baseada
Esta relação, que em alguns dos seus aspectos exige uma no reconhecimento dos saberes adquiridos previamente,
proximidade individualizada, dificilmente se consegue numa os adultos com baixo nível de escolaridade, pressionados
escola em que os professores falam para todos ao mesmo pelas necessidades da sociedade do conhecimento (Lindley,
tempo e em que a relação personalizada não aparece nas alturas 2000), tenham respondido de forma expressiva à oferta dos
chave das aprendizagens. A criança só acaba por encontrar na Centros Novas Oportunidades, sobretudo dos processos de
família, ao realizar os trabalhos, esta relação pedagógica que reconhecimento validação e certificação de competências
deveria ser paradigma da escola. Também o desenvolvimento (RVCC).
da sua auto-estima aparece habitualmente apenas na família.
A escola tradicional pauta-se por indicar à criança apenas os No entanto, não é evidente que a passagem para o investimento
erros, aquilo que está mal, penalizando-a muitas vezes por na educação dos filhos tivesse acontecido. O facto de terem
isso, esquecendo de referir e enaltecer os sucessos. Muitas das vivido na escola situações de violência provocadas, na sua
características que se consideram de importância numa relação maioria, pelo insucesso escolar, poderia ter conduzido a
pedagógica (Dupont, 1983) – congruência, compreensão desenvolver o proteccionismo dos filhos, acreditando que o seu
empática, consideração, intencionalidade na consideração – só processo de aprendizagem poderia não ser coroado de sucesso.
acontecem na aprendizagem em família. Esta foi uma das razões deste estudo: verificar se o acesso

20
a um processo de escolarização cria, no interior da família, a adequado para o desenvolvimento da literacia emergente
construção de projecto de vida que passe pela escolarização e para a criação do projecto pessoal de leitor, que passa pela
dos filhos, determinante para o seu sucesso escolar. criação da vontade e necessidade de ler (Fontaine, 1990) e pelo
desenvolvimento das representações sobre a funcionalidade e
Apoiar o processo de escolarização dos filhos no sentido da conceptualizações sobre a leitura e a escrita (Salgado, 2003).
promoção do seu sucesso escolar não só implicaria desconstruir,
para si próprio e para a escola actual, a representação de O processo de descoberta da linguagem escrita é um processo
exclusão escolar que recusaria a sua cultura, traduzida na sua participado e dinâmico, em que a criança assume um papel
história de vida, como passaria por reconhecer a necessidade activo e através do qual reconstrói e reinventa activamente a
de resposta, através da escola e das suas práticas familiares, linguagem escrita (Mata, 2002). Antes da entrada no ensino
das funções socialmente atribuídas à educação. formal, as crianças já constroem representações sobre a
linguagem escrita, pois interpretam a informação recolhida
6.4. “Mudanças nas representações e nas práticas da leitura conforme os esquemas de pensamento e os esquemas
e da escrita”15 conceptuais que desenvolveram no contacto com a escrita
(Martins, 1996), e colocam hipóteses sobre o funcionamento
As crianças que frequentam as escolas públicas portuguesas e objectivos da linguagem escrita. Estudos demonstram que
revelam níveis de insucesso escolar elevados e níveis de a consciência fonológica, a linguagem oral, o conhecimento
competências de leitura mais baixos que em outros países da das letras e as conceptualizações acerca da leitura e da escrita
OCDE (Ferreiro, 1992; Sim-Sim, 1989). Um dos motivos para são capacidades tidas como fundamentais para a posterior
que ainda se verifiquem estes resultados reside, como referido aprendizagem da leitura (Scarborough, 1998 cit. por Spira
anteriormente, na implementação tardia da escolaridade Bracken & Fichel, 2005). Observou-se ainda que existe uma
obrigatória em Portugal, que leva a que, nos dias de hoje, relação entre as capacidades de literacia que as crianças têm
ainda exista por parte de muitas famílias uma fraca cultura de ao entrar para a escola e o seu desempenho académico futuro
escolarização. Esta pouca valorização da escolarização pode (Teale, 1984; Hanei & Hill, 2004; Spira et al, 2005).
significar que, no quotidiano destas famílias, a importância
da utilização da leitura e da escrita não seja muitas vezes Sabendo da importância que a qualidade do ambiente familiar
reconhecida e incentivada. de literacia pode exercer sobre a aprendizagem e sobre a forma
como as crianças se tornam mais predispostas em compreender
Pressupõe-se que numa sociedade letrada todas as crianças a natureza da linguagem escrita, é fundamental conhecer
tenham contacto com o mundo da leitura e da escrita. Contudo, as concepções parentais acerca da literacia, bem como os
no que respeita à quantidade e qualidade dessas experiências, comportamentos e práticas que os pais desenvolvem com os
nem todas têm acesso às mesmas práticas de literacia, pois filhos neste domínio (Lynch et al, 2006). As famílias podem
estas dependem dos valores e da cultura do grupo social em que cultivar as competências de literacia emergente dos filhos se
estão inseridas. Sendo a família um dos agentes de socialização i) de forma contextualizada e em situações com significado,
mais importantes para a criança, esta desempenha um papel fornecerem uma larga diversidade de materiais de literacia, se
preponderante na aquisição e valorização das práticas de literacia. ii) com frequência, incentivarem as interacções interpessoais
Não tendo a escrita entrado no universo familiar de muitos durante as actividades de leitura e escrita, iii) se permitirem a
portugueses, as condições culturais que a sua aquisição implica observação e participação dos filhos nas práticas de literacia do
dificultam esta aprendizagem por parte das crianças (Chauveau, dia-a-dia e em contextos de entretenimento e se iv) integrarem
Chauveau, & Martins, 1997a; Chauveau & Martine, 1997b; materiais de literacia no ambiente social e familiar em que estão
Chauveau, 2001). Deste modo, não se propicia um ambiente inseridos (DeBaryshe, Binder & Buell, 2000; Leichter, 1984;
Purcell-Gates, 2003; Tizard & Hughes, 1984).
15 A partir de um texto de Carolina Cardoso no 1º Relatório Progresso – fase
1 – 1ª parte, Julho 2009. Em suma, conclui-se que a relação entre as concepções

21 05
parentais sobre literacia e os comportamentos em ambiente entrevistas se desdobrassem num conjunto mais vasto do que
familiar são fundamentais e têm uma relevante consequência o inicialmente previsto.
no desenvolvimento precoce da literacia. Assim, mudar as
concepções parentais pode ter um impacto positivo na forma A opção pela técnica da entrevista semi-estruturada prendeu-
como os pais promovem a literacia no ambiente familiar e, se ainda com a sua elasticidade quanto à duração, permitindo
por consequência, na forma como as crianças desenvolvem uma cobertura mais profunda sobre determinados assuntos e,
as competências de literacia, tão importantes para o seu simultaneamente, limitar o volume das informações, obtendo-
sucesso académico futuro (Bingham, 2007). Os Centros se assim uma maior atenção sobre o tema e, nesta etapa do
Novas Oportunidades surgem, assim, como oportunidades de estudo, lidar com a possível dificuldade que muitas pessoas
formação que podem desencadear mecanismos facilitadores da teriam de responder por escrito a um leque tão abrangente de
promoção da leitura e da escrita no contexto familiar. temas e de experiências.

7. Metodologia do estudo16 Partiu-se, assim, de um conjunto de questões previamente


seleccionados a partir dos conceitos identificados na revisão
O trabalho realizado, de carácter exploratório, recorreu bibliográfica e nas dimensões em que foram decompostos,
exclusivamente a metodologias qualitativas, mais especifica- que definiram os pontos do guião de entrevista. Estes foram
mente através de entrevistas individuais semi-estruturadas considerados na análise de conteúdo, com base em protocolos
devido à fidelidade e riqueza das informações que fornecem. de transcrição integral mas, posteriormente, seleccionados
com base num conjunto de categorias e cuja descrição em
O objectivo do recurso a esta metodologia prendeu-se com pormenor será apresentada no ponto seguinte deste trabalho.
a necessidade de, nesta primeira fase, conhecer experiências
subjectivas dos participantes nos Centros Novas Oportunidades Para efectuar a análise das entrevistas, recorreu-se à análise
(CNO) face a um conjunto de temas, partindo-se, neste sentido, de conteúdo segundo o modelo de Bardin (1979) que tem por
das experiências do indivíduo enquanto objecto de investigação. objectivo a descrição sistemática do conteúdo da comunicação.
De facto, este tipo de entrevista colabora muito na investigação Os dados recolhidos, neste caso através de entrevistas, são
dos aspectos afectivos e valorativos dos respondentes essencialmente de natureza qualitativa. A análise de conteúdo foi
que determinam significados pessoais das suas atitudes e a ferramenta de pesquisa usada para determinar a presença de
comportamentos. Além disso, a interacção entre entrevistador certos conceitos e categorias no texto transcrito. Na análise das
e entrevistado favorece respostas espontâneas, possibilitando entrevistas, o conteúdo foi codificado e dividido em categorias
uma maior abertura e proximidade entre ambos, o que permite numa variedade de níveis. Em seguida, o conteúdo transcrito
ao entrevistador abordar assuntos mais complexos e delicados, e seleccionado foi analisado e discutido conceptualmente.
tais como os relativos a vivências e experiências durante e após No presente trabalho, dada a quantidade e complexidade da
a participação nas actividades dos CNO, ou seja, quanto menos informação recolhida, houve a necessidade de segmentar
estruturada a entrevista, maior o favorecimento de uma troca o conteúdo em categorias, subcategorias e componentes,
mais afectiva entre as duas partes. partindo dos conceitos teóricos mais relevantes, até às práticas
concretas dos entrevistados.
As respostas espontâneas dos entrevistados e a maior liberdade
que estes têm podem fazer surgir aspectos inesperados ao 8. Resultados do estudo
entrevistador que poderão ser de grande utilidade na sua
pesquisa. Tal verificou-se no presente estudo, fazendo com Sabendo a importância da vinculação segura para o
que as categorias posteriormente criadas para a análise das desenvolvimento das crianças, o facto dos pais se sentirem
mais confiantes em si próprios possibilita, pelo maior
16 A partir de um texto de Filipa Morais, Cláudia ferreira e Inês Cruz no 1º
investimento que propicia, ganhos na educação dos filhos. O
Relatório Progresso – fase 1 – 1ª parte, Julho 2009. facto dos entrevistados ganharem consciência de que o RVCC

22
é uma rampa de lançamento para investimentos profissionais e maior destreza em ferramentas que já conheciam, e em outros
pessoais desenvolve a atribuição de maior valor à escolarização numa completa iniciação. As aprendizagens neste domínio
no futuro dos seus filhos. revelam ainda a hipótese de abertura de diálogo com os filhos,
uma vez que estes instrumentos fazem hoje parte da cultura
A importância atribuída à mobilidade social é um exemplo da dos mais jovens. A mais-valia acrescida por esta potencialidade
auto-estima conseguida neste processo. O orgulho de poder de criação de conteúdos de diálogo virá resolver o problema
dizer que já tem o 9º ano, no exterior da família, parece ser um que muitos pais tinham de não conseguir ter com os filhos
ganho incalculável na relação com os filhos. conversas que lhes interessem.

A confiança em si próprio revela ser uma componente importante, “Passo o mesmo tempo, (…) Mas quando estamos juntos
referida por um grande grupo de entrevistados, quer na facilidade costumamos passear, o mais novo ajuda-me a fazer o jantar
nas relações com outras pessoas quer a nível profissional. nos meus dias de folga, vemos televisão e é melhor, porque,
às vezes, já vemos filmes juntos, porque agora já acompanho
“Sinto-me capaz de me fazer notar por outras pessoas, sinto-me melhor as legendas e explico-lhes se eles não entenderem.”
com qualidades diferentes, que não tinha. Mesmo no trabalho (E7;Sexo feminino; Meio Urbano; Região Centro)
sou mais valorizada, tenho novas oportunidades, novas portas
a abrir, e isso é muito importante.” O modo de resolução dos problemas na família acrescidos pela
(E17; Sexo Feminino; Meio Rural; Região Centro) necessidade de participarem nas novas tarefas de aprendizagem
– processo de RVCC – parece ter constituído um novo campo
Estas aquisições traduzem-se ainda na necessidade de continuar de aprendizagens, para além do modo de resolução de conflitos
um projecto de estudos que a nível de fazer mais formação conseguido17. A procura de soluções de gestão do tempo terá
que na possibilidade de dar continuidade a um processo de levado a conseguir a criação de outros espaços e tempos em
escolarização, 12º ano ou mesmo Ensino Superior. Por vezes detrimento do lazer e preterindo algumas tarefas domésticas.
revelam a implicação da formação adquirida na possibilidade
de concorrer a novos empregos. “Eu não acho que me tenha roubado algum tempo, se calhar
eu aproveitei, foi melhor o tempo, deixei de fazer coisas que se
Importante na sociedade do conhecimento é o sentimento calhar não são tão importantes, ocupando o tempo numa mais-
manifestado da necessidade, do gosto e do prazer de aprender valia para mim…”
e do modo como se expressa na relação com os filhos. (E14; Sexo feminino; Meio Rural; Região Centro)
Considerou-se esta uma aquisição fundamental uma vez que
na escola nem sempre se adquire o gosto por aprender numa A importância atribuída ao processo de escolarização dos
perspectiva de Educação ao Longo da Vida. filhos revelou ter sido um dos domínios de maior importância
na vida familiar sabendo como o papel dos pais é decisivo
“Deu-me mais entusiasmo para participar noutras coisas, deu- na construção dos sucesso escolar e na motivação para
me mais entusiasmo para eu me desenvolver culturalmente, as aprendizagens dos filhos. Este empenho traduziu-se na
deu-me mais para pesquisar, deu-me mais para me informar construção de um projecto de vida para os filhos que passe
mais sobre certos assuntos.” pelo sucesso da sua escolarização. Dizem que estão dispostos
(E33; Sexo feminino; Meio Suburbano; Região LVT) a fazer todo o possível para conseguirem que eles vão tão longe
quanto desejarem. A vontade dos pais será um factor decisivo
A importância atribuída ao desenvolvimento ou aprendizagem de na criação desse desejo aparecendo logo no envolvimento nos
novos saberes vem posteriormente revelar-se na intervenção em
relação à escolarização dos filhos. Os resultados obtidos revelam
17 O estudo destes aspectos deve ser aprofundado no capítulo de Cláudia
que existe um ganho substancial neste domínio aparecendo, à Andrade “Conciliação Trabalho-Família em Adultos em Formação nos Centros
cabeça, a informática. Em alguns entrevistados traduz-se numa de Novas Oportunidades”

23 05
trabalhos de casa que agora dizem já conseguir acompanhar e condições de promoção do sucesso escolar das crianças. Foi
na relação que mantêm com os professores e outros actores possível verificar que, na maioria, a mudança da situação de
educativos que revelam agora conseguir melhor desenvolver.18 auto-estima e auto-eficácia do pai ou mãe que completaram o
processo de RVCC – B2 são facilitadores expressos nas relações
“(…) e eu hoje entendo isso e não quero de forma alguma que com os filhos ou com os professores, que a organização da
aconteça isso aos meus filhos, que é o facto de ter que começar vida familiar entre conflito – mal ou bem resolvido – negociação
a trabalhar cedo afasta-nos a nossa mente (…) graças ao RVCC, ou criação de novas formas de gestão do tempo trouxeram
a abrir esta caixa e a soltar toda esta informação que estava acrescidamente vantagens qualitativas para as aprendizagens
guardada, que está cá há muitos anos... e deixa-me muito mais das crianças e que o interesse e empenho no sucesso escolar
à vontade e isso sem dúvida nenhuma ajuda os meus filhos no dos filhos passou pelo maior envolvimentos nos trabalhos
processo escolar (…) sempre achei que era importante andar de casa e o estabelecimento de maiores relações com os
na escola, acredito que hoje dou muito mais importância a esse professores e com a escola dos filhos. Também a literacia se
facto (…)” desenvolveu na família, em termos de apoio escolar ou de lazer
(E19; Sexo masculino; Meio Rural; Região Centro) passando a ser prática corrente no universo familiar.

Sabendo que os primeiros sintomas de insucesso escolar No entanto, embora o sistema tenha mostrado estas
aparecem nos primeiros anos de escolaridade tendo na sua potencialidades nem todas as famílias atingiram estes
génese, como já referimos, a ausência de literacia na família objectivos. A maior parte do número que não revelou ter havido
foi possível verificar, através das entrevistas realizadas que não mudanças ou aqueles em que estas mudanças ficaram muito
só a literacia entrou na família confirmando a nossa hipótese aquém do que outros conseguiram permitem-nos agora, uma
de partida como adquiriu, em alguns casos, o envolvimento vez que já conhecemos em detalhe as potencialidades do
dos pais introduzindo-a como actividade do quotidiano não sistema, identificar necessidades de formação que podem ser
só nos trabalhos de casa e respectivo aprofundamento, como respondidas quer nos processos de RVCC e nos cursos EFA,
actividade colectiva de lazer.19 quer através das escolas do 1º ciclo na relação de parceria
educativa que estabelecem com os pais dos seus alunos.
“A Playstation é de trás para a frente, de frente para trás, lê tudo,
mesmo em inglês, não faz mal, (...) Lê, a nível de computador,
de Playstation, isso tudo, ele lê. (...) jogos didácticos... na
internet o jogo da forca... há aí um jogo de perguntas, que tem
as respostas, A, B, C e D, e então a gente anda lá entretidos a
ver quem é que erra mais... e sudoku (...)”
(E39; Sexo masculino; Meio Suburbano; Região LVT)

9. Conclusões Prévias

O objectivo deste estudo centrava-se na compreensão das


mudanças ocorridas no interior das famílias, portadoras de

18 O capítulo, neste livro, de Joana Ferreira e Carolina Cardoso “Os adultos no


contexto do processo de RVCC: Uma abordagem das representações e práticas
do processo de escolarização” aprofunda os resultados do estudo acerca deste
contributo.

19 O capítulo, neste livro, de Carolina Cardoso e Joana Ferreira “Os adultos no


contexto do processo de RVCC: Uma abordagem das representações e práticas da
leitura e da escrita” aprofunda os resultados do estudo acerca deste contributo.

24
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27 05
28
PARTE 1

A génese do (in)sucesso escolar:


na escola e na família

29 05
30
A persistência do atraso educativo português
nos nossos dias: Portugal nos processos
de alfabetização, escolarização e criação
de capital humano nos séculos XIX, XX e XXI

31 05
António Candeias1

Resumo
Este texto, na continuidade de um trabalho que já dura há cerca de quinze anos,
procura mostrar como uma das debilidades estruturais mais graves e persistentes
com que Portugal se debate na Modernidade, se relaciona com o atraso com que
o modo de cultura baseado na escrita se enraizou na sociedade portuguesa.

Acompanhando o longo período de divergência económica e política dos séculos


XIX e primeira metade do século XX e persistindo no brilhante período de
convergência da segunda metade do século XX, o atraso educativo português,
que empurra a sociedade portuguesa para fora do contexto europeu, persiste nos
dois últimos séculos como uma ameaça séria à sustentabilidade económica e
social deste país.

Programas como a actual Iniciativa Novas Oportunidades poderão ser uma janela
que há muito deveria estar aberta mas que, para ser eficiente, tem de se tornar
permanente, cientificamente escrutinada e alvo de um consenso que permita a
sua durabilidade independentemente dos ciclos políticos curtos que caracterizam
as sociedades actuais.

1. Breve apontamento sobre as raízes do atraso o essencial das relações existentes entre o progresso do que
educativo português durante o século XIX  chamamos os “modos de socialização baseados na escrita”
e variáveis relacionadas com a religião e o desenvolvimento
O objectivo deste texto é o de fornecer uma base explicativa que económico, variáveis essas que aparecem sempre associadas
sirva para entendermos a persistência de alguns dos atrasos em estritas correlações.
estruturais que marcaram o tecido social português durante o
que vulgarmente se chama de Modernidade, ou seja, o período Assim, mesmo tendo em conta a fragilidade dos dados sobre a
de tempo que grosso modo se estende desde meados do século alfabetização, a escolarização e o seu significado no século XIX
XVII aos nossos dias. e primeiro quarto do século XX, estes apontam, em geral para
as tendências seguintes:
Destes atrasos a que chamamos de estruturais porque se i) As sociedades com uma influência forte do protestantismo
relacionam com a estrutura do tecido social português, o são em geral, nos finais do século XIX, mais alfabetizadas
mais persistente e mesmo impressionante, relaciona-se com do que aquelas em que a religiões católica e/ou ortodoxa
a educação, como teremos ocasião de verificar durante este predominam;
breve texto que se segue. ii) As sociedades mais dinâmicas do ponto de vista económico,
com processos fortes de industrialização, ou situadas em orlas
Visto que trabalhamos este tema há cerca de quinze anos, próximas de tais processos, são em meados e finais do século
poderemos começar com algumas conclusões que resumem XIX, também elas mais alfabetizadas do que aquelas em que
predominam ainda as estruturas sociais, políticas e económicas
 Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa. tradicionais;

32
iii) Do ponto de vista geográfico, o “núcleo duro” da alfabetização europeia encontra-se no Norte e Centro-Norte da Europa, sendo
o Sul e os extremos Leste e Oeste europeus menos alfabetizados do que este “núcleo duro”;
iv) Parece existir uma tendência que sobrepõe factores religiosos, económicos e geográficos com alfabetização, o que, apesar de
todos os cuidados a ter com generalizações, sugere uma relação entre estes factores combinados e o crescimento da alfabetização
e da escolarização;
v) Havendo excepções, deve-se apontar, no entanto, que regra geral, sociedades com graus de alfabetização mais intensos, tendem
a escolarizar-se mais cedo do que aquelas em que a penetração da cultura escrita é mais débil, e isto independentemente das
legislações nacionais sobre educação;
vi) Apesar de estas tendências se prolongarem no tempo, o século XX vai assistir a casos de sucesso de alfabetização que quebram
em parte estas tendências antes assinaladas, e que se devem a factores políticos e económicos muito dependentes de opções
de Estado, caso entre outros de uma parte dos países dos Balcãs, dos regimes que em 1918 e em 1945 se tornam socialistas, e
também de algumas sociedades do Centro-Sul da Europa, como se poderá constatar, à frente neste texto, na tabela 1;
vii) O caso português é, durante mais de um século, segundo todos os dados disponíveis quer se tratem de dados de origem nacional
ou externa, um caso singular de dupla periferia no contexto europeu: periferia face ao “núcleo duro” da alfabetização, e no decorrer do
nosso século, periferia face aos limites Sul, Leste e Oeste que historicamente foram menos impregnados pela cultura escrita.

Mesmo realçando todos os cuidados com que estes dados devem ser tratados por via da sua fragilidade, a tabela que se segue
publicada numa obra clássica referente aos estudos sobre a alfabetização no Ocidente, da autoria de Harvey Graff e baseado em
Johansson, ilustra com alguma exactidão a tendência que apontámos.

Tabela 1 - Cálculo da alfabetização na Europa entre 1850 e 1950, a partir de Censos, taxas de alfabetização de recrutas e condenados,
e de assentos matrimoniais.

1850 1900 1950

Países Nórdicos, Alemanha, Escócia, 95% aprox. 98% aprox. 98%


Holanda e Suíça

Inglaterra e País de Gales 70% aprox. 88% aprox. 98%

França, Bélgica e Irlanda 55% 80% aprox. 98%

Áustria e Hungria 35% 70% aprox. 98%

Espanha, Itália e Polónia 25% aprox. 40% aprox. 80%

Rússia, Balcãs e Portugal aprox. 15% aprox. 25% URSS aprox. 90%; Bulgária e
Roménia 80%;
Grécia e Yugoslávia
aprox. 75%;
Portugal aprox. 55%

Fonte: Johansson, cit. por Graff (1991, p. 375).

33 05
Um exemplo interessante do papel de Portugal nesta tabela Tabela 2: Alfabetização dos adultos de sexo masculino nascidos
encontra-se na própria maneira como Harvey Graff organiza no estrangeiro, trabalhando na Indústria e Minas em 1909 (EUA).
e comenta as taxas de alfabetização aqui presentes. Assim,
os seus resultados são agrupados por países de acordo com
Grupo Étnico População % de Alfabetos
a sua situação geográfica, religião e grau de alfabetização, Recenseada
sendo categorizados da seguinte forma: “Europa do Norte
Protestante”, correspondendo aos “países nórdicos” da tabela 1; Arménios 594 92.1
“Europa Ocidental”, um grupo que junta a Inglaterra, País de Boémios e Morávios 1.353 96.8
Gales, França, Bélgica e Irlanda; a “Europa Católica do Sul e Búlgaros 403 78.2
Canadianos 8.164 84.1
Centro”, englobando países como a Áustria-Hungria, a Áustria,
francófonos
a Hungria, a Espanha, a Itália e a Polónia, e finalmente a “Europa Canadianos outros 1.323 99.0
Ortodoxa de Leste e Sudeste e Portugal”, que agrupa a Rússia, Croatas 4.890 70.7
os Estados Balcânicos e Portugal. (Graff, 1991, p. 378). Dinamarqueses 377 99.2
Holandeses 1.026 97.9
Esta categorização mostra que, no que respeita à implantação Ingleses 9.408 98.9
da forma de cultura predominante da modernidade, a cultura Finlandeses 3.334 99.1
escrita, Portugal é, desde meados do século XIX, separado do Flamengos 125 92.1
espaço geográfico e cultural de que faz naturalmente parte, Franceses 896 94.3
Alemães 11.380 98.0
tornando-se numa periferia da periferia, e tal comportamento
Gregos 4.154 84.2
agrava-se durante o século XX, quando o país se torna ele
Hebreus, Rússia 3.177 93.3
próprio numa tendência, ou seja, evidencia um atraso tal que não
Hebreus outros 1.158 92.8
é “agrupável” com outros países europeus. Mas outros dados Irlandeses 7.596 96.0
provenientes de fontes diferentes confirmam esta periferização Italianos, Norte 5.343 85.0
portuguesa. Italianos, Sul 7.821 69.3
Lituanos 4.661 78.5
Numa altura, na transição do século XIX para o século XX, em que Macedónios 479 69.4
os fluxos migratórios para os Estados Unidos deixavam de ter a Magiares 5.331 90.9
sua predominância nos países anglo-saxónicos e protestantes Noruegueses 420 99.7
da Europa e o sul católico e pobre e o leste judeu e ortodoxo Polacos 24.223 80.1
Portugueses 3.125 47.8
se encontravam cada vez mais representados nos imigrantes
Romenos 1.026 83.3
que aportavam a Nova Iorque, surge um debate promovido por
Russos 3.311 74.6
“cientistas” e por sectores da administração norte americana
Ruténios 385 65.9
sobre a “qualidade” da nova emigração (Cipolla, 1969, p. 97- Escoceses 1.711 99.6
101), com ampla repercussão pública. Sérvios 1.016 71.5
Eslovacos 10.775 84.5
No contexto desta discussão e de uma forma mais livre do Eslovenos 2.334 87.3
que nos dias de hoje, surgem um sem número de estudos Suecos 3.984 99.8
que relacionam “raça” com atraso social, cognitivo e também Sírios 812 75.1
literácito. Turcos 240 56.5

Fonte: Graff (1991, p. 367).


A tabela 2 ilustra um exemplo dos resultados de tais estudos:

34
Dos perto de 132.000 “trabalhadores estrangeiros” aqui Tabela 3: Data de introdução da escolaridade obrigatória e
recenseados, os quais se distribuem por 35 grupos linguísticos taxas de escolarização em 1870 para os seguintes países
e/ou nacionais, podemos constatar, nesta altura já sem grande europeus e EUA.
espanto que os portugueses, são os menos letrados, numa
definição de alfabetização bastante lata, que se traduzia pela
capacidade de ler em qualquer idioma (Graff, 1991, p. 367). Países Data de introdução Taxa
da escolaridade de escolarização
obrigatória em 1870
Como nos mostra Carlo Cipolla, a relação entre as capacidades
alfabéticas destes grupos étnicos e as taxas de alfabetização Prússia 1763 67%
dos seus respectivos países não era directa, o que parece Dinamarca 1814 58%
sugerir fluxos de emigração diferenciados quanto à sua origem Grécia 1834 20%
social, de país para país e segundo a época e a conjuntura
Espanha 1838 42%
específica que enquadrava cada surto de emigração. No
Suécia 1842 71%
entanto, esta tendência, a de uma emigração portuguesa muito
pouco alfabetizada por comparação com os seus congéneres de Portugal 1844 13%
outras partes da Europa, parece ter raízes fortes: nos números Noruega 1848 61%
que este autor nos fornece, extraídos do rol de inquéritos das Áustria 1864 40%
autoridades alfandegárias dos EUA, referentes aos anos de
Suíça 1874 74%
1895, 1897 e 1898, as percentagens de portugueses com mais
Itália 1877 29%
de dez anos que não sabem ler nem escrever são de longe as
mais altas de entre todos os outros emigrantes, cifrando-se nos França 1882 75%
62%, 57% e 61% para cada um dos respectivos anos (Cipolla, Irlanda 1892 38%
1969, p. 98). Holanda 1900 59%
Luxemburgo 1912 -----
Como a próxima tabela nos mostra, as taxas de analfabetismo
são acompanhadas de perto, embora não se sobreponham, Bélgica 1914 62%
pelas taxas de escolarização das crianças em idades escolar. EUA ------ 72%

Yasemin Soysal e David Strang, num artigo publicado em 1989 Fonte: Soysal & Strang (1989, p. 278).
em que procuram analisar alguns aspectos da construção dos
Sistemas Educativos na Europa do século XIX, com especial Estes resultados que se referem à percentagem de crianças com
incidência nas relações entre a imposição, por parte dos Estados, idades compreendidas entre os 9 e os 15 anos que frequentavam
de leis de obrigatoriedade escolar e o efectivo cumprimento de a escola, leva a que os autores coloquem os casos de Portugal,
tais leis, chegam a estes números: Grécia e Espanha numa tipologia de Estados que procederam a
uma “construção retórica da escolaridade” (Soysal & Strang,
1989, p. 285), apesar de estes dados nos sugerirem que em
Portugal a retórica era mais desenvolvida do que nos outros
países colegas de infortúnio.

Na verdade, e como se vê pela tabela antes exposta, Grécia,


Espanha e Portugal encontram-se entre os países europeus
que mais cedo no século XIX decretaram leis que impunham
a obrigatoriedade escolar, e simultaneamente e a par de casos
como a Áustria, a Irlanda e a Itália, são dos países que em 1870

35 05
têm taxas de cumprimento de escolaridade mais baixas. As leis de Costa Cabral de 1844 decretavam a obrigatoriedade
No entanto, fazendo-se aqui sentir cruelmente a ausência de frequência da escola para todas as crianças que habitassem
de um estudo comparativo sobre os conteúdos das leis de em povoações onde existissem escolas de Instrução Primária,
obrigatoriedade escolar destes países, parece inquestionável que ou que vivessem na proximidade “...de um quarto de légua em
Portugal se destaca negativamente, o problema acentuando-se circunferência...”, (cit. por Carvalho, 1986, p. 578), ou seja, uma
até pelo menos meados da década de trinta do século XX, como obrigatoriedade que além de se aplicar às crianças dos centros
nos sugere a leitura da tabela proposta por Aaron Benavot e por urbanos, se aplicaria apenas aquelas outras que vivessem a
Phyllis Riddle: apenas 1,250 metros dessas escolas.

Tabela 4: Evolução comparada das taxas de escolarização entre As penalidades para quem não cumprisse tal disposição,
1870 e 1930, para os países abaixo referidos. já de si limitada num país que em 1840, entre escolas para
rapazes e para raparigas contava com apenas 991 (Ibidem),
1870 1890 1910 1930 demonstravam os limites da lei que fixava a obrigatoriedade
de frequência universal da escola primária. Assim, aqueles
EUA 72% 97% 97% 93%
que vivessem dentro do raio geográfico que determinava a
Áustria 40% 63% 70% 70%
obrigatoriedade de frequentar uma escola e que a ela não
Dinamarca 58% 61% 66% 67%
enviassem os seus “...filhos, pupilos ou outros subordinados
França 57% 83% 86% 80%
Alemanha 67% 74% 73% 79%
desde os 7 aos 15 anos...”, ficariam sujeitos “...primeiro a aviso,
Irlanda 38% 50% 79% 87% depois a intimação, depois a repreensão e por fim a multa...”.
Holanda 60% 64% 70% 74% Além do mais, eram exemptos do cumprimento da lei todos
Suíça 76% 76% 71% 70% aqueles que “...provassem que os meninos já possuíam os
Grécia 20% 31% 40% 53% conhecimentos daquele grau de ensino, ou que poderiam obtê-
Itália 30% 37% 45% 60% los de outra forma sem recorrer ao ensino oficial, ou ainda que
Portugal 13% 22% 19% 27% por sua excessiva pobreza não os pudessem enviar à escola...”
Espanha 42% 52% 35% 43% (Ibidem).
Bulgária ---- 19% 41% 47%
Hungria 40% 52% 53% 67%
Estas leis que dificilmente poderiam mudar o que quer que
Roménia 7% 15% 34% 59%
fosse, e a que, durante todo o século XIX e primeira metade do
Fonte: Benavot & Riddle (1988, p. 205). século XX, se foram sucedendo remendos que não mudaram o
seu essencial (Teodoro, 2001, p. 110), parecem mostrar que as
Tratando-se de uma enorme extensão de dados que caso a elites portuguesas se dividiam entre o desinteresse a respeito
caso seriam susceptíveis de crítica e discussão, limitemo-nos a da implementação de uma escola verdadeiramente nacional e o
apontar a coerência da maioria das cifras que independentemente realismo perante as condições gerais do país.
da sua origem viemos expondo. Na sua maioria elas tendem a
mostrar que ao atraso no processo de alfabetização português Como sabemos por uma larga tradição literária, o século XIX
face aos países da Europa e do Ocidente, corresponde um atraso foi tremendamente cruel para Portugal, uma sociedade que
na capacidade de construção da forma de socialização típica da é descrita pelo sociólogo David Justino como sendo “...para
Modernidade Ocidental, ou seja, a escola nacional, laica, gratuita além de depauperada, uma nação pobre em que a esmagadora
e obrigatória para leques de idades estabelecidos nas leis que maioria da população dispõe de um fraco poder de compra...”
tão precocemente se inscreveram na legislação do país. (Justino, 1988, p. 141), e sem dúvida que esta pobreza ajuda a
compreender as numerosas excepções consagradas nestas leis
Mas de que tipo eram as leis que em Portugal começaram assim como a brandura das punições propostas aos que não as
por tentar impor a frequência da escola por parte de todas as cumpriam, num contexto social e económico incompatível com
crianças de uma determinada faixa etária? uma escolaridade infantil generalizada.

36
Mas será a pobreza suficiente para explicar a situação de ultra periferia portuguesa em termos literácitos, face à generalidade das
sociedades ocidentais?

Na verdade, se a pobreza portuguesa parece explicar alguma coisa, necessário se torna dizer que a pobreza crescente face aos países
mais desenvolvidos da Europa não seria característica única de Portugal, sendo antes uma característica do próprio “arranque”
industrial, que no decurso do século XIX salientou e acelerou as diferenças entre um “centro” que se destacou e uma periferia que
se afastou. Tal “pobreza” ajudar-nos-ia a explicar, quando muito, as diferenças entre as taxas educativas portuguesas e as relativas
aos países e regiões que constituem esse “centro”, restando por explicar as discrepâncias referentes a países que, à semelhança
de Portugal, viram a sua pobreza acentuar-se face aos grandes motores do desenvolvimento industrial do século XIX.

Mas mais do que desenvolver esta interessante questão já antes trabalhada, interessa-nos percebermos como se deu a transição
para os nossos tempos.

2. A lenta construção de uma sociedade baseada num modo de cultura escrita: o caso português durante
o século XX e começos do século XXI

Tal como no ponto anterior, recorreremos a uma série de tabelas como auxílio do texto.
O primeiro de tais tabelas refere-se à evolução das percentagens da população alfabetizada durante o século XX que nos é fornecida
pelos Censos Populacionais que tiveram lugar no mesmo século.

Tabela 5: Percentagem de alfabetização das pessoas residentes ou com domicílio em Portugal com idades
iguais ou superiores a 10 anos e por classes de idades entre os 10 e os 64 anos, segundo os Censos
Populacionais efectuados no século XX.

Censos 1900 1911 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1981 1991

Percentagem de alfabetizados
na população de idade igual 27% 31% 35% 40% 48% 58% 67% 74% 79% 89%
ou superior a dez anos

Idades 10-14 anos 24% 32% 36% 42% 60% 76% 97% 99% \ 99%
Idades 15-19 anos 29% 35% 40% 44% 57% 68% 91% 97% 98% 99%
Idades 20-24 anos 30% 35% 40% 44% 56% 68% 80% 96% 98% 99%
Idades 30-34 anos 30% 34% 37% 45% 48% \ 70% 80% 97% 99%
Idades 40-44 anos 27% 30% 34% 39% 46% \ 61% 70% 81% 98%
Idades 50-54 anos 22% 26% 30% 34% 39% \ 48% 59% 70% 85%
Idades 60-64 anos 19% 22% 25% 29% 33% \ 44% 47% 58% 74%

Fonte: Censos Populacionais portugueses realizados entre 1900 e 1991, apresentados em Candeias et al. (2004a).

Esta tabela, que utiliza a noção de alfabetização de uma forma Candeias, 2004b, 2005a, 2005b, 2008, 2010 no prelo), podendo ser
evolutiva, seguindo os próprios critérios utilizados nos Censos lido de várias maneiras, ilustra bem a forma como se deu a evolução
Populacionais e discutidos em outros textos (Candeias et al., 2004a; de uma sociedade baseada na escrita, no século XX português.

37 05
Na verdade, adoptando o que chamamos de uma “leitura 10-14 anos, a classe mais sensível às políticas de implementação
horizontal” ou seja, uma leitura que compare as percentagens da escolaridade obrigatória, mostra que, pelo contrário, a partir dos
do total de alfabetizados com dez ou mais anos de idade em anos quarenta, coincidindo com um contexto económico externo,
cada Censo, podemos perceber que de 1900 a 1930, nos mas também interno de grande crescimento de riqueza (Amaral,
últimos trinta anos do liberalismo português, a percentagem de 2002; Lains, 2005, entre muitos outros) se verificou um esforço
alfabetização da população portuguesa com mais de dez anos por parte do Estado português em escolarizar todas as crianças
de idade, sobe treze por cento, de 27% para 40%; de 1930 a em idade escolar. Na verdade, entre 1900 e 1930, a percentagem
1960, esta percentagem sobe vinte e sete por cento, de 40% de crianças com idades compreendidas entre os dez e os catorze
para 67%, e de 1960 a 1991, ela passa de 67% para 89% anos que são dadas como sabendo ler, varia dezoito por cento, de
subindo vinte e dois por cento. 24% para 42%, mas dá um salto brusco para os 60% no Censo de
1940, ou seja, a mesma variação que se deu na trintena anterior, mas
Poderemos assim dizer que, durante os primeiros trinta anos do agora no espaço de apenas dez anos; vinte anos depois, em 1960,
século, tal como acontece com a economia ou com a construção praticamente todas as crianças desta faixa etária estão alfabetizadas,
do Sistema de Assistência Social (Candeias, no prelo), se está o que neste caso significa que estão escolarizadas, ou seja, estão
em plena estagnação, o que se nota nas fracas margens de nas “escolas formais”, onde, na opinião de Ben Eklof se adquirem
progressão da alfabetização da população portuguesa, e que, “… as atitudes e as mudanças cognitivas associadas ao «tornar-se
pelo contrário, a dinamização da economia portuguesa dos moderno» …” (Eklof, 1990, p. 474).
anos quarenta, mas sobretudo a partir dos anos cinquenta, se
nota também nas margens de progressão da alfabetização, que Tratava-se, no entanto, de uma escolarização curta, como
sobe, ainda que não de forma espectacular. nos mostra a tabela seguinte. No entanto, a partir daqui, ou
seja da década de sessenta do século XX até aos nossos dias,
Na verdade, diríamos que estes números mostram que, durante o esta escolarização massifica-se de forma rápida, dinâmica e
século XX, em Portugal, apesar das nítidas melhorias registadas desordenada mas causando uma impressão de “convergência”
a este respeito na sua segunda metade, não houve de forma com os “mais evoluídos” que, de facto, os dados actuais põem
continuada e sustentada, uma política eficaz que tivesse como em dúvida.
objectivo a erradicação do analfabetismo, independentemente
das campanhas de combate ao “flagelo” que quer a primeira Mas primeiro atentemos nas formas como se deu a escolarização
República, quer o Estado Novo lançaram. das décadas de cinquenta e sessenta em Portugal.

No entanto, uma análise horizontal fixada na classe de idade dos Ou seja, se em 1960, 94% das crianças com nove anos de idade

Tabela 6: Estimativas sobre a precariedade de ensino em 1960: crianças que estudam aos 9 e aos 13 anos.

Total de recenseados Não sabem ler Sabem ler sem Frequentam grau Possuem grau
aos 9 anos de idade frequência de de ensino de ensino
e aos 13 anos de idade grau de ensino
ou sem diploma
Total de crianças recenseadas 4.136 (2,5%) 1.594 (1%) 157.854 (94%) 4.952 (3%)
com 9 anos de idade em 1960
-168.536
Total de crianças recenseadas 6.640 (4,1%) 17.886 (18%) 43.432 (27%) 82.106 (51%)
com 13 anos de idade em 1960
-161.733

Fonte: Cálculos a partir de: Recenseamento Geral da população às 0 horas de 15 de Dezembro de 1960, in
Candeias (2010, no prelo).

38
frequentam a escola, o que, se juntarmos os cerca de 3% que já pelas sociedades cuja matriz cultural original é europeia? Os
concluíram um grau de ensino, poderemos interpretar como a dados fornecidos pela UNESCO em 1965, e reproduzidos por
chegada definitiva à escolarização universal prevista desde 1844, Lê Than Khoi em 1970, fornecem uma ideia interessante da
tudo muda para as crianças de treze anos de idade, das quais, distribuição comparada de habilitações das populações com
neste mesmo ano, apesar de cerca de 50% já terem um diploma idades superiores a 25 anos de numerosos países, entre os
escolar, só 27% continuariam a estudar o que faria com que mais quais Portugal. De entre o enorme rol de países que o Anuário
de 70% das crianças desta idade, neste ano de 1960, estivesse da UNESCO retratava, escolhemos alguns que, quer pela sua
fora do sistema de ensino, provavelmente a trabalhar. pertinência comparativa com Portugal, quer pelo facto de os
podermos vir a encontrar cerca de meio século mais tarde nas
Mas o que significaria isto no contexto senão do mundo, pelo estatísticas da OCDE, nos pareceram fazer sentido. De tais
menos do Ocidente, noção vaga mas íntima que se traduz dados, pudemos construir a tabela seguinte:

Tabela 7: Distribuição das habilitações escolares no ano de 1960 para as populações com idades superiores
a 25 anos para os seguintes países.

<1º Grau 1º Grau (primária) 2º Grau 3º Grau (terciário)


de 4 a 7 anos (secundário) 16 ou mais anos
de escolaridade de 8 a 15 anos de escolaridade
de escolaridade
Espanha 28,5 % 67% 3,9% 0,8%
Portugal 45,1% 50,4% 3,5% 1,1%
Grécia 52,7% 36,8% 7,9% 2,5%
Bulgária 28,1% 61% 8,5% 2,4%
Jugoslávia 32,9% 56,4% 9,3% 1,5%
Roménia 7,1% 85,7% 4,7% 2,5%
Polónia 8,6% 71,7% 16,5% 3,2%
Chile 41,7% 45,1% 11,5% 1,6%
México 74,4% 22,7% 2,0% 0,8%
Coreia 58,4% 33,2% 7,1% 1,2%
França 2,3% 67,7% 28,0% 2,0%
Ingl. e País de Gales - 70,4% 27,6% 2,0%
Holanda - 87,6% 11,0% 1,3%
Finlândia - 90% 6,0% 4,1%
Noruega - 83,9% 14,2% 1,9%
USA 8,3% 50,6% 33,4% 7,7%
Japão 3,0% 65,5% 25,5% 6,3%

Fonte: Unesco, Annuaire Statistique 1965, cit. por Le Than Khoi (1970, p. 59-61)

Podemos dividir as sociedades aqui retratadas em mais ou menos Debruçando-nos sobre o primeiro grupo ele será composto
dois grupos, os quais e de forma simplista, poderemos retratar pelos países do sudoeste Europeu, como Portugal e Espanha,
como o dos “mais atrasados” e o dos “mais desenvolvidos”, do sudeste europeu como os países balcânicos, mas sobretudo
que como veremos adiante, não são totalmente homogéneos a Grécia e a antiga Jugoslávia, a que se juntam, noutros
entre si. De caminho, mais uma vez se note como a palavra continentes, a Coreia do Sul e o México, e de forma menos
“desenvolvimento” nunca se refere apenas a um item mas a um marcante, o Chile, ou seja, sociedades em que ainda se encontra
“agregado” de que a educação também faz parte. uma enorme percentagem de gentes que não têm qualquer grau

39 05
escolar, o que podendo não significar analfabetismo puro, de lá número praticamente igual, em percentagem, de graduados
se aproximava e em que o nível educativo mais disseminado com o segundo e o terceiro ciclo.
seria, de forma esmagadora, o 1º Grau, o que nestes dados
significa uma escolaridade entre os quatro e os sete anos. O outro grupo de países, os “mais desenvolvidos”, embora, e
No entanto, deste grupo de países mais atrasados, a maioria à semelhança do primeiro grupo, apresente algumas diferenças
deles têm um arremedo de “elite educada” em número igual fortes entre os seus componentes, é caracterizado por ter
ou superior a 10% da sua população, uma percentagem já percentagens nulas ou residuais de populações sem certificação
significativa do seu povo, com pelo menos oito ou mais anos de escolar, com a maioria da sua população, e nalguns casos trata-
estudos, enquanto que Portugal, Espanha e México não chegam se de uma maioria esmagadora, com habilitações ao nível do 1º
a metade de tal cifra e a Coreia ronda os 8 %. Ciclo. Além do mais, para estes países, a soma da percentagem
de pessoas habilitadas com os segundo e terceiro ciclo, excepção
Se tivéssemos de apontar o país que se encontra em pior feita à Finlândia, ultrapassa largamente os 10%, desde os cerca
situação do ponto de vista de habilitações, não hesitaríamos de 30% da França e Inglaterra, até aos mais de 40% dos EUA.
em indicar o México. Mas de seguida, teríamos de designar
Portugal. Tem menos pessoas sem qualquer grau que a Grécia Estes dois grupos aparecem de forma também ela muito clara
e a Coreia, mas também tem, e de forma significativa, menos na “revolução” que, do ponto de vista do investimento público
pessoas a frequentar os segundos e terceiros ciclos que estes no Ensino, se começa a dar no pós-Segunda Guerra Mundial e
países. É com Espanha que Portugal mais se parece, mas a de forma evidente na passagem da década de cinquenta para
Espanha tem uma muito maior proporção da sua população a década de sessenta do século XX, como se pode deduzir do
com o primeiro ciclo, apesar de ambos os países terem um gráfico seguinte:

Figura 1: Despesa pública com o ensino, em percentagem do rendimento nacional, entre 1950 e 1962.

Dinamarca
Espanha
Finlândia
Irlanda
8 Noruega

7 Portugal
Suécia
6
Canadá
5
Grécia
4 Itália
Jugoslávia
3
França
2
Bélgica
1 Turquia

0 México
1948 1950 1952 1954 1956 1958 1960 1962 1964

Fonte: Unesco, Annuaire Statistique (1965 cit. por Le Than Khoi, 1970, p. 59-61).

40
De novo, e como dizíamos antes, encontram-se aqui dois grupos este investimento em educação parece, inclusive, começar a
de países: os que em 1950, partem já de um investimento a baixar no começo dos anos sessenta.
rondar os 3% dos seus rendimentos nacionais, e que dez anos
depois se encontram a investir entre 4 e 8 %, com a Suécia, a Em geral, poder-se-ia dizer que não há aqui milagres: estes dois
Bélgica, a Noruega, a Finlândia a chegarem-se de forma decidida mundos da educação, reflectem e ampliam as diferenças sociais
e sustentada, perto dos 7 % do seu rendimento e o Canadá a e económicas já existentes entre eles, e, se visto desta forma
bordejar os 8%; e os outros, que começando com investimentos Portugal é apenas mais um destes países do Sul, sabemos,
a rondarem o 1% do rendimento nacional em 1950, raramente, e contudo, pela extensão dos seu atraso educativo específico,
por pouco, em 1960 ultrapassam os 2% do mesmo rendimento. que este país não é apenas mais um destes países, mas sim o
país do Sul da Europa menos escolarizado e, portanto, o país da
Portugal, Espanha, México, Grécia, e Jugoslávia são exemplos Europa menos escolarizado do século XX.
deste segundo grupo que, começando de muito baixo, em
torno, ou no caso do México, ligeiramente abaixo dos 1% do seu Prestemos, pois, atenção ao investimento em educação por
rendimento, sobem durante estes dez anos até perto dos 2%, parte do Estado português durante o século XX, em percentagem
com Portugal a ultrapassar ligeiramente esta cifra, a Espanha a do PIB, que, não devemos confundir com a medida económica
nem lá chegar, o México e a Jugoslávia a ultrapassarem-no com antes utilizada, a de “Rendimento Nacional”, pesem embora
alguma folga, mas nos casos de Portugal, Grécia e a Espanha, algumas semelhanças (Bernard & Colli, 1998, p. 146, 178).

Figura 2: Evolução % do PIB (Gross Domestic Product) gasto em Educação, entre 1913 e 2005
em Portugal; entre 1997 e 2005 na União Europeia (25).

• Gast. Ed. Portugal

• Gast. Ed. U.E.

6
•• •

5
•• •
4 •
• •

3

2 •

• •• •• •
1
• • • • • •


0
1900 1920 1940 1960 1980 2000 2020

Fonte: Valério, 2001, cit. por Nunes (2003, p. 579-580), até 1993, Eurostat (Eurostat Home Page, 11/12/2008),
a partir de 1995.

41 05
Muito poderia ser dito sobre este gráfico, mas resumamos: só correcções a tal euforia, durante o processo de “ajustamento”
a partir da década de trinta do século XX, a percentagem do PIB da economia portuguesa da primeira metade da década de
aplicado na educação se aproxima dos 1%, na verdade, é de 0,9%, oitenta.
aí se mantendo até às vésperas da segunda Guerra Mundial,
descendo abruptamente no decorrer desta e recomeçando a Finalmente, com a chegada dos Fundos de Coesão advindos
subir depois do seu término, passando assim o patamar do da adesão à União Europeia a partir de 1986 e do investimento
1% do investimento já na década de cinquenta, atingindo o feito pela maioria dos governos portugueses desde a década
seu valor máximo nesta década em 1959 (1,32%), descendo, de noventa aos nossos dias, percebe-se que a sociedade
durante toda a década de sessenta para uma importância à volta portuguesa, consciente do atraso em que se encontra, tenta
dos valores dos princípios da década de cinquenta (exemplo: aproximar-se do “Centro” a que está politica e economicamente
em 1968 o gasto em educação em percentagem do PIB, é “amarrada”, numa corrida para a “convergência”, investindo
aproximadamente o mesmo que em 1953), começando a subir mais em educação que a média europeia.
decididamente na década de setenta, durante o Marcelismo,
quando em 1972 atinge a percentagem de 1,82% do PIB, Pode esta política de investimento do regime durante a década
disparando após a “revolução dos cravos” até perto dos 4%, de sessenta, que parecia ter de escolher entre a manutenção do
retraindo-se de novo na década de oitenta mas mantendo-se Império e o desenvolvimento educativo numa altura em que as
num patamar superior aos 3%, e subindo na década de noventa taxas de crescimento económico do país eram das mais altas
para os valores médios que muitas das sociedades mais da Europa (Lains, 2005, p. 121), ser responsável pela fraqueza
avançadas tinham atingido na transição da década de cinquenta com que a escolarização dos portugueses se continua a dar nos
para sessenta, ou seja, valores que se situam entre os 5% e finais do século XX e princípios do século XXI?
os 6% do PIB português, valores ligeiramente superiores aos
valores médios da União Europeia “a 25” (Candeias, 2008, p. A resposta a esta pergunta é-nos dada pela investigação sobre
243; Teodoro, 2001, p. 128). o desenvolvimento educativo comparativo entre Portugal e os
países mais “desenvolvidos” nos últimos quarenta anos.
Tudo indica que se trata de um problema de políticas, ou, se
quisermos, de política: em primeiro lugar, quer a 1ª República Na verdade, o que aparece como um dado chocante, resultado
quer o Estado Novo vêm a educação, do ponto de vista de tal processo de pesquisa, é que em pleno século XXI, o
orçamental, como um pequeno detalhe, e a Guerra, quer a atraso português em termos educativos, se comparado com
Primeira, quer a Segunda Guerra Mundial quer finalmente a os seus parceiros da OCDE (OECD, 2007a), da União Europeia,
Guerra Colonial, baixam a dotação para a educação, como aliás ou mesmo apenas das sociedades que em princípios dos
para a assistência social (Candeias, 2007, no prelo); de seguida, anos sessenta ainda se pareciam com Portugal, continua a ter
parece claro que o esforço dos anos cinquenta de escolarização as mesmas características que apresentou em todo o século
dos jovens não tem continuidade orçamental nos anos sessenta XX, tendo-se por vezes a percepção de que aumentou. Tudo
e, sem que seja possível uma avaliação completa dos danos isto se dá malgrado o facto de o investimento em educação
entretanto causados, percebe-se que esta política morre duas ter passado, para um pouco mais de 5% do PIB (Eurostat
vezes, primeiro com o desaparecimento de Salazar, quando Strutuctural indicators, 2010-02-15), durante a década de
Marcello Caetano se lança num esforço de dotar o país de um noventa do século XX, com continuidade até aos nossos dias, o
rudimento de “Estado Providência” antes que seja tarde, o que que representa um esforço continuado durante 15 anos de uma
sabemos, foi uma corrida perdida, e finalmente com o fim da despesa em educação a nível de países desenvolvidos, mas
Guerra Colonial e com a integração europeia. com resultados de países em vias de desenvolvimento, como a
tabela seguinte mostra.
De caminho note-se a euforia da Revolução de Abril que faz
saltar o investimento em educação num período de recessão A tabela que de seguida expomos tem de ser visto de forma
económica mundial, e de seguida atente-se nas dolorosas cautelosa, uma vez que, quer as populações que servem de

42
base às percentagens, quer as definições dadas para os Graus OECD, 2007b), pelo número de pessoas que em 1960 tinham
académicos pelo anuário estatístico da UNESCO, em 1965, para habilitações superiores a oito anos de escolaridade. Trata-se
os dados referentes a 1960 e 1961, (Le Than Khoi, 1970, 61) de um rácio simples e pouco sofisticado mas que nos permite
e para os dados da OCDE referentes ao ano de 2005 (OECD, um esboço aproximado da forma como aumentaram as altas
2007a), são ligeiramente diferentes entre si, mas como são habilitações e baixaram as baixas qualificações nestes 45
constantes em cada população, permitem-nos uma comparação anos, em cada um dos países tidos em conta, permitindo-nos
aproximativa do grau de progresso feito por estas sociedades comparar o seu sucesso na promoção da qualificação da mão
entre 1960 e 2005. de obra neste período de tempo.

Utilizámos como medida um Rácio de Progressão, constituído Quanto aos países escolhidos nesta comparação, são, em
pela soma entre o decréscimo das baixas habilitações com o primeiro lugar, países que se encontram em ambas as tabelas,
crescimento das habilitações consideradas altas. O decréscimo a da UNESCO, reproduzida por Khói em 1970, e da OCDE
das “baixas habilitações” entre 1960 e 2005 obtém-se dividindo em 2007, que temos vindo a utilizar com alguma frequência;
a percentagem de pessoas que em 1960 tinha habilitações até dentro deste grupo de países, escolhemos três grupos, o
ao máximo de sete anos de escolaridade, pela percentagem primeiro sendo constituído por países que se encontravam em
de pessoas que em 2005 tinham habilitações iguais ou situação parecida no seu atraso educativo em 1960, casos de
inferiores a nove anos de escolaridade; quanto ao “crescimento Portugal, Espanha, México, Grécia e Coreia do Sul, o segundo
das habilitações consideradas altas”, obtêm-se dividindo o por países considerados mais desenvolvidos, casos da Holanda
número de pessoas que em 2005 tinham habilitações iguais e da Finlândia, e finalmente, o terceiro, constituído por países
ou superiores a dez anos de escolaridade (ISCED 3C Short, in considerados “intermédios”, casos do Chile e da Polónia.

Tabela 8: Rácios de Progressão das habilitações das populações dos seguintes países, entre 1960 para a população a partir dos
25 anos, e 2005 para a população com idades compreendidas entre os 25 e os 64 anos

1960, população a partir dos 25 % da população com frequência % da população com 8 ou Rácio final de progressão
anos até ao máximo de 7 anos de mais anos de escolaridade das habilitações para cada
escolaridade (sem grau + grau 1) em 1960; (graus 2 + 3) país, entre 1960 e 2005
---------- ---------- ----------
2005, população com idades entre % da população com frequência % da população com 10 ou
os 25 e os 64 anos até ao máximo de 9 anos de mais anos de escolaridade
escolaridade (ISCED 0+1+2) em 2005 (ISCED 3+4+5)

Portugal 1960 95,5%, dos quais 45,1% sem grau 4,6%


Portugal 2005 74% 27%
Rácio de progressão 1.3 5.9 7,2
Espanha 1960 95,5%, dos quais 28,5% sem grau 4,7%
Espanha 2005 51% 48%
Rácio de progressão 1.9 10.2 12,1
Grécia 1960 89,5% dos quais 52,7% sem grau 10,4%
Grécia 2005 40% 60%
Rácio de progressão 2.2 5.9 8,1
Chile 1960 86,8% dos quais 41,7% sem grau 13,1%
Chile 2005 50% 50%
Rácio de progressão 1.8 3.8 5,6

43 05
Tabela 8: Rácios de Progressão das habilitações das populações dos seguintes países, entre 1960 para a população a partir dos 25
anos, e 2005 para a população com idades compreendidas entre os 25 e os 64 anos (CONT.).

1960, população a partir dos 25 % da população com frequência % da população com 8 ou Rácio final de progressão
anos até ao máximo de 7 anos de mais anos de escolaridade das habilitações para cada
escolaridade (sem grau + grau 1) em 1960; (graus 2 + 3) país, entre 1960 e 2005
---------- ---------- ----------
2005, população com idades entre % da população com frequência % da população com 10 ou
os 25 e os 64 anos até ao máximo de 9 anos de mais anos de escolaridade
escolaridade (ISCED 0+1+2) em 2005 (ISCED 3+4+5)

México 1960 98,8% dos quais 74,4% sem grau 2,8%


México 2005 79% 21%
Rácio de progressão 1.3 7.5 8,8
Polónia 1960 80,3% dos quais 8,6 % sem grau 19,7%
Polónia 2005 15% 86%
Rácio de progressão 5.3 4.3 9,6
Coreia do Sul 1960 91,8%, dos quais 58,4% sem grau 8,3%
Coreia do Sul 2005 25% 76%
Rácio de progressão 3.7 9 12,7
Finlândia 1960 90% todos com grau 10,1%
Finlândia 2005 21% 75%
Rácio de progressão 4.3 7.4 11,7
Holanda 1960 87,6%, todos com grau 12,3%
Holanda 2005 29% 72%
Rácio de progressão 3.0 5.9 8,9

Fontes: Unesco, Annuaire Statistique 1965, cit. por Le Than Khoi (1970, p. 59-61) OECD, www.oecd.org/edu/eag2007.

O resultado para os portugueses, nestes 45 anos que decorrem mundial. De novo se mostra como é necessário um trabalho
entre 1960 e 2005, a maioria dos quais em democracia, não científico sistemático no domínio da Educação Comparada sem
pode deixar de ser considerado pelo menos decepcionante: dos o que construiremos imagens e representações falsas sobre a
países mencionados, Portugal é o que obtém menos sucesso na nossa sociedade.
diminuição da percentagem de população com baixa escolaridade
e a evolução das altas qualificações fica muitíssimo longe dos Mas de novo se mostra também como o estrondoso falhanço
que mais progrediram, ou seja, países como a Coreia do Sul, a da sociedade portuguesa em criar “Capital Humano” não é
Espanha, o México, a Finlândia ou mesmo a Holanda, os quais, característica de nenhum regime político em particular, e
à excepção do México e de Espanha, tinham uma muito maior sobretudo, não é responsabilidade da Ditadura do Estado Novo.
taxa de graduados com os segundos e terceiros ciclos em 1960 Na verdade, o que dizer se trinta anos de Democracia e de
do que Portugal, e portanto teriam também um potencial de progresso económico, ainda que mais moderado nos últimos
crescimento neste domínio bem menor que o do nosso país. tempos, foram incapazes de mudar a face da qualificação
literácita dos portugueses?
Ou seja, nas palavras de Manuel Villaverde Cabral, “…Portugal
continua a perseguir um alvo em movimento que continua a Atente-se na próxima tabela que apresentamos e que fornece
fugir-nos…” (Cabral, 2008, p. 29), o que mostra que a percepção a qualificação da população adulta portuguesa, ou seja, a
que temos sobre o desenvolvimento educativo do país no último população com idades compreendidas entre os 25 e os 64
meio século, nos impediu de olhar para a “revolução Educativa” anos, ou seja ainda, a população activa portuguesa, comparada
do pós-guerra que não foi exclusivamente portuguesa, mas sim com os seus colegas da OCDE.

44
Tabela 9: Habilitações da população adulta (25-64 anos) para uma série de países da OCDE e associados, no ano de 2005, por
maior grau de habilitação atingido.

Habilitações/país Até ao 2º Ciclo do Ensino 3º Ciclo do Ensino Secundário: 10 a 13 Superior: profissional,


Básico: 6 Anos de Básico: 9 Anos anos de escolaridade licenciatura,
escolaridade (Graus 0 de escolaridade (Grau 3 do ISCED 1997) Investigação
e 1 do ISCED 1997) (Grau 2 do ISCED 1997) (Grau 5 do ISCED 1997)

Portugal 59% 15% 13% 13%


Brasil* 2004 57% 14% 22% 8%
México 50% 29% 6% 15%
Turquia 63% 10% 17% 10%
Chile* 2004 24% 26% 37% 13%
Espanha 24% 27% 20% 28%
Grécia 29% 11% 32% 21%
Itália 17% 32% 37% 13%
Hungria 2% 22% 58% 17%
Coreia do Sul 12% 13% 44% 32%
Finlândia 11% 10% 44% 35%
Noruega 0% 22% 41% 32%
Suécia 7% 10% 48% 30%
Dinamarca 1% 16% 50% 34%

Fonte: www.oecd.org/edu/eag2007.

Nesta tabela, vemos três grupos de países: os mais atrasados, a Espanha, evoluiu fortemente e por estranho que pareça tendo
em que cerca de três quartos da sua mão-de-obra tem como em conta a semelhança das suas histórias, o dinamismo
habilitação máxima os nove anos de escolarização, casos de espanhol em termos de “credenciação” da sua população a partir
Portugal, México, Brasil e Turquia; os intermédios, nos quais desta altura não pode ser comparado com o que se passa na
cerca de cinquenta por cento da sua mão de obra se encontra sociedade portuguesa, que, apesar da acelerar na construção de
até aos nove anos de escolaridade e a outra metade se encontra Capital Humano no pós-guerra, perde terreno para a maioria das
acima, casos do Chile, Espanha, Grécia e Itália, e de seguida os sociedades Europeias, quer nos refiramos às que se encontravam
mais desenvolvidos em que apenas cerca de vinte e cinco por mais perto de nós, ou seja, os Balcãs e o Sul da Europa, quer
cento da sua mão de obra tem habilitações até aos nove anos às que eram estruturalmente mais desenvolvidas, que aceleram
de escolarização, o resto encontrando-se acima. Com excepção também a formação da sua população.
da Hungria, este último grupo de países tem cerca de trinta por
cento da sua mão-de-obra com habilitações universitárias. Este desolador panorama em que mais de metade da população
portuguesa activa tem, no ano de 2005, como habilitação
Como vemos por estes dados, as habilitações portuguesas máxima os seis anos de escolaridade, só ultrapassado, no
a nível dos seus parceiros da OCDE, só são comparáveis com contexto da OCDE, pela Turquia, mostra de novo como o futuro
países que se situam fora da Europa, como Brasil, México e poderá ser difícil para a sociedade portuguesa.
Turquia, a antiga “pertença balcânica” com que começámos este
texto estando ultrapassada, por progresso dos nossos antigos Na verdade, como parece claro, o grau de produtividade
companheiros de infortúnio, que diga-se, em meados dos anos económica de um país está relacionada com uma série de
sessenta pareciam estar já a descolar-se de Portugal. O país que factores, um dos quais sendo, claramente, a relação entre
então, nesta década de sessenta, era mais parecido com Portugal, a formação da sua mão-de-obra e o preço do trabalho. Se

45 05
verificarmos que a formação da mão de obra portuguesa é ao “rapidíssimo aumento na sua formação e competência”?
similar à mão de obra turca, mexicana e brasileira, mas que Não muito, como veremos.
o seu preço em salários e em encargos sociais é muitíssimo
mais alta que a destes países, percebe-se bem que há um erro Na verdade, se a população activa do país tem uma formação tão
nesta equação, e que tal erro só pode ser corrigido de duas baixa como a que mostrámos nas tabelas anteriores e tal formação
maneiras: ou uma diminuição brusca dos salários e encargos só muda muito lentamente através, por um lado, da adição de
sociais relativos à mão de obra, ou um rapidíssimo aumento jovens com melhores habilitações ao “bolo” da população activa
na sua formação e competência, ou, muito provavelmente, composta pelo número de pessoas com idades compreendidas
ambas estas coisas de forma simultânea, uma vez que os entre os 25 e os 64 anos e, por outro, da passagem à reforma
resultados em termos económicos destas mudanças são dos mais idosos e que menos preparação académica média têm,
lentos a estabelecerem-se. Lembremo-nos também que, se existe um enorme núcleo de tal população, a que não se encontra
este raciocínio é economicamente racional, em termos sociais em nenhuma das extremidades etárias do “bolo” cuja qualificação
ele significa sofrimento e empobrecimento de vastas camadas só pode ser levada a cabo através da formação contínua, ao longo
da população portuguesa. Assim, esquecendo-nos da primeira da vida, que o bom senso indica ser uma tarefa prioritária das
parte da correcção, ou seja, “uma diminuição brusca dos estratégias de desenvolvimento de um país como Portugal. No
salários e encargos sociais relativos à mão de obra”, o que entanto, os últimos dados disponíveis sobre a questão são, pelo
temos feito em relação à segunda questão, ou seja, em relação menos, pouco encorajadores.

Tabela 10: Aprendizagem ao longo da vida: percentagem da população adulta com idades compreendidas entre
os 25 e os 64 anos que participam em acções de formação, nos seguintes países da União Europeia, entre 1995
e 2005.

1995 1997 1999 2001 2003 2005

EU (25) 7.8 9.2 11.0


EU (15) 5.7 8.2 8.3 9.9 12.1
Grécia 0.9 0.9 1.3 1.4 2.7 1.8
Espanha 4.3 4.4 5.0 4.8 5.8 12.1
Hungria 2.9 2.9 3.0 6.0 4.2
Polónia 4.8 5.0 5.0
Portugal 3.3 3.5 3.4 3.4 3.7 4.6
Turquia 1.0 1.2 2.0
França 2.9 2.9 2.6 2.7 7.4 7.6
Alemanha 5.4 5.5 5.2 6.0 8.2
Bélgica 2.8 3.0 6.9 7.3 8.5 10.0
Reino Unido 19.2 21.7 21.2 29.1
Dinamarca 16.8 18.9 19.8 17.8 25.7 27.6
Finlândia 15.8 19.6 19.3 25.3 24.8
Suécia 25.0 25.8 17.5 34.8 34.7
Noruega 16.4 14.2 19.4 19.4

Fonte: Eurostat (2006).

46
Os dados disponibilizados pelo Eurostat, que parcialmente os dados publicados em 2001 relativos ao PISA 2000 (GAVE,
reproduzimos, mostram que, a este respeito, existem, sobretudo 2001) e que não conhecem grandes mudanças nos resultados
se nos ativermos aos últimos resultados do século XXI, três aos testes PISA que tiveram lugar em 2006 (Candeias, 2010,
tendências no que a este assunto concerne: um grupo de países no prelo), não se trata apenas de um problema quantitativo, ou
com prestações francamente pobres em termos de formação por outras palavras, de possibilidades de acesso por parte dos
contínua, casos da Grécia e da Turquia, mas a que se poderiam portugueses à educação, mas, neste caso trata-se sobretudo, e
juntar países como a Bulgária, a Roménia e a Croácia; um grupo também, de um problema de qualidade de ensino.
de países médios, casos da Alemanha, de França, de certa
forma, a Espanha, a que se poderia juntar a República Checa e 3. Concluindo: “Estabilidade” e “Novas Oportuni-
a Irlanda, entre outros; e um grupo de países com um enorme dades” como chaves do futuro
avanço em relação aos demais, ou seja, os Escandinavos e o
Reino Unido, mas a que poderíamos também juntar a Suíça, Não há neste arrazoado de lamúrias nenhum motivo para
a Holanda e a Áustria, entre outros. Estando estas taxas de optimismos? Descortinamos, apesar de tudo, duas pequenas
formação relacionadas também com a desregulamentação luzes nesta enorme escuridão. Por um lado, a capacitação
dos mercados de trabalho de alguns destes últimos países, académica dos jovens adultos portugueses, ou seja, nas idades
o que obriga uma população com vínculos laborais precários compreendidas entre os 25 e os 34 anos, parece estar a ser
a ter de se actualizar como condição para receber subsídios muito rápida, bastante mais rápida do que a dos seus colegas de
de desemprego ou de conseguir novas colocações, o que é infortúnio, por exemplo, do México, ou da Turquia, e, também
um facto é que, neste caso, Portugal se situa num lugar que porque parte de cifras muito baixas, parece, neste século XXI,
poderíamos classificar de medíocre, com taxas de “formação convergir com as habilitações dos jovens adultos dos países
durante a vida” francamente abaixo das taxas médias da União mais desenvolvidos, embora as tabelas que apresentámos
Europeia, superior ao primeiro grupo, o dos mais fracos, mas mostrem a distância que falta percorrer. Assim, em 2001, eram
inferior ao segundo grupo, o dos “medianos”. 32% os jovens portugueses com idades compreendidas entre
os 25 e os 34 anos que tinham como habilitação mínima os
Por outro lado, e como se compreende tendo em conta as estudos secundários completos, para 30% dos jovens turcos e
características da população adulta, os indicadores relativos para 25% dos jovens mexicanos (www.oecd.org/els/education/
à qualidade das aprendizagens dos alunos portugueses dos eag2002); em 2004, ou seja, três anos depois, tais cifras eram
ensinos básico e secundário, nomeadamente em Matemática e já de 40% para os portugueses, 33% para os turcos e 25%,
em Leitura, são extremamente baixos quando comparadas com na mesma, para os mexicanos (www.oecd.org/edu/eag2006), e
a qualidade das mesmas aprendizagens levadas a cabo por o crescimento de novos habilitados com pelo menos o ensino
alunos da maioria dos países da OCDE. secundário que se dá em Portugal entre 2001 e 2004, é de
longe o mais alto crescimento de habilitados que se dá em
Na verdade, esta organização, através do programa PISA todos os países registados em ambos os estudos da OCDE; por
(Programme for International Student Assessment), tem outro lado, e sobretudo por este lado, o programa que, com a
procedido nos últimos anos à avaliações das aprendizagens designação de “Iniciativa Novas Oportunidades” (Ministério do
realizadas pelos alunos dos países que dela fazem parte Trabalho e Solidariedade Social e Ministério da Educação, 2006)
em matérias-chave como a Matemática, a Língua Materna está, com vigor acrescido depois de 2005, a tentar qualificar
e as Ciências e é sem surpresa que constatamos que as o máximo de adultos com baixas taxas de escolarização.
classificações dos alunos portugueses nestes testes têm sido Apesar das controvérsias que tem gerado, algumas delas bem
consistentemente baixos: 31º lugar entre 40 países, no que intencionadas, mas a maioria produto de uma estonteante e
à Matemática diz respeito, e 28º lugar entre os mesmos 40 suicida má fé, não poderá deixar de dar resultados importantes
países, no que concerne à Leitura (OECD, 2004, p. 57, 277). num espaço de tempo relativamente curto, o paralelismo com
Como se percebe por este tipo de dados publicados em 2004 o Plano de Educação Popular de 1952 (Veiga de Macedo, 1953)
sobre um programa que decorreu em 2003, que confirmam sendo de difícil recusa: estaremos, finalmente, nos começos

47 05
do século XXI, a levar a cabo um esforço coerente, mas que
tem de ser estável, ou seja, independente das flutuações
partidárias e, sobretudo, consistente e duradouro no tempo,
no sentido de aproximar a média das habilitações académicas
e profissionais dos portugueses dos seus colegas de espaço
civilizacional, quando a economia, de acordo com os últimos
dados disponíveis, que são relativos ao ano de 2008, vai no seu
sétimo ano seguido de divergência com o “Centro da Europa”
(OCDE, 2009)?

De qualquer das formas, o que queríamos mostrar com todos


estes dados, era a especificidade do atraso educativo que
parece caracterizar a Modernidade em Portugal e a forma como
se construiu, nos séculos XIX e XX. De entre as questões que
normalmente são escrutinadas para nos apercebermos do
“progresso”, ou da “Modernização” social e económica de
uma sociedade, ou seja, a riqueza, a legitimação política, e a
construção de um “Estado-Providência” moderno, sem dúvida
que a implantação de um modo de cultura baseado na escrita
é a que apresenta índices comparativos mais preocupantes,
antecipando-se à periferização económica a que Portugal é
sujeito no século XIX, mantendo-se e agravando-se durante
o século XX e pairando como uma sombra ameaçadora neste
começo do século XXI.

Esta sombra só pode ser esconjurada através de um trabalho


sério, contínuo, sustentável, independente de flutuações
partidárias, numa sociedade que entenda que o seu futuro
passará sobretudo por esta pequena janela, ou não passará de
todo, e que consiga reunir as forças para fazer política de forma
diferente do que faz neste momento. Não pode deixar de causar
surpresa o facto de, dado o diagnóstico que temos levado a
cabo nos últimos quinze anos, só há relativamente pouco tempo
é que um programa como o “Novas Oportunidades” tenha sido
montado com o vigor e visibilidade que actualmente tem; por
outro lado, não deixa de fazer impressão a má fé e ironia usada
por uma parte da opinião pública portuguesa quando a ele se
refere.

48
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50
Literacia familiar - diversidade,
desafios e princípios orientadores

51 05
Lourdes Mata1

Resumo
Hoje em dia é inquestionável a importância das práticas de literacia familiar. A
caracterização das actividades de literacia desenvolvidas no seio familiar, pelos
seus diversos membros, permite uma compreensão aprofundada das múltiplas
vertentes e utilidades da literacia familiar. Vários parâmetros podem ser
considerados quando analisamos essas práticas, tais como as suas características,
diversidade, frequência, quem as pratica e de que forma as crianças são envolvidas
e apoiadas na sua apropriação e utilização de formas de literacia funcional. Para
além disso, também se procura hoje em dia estudar eventuais relações entre
as práticas de literacia familiar desenvolvidas e as concepções emergentes de
literacia e o processo de aprendizagem da leitura e escrita das crianças. Tendo em
conta estes elementos, procuraremos ilustrar a sua pertinência apoiando-nos nos
resultados de alguns estudos desenvolvidos em Portugal. Procuraremos também
reflectir sobre alguns factores que deverão ser contemplados quando se pretende
intervir ao nível da literacia familiar.

1. Literacia Familiar – o conceito  casa e na comunidade, ou seja, os modos como as pessoas


aprendem e usam a literacia nas suas vidas em casa e na
A descoberta e aprendizagem da linguagem escrita começa comunidade – concepção mais descritiva. Contudo, nos
muito antes do ensino formal da leitura e escrita. Uma últimos anos, este termo surge muitas vezes associado a
compreensão dos processos envolvidos e do papel dos vários uma concepção mais prescritiva, relacionando-se com muitos
contextos onde a criança está inserida, tem sido objecto de programas de intervenção no âmbito da literacia familiar. Alguns
estudo de vários investigadores nos últimos anos (Alves Martins, destes programas têm sido alvo de críticas pois é considerado
2007; Alves Martins & Santos, 2005; Hood, Cólon & Anderson, que a sua abordagem é centrada no “déficit”, pretendendo
2008; Sénéchal, 2006). Como resultado destas abordagens aplicar a mesma actuação, as mesmas práticas, a um conjunto
passou a existir uma maior valorização, preocupação e tentativa complexo de diferentes situações sociais (Crawford & Zygouris-
de caracterização e compreensão dos ambientes de literacia Coe, 2006), não valorizando essas diferenças nem olhando para
mais informais como o jardim-de-infância e a família. Assim, a a pouca pertinência e descontextualização de algumas dessas
literacia familiar passa a ser um elemento importante no estudo práticas para aqueles contextos específicos. Neste âmbito,
destes processos. prescrevem-se formas de actuação para os pais desenvolverem
em casa com os filhos, e muitas vezes, transpõem-se actividades
Hannon (1999) alerta-nos para o facto de, por vezes, este e estratégias do meio escolar para o meio familiar.
conceito de literacia familiar reenviar para concepções diferentes.
Inicialmente Taylor (1983) usou este termo para descrever Segundo Hannon (1999), as abordagens na linha da
práticas de literacia diversificadas que se desenvolviam em perspectiva inicialmente apresentada por Taylor (1983), têm
ficado “obscurecidas” nos últimos anos, pois o realce tem sido
 ISPA – Instituto Universitário - Unidade de Investigação de Psicologia Cognitiva colocado nos programas de literacia familiar. Contudo, o autor
do desenvolvimento e da Educação - Trabalho financiado pela Fundação para a
Ciência e Tecnologia no âmbito do programa POCI 2010. A correspondência
alerta para o risco deste tipo de abordagem poder promover o
relativa a este artigo pode ser endereçada para: lmata@ispa.pt desenvolvimento de intervenções mais prescritivas em vez de

52
intervenções em que as famílias participem activamente e que práticas típicas destes ambientes familiares. Entre estas práticas
promovam o seu empowerment, uma vez que, se estabelecem de literacia familiar destacaram-se a leitura de revistas, jornais,
programas sem compreender e conhecer as diferentes legendas da TV e rótulos das embalagens e a leitura e escrita de
realidades quanto às práticas de literacia familiar. coisas ligadas à actividade profissional dos pais. Verificou-se
Após vários anos de investigação sabe-se que as crianças que um conjunto de outras práticas de literacia eram frequentes
experienciam múltiplas literacias em casa e que a literacia é e características de cerca de um terço dos participantes, mas
definida, usada e apoiada de acordo com as diferenças culturais que para os restantes surgiam com baixa frequência ou mesmo
e sociais. Segundo Cairney (2005), hoje em dia, sabe-se que nunca (por exemplo, livros, recados, cartas, receitas).
a literacia em casa e na comunidade é mais diversificada do
que se pensava. Contudo, sabe-se pouco sobre a forma como No que se refere às práticas partilhadas, a leitura de histórias, tal
as “multiliteracias da vida” interagem e se modulam entre si e como a leitura e a escrita de nomes diversos e de letras, foram
àqueles que as utilizam. Para este autor há três razões para estas referidas como muito frequentes na maioria destes ambientes
falhas no conhecimento: i) Muita investigação sobre literacia familiares. Novamente um outro conjunto de actividades como
limita as suas observações a práticas claramente associadas a leitura de legendas, de rótulos, de cartazes, de recados,
à literacia da escola; ii) As tentativas de observação na família entre outros, foram práticas onde, para um número razoável
direccionam-se muito para se procurar saber como as famílias de famílias (20%-30%), as crianças eram envolvidas com
apoiam na aprendizagem da literacia; iii) Têm sido utilizados regularidade, enquanto outras raramente ou nunca o faziam.
métodos limitados para avaliar as práticas de literacia familiar
que falharam na identificação de práticas autênticas (Cairney, Para as práticas individuais verificou-se que as actividades de
2005). Desde modo, foca-se a sua análise em determinadas literacia que as crianças mais desenvolviam sozinhas, eram
áreas específicas, não contemplando outras formas de literacia aquelas que desenvolviam em conjunto com os familiares.
familiar que estão presentes e fazem parte do dia-a-dia de Assim, notou-se um grande paralelismo com as práticas
muitas famílias. partilhadas (Mata, 2002, 2006).

2. Práticas de Literacia Familiar Face a estes resultados, Mata (2006) conclui que não existe
uma forma ideal de funcionar, nem um conjunto de actividades
Um estudo desenvolvido em Portugal, com 421 famílias de meio que todos realizam ou devem realizar do mesmo modo. Apesar
sociocultural médio e médio-alto, com um filho a frequentar de, algumas actividades terem surgido como sistematicamente
o último ano do pré-escolar (Mata, 2002, 2006), procurou desenvolvidas por uma grande maioria de pais e filhos, um
caracterizar a diversidade de práticas de literacia familiar outro conjunto de actividades de literacia familiar, traduziu a
existentes e a regularidade com que ocorriam. Para isso foram diversidade das famílias envolvidas, já que para algumas, eram
considerados três tipos de práticas de literacia familiar: práticas determinadas actividades que estavam mais enquadradas nas
observadas pelas crianças, que eram desenvolvidas por outros suas vivências e para outras famílias surgiram actividades
membros da família para trabalho, lazer ou na resolução de diferentes.
situações utilitárias; práticas partilhadas pelos membros
da família e em que a crianças de idade pré-escolar estava Conclui-se assim, não existir uma “receita tipo” de práticas, mas
directamente envolvida; práticas individuais da criança, que esta sim um conjunto de condições a criar, para que, cada forma
desenvolvia sozinha, mesmo que pudesse pedir a colaboração de literacia que exista em cada ambiente familiar, seja sentida
ou ajuda de outros (Mata, 2002, 2006). como útil, e seja valorizada enquanto meio para exploração e
apreensão da literacia. Não é uma situação específica ou um tipo
Quanto às práticas observadas constatou-se que as de leitura de práticas que faz a diferença. Existe um leque alargado de vias
eram mais frequentes e diversificadas que as de escrita. e meios, através dos quais a literacia familiar transparece e age,
Identificaram-se algumas práticas frequentes, referidas por sendo igualmente importantes as práticas observadas, como
mais de 50% dos participantes, evidenciando-se assim como as práticas partilhadas e as práticas desenvolvidas pela criança

53 05
sozinha, quer sejam mais específicas de leitura ou de escrita. É diferenciado de diferentes tipos de práticas, permite-nos
o seu conjunto e a forma como são sentidas e exploradas pela clarificar melhor essa diferenciação não só quanto ao tipo
família, e como as crianças são integradas neste seu viver e sentir, de práticas, como quanto aos diferentes conhecimentos
que é efectivamente importante e faz a diferença (Mata, 2006). emergentes de literacia.

3. Práticas de literacia familiar e conhecimentos Os participantes neste estudo foram 195 crianças a frequentar
emergentes de literacia o último ano da educação pré-escolar e os respectivos pais,
sendo o estatuto sociocultural das famílias diversificado. As
Para além da caracterização das práticas de literacia familiar na práticas de literacia familiar foram caracterizadas através de
sua diversidade e frequência, alguns trabalhos têm procurado um questionário passado aos pais, onde se procurava saber a
verificar também, se existe alguma relação entre as práticas frequência de ocorrência de três tipos de práticas de leitura e de
desenvolvidas e os conhecimentos de literacia das crianças. No escrita: Entretimento, Dia-a-Dia e Treino. No que se refere aos
estudo de Mata (2006) constatou-se que globalmente as práticas conhecimentos emergentes de literacia das crianças eles foram
de literacia familiar, no seu conjunto, não apareciam associadas caracterizados quer ao nível da apropriação da funcionalidade
aos conhecimentos emergentes. Contudo, as práticas mais da linguagem escrita, quer ao nível das conceptualizações sobre
lúdicas direccionadas para a leitura de histórias, estavam a linguagem escrita. A caracterização dos conhecimentos sobre
associadas às conceptualizações sobre a linguagem escrita. a funcionalidade da linguagem escrita foi feita através de uma
Assim, era entre as famílias onde se liam mais histórias, que se prova de identificação da função da escrita em diversos suportes
encontravam as crianças com conhecimentos emergentes de (Mata, 2008). Para a caracterização das conceptualizações
literacia mais evoluídos. sobre a linguagem escrita foi utilizada uma situação semelhante
a outras de trabalhos anteriores (Mata, 2002, 2006), pedindo
Estes resultados apontaram no sentido de que, diferentes às crianças que escrevessem algumas palavras, permitindo a
tipos de práticas poderão ter impactos diferenciados nos identificação das suas conceptualizações dominantes.
conhecimentos e competências de literacia. Esta ideia vem
no sentido das conclusões do trabalho de Sonnenschein, Os resultados deste estudo mostraram (Mata e Pacheco, 2009),
Baker, Serpell, Scher, Fernandez-Fein e Munsterman (1996). que as práticas de Treino eram as desenvolvidas com mais
Estes autores mostraram que práticas mais direccionadas frequência e as do Dia-a-Dia as menos frequentes nos
para o Entretimento ou para o treino de Perícias apareciam ambientes familiares analisados. Quando se procuraram
correlacionadas de modo diferente com a consciência fonológica identificar associações entre os diferentes tipos de práticas de
e as competências de narrativa e a orientação face à escrita das literacia familiar e os conhecimentos emergentes de literacia
crianças em idade pré-escolar. As práticas de Entretimento das crianças estas mostraram-se diferenciadas (Tabela 1).
apareceram positivamente correlacionadas com a Consciência
Tabela 1: Associações entre o tipo de práticas desenvolvidas e
Fonológica, somente quando as crianças eram de jardim-de-
as concepções emergentes de literacia (Mata e Pacheco, 2009).
infância, enquanto que as práticas de Perícia apareceram
negativamente relacionadas durante o pré-escolar. No que se
refere às competências de narrativa durante o pré-escolar, estas Dia-a-dia Entretimento Treino
evidenciaram uma correlação significativa com as práticas de r= .267** r= .402** r= .002
Entretimento. Por último, a orientação face à escrita, mostrou Funcionalidade p<0.001 p<0.001 p= .977
ser o domínio de competência mais correlacionado com o tipo n=195 n=195 n=195
de práticas desenvolvidas, já que se identificaram correlações rs= .160** rs = .262** rs = .046
positivas e estatisticamente significativas com as práticas de Conceptualizações p= .008 p<0.001 p= .449
Entretimento, nos dois anos em que decorreu o estudo.
n=194 n= 194 n=194
Um trabalho mais recente desenvolvido em Portugal (Mata
e Pacheco, 2009), para além de confirmar este impacto ** - diferenças significativas

54
Como podemos verificar pela análise dos dados da tabela 1, 5. Desafios e princípios orientadores
tanto as práticas do Dia-a-dia como as de Entretimento se
mostraram positivamente associadas não só com a percepção Os resultados dos trabalhos anteriormente apresentados
da funcionalidade da linguagem escrita como também com as permitem-nos avançar com alguns elementos que nos parecem
conceptualizações infantis sobre a escrita. Estes resultados essenciais tomar em consideração quando se pretende intervir
mostram então que existe uma tendência para que, quanto ao nível da literacia familiar, de modo a promover as suas
mais se desenvolverem este tipo de práticas, melhores serão potencialidades.
os conhecimentos das crianças relativamente à funcionalidade
da linguagem escrita e mais elevado será o seu nível conceptual Um primeiro grande desafio que se coloca é o de caminhar no
sobre o funcionamento da linguagem escrita. Por outro lado, sentido de incluir a participação e colaboração dos pais de uma
não foram encontradas quaisquer associações significativas forma integrada. Assim, os programas desenvolvidos devem
com as práticas de Treino, apontando no sentido de que um considerar e serem construídos a partir da valorização de práticas
maior ou menor desenvolvimento deste tipo de práticas parece de literacia familiar reais. Para isso é essencial compreender e
não estar associado aos indicadores de literacia emergente aceitar as diferenças entre literacia familiar e escolar de modo
considerados (Mata e Pacheco, 2009). a evitar o reducionismo das práticas de literacia familiar. O
facto de, muitas vezes, nos programas desenvolvidos se limitar
4. Considerações finais o papel dos pais a ensinar os filhos a escrever uma letras ou
palavras ou a ajudá-los nas suas tarefas escolares não permite
A primeira ideia a realçar refere-se à diferenciação do tipo de valorizar a riqueza e a complexidade da literacia familiar. Quando
práticas de literacia desenvolvidas em ambiente familiar. Os verificamos que existem diferentes práticas de literacia no dia-
resultados dos vários estudos apresentados evidenciaram a-dia das famílias, sejam elas de um estatuto sociocultural
que, para uma melhor compreensão da literacia familiar e das mais elevado ou mais baixo, então porque não rentabilizá-las,
suas características, pode ser importante diferenciar o tipo de valorizá-las, dar-lhes visibilidade? Deve ser então, um outro
práticas, não as considerando globalmente. Por outro lado, desafio a ter em consideração: promover a intencionalidade
estes estudos permitem-nos também considerar o facto de na exploração das práticas diversificadas de literacia familiar,
que práticas diferentes de literacia poderão contribuir para o tornando-as muito mais completas e ricas. Certamente que
desenvolvimento de competências diferentes de literacia. No uma interacção multiplicada no tempo e multifacetada em
estudo de Mata e Pacheco (2009) verificou-se que era entre as actividades de literacia, reais, significativas e funcionais, poderá
famílias onde as crianças são envolvidas com mais frequência ter um impacto muito superior no desenvolvimento da literacia
em actividades de leitura e escrita integradas nas suas rotinas emergente das crianças, do que actividades pontuais, por vezes
e também em momentos de lazer, que as concepções de desenraizadas e tecnicistas.
literacia eram mais avançadas. Estas concepções eram mais
evoluídas tanto no que se refere à percepção da funcionalidade Poderemos então ter presentes cinco grandes princípios
da linguagem escrita como também relativamente às regras e orientadores quando se pretende compreender e intervir ao nível
convenções que a regem. O facto de, estas famílias envolverem da literacia familiar. O primeiro destes princípios passa pelo i)
as crianças naturalmente no seu dia-a-dia em momentos de Conhecer de forma aprofundada a realidade onde se vai actuar.
literacia mais utilitários ou lúdicos, parece permitir que elas Por um lado é importante conhecer as práticas de literacia
tenham múltiplas oportunidades para contactarem, reflectirem, familiar que já são desenvolvidas, por outro tentar compreender
usarem e experimentarem a linguagem escrita e, este facto, as concepções que essas famílias desenvolvem sobre o
parece facilitar a sua evolução, desenvolvendo gradualmente processo de aprendizagem da linguagem escrita e sobre o seu
concepções mais avançadas (Mata e Pacheco, 2009). papel nesse processo. Este conhecimento vai permitir actuar de
forma a ii) Respeitar e Valorizar a(s) literacia(s) familiar(es) e a
individualidade de cada família e do seu papel no processo de
apropriação da linguagem escrita. Deste modo podem-se iii)

55 05
Diversificar actuações, estratégias e avaliações, porque cada
realidade tem as suas particularidades, e potencialidades. Estas
poderão ser ajustadas às necessidades específicas, não se
pretendendo uniformizar práticas de literacia familiar mas sim
promover e enriquecer as literacias existentes e desenvolver, de
um modo integrado e significativo, facetas e vertentes menos
evidentes. A mudança, mesmo que devidamente estruturada
e preparada, pode causar pressão, tensão e ansiedade. Há
assim que ter o cuidado e estar alerta para iv) Identificar
Dificuldades sentidas pelas famílias, na sua acção no âmbito da
literacia familiar. Por vezes, algumas estratégias desenvolvidas
podem ser fonte de ansiedade e insegurança. Na literatura
são relatados vários casos envolvendo a leitura de histórias,
que apesar de ser uma actividade lúdica, que se pretende ser
agradável e positiva, em alguns casos, é sentida como algo
difícil e promotor de interacções menos positivas, causando
insatisfação e ansiedade (Handel & Goldsmith, 1994; Paratore,
1995; Somerfield, 1995). Um outro princípio orientador da
acção tem que passar por v) Promover sentimentos de eficácia,
pois só sentindo-se competentes e agentes de valor, com um
papel activo, nas interacções partilhadas de literacia, é que se
conseguem pais verdadeiramente envolvidos e que poderão
contribuir significativamente para o processo de apropriação
da linguagem escrita. Por último, quando se intervém em
literacia familiar, há que ter em consideração que as actividades
de literacia familiar devem ser vi) agradáveis e associadas a
momentos de Satisfação e prazer.

Consideramos que tendo subjacentes estes princípios


orientadores, na intervenção com pais em torno da literacia
familiar, se conseguirão acções ajustadas que contribuirão não
só para uma valorização das práticas de literacia familiar como
também para o sucesso e a eficácia da acção educativa dos pais
junto dos seus filhos, facilitando o processo de descoberta e
apropriação da linguagem escrita.

56
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57 05
58
Uma questão de confiança:
o que (des)motiva a geração actual ?

59 05
Susana Coimbra1

Resumo
“Motivação” e “sucesso escolar” são locuções que entram no discurso quotidiano
de um grande número de pessoas, em particular daquelas que lidam mais de
perto com a realidade dos jovens em idade escolar. Mas, afinal, a partir de que
critérios definimos “sucesso escolar”? E o que é a “motivação”? Terão o mesmo
significado em diferentes grupos sociais e em diferentes gerações? Numa geração
caracterizada pelo imediatismo e pela baixa tolerância à frustração, serão realmente
as nossas escolas frequentadas por um número crescente de alunas e alunos com
“falta de motivação”? Estas questões serão brevemente abordadas à luz da teoria
sociocognitiva da auto-eficácia. De acordo com esta teoria, o nível de realização
conseguido parece depender não só das reais aptidões possuídas, mas também
das crenças acerca do que se é capaz e acerca das possibilidades de mudança.
Privilegiando o contributo teórico e empírico desta teoria, algumas implicações
para a prática dos pais e professores serão abordadas.

1. Acerca do acesso e sucesso escolar – igualdades O ensino de competências, como a leitura, a escrita, a
e desigualdades matemática ou a música, começou por ser exclusivo das
classes mais privilegiadas, do ponto de vista económico. Na
A qualidade de vida e o nível de desenvolvimento das sociedades altura, o seu valor instrumental, de preparação para o mercado
depende do nível de qualificação dos seus cidadãos. Prova de trabalho, era muito residual ou mesmo nulo. Terá sido nas
disso mesmo é que, em tempos de recessão económica, como sociedades agrícolas que, pela primeira vez, foi exigido um
a que vivemos actualmente, existe uma maior pressão para nível básico de preparação escolar para a generalidade dos
que seja reforçado o investimento no capital humano (OECD, grupos sociais. Com o florescimento da industrialização, esta
2009). Nunca a escolarização chegou a tantas crianças, jovens exigência começa a ser mais generalizada mas, ainda assim,
e mesmo adultos. Contudo, as condições de acesso continuam o objectivo da escola restringia-se à leccionação de aptidões
ainda longe de ser sinónimas de condições de sucesso para elementares do ponto de vista cognitivo. A Humanidade,
todas e todos. Por isso, impõe-se uma análise dos motivos que ainda muito longe da consagração de direitos fundamentais,
poderão justificar porque é que existem tantas pessoas que não começava a reconhecer a infância como uma etapa de
conseguem aproveitar as primeiras e segundas oportunidades desenvolvimento com características próprias. Olhava com
de formação que lhes são formalmente proporcionadas. especial interesse a fase que se lhe segue em termos etários
Partindo do pressuposto lógico que as capacidades ou aptidões – a adolescência – fonte de mão-de-obra barata, inexperiente
não são suficientes para explicar a disparidade de resultados, e pouco especializada, a ideal para a maximização de lucros
ganham cada vez mais importância os processos motivacionais na manufactura. A Declaração Universal dos Direitos Humanos,
associados ao sucesso escolar. em 1948, consagraria as preocupações, que já germinavam
nos finais do século XIX, com o trabalho infantil. Datam desta
altura os princípios da gratuitidade e obrigatoriedade do ensino
 Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. básico, o acesso generalizado ao ensino técnico e profissional
A correspondência relativa a este artigo pode ser endereçada para:
susana@fpce.up.pt e a igualdade de acesso a uma formação superior. Os objectivos

60
e destinatários da educação institucionalizada foram, assim, está associada a um padrão de persistência e a objectivos
mudando nos países ditos desenvolvidos: de opção recreativa centrados na aprendizagem. Ambos os padrões parecem
das classes elevadas, passaria a uma necessidade económica e derivar de diferentes noções implícitas acerca da inteligência.
civilizacional generalizada e “compulsiva” para a generalidade Para as pessoas que perfilham uma concepção estática de
dos grupos sociais. O crescimento acelerado e a globalização inteligência, esta é percebida como uma característica que
da economia, assim como o progresso tecnológico da era da não pode ser alterada, que todas as pessoas possuem numa
informação do final do século passado, conferem ainda mais determinada quantidade fixa, estável, potencialmente limitada.
responsabilidades à escola. O aumento das competências Por contraposição, as pessoas que apresentam uma concepção
exigidas para corresponder à complexidade e competitividade dinâmica, entendem a inteligência como um conjunto de
crescente, quer do mundo profissional, quer da vida quotidiana, competências e conhecimentos que podem e devem ser
mantém os jovens até cada vez mais tarde dentro dos muros desenvolvidos, mediante o dispêndio de esforço. No primeiro
escolares. Tem mesmo sido identificado como o principal factor perfil, da concepção estática de inteligência, encaixam aqueles
para um adiamento progressivo da transição para a vida adulta, estudantes que não estão realmente interessados em aprender,
que justificaria a origem de um novo grupo etário, a adultez mas apenas obcecados pela nota que podem obter, percebida
emergente. Esta mesma conjuntura exige que se aprenda a como a fiel medida da sua inteligência. Por isso, preferem
aprender ao longo da vida, o que justifica a proliferação de aquelas tarefas que maximizem a possibilidade de “brilhar”,
ofertas de educação e formação de adultos (Arnett, 2004, 2006; de demonstrar inteligência perante o olhar dos outros. O erro
Bandura, 1995, 2006ª; Hamburg, 1990; Muuss, 1990). é inadmissível e também não gostam de se esforçar, ou de
parecer que se esforçam, na medida em que o esforço é visto
Regra geral, seja em documentos oficiais (por exemplo, como inversamente proporcional à capacidade: só precisa de
Ministério da Educação, 2005, 2009), seja na literatura científica se esforçar muito, quem tem uma capacidade muito limitada.
(por exemplo, Bradley & Corwin, 2002; McLoyd, 1998), o sucesso Já os estudantes com uma concepção dinâmica de inteligência
escolar é definido a partir de quatro critérios essenciais: ausência procuram situações que lhes permitam aprender, que lhes
de abandono escolar (antes do final da escolaridade obrigatória), propiciem a oportunidade de desenvolver a sua competência
ausência de absentismo (baixa assiduidade ou elevado número inicial. Não lhes interessa compararem-se com os outros
de faltas repetidas e injustificadas), ausência de reprovação em (comparação interindividual), mas antes sentir que existem
disciplinas escolares e/ou de retenção num ano lectivo. Menos melhorias, quando comparam os seus próprios desempenhos
frequentemente, o sucesso escolar é definido pela excelência actuais com os conseguidos no passado (comparação
escolar, sendo ainda mais raras as referências a aspectos não intraindividual) (Faria, 1998, 2006). A competitividade é,
estritamente associados a resultados quantitativos, às notas contudo, a imagem de marca da sociedade actual, pelo que
escolares. É bem verdade que, em particular no contexto dificilmente qualquer pessoa ou sociedade poderá dispensar
nacional, será fácil compreender, como veremos, porque algum tipo de comparação social com padrões de referência
prevalece esta definição de sucesso pela negativa, pela ausência (Twenge & Campbell, 2009).
de insucesso. Esta grelha de análise da realidade não deixa,
contudo, de ter implicações, ou mesmo custos, nomeadamente Nos últimos 50 anos, registou-se um aumento e generalização
em termos motivacionais. Será importante reflectir se, enquanto dos níveis de escolarização em Portugal, constituindo
sociedade e enquanto indivíduos, estaremos mais motivados uma recuperação do atraso de décadas que apresentava
para evitar o insucesso ou mais motivados para, efectivamente, relativamente a outras sociedades desenvolvidas. Por exemplo,
obter sucesso, para desenvolver competências e alcançar um a frequência do ensino secundário terá passado da percentagem
certo nível de excelência. de 1,3%, observada em 1960, para 60% em 2008 (GEPE/ME/
INE, IP, 2009). O investimento português na educação tem,
Enquanto que a motivação para evitar fracasso está associada a efectivamente, crescido muito nos últimos anos, situando-se
um padrão de desistência e a objectivos centrados no resultado, mesmo, actualmente, acima da média da OCDE (Organização
a motivação para obter sucesso, no sentido acima definido, de Cooperação e Desenvolvimento Económicos): assim existe

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um investimento de 3,7% do PIB nacional para uma média de e os resultados escolares é, porventura, uma das problemáticas
3,5% nos países da OCDE. É bem verdade que se observa, por mais estudadas desde o início da Psicologia, sendo os resultados
comparação aos restantes países, uma expansão notável deste coincidentes em diferentes contextos e períodos. De uma forma
investimento no ensino superior, algo justificável pelo facto de, geral, as crianças e jovens de níveis mais baixos têm muito
no contexto nacional, ser ainda particularmente compensadora piores resultados do que os de níveis mais elevados, seja qual o
a sua frequência, em termos de empregabilidade e remuneração. for o indicador considerado (retenções, notas em testes, notas
Contudo, todo este investimento ainda não tem sido suficiente de final de período ou abandono escolar precoce) (Bradley &
para equiparar Portugal à média dos restantes membros da Corwin, 2002; McLoyd, 1998).
OCDE. Assim, 77% dos alunos com idades compreendidas entre
os 15-19 anos encontram-se inscritos no sistema de ensino A origem social dos alunos, ao estar associada a um menor
(versus 82% da média da OCDE), sendo a taxa de transição sucesso escolar, reflecte-se nas escolhas académicas e de
para o ensino secundário de apenas 65% (versus 82% da média carreira que vão sendo feitas ao longo da escolaridade. Das duas
da OCDE). O atraso português é ainda mais visível nas faixas grandes alternativas oficiais de formação – prosseguimento de
etárias mais velhas, correspondendo a níveis mais avançados estudos e profissionalizante – os jovens de nível socioeconómico
de formação. A percentagem da população portuguesa dos 25- mais baixo calcorreiam mais esta última ou uma outra, oficiosa,
34 anos que concluiu, pelo menos, o ensino secundário limita- a via da desistência. Esta última conduz, necessariamente, a
se a 44% (versus 79% da média da OCDE) (OECD, 2009). percursos de vida incertos ou de subsistência, de “ganchos,
Actualmente, ainda cerca 50% dos jovens com idades inferiores tachos e biscates” que decorre de um sentimento de futilidade
a 29 anos que já se encontram no mercado de trabalho tem face à escola (Bandura, 1995; Cabral & Pais, 1998; Pais 2001).
apenas o 9.º ano e 35% abandonou mesmo a escola antes de Os jovens de nível socioeconómico mais baixo tendem a “fugir”
terminar a escolaridade obrigatória. A dificuldade em ir para mais das áreas de formação científicas e tecnológicas, que são
além do 9.º ano é mais sentida por aqueles que vivem no interior mais promissoras em termos de emprego e prestígio. Constituem,
ou na periferia das grandes cidades e, como é evidente, pelos por isso, um grupo de risco, em termos de desenvolvimento de
jovens de nível socioeconómico mais baixo (Ferreira, Fernandes, carreira, porque têm menos sucesso e/ou porque acreditam
Vieira, Puga e Barrisco, 2006; GEPE/ME/INE, IP, 2009). menos nas suas capacidades, nomeadamente na matemática
e demais disciplinas científicas que desempenham um papel
Originalmente, como vimos, a generalização da escolarização de “filtro crítico” pelo qual é necessário passar para aceder a
terá sido fortemente motivada pelo ideal de promover igualdade profissões mais valorizadas social e economicamente (Bandura,
de oportunidades para todas e para todos. Numa fase de 1995, 2006ª; Betz & Hackett, 1981, 1983). Os fracos resultados
optimismo pedagógico, até à década de 70 do século passado, a da generalidade dos alunos portugueses na matemática e
escola era, efectivamente, vista como factor de democratização, ciências são sobejamente conhecidos. Nos estudos TIMSS
de equidade entre grupos sociais, de distribuição e redistribuição (Third International Mathematics and Science Study) e PISA
do capital económico e cultural e, por conseguinte, de (Programme for International Student Assessment) os alunos
melhoramento da condição humana (paradigma do consenso ou portugueses surgem entre os piores colocados nas suas
estruturo-funcionalismo). Esta perspectiva está estreitamente competências matemáticas e científicas. Os alunos e alunas
associada ao ideal meritocrático: uma vez garantida a igualdade portuguesas até valorizam estas disciplinas e gostariam
de oportunidades, cada indivíduo poderia ocupar a posição mesmo de poder seguir uma carreira neste domínio, mas as
merecida na sociedade. A esta fase seguiu-se uma outra, de suas competências não parecem ser consonantes com as suas
pessimismo pedagógico, que defende que a educação reproduz atitudes e expectativas: apenas 1/4 dos alunos portugueses
ou agrava as diferenças sociais. A escola funcionaria, por domina as competências científicas mais simples, ocupando
isso, como instrumento de sujeição das classes mais baixas Portugal a 37ª posição entre 57 países avaliados. A explicação
à hegemonia das classes dominantes, eternizando a ordem para estes resultados parece ultrapassar os muros da
vigente (paradigma do conflito ou estruturalista) (Morrow & escola ou o investimento do Estado. Se fossem comparados
Torres, 1997). De facto, a relação entre o nível socioeconómico alunos que partilhassem o mesmo nível socioeconómico, as

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diferenças seriam muito menores. O nosso país tem uma maior de acções que nos permitam alcançá-la, mantendo-nos firmes,
percentagem de alunos de nível socioeconómico baixo do que a mesmo perante as maiores contrariedades. Já quando o nosso
média dos países avaliados, enfrentando-se um “desafio maior”: nível de motivação é baixo ou nulo, podemos adiar ou mesmo
o de “combater o impacto do contexto socioeconómico” (Pinto- nunca começar a exibição de comportamentos que permitiriam
Ferreira, Serrão e Padinha, 2007). a sua concretização ou, então, desistir quando nos deparamos
com o mais pequeno obstáculo.
Portugal estará, por conseguinte, bem longe de ser uma
excepção à regra da reprodução social escolar. A realidade Como acontece com um grande número de constructos
nacional possui, aliás, contornos particularmente preocupantes, psicológicos, não existe consenso em torno da definição de
se tivermos em linha de conta que somos um dos países da motivação. As primeiras teorias descreviam-na mormente
Comunidade Europeia onde existe um maior hiato entre classes como um impulso interno, tendencialmente biológico, que
sociais. A pobreza parece ser uma realidade, mais transitória ou se mantinha relativamente estável ao longo do ciclo de
mais definitiva, para uma percentagem considerável de famílias vida e dos diferentes contextos. Hoje, parece evidente que a
(cerca de 52%), atingindo sobretudo os mais jovens: 1/5 motivação não é nem unidimensional, nem intrapsíquica.
dos jovens com menos de 18 anos de idade vive em risco de Para além disso, parece inegável que estamos perante uma
pobreza (Costa, Baptista, Perista, e Carrilho, 2008; EUROSTAT, característica que está em constante desenvolvimento e
2009, 2010). Como é evidente, existem muitos jovens que transformação, fortemente dependente das experiências de vida
escapam a esta reprodução social. Grande parte do mérito proporcionadas nos diferentes contextos de inserção. Por isso,
não pode ser negado aos próprios, nem ao próprio sistema de dificilmente poderemos encontrar uma teoria universalista,
ensino. O nível socioeconómico é uma variável diferenciadora que possa explicar todo e qualquer indicador de motivação,
mas não determinista. A continuidade intergeracional pode independentemente do contexto. A motivação possui uma
ser interrompida: por isso todos nós conhecemos jovens que componente interna, biológica e cognitiva, mas também
não repetem o mesmo padrão de pobreza dos seus pais, o que uma componente comportamental e afectiva ou emocional,
constitui um augúrio de esperança (Garmezy, 1993, p.390). externamente observável. Pode, deste modo, ser operacionalizada
Alguns factores parecem ter o poder de amortecer o impacto de acordo com determinados critérios, na presença dos quais
das restrições económicas no rendimento escolar, aumentando poderemos assumir que estamos perante a manifestação
a motivação escolar contra todas as probabilidades. As crenças de motivação. Estes critérios podem ser considerados os
que os jovens têm acerca das suas capacidades desempenham, denominadores-comum que subjazem às diferentes teorias da
neste contexto, um papel importante (Garmezy, 1993; Masten, motivação (Fontaine, 1990; Fontaine, 2005).
Burt, Roisman, Obradovi, Long, & Tellegen, 2004; Masten,
Hubbard, Gest, Tellegen, Garmezy & Ramirez, 1999; Masten, Em primeiro lugar, poderemos referir aquele que é o critério
Obradovi, & Burt, 2006; Schunck & Meece, 2006, Werner & mais comummente associado à motivação: a escolha e
Smith, 1992, 2001). orientação para objectivos. Pessoas altamente motivadas
irão alimentar expectativas ou aspirações mais elevadas,
2. Motivação – acreditar é preciso estabelecendo para si mesmas metas que constituem um
desafio maior, em termos de número e/ou de complexidade. As
A motivação pode ser definida como o aspecto dinâmico estratégias de acção efectivamente implementadas constituem
da acção, isto é, o que energiza, o que dá motivo ou razão um outro importante critério. Elevados níveis de motivação
de ser a tudo aquilo que fazemos. Trata-se, portanto, da traduzir-se-ão em persistência e resiliência mesmo perante os
característica que vai determinar a iniciação, a manutenção e maiores obstáculos, enquanto que baixos níveis de motivação
a conclusão de um determinado comportamento ou conjunto reflectir-se-ão no abandono ou fuga à mínima adversidade. Um
de comportamentos que visam a obtenção de um determinado terceiro critério é a interpretação dos resultados, isto é, o modo
objectivo. Deste modo, quando estamos muito motivados em como as pessoas vão perceber os resultados que obtêm. Estas
relação a uma meta, decidimos iniciar uma acção ou conjunto atribuições causais terão um impacto emocional diferenciado.

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Assim, perante um determinado resultado objectivamente ao que lhes vai acontecendo no seu meio. Para além disso,
semelhante, uma pessoa pode sentir-se orgulhosa ou não é verdade que o contexto exista independentemente das
desanimada, estimulada ou ansiosa, dependendo das razões que pessoas que nele se inserem: ele afecta o comportamento
acredita estarem por detrás dos seus sucessos ou fracassos. ou acção de cada indivíduo mas também é passível de ser
As pessoas que atribuem os seus sucessos a causas internas modificado por ele. De facto, mesmo quando as pessoas,
ou estáveis e os seus fracassos a causas externas ou instáveis aparentemente, não podem fazer nada em relação ao que lhes
apresentam um padrão estimulante em termos motivacionais: acontece, podem sempre exercer controlo sobre aquilo que
elas acreditam que o que lhes acontece de positivo se deve a pensam e sentem. Mais do que isso, através da sua acção,
características pessoais que não se alterarão, enquanto que o podem mesmo influenciar o contexto e, deste modo, os
que lhes acontece de negativo não tem a ver consigo, nem é pensamentos e sentimentos futuros que conduzirão a novas
permanente. Por isso, têm motivos para encarar com optimismo acções e a novas interpretações. Nesta cadeia, a forma como
futuros desafios (Fontaine, 2005). as pessoas interpretam os resultados do seu desempenho,
altera os seus contextos e as suas crenças pessoais que, por
Por fim, um quarto e último critério, é a percepção de si próprio, sua vez, alteram o desempenho subsequente. A pessoa, o meio
isto é, as crenças que as pessoas têm acerca das suas qualidades ou contexto e o seu comportamento ou acção constituem, por
pessoais, em particular no que diz respeito ao seu valor (auto- conseguinte, influências independentes mas que interagem
estima) e competência (auto-eficácia). Privilegiaremos este constante e reciprocamente. A interdependência entre os
último constructo, uma vez que existe uma forte evidência vértices do triângulo designa-se de agência humana interactiva
empírica de que as crenças de auto-eficácia desempenham um ou determinismo recíproco, noção que parece reconstruir e
papel chave em termos motivacionais, precedendo os demais conceder sustentação empírica ao “livre arbítrio” filosófico e
critérios supra-enunciados. Assim, as crenças de auto-eficácia religioso da época medieval (Bandura, 1995, 2006b, 2008). Esta
parecem ser determinantes para as metas que são estabelecidas agência possui pressupostos caracteristicamente humanos,
e as escolhas que são feitas (processos cognitivos e processos entre os quais se destacam a intencionalidade, a antecipação,
de selecção), para as estratégias empreendidas (processos a auto-regulação e auto-reflexão. A intencionalidade define a
motivacionais) e para a interpretação dos resultados e seu capacidade de construir projectos, de estabelecer planos de
impacto (processos emocionais). acção e estratégias para os implementar. A antecipação refere-
se à capacidade de visualizar o futuro, de pensar a longo prazo,
Quando tentamos compreender porque é que as pessoas e, deste modo, de conceder propósito, direcção, significado
diferem nos seus comportamentos ou desempenhos, duas e coerência à vida. De nada serve ter intenções ou antecipar
abordagens tipicamente contrastantes podem ser identificadas: o futuro e depois esperar, de braços cruzados, que tudo se
tudo depende da pessoa ou tudo depende do meio. De acordo concretize. Há que ir auto-regulando, mantendo ou corrigindo,
com a primeira perspectiva, que poderá ser designada de os projectos e/ou as acções, os pensamentos e emoções ao
agência autónoma, toda e qualquer acção seria a expressão longo do processo de implementação, de modo a maximizar
da vontade individual, não sofrendo o ser humano qualquer as possibilidades de sucesso. Por fim, as pessoas são também
tipo de limitação ou constrangimento externo. Já de acordo auto-conscientes, capazes de reflectir, examinar ou pensar
com a segunda perspectiva, que poderá ser designada de acerca do modo como funcionam e das implicações, retirando
agência mecânica, as pessoas não fariam mais do que reagir ilações e lições para o futuro (Bandura, 2006b; Maddux, 1995).
mecanicamente às pressões exercidas pelo meio, não havendo
qualquer margem para a expressão da sua vontade pessoal Sabendo que aquilo que as pessoas fazem, pensam e
(Bandura, 1986, 1989, 2006a, 2006b; Maddux, 1995). sentem baseia-se mais naquilo em que acreditam do que
em factos objectivos, só existirá mudança psicológica e/ou
Segundo Bandura, proponente da teoria social cognitiva onde comportamental quando existe uma alteração do sentimento
se insere a teoria da auto-eficácia, as pessoas nem agem de individual de mestria pessoal, isto é, das crenças de auto-
forma totalmente livre, nem se limitam a reagir passivamente eficácia. As crenças de auto-eficácia são as expectativas que

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cada pessoa tem de possuir as capacidades necessárias para observação das experiências de outras pessoas. Não basta,
fazer tudo o que seja necessário para alcançar um determinado contudo, observar o desempenho bem sucedido de qualquer
resultado. Por princípio, estas crenças caracterizam-se pela pessoa, ainda que obtido através de esforço e perseverança,
sua especificidade, isto é, o facto de uma pessoa acreditar nas para induzir no observador a convicção de que também ele será
suas capacidades para ter sucesso numa tarefa ou contexto capaz de fazer o mesmo. É imprescindível um grau razoável de
específico não significa que confie indiscriminadamente nas similitude entre as situações e entre as pessoas. Deste modo,
suas aptidões para todas as tarefas ou contextos. Por exemplo, é importante que a pessoa observada seja percebida como
pode antecipar-se como um bom estudante a Línguas mas semelhante em termos de competência, para o observador
como um mau estudante a Ciências ou como um profissional acreditar que, ele próprio, possui as capacidades necessárias
de excelência mas como um pai medíocre (Bandura, Reese & para lidar com actividades similares (Bandura, 1986, 1997;
Adams, 1982; Bandura, 1997; Maddux, 1995). Maddux, 1995).

Uma questão pode, então, colocar-se: como nascem estas “Tu és capaz”, “se quiseres, tu consegues” são algumas
crenças, isto é, em que informações as pessoas se baseiam para das frases que muitas vezes utilizamos para encorajar o
acreditar que são capazes de fazer algo? Foram identificadas comportamento de alguém que parece pouco confiante.
quatro fontes de informação principais para as crenças de De facto, a designada persuasão verbal e social é uma fonte
auto-eficácia: as experiências anteriores da própria pessoa, a importante da auto-eficácia. É, contudo, óbvio que só funcionará
observação dos comportamentos dos outros ou experiências adequadamente se o persuasor for alguém credível para aquela
vicariantes, a persuasão verbal e social e certos estados pessoa e para aquela situação específica. Se pensarmos em
fisiológicos e emocionais (Bandura, 1986, 1992, 1995, 1997; termos de desempenho escolar, por exemplo, provavelmente
Maddux, 1995). um estudante reforçará mais a sua auto-eficácia para uma
determinada disciplina se for encorajado pelo docente da
As experiências anteriores do próprio indivíduo constituem mesma do que se for encorajado pela mãe, pelo pai ou por um
a mais poderosa fonte de eficácia pessoal. De facto, nada amigo. Em todo o caso, tem sido verificado que, recorrendo
contribui mais para a crença de que somos capazes de fazer algo exclusivamente à estratégia de persuasão verbal ou social, é
do que a evidência de já o termos conseguido anteriormente. mais fácil debilitar do que fortalecer as crenças de auto-eficácia
Assim, logicamente, as experiências de sucesso aumentam das pessoas. Assim, é mais fácil convencer alguém de que não
a percepção de eficácia, enquanto que as de insucesso será capaz, insistindo nas suas limitações e induzindo dúvidas
diminuem-na. Contudo, o impacto destas experiências não é nas suas capacidades, do que o inverso. A persuasão pode,
linear. Os sucessos anteriores não fortalecerão a auto-eficácia todavia, ser mesmo contraproducente, se não fizer mais do que
se tiverem sido atingidos com facilidade: um forte sentimento insuflar crenças irrealistas acerca das capacidades pessoais
de eficácia, resistente às possíveis contrariedades, terá que e precipitar o fracasso: nessa situação, não só saem mais
advir de situações em que o sucesso só é conseguido graças debilitadas as expectativas de eficácia da pessoa, como ela
à perseverança e ao esforço na ultrapassagem de obstáculos. dificilmente voltará a confiar no persuasor.
As pessoas que apenas tiverem ocasião de experimentar
sucessos fáceis, são vulneráveis ao desencorajamento caso, no Os estados físicos e emocionais são a quarta e última fonte
futuro, os resultados não sejam tão imediatos. Já as pessoas de informação da auto-eficácia. As pessoas acreditam mais
que acreditam, convictamente, que possuem as competências facilmente nas suas capacidades, quando se sentem bem
necessárias para serem bem sucedidas, manifestam maior em termos físicos, psicológicos e anímicos. A má disposição
perseverança face à adversidade, fortalecendo-se mesmo com ou outros sinais normalmente associados à ansiedade vão,
essas experiências (Bandura, 1995, 1997). inevitavelmente, induzir insegurança, colocando dúvidas
acerca da competência própria para lidar com as exigências
Para além das experiências directas do sucesso e do fracasso, das tarefas. Torna-se, por conseguinte, importante melhorar as
as crenças de auto-eficácia são também alimentadas pela condições físicas e reduzir os níveis de stress e mal-estar, mas

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também corrigir eventuais más interpretações destes sinais o seu próprio destino, através da selecção de meios que poderão
físicos ou emocionais. Efectivamente, de um modo geral, não promover, ou não, potencialidades e proporcionar diferentes
são as fontes per se que criam ou reforçam as crenças de auto- estilos de vida.
eficácia, mas sim a forma como são percebidas, interpretadas e
integradas (Bandura, 1995, 1997; Maddux, 1995). Regra geral, as pessoas escolhem situações nas quais esperam
ser bem sucedidas. As pessoas com auto-eficácia elevada
Porque é que as crenças de auto-eficácia assumem um papel facilmente irão assumir actividades desafiantes e seleccionar
tão importante no funcionamento humano? Quais são as suas ambientes exigentes, com os quais se julgam capazes de
consequências? As crenças de eficácia têm implicações no lidar, dando-se a possibilidade de reforçar, ainda mais, o seu
funcionamento cognitivo, motivacional, emocional e selectivo, sentimento de eficácia pessoal. Pelo contrário, quando as
influenciando, por conseguinte, o comportamento de uma pessoas têm uma baixa auto-eficácia, evitam contextos de
forma concertada (Bandura, 1989, 1995, 1997; Maddux, 1995). vida nos quais pensam que serão exigidas capacidades que
De facto, a influência da auto-eficácia sobre o comportamento excedem aquelas que possuem, privando-se, logo à partida,
começa mesmo antes da acção em si, no seu planeamento da possibilidade de experimentar sucesso, o que vai reforçar
e antecipação cognitiva. As pessoas que acreditam nas suas as suas baixas crenças de competência. Assim, as crenças
capacidades, comparativamente com as que duvidam das de auto-eficácia “criam a sua própria validação”, numa lógica
mesmas, estabelecem para si próprias metas mais elevadas ou das “profecias que se auto-cumprem” (Bandura, 1989, 1997,
desafiantes e comprometem-se mais fortemente na prossecução 2006b).
das mesmas. As pessoas mais auto-eficazes são por isso, de
acordo com um dos critérios anteriormente referidos, pessoas 3. Auto-eficácia: alguns resultados no contexto na-
mais motivadas, fazendo o que é necessário para atingir os seus cional
objectivos: despendem mais esforço e são mais persistentes
quando se deparam com desafios e obstáculos. A auto-eficácia prediz tão bem ou mesmo melhor os resultados
obtidos do que as capacidades objectivamente avaliadas (como
As crenças de auto-eficácia permitem também compreender a é o caso do QI). Estudantes mais auto-eficazes persistem
forma como as pessoas reagem emocionalmente aos desafios mais perante a adversidade, são menos ansiosos, são mais
com que se deparam. As pessoas que acreditam pouco nas optimistas, têm melhores resultados escolares e tendem a
suas capacidades percepcionam o meio como mais ameaçador perseguir carreiras mais promissoras (Pajares, 2006). Como
e pensam que pouco ou nada podem fazer para mudar as foi referido, as experiências anteriores constituem a fonte
situações. Exacerbam o poder de possíveis obstáculos, mesmo mais importante de auto-eficácia: por princípio, as pessoas só
se sua ocorrência é bastante improvável e, deste modo, são acreditarão nas suas competências para ter sucesso no futuro,
mais propensas ao stress, ansiedade e mesmo depressão. Em se já tiverem experienciado sucesso em situações semelhantes
contraste, as pessoas que acreditam que podem exercer controlo no passado. Atendendo a que existe uma maior prevalência de
sobre ameaças potenciais, nem estão tão preocupadas com insucesso escolar nos jovens de nível socioeconómico mais
a identificação das mesmas, nem desenvolvem pensamentos baixo, então é de esperar que também apresentem crenças de
irrelevantes acerca delas. Toda a sua energia é canalizada para auto-eficácia mais baixas e, por isso, estabeleçam metas menos
tornar o seu meio cada vez mais seguro e não em cismar acerca ambiciosas e sejam menos persistentes e mais erráticos na
da sua perigosidade. sua prossecução. Esta menor motivação redundará em piores
desempenhos, num lamentável ciclo vicioso com implicações
Contudo, a influência das crenças de auto-eficácia no curso da sociais e políticas óbvias. Com o intuito de analisar o impacto
vida das pessoas não se limita ao exercício de algum controlo do nível socioeconómico sobre as crenças de auto-eficácia de
sobre os meios onde elas já estão inseridas no seu quotidiano. estudantes, realizámos dois estudos no contexto nacional. O
Podem também ser determinantes na escolha de actividades ou primeiro estudo contou com a participação de 449 rapazes
de contextos profissionais. Deste modo, as pessoas constroem e raparigas que se encontravam a frequentar o 9.º ano de

66
idade. No segundo estudo, foram questionados 700 jovens Línguas, Humanidades) acreditando também menos nas suas
com idades compreendidas entre os 15 e 27 anos de idade, capacidades para lidar eficazmente com a globalidade de
que se encontravam a frequentar escolas de ensino secundário situações quotidianas (auto-eficácia generalizada). Para além
regular, escolas profissionais e instituições do ensino superior disso, os alunos de classe social mais baixa apresentam uma
(Coimbra, 2000, 2008). notória inferioridade na sua confiança pessoal para profissões
de elevado estatuto (por exemplo, médico, economista), embora
Determinadas condições socioeconómicas e educativas podem não difiram dos seus colegas de classe social alta no nível de
levar a que a escolha profissional não traduza fundamentalmente interesse manifestado em relação às mesmas. Já no que diz
os interesses profissionais: é o caso dos alunos, cujos níveis de respeito às profissões de baixo estatuto (por exemplo, operário
sucesso escolar e/ou socioeconómico, extremamente baixos, da construção civil, empregado doméstico), os jovens de classe
levam-nos ao desempenho de profissões que não expressam social mais baixa apresentam uma superioridade nos níveis de
o seu gosto, mas antes são fruto de condicionalismos mais interesse e de auto-eficácia. Este padrão de expectativas pode
fortes, como a necessidade de ingressar precocemente no até ser classificado como realista, uma vez que, na nossa
mundo do trabalho devido à incapacidade de obter sucesso amostra, como é habitual, os alunos de nível socioeconómico
escolar e/ou para garantir a subsistência. O pressuposto de que mais baixo têm piores resultados escolares. Os interesses
os interesses desenvolvidos durante a escolaridade serão de avaliados no nosso estudo, contrariamente à auto-eficácia para
alguma forma traduzidos em termos de escolha de carreira, não a formação e desempenho profissional, parecem manifestar-
tem suficientemente em linha de conta a interferência de outros se sobretudo em relação às profissões que são mantidas em
aspectos pessoais e do meio, os designados “determinantes aberto como possibilidades de carreira desejadas, ainda que
contextuais” (Lent, Brown & Hackett, 1994). Na sua aplicação pouco prováveis.
aos domínios académico e de carreira, a auto-eficácia tem sido
muito estudada para o domínio da matemática e ciências, devido Ainda que a valorização de uma profissão, e a realização
à sua supra-mencionada característica de “filtro crítico” para o pessoal que pode decorrer do exercício da mesma, não seja
prosseguimento de estudos e para o acesso a profissões mais necessariamente proporcional ao seu prestígio ou estatuto,
prestigiadas e bem remuneradas. Os estudos internacionais pensamos que os alunos de classe social mais baixa
realizados junto a alunos do 2.º e 3.º ciclos do ensino básico apresentam, já ao nível do 9.º ano de escolaridade, “projectos
e do ensino secundário sugerem o aparecimento precoce das de carreira de subsistência”, enquanto que os seus colegas de
diferenças entre grupos sociais na auto-eficácia ocupacional classes mais elevadas, apresentariam “projectos de carreira de
(Fouad & Smith, 1996; Hannah & Kanh, 1989; Lopez & Lent, realização pessoal”. Isto porque para os alunos de classe social
1992; Post-Krammer & Smith, 1985, 1986). alta parece existir uma consonância entre os seus padrões de
interesse e de crenças de eficácia, mais elevados para profissões
No primeiro estudo por nós realizado, foram avaliadas as de alto estatuto, enquanto que, no caso dos alunos de classe
diferenças de nível socioeconómico não só nos interesses baixa, existe um desfasamento: manifestam-se interessados
e crenças de auto-eficácia ocupacionais (referentes a pelas profissões de alto estatuto mas parecem considerá-las
profissões de baixo e alto estatuto e estereotipadamente inacessíveis ao seu grau de eficácia (Coimbra, 2000).
femininas e masculinas), mas também nas crenças de auto-
eficácia generalizada, matemática e académica (referentes às Impunha-se saber se estas diferenças eram observáveis mais
disciplinas do 10.º ano de escolaridade). Os nossos resultados tarde, no contexto de diferentes ofertas de formação que seguem
sugerem que a reprodução da estratificação social da família a escolaridade obrigatória. Também nos pareceu relevante
de origem se reflecte na baixa auto-eficácia apresentada, tentar perceber se as diferenças de auto-eficácia se restringiam
sistematicamente, pelos alunos de nível socioeconómico baixo. aos domínios académico e ocupacional ou se eram observáveis
Estes jovens antevêem-se como menos competentes para face a outras dimensões da vida adulta. Por esse motivo, no
obter bons resultados não só na disciplina de matemática, segundo estudo, questionávamos os jovens acerca do seu grau
como nos diferentes grupos de disciplinas (por exemplo, de confiança para ter sucesso na continuação dos seus estudos

67 05
(prosseguimento de formação) e na obtenção de um “bom” Os dois grupos com uma adaptação mais elevada – resiliente
emprego (realização profissional e material), mas também e adaptado – diferem, como é evidente, no nível de risco a que
estávamos interessados em averiguar a auto-eficácia para a já foram sujeitos. No caso do no nosso estudo, os adaptados
realização pessoal (por exemplo, tornar-me uma pessoa melhor) pertencem a um nível socio-económico elevado e passaram por
e para a conjugalidade e parentalidade (por exemplo, construir poucos acontecimentos de vida negativos não só em termos
uma família). Pudemos observar que as diferenças de auto- escolares, mas também em termos pessoais e familiares. Já
eficácia entre grupos sociais se restringiam ao prosseguimento os resilientes, para além de pertencerem a um nível socio-
da formação, não existindo diferenças relativamente às restantes económico baixo, já passaram por um número considerável
dimensões. Os jovens de diferentes níveis socioeconómicos de acontecimentos de vida negativos nos diferentes domínios.
não se distinguem na sua confiança para vir a desempenhar Resilientes e adaptados são, contudo, de tal modo semelhantes
bem diferentes papéis da vida adulta associados à realização nos seus níveis de adaptação que são aparentemente
profissional e material, à conjugalidade e parentalidade e à indissociáveis. Ambos apresentam sucesso nos indicadores de
realização pessoal. Mais uma vez, encontrámos uma associação adaptação normativa: são bons alunos, estabelecem e mantêm
entre nível socioeconómico e sucesso escolar que poderá relações interpessoais próximas e não apresentam problemas
justificar este resultado. Por isso, não é de estranhar que uma de delinquência. Para além disso, assemelham-se também
percentagem considerável dos jovens de nível socioeconómico nos seus níveis de felicidade e de confiança para fazer face às
mais baixo incluídos no nosso estudo não acreditem que o seu exigências dos papéis da vida adulta. Valerá por isso a pena
sucesso enquanto adultos, incluindo em termos profissionais, tentar compreender os motivos que permitem esta semelhança
passe pela credenciação escolar, uma vez que, efectivamente, de adaptação, apesar da disparidade do risco a que foram
“falharam” no ensino regular. Contudo, existem, felizmente, sujeitos ambos os grupos. De facto, resilientes e adaptados
muitos outros que escapam a este destino. partilham níveis elevados nos seus recursos externos e internos.
A percepção de suporte social, em particular por parte dos
O fenómeno de resiliência designa a presença de bons resultados, pais em situações difíceis, é alta e semelhante. Em situações
em termos de adaptação, contra todas as probabilidades. A comuns, do quotidiano, os resilientes parecem ser mais auto-
resiliência escolar será, por conseguinte, a capacidade de obter suficientes, dispensando a ajuda de outros. Em termos de
bons resultados apesar da exposição a um nível considerável de características pessoais, de forças internas, também são muito
risco, sobretudo o associado a um nível socioeconómico baixo parecidos: são resistentes, estão satisfeitos com o que têm
e aos seus efeitos cumulativos, como é o caso da exposição a conseguido na sua vida e acreditam que conseguem lidar com a
acontecimentos de vida particularmente adversos. De facto, as generalidade das situações (Coimbra, 2008). Pudemos concluir
trajectórias de vida das pessoas têm muito de previsível: existem neste estudo realizado no contexto nacional algo que tem sido
pessoas cuja boa adaptação é uma resposta a uma exposição também observado em estudos realizados noutras sociedades:
baixa à adversidade (adaptados), assim como pessoas cuja os resilientes possuem recursos pessoais e resultados de
má adaptação resulta de uma elevada exposição à adversidade ajustamento muito semelhantes aos adaptados “não obstante
(em risco). O estudo da resiliência psicológica, que remonta já as suas impressionantes diferenças nas experiências de vida”
à década de 50, chamou, todavia, a atenção para trajectórias (Masten et al., 2004, p.1075).
menos previsíveis. O interesse por este processo surgiu
precisamente a partir da constatação de que existiam crianças Em Portugal, foi ainda identificado um outro grupo que
que passavam, aparentemente incólumes, por acontecimentos designámos de confiantes. Tal como os resilientes, os
de vida comummente caracterizados pela sua negatividade e confiantes tinham estado expostos a níveis consideráveis de
severidade (por exemplo, pobreza, psicopatologia parental). risco: baixo nível socioeconómico e elevada adversidade dos
Estes acontecimentos não constituíam, em todos os casos, acontecimentos de vida. Apesar de apresentarem baixos níveis
“traumas” irremediáveis que redundassem em resultados de adaptação normativa e de felicidade, que poderia levar à
negativos em termos de adaptação (Anthony, 1987; Fergus & sua identificação como grupo “de risco”, possuem também
Zimmerman, 2005). a particularidade de apresentar elevados índices de confiança

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para fazer face às exigências que os esperam na vida adulta. isso, é uma geração que parece não conhecer a noção de
Este grupo é sobretudo constituído por jovens que, após obrigação, pois acredita que as suas próprias necessidades de
falharem no ensino regular, encontram no ensino profissional auto-realização devem estar primeiro (Twenge, 2006).
uma “segunda oportunidade” para melhorar as suas condições
de vida. Sem dúvida que o ensino profissional parece possuir Salvaguardadas as devidas diferenças entre a realidade estado-
alguns ingredientes que permitem injectar confiança: um unidense e a portuguesa, algumas características desta geração
ensino mais individualizado, aprendizagens mais instrumentais podem soar-nos familiares. Estas características derivam, aliás,
para o exercício profissional e, sobretudo, a oportunidade de do crescimento do individualismo nas diferentes sociedades
voltar a ter sucesso ou mesmo de o experienciar pela primeira ocidentais, onde têm ganho um crescente protagonismo
vez (Coimbra, 2008). Todavia, parece evidente que este grupo valores de instrumentalidade e assertividade, mais tipicamente
pode ser considerado um exemplo paradigmático de uma das masculinos, por contraposição aos valores de expressividade
imagens de marca da nova geração: o optimismo ilusório ou e comunhão, mais tipicamente femininos (Twenge, 1997,
um excesso de confiança (Arnett, 2006; Twenge, 2006). 2009). As crianças e jovens desta geração terão sido educados
para acreditar que “tudo é possível” e, por isso, nunca como
4. O alerta da “geração me”: é possível acreditar hoje, as expectativas são tão elevadas para todos os grupos
demasiado? sociais. Acreditam, por isso, que vão encontrar empregos que
os realizem e têm a certeza que vão ser muito bem sucedidos
A auto-eficácia, por princípio, não é realista mas optimista, e ter muito dinheiro. Paradoxalmente, deparam-se com
sendo, por causa disso uma variável motivacional tão importante: menos oportunidades reais quando fazem a sua transição
estabelecemos sempre metas que excedem, pelo menos para a vida adulta. Pela primeira vez, na História recente da
um pouco, as nossas reais competências de modo a poder Humanidade, não são esperadas melhorias substanciais
desenvolvê-las. As consequências de crenças de auto-eficácia nas condições de vida para a nova geração, por comparação
baixas ou por defeito, em particular no domínio académico, são com as antecessoras. Do desfasamento entre as expectativas
sobejamente conhecidas: os estudantes pouco auto-eficazes e oportunidades reais, nasce o cinismo e disparam os níveis
estabelecem metas baixas, são erráticos nas suas estratégias e de ansiedade. Aumenta também o locus de controlo externo.
desistem à mínima adversidade, são mais stressados, ansiosos Numa geração aparentemente tão confiante e auto-determinada,
e, muitas vezes, deprimidos, acabando por fazer escolhas aumenta a convicção de que o que acontece depende muito
académicas e profissionais pouco promissoras, aquém das pouco do próprio e muito dos outros ou da “sorte”. É verdade
suas possibilidades. Menos importância empírica tem sido dada que, hoje em dia, a globalização faz crescer a convicção de
às consequências de uma auto-eficácia demasiado elevada, por que muito pouco depende da acção individual, existindo uma
excesso. Algumas características associadas à nova geração forte interdependência entre diferentes países ao nível mundial,
parecem, a este propósito, ser dignas de reflexão. Jean Twenge como a mais recente crise económica muito bem ilustrou. É,
(2006) questiona: Porque é que os jovens de hoje são mais por isso, compreensível que cresça a convicção de que cada
confiantes, assertivos e detentores de mais direitos mas um não faz a diferença, que os acontecimentos são governados
também mais infelizes do que os de qualquer outra geração por forças externas que fogem ao controlo individual. Por isso,
anterior? Estas mudanças geracionais reflectem mudanças da os membros desta geração facilmente culpam tudo e todos das
própria sociedade. Twenge propõe o termo “Geração me” para contrariedades, todos excepto eles próprios. Tal vai reflectir-se,
designar todos aqueles que, nascidos nas gerações de 70, 80 e por exemplo, numa menor participação cívica, como é visível
90 do século passado, foram educados sob o signo do apelidado na abstenção nos actos eleitorais, muito embora esteja longe de
“movimento da auto-estima”, isto é, quando pais e professores ser um fenómeno circunscrito às gerações mais novas (Twenge,
começaram a transmitir a mensagem às suas crianças de que 2006; Twenge & Campbell, 2009).
seria mais importante elas gostarem delas próprias, se auto-
valorizarem, do que propriamente cumprirem regras, terem Os membros da “geração me” são, então, auto-centrados e
bons resultados ou um bom comportamento na escola. Por narcísicos, o que facilmente se compreende: uma criança ou

69 05
jovem ao qual é transmitida a mensagem de que é único e nunca mais inteligentes do que os estudantes de 1975, apresentam
está errado, vive obcecado consigo mesmo, com o materialismo valores mais baixos em dois itens específicos, referentes aos
e a aparência, o que pode comprometer a qualidade das suas resultados e à competência escolares (Twenge & Campbell,
relações interpessoais. Esta “epidemia do narcisismo” vai 2008). É verdade que a auto-estima, tal como a auto-eficácia,
reflectir-se numa grande dificuldade em lidar com o fracasso ou está correlacionada com a realização académica mas a maioria
com a crítica, num questionamento da autoridade, seja de pais, dos estudos indica que ela é mais uma consequência do que
professores ou empregadores. Se todos os aceitam tal como uma causa. Contudo, as crianças e jovens da geração actual
são, a motivação para melhorar é muito baixa ou mesmo nula. parecem ter aprendido que não precisam de bons resultados
Todavia, as crianças e jovens desta geração são dependentes do para serem aceites pelos outros e para gostarem de si próprios
reconhecimento e elogio e cultivam o imediatismo. Sentem-se e para se auto-valorizarem. Um incremento da auto-eficácia,
confortáveis com a simultaneidade e instantaneidade de tarefas, da confiança na competência própria, não dispensa, todavia, a
exigem ou procuram respostas rápidas às suas necessidades obtenção de bons resultados escolares, realistas e concretos e
e pedidos. Gostam de fazer pesquisas no Google que lhes não inflacionados e vagos. Mais importante do que transmitir
permitam a obtenção de informação condensada e imediata, de a uma criança ou jovem a mensagem de que ele é “especial” e
preferência no formato multimédia, mas são pouco tolerantes de que “é capaz de tudo”, é proporcionar-lhe a oportunidade de
a pesquisas diligentes numa biblioteca, que exijam o dispêndio experienciar sucesso em situações concretas que lhe permita
de tempo na procura e/ou na leitura de textos longos (Twenge, perceber em que é efectivamente competente e no que é que
2006; Twenge & Campbell, 2009; Twenge, Konrath, Foster, (ainda) não é. Por muito bem intencionados que sejam os pais
2008). Como se pode observar, na orientação para o resultado, ou professores, eles não estarão a preparar as crianças e jovens
na dificuldade em lidar com o erro ou em despender esforço, para o mundo real ao criarem e alimentarem expectativas
os membros desta geração parecem estar mais motivados para demasiado irrealistas e não sustentadas em experiências
evitar o fracasso do que para obter o sucesso, associado a um concretas.
padrão de desistência, conforme foi previamente referido.
5. Conclusão: algumas implicações para pais e
Para a caracterização desta geração, Twenge baseou- professores
se em meta-análises realizadas com intuito de observar
como determinadas variáveis psicológicas evoluíram nas Os estudos demonstram, invariavelmente, que as crenças de
últimas décadas. Para o efeito, analisou diferentes estudos auto-eficácia determinam se as pessoas pensam de modo
que recorreram a questionários idênticos de avaliação de produtivo ou debilitante, se são pessimistas ou optimistas.
características psicológicas de pessoas na mesma faixa etária, Consequentemente, influenciam a quantidade de esforço
mormente estudantes do ensino secundário e superior, em dispendido numa actividade e manutenção da perseverança.
décadas distintas (desde da década de 60 do século passado, Reflectem-se ainda no modo como pensamentos e
sobretudo). Foi deste modo que a investigadora observou, na comportamentos vão sendo regulados e se as pessoas são
geração actual, um aumento do narcisismo, da assertividade, mais ou menos vulneráveis ao stress e à depressão. Como
mas também do locus de controlo externo e da ansiedade. No corolário lógico, as crenças de auto-eficácia podem, de forma
que diz respeito à auto-estima, existem, contudo, dados que determinante, influenciar o nível de realização que as pessoas
nos parecem relevantes para a questão da confiança pessoal podem atingir. De uma forma geral, as pessoas só se envolvem
mais estritamente associada à auto-eficácia. Num estudo em em actividades nas quais se sentem competentes e evitam todas
que se comparavam amostras de alunos do ensino secundário aquelas que pensam que não lhes são acessíveis. Evidentemente
de 1975 e 2006, foi possível observar que, nos mais jovens, há que as aptidões e o conhecimento reais das pessoas também
um aumento da visão positiva de si mesmo: sentem-se mais desempenham um papel importante no que elas escolhem ou
satisfeitos consigo próprios e antecipam-se como melhores não fazer. Todavia, é necessário ter presente que as pessoas
trabalhadores, esposos e pais na vida adulta. Contudo, os interpretam os seus resultados e fazem julgamentos acerca das
estudantes de 2006, apesar de se avaliarem até como um pouco suas capacidades e conhecimentos. Ora, estas interpretações

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raramente são rigorosas ou exactas. Por este motivo, as Uma primeira implicação pode até parecer contraproducente,
crenças da auto-eficácia não raras vezes permitem predizer atendendo à competitividade do mundo actual e ao perfil da
melhor o comportamento e as escolhas que são feitas do que as “geração me” anteriormente delineado. Contudo, a investigação
capacidades e conhecimentos objectivamente avaliados. Porque no domínio da auto-eficácia, como noutros constructos
acreditar que se é capaz é um bom preditor de ser mesmo capaz, motivacionais, sugere que é importante diminuir a comparação
então as crenças de auto-eficácia funcionam como profecias interindividual ou, posto de outro modo, substituí-la pela
que se auto-cumprem. Os estudantes confiantes antecipam comparação intraindividual. Crescer é, como é evidente, um
e normalmente obtêm bons resultados. Lamentavelmente, o processo de aprendizagem gradual daquilo em que somos bons
inverso também é verdade: aqueles a quem falta a confiança, e daquilo em que não somos, processo que não dispensa ter
ainda que tivessem capacidades para mais, espera-os o os outros como referência no modo como nos avaliamos. As
insucesso ou o evitamento de contextos e actividades que crianças e jovens pouco ganharão em termos de autenticidade
poderiam ser mais promissores (Bandura, 1986, 1995, 1997; se ignorarem, pura e simplesmente, que no mundo real,
Pajares, 2006). A auto-eficácia tem sido identificada como existem os que “ganham” e os que “perdem”, os “melhores” e
uma variável chave nas trajectórias de resiliência, quando bons os “piores” (Twenge & Campbell, 2009). Se é verdade que uma
resultados são obtidos, contra todas as probabilidades, em comparação interindividual mínima é indispensável, também é
contextos de elevada adversidade, nomeadamente a associada verdade que um padrão de persistência escolar é característico
a níveis socioeconómicos muito baixos (Masten et al., 1999, daqueles alunos que estão menos preocupados em serem
2004, 2006). melhores do que outros do que em serem melhores do que
foram no passado, em progredirem. Estes são os alunos que
Os jovens da geração actual podem até ser mais auto-centrados estão mais interessados em aprender do que em, simplesmente,
e gostar mais deles próprios. Podem até esperar muito do ter bons resultados escolares (Faria, 1998). Neste sentido,
futuro e saber que outras pessoas também esperam muito parece importante ter atenção às dinâmicas poderosas que se
deles. Todavia, não acreditam necessariamente mais nas suas criam nos trabalhos de grupo. Os pares são, pela sua maior
capacidades para conseguir materializar essas expectativas probabilidade de similitude com o observador, um modelo
(Twenge & Campbell, 2008). Se as coisas não lhes correrem de privilegiado para a aprendizagem. Para tal é importante evitar
feição, podem desenvolver a síndrome do impostor, síndrome sentimentos de inferioridade ou superioridade extremos,
que se manifesta quando alguém se considera incompetente que seriam prejudiciais para todos os elementos envolvidos.
e teme, a qualquer momento, que a sua suposta imagem Procurar que existam níveis próximos de competência entre os
pública de competência caia por terra, seja desmascarada. diferentes membros dos grupos de trabalho poderá ser uma
Nestas situações, os desafios são evitados, uma vez que a boa estratégia.
probabilidade de fracasso é percebida como muito elevada e é
fortemente temida. Ora, parece comprovado que as pessoas se Não nos podemos esquecer que a fonte mais importante da
arrependem mais dos riscos que não correram por duvidarem eficácia pessoal são as experiências anteriores. Este parece
de si mesmos, do que daqueles que correram por algum excesso ser, aliás, o grande motivo para a existência de diferenças de
de confiança. As crenças de auto-eficácia mais realistas não são auto-eficácia entre jovens de diferentes grupos sociais. Por
as que beneficiam mais a motivação ou o desempenho. Por isso, isso, um bom construtor de eficácia, seja um pai ou professor,
promover uma sobrestimação adequada ou um optimismo na deve construir situações de aprendizagem desafiadoras, com
medida certa é o desafio, difícil, que se coloca aos educadores um grau óptimo de dificuldade, que potenciem a experiência
(Bandura, 1997; Pajares, 2006). de sucesso por parte de todos os jovens. Não significa que
todos tenham que ser bons em tudo, o tempo todo, sem fazer
Sistematizaremos, de seguida, algumas possíveis implicações nada nesse sentido. Significa que todos têm que ser bons
para pais e professores que derivam dos contributos empíricos nalguma coisa, alguma vez, graças ao seu esforço. Porque se
dos estudos no âmbito da auto-eficácia (Pajares, 2006; Schunck todos têm, à partida, acesso à escola e até obrigatoriedade de a
& Meece, 2006; Zimmerman & Cleary, 2006). frequentar, todos devem ter oportunidade de aí ter sucesso, de

71 05
ter experiências de mestria. Para isso, há estar muito atento aos pontos fortes mas também fracos, é um melhor guia para
ritmos de aprendizagem, aos interesses, às potencialidades, às futuros desempenhos. Para além disso, é mais memorável
limitações e condições de vida de cada criança ou jovem. para o próprio e não fragiliza aqueles que, à volta, não recebem
um feedback semelhante. Este encorajamento deve estar
Os educadores não devem, contudo, nunca fazer o trabalho mais focado no esforço e persistência, algo que depende
que compete aos seus educandos. Como segunda implicação, mais directamente do controlo pessoal, do que na aptidão ou
temos, então, a necessidade dar ajuda na medida certa. Estamos inteligência. Muitas vezes, estamos a transmitir mensagens
a falar de uma geração com consideráveis potencialidades em sem o sabermos ou mesmo sem o desejarmos. Há, por isso,
termos de auto-regulação, que está, por exemplo, habituada que ser cuidadoso e estar atento porque as mensagens que são
a procurar informação, de modo autónomo, na internet. transmitidas, verbal ou não verbalmente, deliberada ou ou não
Essas potencialidades devem ser aproveitadas, promovidas deliberadamente, podem jamais ser esquecidas.
e generalizadas o mais precocemente possível. De facto,
esta geração também está habituada ao imediatismo e a Os pais e professores também não se devem nunca esquecer
não interiorizar regras, podendo facilmente dispersar-se na que estão sempre a servir de exemplo. Quer queiram, quer
planificação e organização do seu próprio trabalho, a longo não queiram, quer saibam, quer não saibam, são eleitos
prazo. Há que ensinar a estabelecer metas e cumprir prazos, como modelos privilegiados nas experiências vicariantes dos
ensinar a aprender a aprender ao longo da vida, providenciando seus educandos. A confiança é contagiosa e é um hábito (ou
uma ajuda mais instrumental do que executiva. Dar a cana e quem sabe um vício?), pelo que os pais, professores e mesmo
ensinar a pescar é cada vez mais prioritário, num mundo em que escolas, famílias e sociedades mais auto-eficazes criam crianças
a informação, relevante e não relevante, circula velozmente à e jovens também mais auto-eficazes. Ter sucesso ou ganhar é
escala planetária. Ajudar é também estar atento e ensinar a estar relativamente fácil de digerir, mais difícil será ter fracasso ou
atento não só ao comportamento em si mas a tudo o que ele perder. Por isso, tão importante como aprender e ensinar a ter
possa significar em termos emocionais. A ansiedade não deve sucesso, é aprender e ensinar a perseverar quando se fracassa.
ser sempre interpretada como um sinal de vulnerabilidade: as Como tivemos oportunidade de referir, esta geração parece
“borboletas na barriga” que antecedem momentos de avaliação particularmente pouco preparada para lidar com contrariedades.
importantes não devem ser dramatizadas e podem mesmo Seria bom que os seus educadores soubessem ser modelos
ser estimulantes. Já estratégias debilitantes, que se instalam de mestria mas também de falibilidade, não quisessem estar
e perpetuam, como a auto-depreciação ou procrastinação, sempre certos ou ter sempre razão.
podem ser sinais de alerta de uma exacerbação debilitante da
ansiedade. O largamente discutido desfasamento entre as expectativas
e a realidade não retira importância à preocupação que os
Como terceira implicação, gostaríamos de sublinhar a educadores devem ter com a orientação para o futuro. Num
importância da adequação do feedback, isto é, atentar ao seu mundo cada vez mais competitivo e interdependente, ganha
timing, qualidade e quantidade. Já vimos que estamos perante ainda mais relevância o reforço da auto-determinação, a
uma geração que é bastante dependente do elogio e que não proactividade, a agência pessoal. Ao longo do processo, há
suporta a crítica negativa (Twenge, 2006). A credibilidade do que ir moldando a clareza e adequação das expectativas e
emissor da persuasão verbal e social faz toda a diferença, incentivando a auto-reflexão, sem deixar que esta resvale para
como vimos aquando da apresentação das fontes de auto- a obsessão ou para a auto-centragem. É importante aferir, de
eficácia. Por isso, há que elogiar o que é digno de elogio, dar modo mais ou menos estruturado, a auto-eficácia dos jovens,
um encorajamento honesto e na medida e altura certas. Não porque ela nem sempre é evidente ou manifesta. Quanto mais
são aconselháveis prémios para o cumprimento de requisitos cedo for avaliada, mais cedo é reflectida. No caso de tratarem de
mínimos, tal só iria aumentar a motivação extrínseca. Um crenças menos adaptativas, torna também mais provável a sua
reforço atempado que se destina a uma pessoa e a um permeabilidade à intervenção. Há que promover o optimismo,
desempenho específicos, que refere, de forma realista, os seus uma perspectiva risonha da vida, uma antecipação positiva do

72
futuro. Saber onde se quer chegar, visualizar o que mais se
deseja, dá propósito à existência. O sonho é que comanda a
vida, mas o seu valor motivacional é bastante limitado. Há que
decompor os grandes sonhos em pequenas metas, cujo alcance
vai sustentando a motivação e alimentando a confiança.

73 05
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76
Los juegos de lenguaje
y alfabetización inicial

77 05
Ana Teberosky1 e Núria Ribera1

Resumo
En este artículo proponemos reflexionar sobre la importancia de los juegos de
lenguaje en el aprendizaje del lenguaje oral o escrito y mostrar los procedimientos
para jugar con el lenguaje. La reflexión se basa en los datos sobre los juegos
lingüísticos como parte del el ambiente del niño: en el habla de la madre, en la
sensibilidad mostrada por el bebé y en sus producciones iniciales; así como del
folklore infantil de las distintas tradiciones orales del mundo. Además se presentan
una serie de procedimientos de juego verbal sobre el sistema de la lengua que
pueden servir para crear actividades pedagógicas con los juegos de lenguaje como
contenido para aprender la lengua, en particular para aprender el lenguaje escrito.

Introducción  pueden usar; en segundo lugar, que esos procedimientos están


en el ambiente lingüístico del niño: en el habla de la madre
En Educación Infantil y primeros cursos de primaria hay un dirigida al bebé y en sus vocalizaciones iniciales realizadas
consenso entre los educadores sobre la incorporación de desde la cuna; que constituyen el folklore de los preescolares
juegos verbales en las actividades y entre los materiales de en las distintas tradiciones orales para acompañar los juegos
enseñanza. Se considera que es algo que agrada a los niños, los motores o para aprender cosas sobre el mundo; y que, como
motiva y sirve para fines tales como despertar la imaginación, hemos recordado, forman parte de la tradición escolar.
la creatividad o la participación social. Sin embargo, no se ve
en ellos una oportunidad para trabajar el lenguaje, tampoco Jugar con el lenguaje es una manera de manipular sus elementos
ha recibido mucha atención en el dominio de la alfabetización y componentes siguiendo algunas reglas o alterándolas en
(Crystal, 1996). relación con algún contexto social y cultural. En la definición
del juego como manipulación de las reglas coinciden varios
El primer objetivo de este artículo es reflexionar sobre la estudiosos; coinciden también en que todo el mundo juega
importancia de los juegos de lenguaje (JL desde ahora) sobre con el lenguaje y responde a los juegos. Están de acuerdo en
el aprendizaje y mostrar los procedimientos que se usan que la función de los juegos es lúdica, por diversión, pero sus
para jugar con el lenguaje. El segundo objetivo es presentar consecuencias repercuten sobre el aprendizaje. Crystal (1996),
situaciones para incorporar los juegos verbales, no sólo por por ejemplo, interpreta el “manipular” literalmente: escogemos
motivos sociales sino como contexto de actividades lingüísticas una cierta característica lingüística –tal como una palabra,
óptimas para aprender la lengua, en particular para aprender el una frase, una parte de una palabra, un grupo de sonidos,
lenguaje escrito. una serie de letras- y hacemos con ellos algo que no hacemos
frecuentemente, que rompe las reglas de la lengua.
Nuestros argumentos se basan, en resultados de estudios
empíricos y teóricos que muestran, en primer lugar, que cuando Sherzer (2002) también concuerda en estos dos aspectos: hay
se juega con el lenguaje se están usando procedimientos que manipulación de los elementos de diferentes niveles (desde
forman parte del sistema de la lengua que todos los hablantes sonidos a sintaxis, semántica, discurso, y pueden incluir
varios idiomas usados en situaciones multilingües) y se alteran
 Departamento de Psicologia Evolutiva e da Educação na Universidade de
Barcelona. las reglas. Los juegos pueden ser con humor o serios, con

78
intención o sin ella, pero dado el foco sobre la manipulación, 1.3. Yagüello (1981) considera que hay tres tipos de juegos:
los JL implican algún grado de selección y de conciencia más juegos sobre la forma (oral y escrita), sobre el sentido y juegos
allá de uso cotidiano del lenguaje. sobre los dos a la vez. El juego sobre la forma sonora es
esencialmente la rima, la repetición, la aliteración y la asonancia,
En lo que sigue vamos a considerar diversas clasificaciones de el acercamiento de parónimos (palabras vecinas fonéticamente),
acuerdo a los procedimientos implicados en los JL para luego las falsas parejas, contrapets (sustitución de sonidos). El juego
resumir los estudios sobre su uso (en el discurso, en el habla con el sentido implica el acercamiento inesperado de palabras,
materna e infantil y en los juegos preescolares) y encarar la la explotación de la sinonimia, de la ambigüedad en todas sus
propuesta del trabajo en el aula y en la familia con el objetivo de formas, la violación del sentido propiamente dicho en la alusión
crear situaciones de aprendizaje del lenguaje y de lo escrito. o los rodeos. En los niños el juego con los sonidos precede el
juego con el sentido.
1. Clasificación según los procedimientos impli-
cados en los JL Estos procedimientos para Yagüello (1981) se encuentran
en los JL, en la poesía, en los proverbios, aforismos, folklore
infantil, en las fórmulas mágicas y rituales y en los eslóganes
Los procedimientos de los juegos son inherentes a la estructura
publicitarios.
formal del lenguaje, y son también explotados en la retórica, en

la poética y en el discurso en general. Por ejemplo, en las formas
1.4. Por otra parte, la lengua está organizada en niveles:
de asociaciones de palabras, en las repeticiones y paralelismos
fonético y fonológico, morfológico, lexical, sintáctico,
y en todas las respuestas que implican creatividad. Puesto que
semántico, discursivo. Los juegos pueden operar en estos
se trata de procedimientos sobre los elementos y componentes
diferentes niveles. Puesto que también hay relaciones entre
de la lengua, los juegos resultan un buen instrumento para
estos niveles entre sí y dado que estas relaciones pueden ser
analizar su estructura y para poner de relieve las varias maneras
ambiguas, inconsistentes y poco regulares; los juegos operan
en que el lenguaje puede ser trabajado.
explotando dichas inconsistencias. Chiaro (1992) clasifica los
juegos verbales deliberados (por oposición a los involuntarios)
1.1. Los estudiosos (Cook, 1997; Sherzer, 2002) muestran que
de acuerdo con las etiquetas que normalmente se usan en la
dado que el lenguaje implica una relación entre los sonidos y los
descripción de los niveles del lenguaje: gráficos, fonológicos,
significados, un procedimiento básico consiste en manipular el
morfológicos, lexicales, sintácticos, etc. Así los juegos se
significante, como en las rimas, la aliteración y la asonancia.
identifican con la forma con la que son construidos.
Los procedimientos basados en el significado incluyen figuras

retóricas como la comparación, la metonimia y la metáfora.
1.5. Kuczaj (1982), en cambio, enfoca más el proceso de juego
También hay juegos basados en la relación entre significantes
y considera que implica tres tipos de comportamiento básicos:
y significados, como los retruécanos, los simbolismos sonoros
modificación, imitación (de otras personas), y repetición (de
y la poesía visual.
uno mismo).

1.2. Cook (1997) clasifica los juegos en dos tipos: i). juegos 1.6. Lantolf (2000), por su parte, considera el juego como un
con la forma de lengua, por ejemplo con los sonidos, con la ensayo o como una forma de preparación para usar la lengua.
rima o el ritmo, en la canción, los retruécanos, el paralelismo Desde una perspectiva vygotskiana, interpreta que el juego
gramatical, y ii). juegos semánticos, “juego con las unidades verbal crea una zona del desarrollo próximo en la cual el niño “se
de significado, combinándolas de las maneras que crean los comporta más allá de su edad media, sobre su comportamiento
mundos que no existen, como las ficciones” (1997, p. 228). diario”.
Estos dos tipos de juegos o dos variedades forman parte del
folklore de los niños en poesías infantiles, poemas, cuentos de En resumen, donde unos consideran la oposición forma y
hadas y fábulas, etc. sentido, otros siguen los niveles del lenguaje, unos acentúan

79 05
más el aspecto lúdico, otros lo interpretan como ensayo. Pero expresiones monovocálicas, por sustitución de sentido en el
todos coinciden en sus efectos sobre el desarrollo del lenguaje, calambur o en el nonsense, por fusión como en las palabras
así como su potencial educativo para el aprendizaje. maleta (con fusión de categorías) y en los cambios de sílabas
entre palabras, como en los contrapets, con inversiones como
2. Procedimientos en los palíndromos, etc.

De acuerdo a las propuestas de los anteriores autores, los Deletreo


procedimientos más importantes pueden resumirse de la - Juegos basados en el deletreo de palabras se dan básicamente
siguiente forma. en modalidad escrita, pero algunos también pueden realizarse
de forma oral.
Iconicidad - Por ejemplo, las actividades de juegos con el alfabeto, la
- El procedimiento de iconicidad sonora hace referencia a charade, los deletreos, anagramas, palíndromos. Aquí se pueden
expresiones que no son totalmente arbitrarias, sino que están incluir las disposiciones de lo escrito, como los caligramas, las
motivadas por alguna relación con lo que representan, aunque palabras cruzadas, etc.
esas expresiones sean bastante convencionales.
- Las actividades pueden consistir en reconocer las unidades Paralelismo
que imitan los sonidos, identificar lo que se pretende representar - Se trata de un principio de equivalencia y de simetría entre
e imitarlas. diferentes aspectos de la lengua: se puede tratar de paralelismos
- El ejemplo más conocido son las onomatopeyas como métricos, semánticos o sintácticos.
manifestación de cierto simbolismo sonoro, pero también - Este procedimiento se concreta en actividades que consisten
interjecciones, retahílas y canciones que acompañan la acción en seleccionar estructuras métricas, establecer paralelismos
realizada por los niños (saltar, correr, comba, etc.). sintácticos, en repetir o contrastar elementos lexicales y
fonológicos, o en organizar de forma deliberada la estructura
Reduplicación sintáctica, por ejemplo por medio de combinaciones o de
- Implica la ocurrencia doble o múltiple de sonidos, sílabas o repeticiones.
fonemas, de morfemas, de palabras o de frases.
- La actividad puede consistir en duplicar o repetir algún elemento Incongruencia y ambigüedad
de diferentes niveles de lenguaje, con diferentes objetivos, como - Son procedimientos para establecer varios significados de
reciprocidad, intensidad, costumbre o atenuación. una expresión. A nivel lexical se suele usar la homonimia o la
- La reduplicación es característica de ciertos registros (como el polisemia. Por ejemplo, las adivinanzas son juegos estructurados
habla materna a los bebés, el insulto o el lenguaje emocional). Es generalmente como preguntas, que son dependientes en
usada para expresar aumento o disminución y está relacionada ambigüedad fonológica, morfológica, léxica, o sintáctica.
con el paralelismo, principal recurso del lenguaje poético. Por - La actividad que se puede desarrollar con la incongruencia
ejemplo, en las rimas, jerigonza y canciones infantiles. se basa en la identificación de ésta, con la ambigüedad es más
difícil porque para solucionar correctamente una adivinanza los
Inversión, sustitución y cambios niños deben tener cierta comprensión de la ambigüedad de las
- La inversión se puede hacer sobre una categoría del mundo palabras.
(por ejemplo, alterar los límites entre categorías, juntando animal - La mayoría de chistes construidos para niños o imitados
y humano) o sobre algún elemento del discurso (fonémico, por ellos recurren a este tipo de procedimiento semántico de
morfémico o gráfico). La sustitución de algún elemento puede ambigüedad (Sutton-Smith, 1988). Así también los acertijos,
hacerse sobre la sílaba (por ejemplo, la consonante inicial de la las réplicas, los duelos y retruécanos.
sílaba o las vocales) o sobre las palabras, cambiando algunos
de esos elementos. Violaciones y manipulaciones del sentido
- La actividad puede realizarse por selección de vocales, en las - Las violaciones y manipulaciones afectan a aspectos

80
pragmáticos y sintáctico-semánticos y se encuentran en las sintaxis. La característica más notable es prosódica: la entonación
bromas y retruécanos convencionales. presenta tonos amplios y exagerados. Y desde el punto de vista
- Las actividades de violación más elementales que realizan fonológico hay simplificaciones y reduplicaciones.
los niños suelen mezclar humor verbal y agresión verbal y se
expresan en el uso de palabras no permitidas, en insultos o en Además, las madres y padres tienden a hablar más lentamente,
expresiones emocionales. con exagerada y cuidada enunciación, tiene poca fluidez en
- Pero, por ejemplo el humor verbal no es fácil de comprender, sus frases y hacen pausas entre las palabras. Los límites entre
sólo los adolescentes o los jóvenes pueden llegar a comprender frases son más marcados, se evitan los comienzos falsos y las
y producir este humor verbal, incluyendo el uso de la ironía y interrupciones se reducen.
del sarcasmo (Crystal, 1994).
Ferguson (1978) sostiene que los bebés tienen verdadero
3. Los JL en la adquisición de la lengua placer en participar en esos juegos. Se puede asumir que estas
características son universales. En cuanto al léxico se usa una
Los JL están presentes de tres formas en la adquisición de la cantidad reducida de palabras, las áreas semánticas típicas son
lengua las partes del cuerpo, las funciones, las comidas, los animales
- Como parte del lenguaje que los padres dirigen a sus hijos y los juegos infantiles.
- Por la sensibilidad y preferencia que los bebés muestran hacia
los JL 3.2. Por la sensibilidad y preferencia que los bebés muestran
- Como proceso de producción hacia los JL

3.1. Como parte del lenguaje que los padres dirigen a sus Un estudio de Glenn & Cunninghan (1983) muestra que los
hijos niños prestan más atención a los versos que a otra clase de
lenguaje. Pareciera que esta respuesta es también una conducta
En todas las sociedades humanas la gente modifica su habla universal, independiente del ambiente cultural y del aspecto
normal para hablar con los niños pequeños. Estas modificaciones lingüístico. Tendemos a pensar que los géneros del lenguaje
son sobre todo prosódicas (con acentos, ritmos y entonaciones están determinados más por la cultura que por la biología.
propias), gramaticales (las frases son generalmente cortas), Sin embargo, a pesar de la diversidad cultural, la atracción
lexicales (con selección de palabras especiales), fonológicas por algunos de ellos podría ser muy prematura (canciones,
(con reduplicaciones) y discursivas (mayor proporción de narración, verso, chistes, cotilleo, juegos).
preguntas).
La descripción de hechos del ambiente lingüístico de los bebés Estas formas son muy extendidas, entre ellas el ritmo, puede
ha mostrado que ese hablar especial de las madres presenta ser fácilmente discriminado por el niño. Una de las funciones
ciertas características poéticas (Miall & Dissanayake, 2002). del ritmo parece ser proveer un patrón en el lenguaje. Frederick
Por ejemplo: Turner (1992) sostiene que el ritmo en el lenguaje estimula el
- los ritmos marcados, cerebro y aumenta el poder de la memoria. El ritmo es constitutivo
- los tonos, de la danza, de la música y del lenguaje, aunque los adultos
- las vocalizaciones, usan y perciben estos tres de forma separada, es probable que
- las frases repetitivas, para los niños los límites no esté tan claros. Raffman (1993) ha
- los énfasis, argumentado que la habilidad para discriminar ciertos intervalos
- los ritmos y rimas en las canciones que los padres cantan a musicales, armonías y rimo aparecen junto a la habilidad de
sus hijos distinguir sonidos hablados. Junto con la interacción (Locke,
1993), la mirada, los turnos, el ritmo constituyen los elementos
El lenguaje de la madre, ese especial registro en que se habla a más primitivos de la comunicación social. También hay ritmo
los niños, tiene aspectos particulares en relación a la fonología y en muchas ceremonias, en las paradas militares, en las bodas,

81 05
en el trabajo manual y en los juegos. Es un procedimiento de uso social y de cortesía del lenguaje, y prácticas de contar, listar
regulación interna. y denominar. Se trata, dice Garvey, de un desarrollo fonológico,
gramatical y semántico junto.
3.3. Como proceso de producción A partir de los 3 años se desarrolla el juego social de lenguaje.
Garvey sugiere que hay tres tipos de juegos sociales: los
Yagüello (1981) sostiene que en un comienzo el lenguaje no juegos de palabras espontáneos y basados en el ritmo, el juego
es más que música, juego, lugar de exploración. El juego está de fantasía y nonsense y el discurso con convenciones. En
en la lengua y recíprocamente. Durante el período de prácticas relación al primero, se ha mostrado la predilección infantil por
de balbuceo, que sigue la fase del gorjeo, la palabra es binaria el ritmo, la rima y la aliteración. Las propiedades fonológicas
como los muestran las primeras palabras que aprende el bebé: de la lengua parecen muy disponibles, pero también las
mamá, papá, pipí, caca, bebé, etc. propiedades morfológica, como la formación de diminutivos
y de aumentativos. En relación al segundo tipo de juegos
Estadios de fantasía y de nonsense, la dimensión de distorsión del
Los estudiosos sostienen que hay varias etapas en el desarrollo significado convencional y de disparate es una importante fuente
del juego con el lenguaje. En un primer momento se trata de un de places. Finalmente, el aspecto pragmático de conversación
juego fonético aparece como el primer estadio, desde la edad resulta un campo para distorsionar o violar las convenciones
del año. Todo tipo de juegos de modulación, de verbalizaciones conversacionales.
ocurren en esta época.
Garvey (1977) sostiene que el lenguaje no es sólo madera para
Las verbalizaciones acompañan los juegos motores y se siguen el juego, es también el instrumento para crear otro tipo de juego
por secuencias melódicas, secuencias de sílabas, tarareo, social y mental, como es el “hacer ver que” o falsa creencia. Al
cantando. En esa época los ruidos representan acciones de final de esta etapa el niño puede llegar a usar el lenguaje para
ambulancias, policía, teléfono, motores y otras cosas que funciones cognitivas más complejas.
producen sonidos.
Importancia
Garvey (1977) es la primera investigadora que estudió los JL en El juego de lenguaje, en particular los juegos con los sonidos, es
la adquisición. Según Garvey (1977) el nivel más primitivo de importante en la infancia por 3 aspectos: contribuye al sustrato
JL es el de la fonación o el proceso real de emitir sonidos entre fonético, es un factor en el desarrollo fonológico y forma parte
los 6 y los 12 meses. Se trata de un juego no comunicativo. Las del uso social del lenguaje. Estos 3 aspectos son discutidos
vocalizaciones son rítmicas, silábicas y repetitivas; las sílabas en conexión con i). el balbuceo, por ejemplo el juego vocal
y la prosodia de la entonación y el acento proveen del material que contribuye al dominio del sustrato fonético, ii). el juego
verbal para los juegos en esta edad. expresivo de juego de palabras común durante el desarrollo de
la organización fonológica entre 2 y 5 años y iii). los JL, por
Entre 2 y 3 años se da un importante avance. Los sonidos más ejemplo los juegos sociales basados en maneras de alterar el
convencionales son aprendidos y usados para identificar ciertos lenguaje usados en la infancia y adolescencia entre los grupos
acontecimientos y acciones. Ejemplos de las identificaciones sociales.
entre sonidos y acciones son “rin-rin” del teléfono, el “rum-rum”
del coche, el “ñam-ñam” de la comida, o el “chaf!” de los objetos Por otra parte los JL implican una especie de práctica o de
que caen. La reduplicación de las sílabas es la característica ensayo de ciertos aspectos de la fonología, indicador de la
principal de formación de muchos de estos sonidos. competencia fonológica del niño y comienzo del arte verbal, así
como de los otros niveles del lenguaje.
Este período es un de los más ricos en adquisiciones: el juego
simbólico y el lenguaje van juntos. El niño o la niña comienzan a Por ejemplo, juego de lenguaje se desarrolla a nivel segmental
ejercitar intercambios conversacionales, preguntas y respuestas, de manipulación de sílabas. Estos juegos pueden desarrollarse

82
de forma oral, incluso en culturas con lenguas de tradición oral las canciones infantiles han recibido menor atención a pesar
(como ciertas lenguas africanas). La unidad de manipulación de que su presencia, en mayor o menor grado, en todas las
es la sílaba y no el fonema. La relación entre unidad y tradición familias, incluso en aquellas con un bajo nivel de alfabetización.
oral avalaría la hipótesis de que el trabajo subsilábico está Si bien todos los niños realizan espontáneamente algún tipo de
más en relación con la alfabetización (Campbell, 1986; Ohala, juego con el lenguaje, su impacto en la alfabetización es mayor
1986). También a través de los juegos morfológicos se ayuda cuando lo hacen con participación de adultos (Yaden, Rowe &
al desarrollo morfosintáctico. Además, las oposiciones y McGillivray, 1999).
semejanzas semánticas así como los nonsense ayudan en el
desarrollo semántico y pragmático en las interacciones ayudan En nuestra intervención llevada a cabo en familias de niños de
en el desarrollo del uso social del lenguaje. 4, 5 y 6 años de la ciudad de Barcelona hemos podido observar
la multiplicidad de canciones y juegos que las familias realizan
4. Los JL y la alfabetización así como la facilidad con que pueden incrementar su presencia
y/o ampliar su variedad. Muchos de los juegos y canciones
El juego de lenguaje no es lo mismo que la conciencia propuestas, si bien algunas familias no acostumbran a hacerlos
metalingüística (que implica reflexión), pero tienen algo en con sus hijos, les son conocidos y los habían cantado o jugado en
común: ambos implican un distanciamiento del lenguaje. Por su infancia. Por otra parte, los padres manifiestan que les es útil
ello muchos autores han visto su relación con el aprendizaje de tener un amplio abanico de juegos y canciones para compartir
la lectura y la escritura. con sus hijos en momentos de inactividad física forzosa como
pueden ser los viajes, las esperas en la consulta del médico, etc.
Por ejemplo, se ha argumentado que el ritmo y la rima pueden
ayudar en la alfabetización, porque la sensibilidad a la palabra, a En general, el trabajo cognitivo requerido en los juegos es de
la sílaba y a la segmentación aumenta con el ritmo y la rima. El mayor complejidad que el requerido en las canciones. En estas
niño necesita identificar unidades lingüísticas, necesita también últimas, la repetición y la memorización favorecen el análisis
segmentar fonemas, silabas, léxico y unidades gramaticales. La sobre lo escuchado: cualquier canción, por el hecho de ser un
versificación ayuda en esa identificación y segmentación. Otra lenguaje estable acompañado de música y ritmo, favorece la
función de la versificación es la de ayudar a la memorización. memorización del texto y con ella el aprendizaje de vocabulario
El ritmo está también en la base de la rima y la sensibilidad a y estructuras lingüísticas diferentes a las usadas en el lenguaje
ambos se relaciona, según algunos autores, con la alfabetización cotidiano. La reproducción del texto, el output, se convierte
(Bryant, Bradley, Maclean & Crossland, 1989; Goswami & en input para el propio niño propiciando la reflexión sobre el
Bryant, 1990; Riley, 1996). mismo, es decir, la actividad metalingüística (Elbers, 2000). En
los JL el análisis no es sobre un universo dado, sino sobre el
5. Los JL en la familia conjunto de posibilidades existentes en la mente del jugador
y la manipulación de los elementos no viene dada sino que es
La relación entre el aprendizaje de la lectura y escritura en los producida por el propio jugador.
niños y sus interacciones en el entorno familiar ha sido reconocida
por numerosas investigaciones. Un número creciente de ellas A continuación exponemos algunos ejemplos de canciones y
ha profundizado en los aspectos relevantes de esta interacción juegos, que se han usado para jugar con niños en los momentos
(Dickinson & DeTemple 1998; Whitehurst & Longingan 1998; de alfabetización inicial, junto con los procedimientos implicados
entre otros) así como en las posibles formas de intervención y su potencial de aprendizaje:
para optimizar la influencia del contexto familiar en el aprendizaje
de la lectura y escritura de los niños (Caspe, 2003; Crawford & 5.1. Canciones y juegos que favorecen el análisis y la
Zygouris-Coe, 2006; entre otros). La mayoría de estos estudios manipulación sublexical:
se han centrado en la lectura conjunta de cuentos, otros han
resaltado la influencia del estilo de lenguaje familiar. Los JL y 5.1.1. Rimas. Las rimas en versos, canciones y juegos favorecen

83 05
la atención al aspecto sonoro del habla, las comparaciones 5.1.6. Canciones y juegos que nombran las letras.
y asociaciones entre finales de diferentes palabras y con Ej: El conocido juego de “veo, veo” una cosa que empieza
ellos el desarrollo de la conciencia fonológica (Crystal, por la pe, o por la eme…
1996).
Ej: Debajo del puente 5.2. Canciones y juegos que implican análisis semántico
Hay una serpiente y lexical
Se lava los dientes
Con agua caliente 5.2.1. Canciones y adivinanzas que cambian el sentido de las
Juego: producción de rimas y pareados. palabras de una frase al cambiar su segmentación o su
separación (calambur). Favorece el análisis sonoro de la
5.1.2. Canciones con repetición de la sílaba final o inicial de palabra así como el análisis de la segmentación de los
algunas palabras. Centran la atención en el aspecto enunciados en palabras.
sonoro del habla y ejercitan la segmentación silábica. Ej: A la vuelta de la esquina
Ej: debajo un botón ton ton Me encontré con Don Pinocho
que encontró Martín tin tin… Y me dijo que contara hasta ocho
Juego: Encadenamientos de palabras por repetición de la Pin una, pin dos, pin tres, pin cuatro
sílaba final. Pin cinco, pin seis, pin siete y pin ocho
Ej: Oro no es, plata no es, ¿Qué es? Plátano
5.1.3. Canciones con repetición de la primera letra seguida por Juegos: por el mismo procedimiento de unir o separar palabras
vocales diferentes. Favorecen el análisis silábico y el se puede jugar a las “palabras canguro” que consiste en buscar
subsilábico palabras que contengan a otra en su interior.
Ej: Jo sóc un pobre Ej: Palabras que tengan “mar”: amarillo, martes…
Ma me mi mo músic de carrer Palabras que contengan “pan”: espanto, pantalón…
Que sempre que jo O bien inventar palabras nuevas juntando partes de otras.
Pa pe pi po puc toco el que sé… Ej: ¿Cómo se llamaría un animal que es mitad vaca
Juego: aliteración de sonido y letra inicial y mitad cabra? Vacabra

5.1.4. Canciones, trabalenguas y juegos basados en la alitera- 5.2.2. Canciones que suprimen palabras substituyéndolas
aliteración. Favorecen ladiscriminación de consonantes i por gestos. Favorecen la separación del enunciado en
grupos consonánticos. palabras.
Ej: tres tristes tigres Ej: Mi barba tiene tres pelos…
Los juegos pueden consistir en nombrar palabras que empiecen
por una determinada consonante, generalmente tienen un ritual 5.2.3. C anciones y juegos que amplían el vocabulario de un
de entrada tal como “El abuelo volvió de las Américas en un campo semántico.
barco cargado de… patatas” y los participantes añaden nuevos Ej: Todas aquellas canciones que mantienen su estructura
elementos con la misma consonante inicial. variando el sustantivo dentro del mismo campo semántico.
“El Joan petit quan balla, balla amb el dit/ amb la ma/ amb
5.1.5. Canciones y lenguajes inventados de tipo monovocálico. el cap…“
La substitución de todas las vocales por una única favo- Los juegos consisten en decir palabras del mismo campo
favorece la discriminación entre vocales y consonantes, semántico hasta que un participante repite una o no puede decir
el conocimiento del universo cerrado de las vocales y el más.
del valor semántico de las consonantes.
Ej: Le mer estebe serene… 5.2.4. Adivinanzas, chistes y chascarrillos que juegan con la
homonimia. Favorecen la comprensión del sentido en

84
función del contexto. como una fuente de manipulaciones y los juegos espontáneos
Ej.: ¿No nada nada? No traje traje los lleva a la invención de palabras y a las palabras sin sentido.
Esto mismo ocurre en los intentos infantiles de crear poesía.
5.2.5. Juegos, canciones y adivinanzas que desarrollan la Por ejemplo Dowker (1989) pide a los niños generar poemas
definición de palabras en sentido real (propiedades, en respuesta a imágenes y encuentra respuestas semejantes a
sinonimia), figurado (metáforas y metonimia) o a partir las anteriores.
de contrarios y nonsense.
Ej: El juego de los disparates que consiste en mezclar el Los niños muestran una tendencia a jugar con los aspectos
sujeto y el predicado de una frase. Juegos de engaño que fonológicos del lenguaje. También demuestran interés en
consisten en representar la acción del predicado cuando adivinanzas que dependen de aspectos morfológicos, sintácticos
el sujeto cumple la condición del mismo. El director o lexicales de ambigüedad.
del juego puede engañar: producir la acción cuando
no corresponde. “Vuelan, vuelan… aviones, pájaros, En resumen y siguiendo la argumentación de Crystal (1996)
trenes… podemos decir que hay tres razones para promover los JL en la
educación lingüística: son naturales, espontáneos y universales.
5.2.6. Juegos que favorecen el uso de hiperónimos. Naturales, porque las gente aprende a jugar con el lenguaje
Ej: adivinar objetos o personajes que uno de los partici- desde pequeño, forma parte de la más temprana interacción
pantes ha pensado a partir de preguntas. ¿es un mueble? madre-hijo y de las primeras producciones infantiles (Garvey,
¿es una fruta?... 1977). Espontáneos en el sentido de que la gente los incorpora
como conducta sin un proceso educativo especial, no requiere
5.3. Canciones y juegos que trabajan reproduciendo,mani- entrenamiento no habilidades específicas. Universales, porque
pulando o recreando textos. atraviesan las culturas, tal como lo ha mostrado la antropología
(Kirshenblatt-Gimblett, 1976).
Toda memorización y reproducción de canciones, poesías,
proverbios o cualquier otro texto estable contiene el potencial
de aprendizaje de estructuras que pueden ser usadas en otros
contextos. La representación de los mismos, con o sin lenguaje,
con o sin adivinación por parte de otro jugador, colabora a
la incorporación de estructuras. Por otra parte, existen gran
cantidad de juegos para trabajar y recrear textos. La mayoría
de ellos requieren de la escritura (textos cloze, juegos con
matrices, etc.) y por ello no los especificamos en este artículo.

6. Los JL en la escuela

A pesar de las relaciones entre los JL y el aprendizaje de la


lectura y la escritura todavía son pocos los libros o los proyectos
pedagógicos que incorporan los juegos en los materiales de
enseñanza. Crystal (1996) sostiene que apoyándose uno en el
otro se puede ayudar al niño en el aprendizaje.

Según Ely & McCabe (1994) un cuarto de todos los enunciados


producidos por nos niños preescolares contiene alguna forma
de JL. Los niños tratan el lenguaje como tratan otros objetos,

85 05
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86
87 05
88
PARTE 2

A construção
do sucesso escolar

89 05
90
Systemic educational reform in the United
States: the no child left behind act of 2001

91 05
Michael F. DiPaola1

Abstract
The first decade of the twenty-first century has been referred to as the “era of
accountability” in American public education. A groundswell of public dissatisfaction
with the large number of students who were not being served by public schools
caused individual states to first impose proficiency standards and examinations
to verify that students were achieving as they progressed in school, particularly
in reading and mathematics. These individual state initiatives were designed to
improve high school graduation rates and close the “achievement gap” between
students who traditionally achieved at high levels and those who did not. The federal
law, the No Child Left Behind Act of 2001, established national accountability for
public schools in the 50 states, with the goal of ALL children achieving proficiency
by 2014. The law requires that students in identified subgroups (students with
disabilities, racial minorities, those for whom English is the second language, and
students with low socio-economic status) learn and make academic progress in
order for schools to remain accredited. Although there is still much work to be
done, the law and its sanctions transformed public schools. Teachers and school
principals became focused on instruction and learning for all students. Progress
has been made in the number of students who are proficient in both reading and
mathematics in all identified subgroups.

The United States Constitution is silent on the issue of public In 1981, The National Commission on Excellence in Education
education. Individual states assume the responsibility of providing Commission was created to address two issues: i) the
education to its citizens and each state constitution guarantees a widespread public perception that something was seriously
free public education for children. It wasn’t until 1965 that the wrong with the country’s public educational system and ii)
Federal Government had a prominent role in public education. the challenge to the preeminence of the US in commerce,
In response to growing demands for access to education by industry, science, and technological innovation by competitors
marginalized subpopulations, the Elementary and Secondary throughout the world. After extensive study, the Commission
Education Act (ESEA) of 1965 was passed and signed into law. It issued a report in 1983, A Nation At Risk: The Imperative For
introduced the standard of equity to public education. The ESEA Educational Reform. The report’s purpose was to generate
required that the national government would provide states with reform of the educational system in fundamental ways and to
supplemental funding and programs with the goal of equalizing renew the nation’s commitment to schools and colleges of high
educational opportunity for poor and minority students. As quality throughout the country. However, all the Commission
initially designed and implemented, ESEA was well received by the members were politicians or business leaders. Educators were
education establishment and by individual state capitols because skeptical of the Commission’s political agenda. The educational
it provided federal dollars around the country with few stipulations establishment and teacher unions were able to use their power
and virtually no accountability for student achievement. to preserve the status quo in education by effectively neutralizing
many of the major school reform proposals that emerged at the
 The College of William & Mary School of Education.A correspondência national level, like those proposed by A Nation At Risk.
relativa a este artigo pode ser endereçada para: mfdipa@wm.edu

92
From 1985 to 2001, federal funding for public education doubled from five billion to over 10 billion dollars. Yet, during the same
time period, the percentage of fourth graders reading proficiently hardly increased (see figures 1 & 2).

Figure 1: Federal Education Spending

Title I Constant Dollars


11

9
Funding in Billions (Constant ‘02 Dollars)

0
Year
1966
1967
1968
1969
1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976
1977
1978
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
Even when accounting for inflation, funding has doubled since 1985

Figure 2: Percentage of Fourth Graders Reading Proficiently

100

80

60

40

20

0
1992 1994 1998 2000

93 05
1. No Child Left Behind to the new school to students attending schools identified for
improvement. For students attending persistently failing schools
Despite the nearly $200 billion in Federal spending since the (those that have failed to meet state standards for at least 3 of the
passage of the Elementary and Secondary Education Act of 4 preceding years), LEAs must permit low-income students to
1965 (ESEA), many school children were being “left behind”. A use funds to obtain supplemental educational services from the
bipartisan solution based on accountability, choice, and flexibility public-or private-sector provider selected by the students and their
in Federal education programs was crafted and resulted in the parents. Providers must meet state standards and offer services
landmark No Child Left Behind Act of 2001 (NCLB). The new law tailored to help participating students meet challenging state
had two primary goals: to improve the performance of America’s academic standards. To help ensure that LEAs offer meaningful
elementary and secondary schools and to close the achievement choices, the new law requires school districts to spend up to
gap between minority and poor children and their majority 20 percent of their federal money to provide school choice and
counterparts. NCLB requires increased accountability for states, supplemental educational services to eligible students.
school districts, and schools; greater choice for parents and
students, particularly those attending low-performing schools; In addition to helping ensure that no child loses the opportunity
more flexibility for States and local educational agencies (LEAs) for a quality education because he or she is stuck in a failing
in the use of Federal education dollars; and a stronger emphasis school, the choice and supplemental service requirements
on reading, especially for our youngest children. provide a substantial incentive for low-performing schools to
improve. Schools that want to avoid losing students and the
1.1. Accountability portion of their annual budgets provided for those students will
have to improve or, if they fail to make AYP for 5 years, they run
The NCLB Act strengthens accountability by requiring states the risk of reconstitution under a restructured plan.
to implement statewide accountability systems covering all
public schools and students. These systems must be based on 1.3. Flexibility
challenging state standards in reading and mathematics, annual
testing for all students in grades 3-8, and annual statewide The flexibility provisions in the NCLB Act include authority for
progress objectives ensuring that all groups of students reach states and LEAs to transfer up to 50 percent of the funding they
proficiency within 12 years by 2014. Poverty, race, ethnicity, receive under 4 major state grant programs to any one of the
disability, and limited English proficiency must be reported in following programs: Teacher Quality State Grants, Educational
assessment results and state progress objectives to ensure Technology, Innovative Programs, and Safe and Drug-Free
that no group is left behind. School districts and schools that Schools.
fail to make adequate yearly progress (AYP) toward statewide
proficiency goals will, over time, be subject to improvement, 1.4. Reading First
corrective action, and restructuring measures aimed at getting
them back on course to meet State standards. Schools that A goal of No Child Left Behind is that every child can read by the
meet or exceed AYP objectives or close achievement gaps will end of third grade. To accomplish this goal, the new Reading
be eligible for State Academic Achievement Awards. First initiative significantly increases the federal investment in
scientifically based reading instruction programs in the early
1.2. Choices for Parents and Students grades. Parental involvement, especially demonstrating how
parents can directly help their children by reading to them
The NCLB Act significantly increases the choices available to from an early age, providing opportunities for children to read,
the parents of students attending schools that fail to meet state and restricting access to television and other distracters is a
standards. Local school districts (LEA) must give corrective key element. One major benefit of this approach is to reduce
action or restructuring the opportunity to attend a better public identification of children for special education services due to a
school within the school district and must provide transportation lack of appropriate reading instruction in their early years.

94
2. NCLB Revisited focus is placed on remediating at-risk students, the high ability
learners may be left with an uninspired, unchallenging, un-
The enactment of NCLB in 2001 addressed the public concerns enriched educational experience. By not addressing the needs
of low standards and failing schools. NCLB has been successful of these learners, A Nation at Risk may truly become the state
in focusing educators to work to increase standardized of affairs in America.
test scores and to force localities to focus on rigorous state
standards of learning. Certainly, NCLB ensures that states are Perhaps the largest negative impact of NCLB is on schools who
focused on improving outcomes and increases accountability serve a high population of disadvantaged students or schools in
for schools that do not show improvement. Educational reform urban, low income areas. One consequence of not making AYP,
and accountability are hallmarks of the law as both the overall which is a greater challenge for such schools, is the reduction
quality of teaching and learning has improved, especially of much needed funding. Obviously, these schools are in most
for students who were not achieving prior to its enactment. need of resources, so such a sanction is counterproductive and
Furthermore, making schools accountable for the learning of inconsistent with the goals of the Act itself. NCLB must take
all students has heightened public awareness of the issues into account the incremental progress that schools make even
related to meeting the needs of students who are members though their levels of student achievement do not favorably
of minority groups (special education, non-English speakers, compare to other schools that do not have so many educationally
ethnic minorities, and the poor). challenged students.

However, while the goals of NCLB are noble and consistent From the onset, educators have argued that the NCLB goal of 100
with the outcry for educational reform, a myriad of unintended percent of students being proficient in reading in mathematics
consequences have resulted. Some educators and policy by 2014 is unrealistic and unattainable, especially given the
makers argue that NCLB has led to a narrow-minded focus on wide range of student abilities and capacities. Another concern
achievement on standardized tests and “teaching to the test” that is focused on the discrepancy between the “standards” set
encourages only minimum competency. There is little debate by individual states. Some states have set lower standards to
that much of this is occurring in our schools. As a matter of fact, ensure that more of their students are successful. However, our
some states publish specific information like “test blueprints” history of state responsibility and control of education results
and release test items that help teachers teach to the test. This in persistent resistance to “national” standards. Despite these
often results in learning that is rote memorization, surface level dysfunctions, NCLB can be a viable solution if careful attention
skill building, and uninspired. Teachers lose their creativity and is made in modifying the law so that it builds on the positive
forget to make learning fun. Such practice fails to broaden and outcomes and ameliorates the negatives.
enhance the various talents that students may have that are
outside of the standards-based curriculum. The pressure of The reauthorization of the NCLB law has been discussed since
high stakes tests can have many detrimental effects beyond just 2007. More recently, the Obama administration has called for
what and how teachers teach; it also affects how teachers feel broad changes in how schools are judged to be succeeding or
about teaching and how students feel about learning. failing, as well as for the elimination of the law’s 2014 utopian
goal of bringing every American child to academic proficiency.
Although NCLB has dramatically increased services and learning The proposals for changes in the main law governing the federal
opportunities for those students traditionally left behind, it has role in public schools would eliminate or rework many of the
had an equally detrimental effect on gifted and high ability provisions that teachers’ unions, associations of principals,
learners. NCLB challenged the sources of inequity in American school boards and other groups have found most objectionable.
schools, but at the same time created inequities for our gifted But the proposals do not abandon the law’s commitments to
population. With such a narrow focus on the learning standards closing the achievement gap between minority and white
being tested, teachers do not take time for the enrichment students and to encouraging teacher quality. The intention is to
necessary to challenge high ability learners. While the intense change federal financing formulas so that a portion of the money

95 05
is awarded to schools based on academic progress, rather than
by formulas that apportion money to districts according to their
numbers of students, especially poor students. The changes
would have to be approved by Congress, which has been at a
stalemate for years over how to change the policy.

NCLB should not be viewed as an end but a means to an end.


It can be the building block to collect data needed to plan for
continued improvement and to provide focus on the challenges
ahead. Our continued success in the face of global competition
depends on it.

96
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97 05
98
Envolver a família no e através
do Programa Nacional do Ensino do Português
(PNEP)

99 05
Cristina Pinto1

Resumo
O projecto “A Escrita mensageira entre a Escola e a Comunidade”, teve como
objectivo principal promover as competências de literacia familiar, nas famílias
das crianças das turmas do 1º CEB, cujo professor estava envolvido na formação
do Programa Nacional do Ensino de Português (PNEP). No âmbito deste projecto
realizou-se um trabalho colectivo de escrita familiar, comum à nossa comunidade
escolar, que permitiu uma reflexão conjunta e a tomada de consciência que a
partilha e a cooperação entre a escola e a família são contributos-chave para o
desenvolvimento das competências de leitura e de escrita, descobrindo na escola
e em família o prazer de ler e de escrever.

Pretende-se nesta comunicação apresentar os principais objectivos, estratégias e


produtos desenvolvidos ao longo deste projecto.

1. Introdução inicia muito antes do início de sua escolarização, pois a escrita,


por ser um objecto de função fundamentalmente social, já faz
Falar de literacia no âmbito de um projecto relacionado com o parte do quotidiano dos educandos. Nenhuma criança entra na
desenvolvimento da literacia familiar implica necessariamente escola sem nada saber sobre a leitura e a escrita. E, o processo
uma abordagem na sua dimensão mais abrangente, com toda de alfabetização é longo e trabalhoso, independente da classe
a carga de natureza escolar, social e, logo, cultural que traz social ou meio em que a criança vive. Esta mudança de conceitos,
consigo. práticas e atitudes tem sido desencadeada pela compreensão
do erro como erro construtivo e pelo respeito ao processo de
Actualmente, o conceito de literacia apoia-se numa pluralidade aprendizagem de cada educando, seja ele adulto ou criança.
de competências, pessoais, familiares e sociais, assim como
de aspectos funcionais relacionados com os modos diversos Por todas estas razões hoje urge cultivar e desenvolver a relação
de obter e utilizar a informação na sociedade do conhecimento. escola-família tornando esse envolvimento, de cooperação
Daí que a forma plural – literacias, encontrada actualmente e parceria de responsabilidades pedagógicas e educacionais,
com maior frequência, sirva de imediato como indicador de efectivo.
um conteúdo variado, complexo e flexível, permitindo cada vez
melhor a adaptação às necessidades inesperadas e imprevisíveis A relação escola-família é uma realidade existente em todas as
dos tempos e da sociedade em que vivemos (Strecht-Ribeiro, escolas, ainda que a sua efectivação em termos de envolvimento
2006). ou colaboração só se verifique numa pequena percentagem das
mesmas. Os estudos conhecidos sobre esta área, quer a nível
Hoje, graças à investigação efectuada por Ferreiro e Teberosky nacional quer internacional, agrupam-na em categorias como:
(1985), sabemos que a aprendizagem da leitura e da escrita se as associação de pais; as expectativas dos pais face à frequência
de contextos educativos formais – a participação dos pais como
 Formadora Residente do Programa Nacional do Ensino de Português - práticas de cidadania; as expectativas dos professores sobre o
Agrupamento de Escolas de Condeixa de Condeixa-a-Nova.
A correspondência relativa a este artigo pode ser endereçada para:
envolvimento; a participação dos pais nos órgãos de decisão
crisceupinto@gmail.com das escolas, as estruturas de mediação escola-família.

100
De acordo com Sarmento e Marques (2006), esta não é a pautar-se pela formalidade. A informação prestada, no
relação que a sociedade de hoje exige. Mas, o que é certo, primeiro caso, não significa uma verdadeira desocultação dos
é que a escola da tradição republicana, não se baseando no sentidos das intenções educativas dos professores com vista
multiculturalismo, não se desenvolveu com base e a partir das a uma participação pró-activa das famílias, mas tão só um
idiossincrasias locais. Cresceu à revelia das diferenças culturais procedimento formal de comunicação de intenções. Porém,
e sociais, exercendo-se como instrumento político de poder de tudo isto e apenas isto não chega, a relação escola-família que
um Estado centralizado. “O inconveniente de o povo saber ler urge desenvolver configura, não apenas, uma concepção de
não estava propriamente no facto em si mesmo, mas no uso escola, mas também uma concepção de sociedade
perigoso que dele poderia resultar” (Carvalho, 1996, p. 728).
Assim, só é possível entender a existência de relação entre
Este período prolonga-se até aos finais dos anos 60, em que o escolas-famílias, num modelo de escola que admita, para lá
Estado, com forte determinação ideológica, impediu o acesso dos imperativos legislativos, a relevância da acção educativa
à escola dos portadores de saberes não-escolares não se se inserir num projecto educativo de uma comunidade em
colocando, por isso, o problema da definição das relações entre que, como tal, todos (pais, professores, alunos, outros actores
a instituição escolar e a comunidade (Correia, 1999). sociais) tenham espaço de participação, e em que às crianças,
particularmente, seja assegurado o direito a uma educação
Esta era uma escola que defendia uma identidade que se queria informada, “que assenta na lógica da sua participação com
nacional e que se impôs e sobrepôs às identidades locais. Assim, voz nos processos de vida em que se desenvolvem” (Marques,
enquanto que na Europa do pós-Segunda Guerra Mundial, 2005, p. 3). Porque “as crianças, mais do que necessitarem da
em contexto de conceptualização e de operacionalização nossa acção socializadora, necessitam de oportunidades para
da sinonímia desenvolvimento, como desenvolvimento se exercerem como actores com direito a serem ouvidos e lidos
económico, a educação formal surge como factor fundamental na sua forma de olhar e conceber o mundo” (Garcez, 2001, p. 1).
para a promoção da mobilidade social ascendente e, como tal,
um direito que se reivindica, em Portugal só em 1960 se institui A presente comunicação centra-se, essencialmente, na
a escolaridade obrigatória de quatro anos para ambos os sexos, apresentação de um projecto educativo, no domínio da Literacia
de seis anos em 1964 (Cortesão, 1988) e de nove anos em Familiar que visa promover a construção de uma ponte que
1986 (Lei nº 46/86) alargando, deste modo, a base social de aproxime efectivamente a escola da família (e vice-versa) na
recrutamento da escola. abordagem ao processo de aprendizagem da leitura e da escrita
feita pela família e a adoptada pela escola, desenvolvido no ano
Na actualidade, ainda que essencialmente numa lógica de lectivo de 2008/09, no Agrupamento de Escolas de Condeixa-a-
continuidade a relação dos professores com as famílias dos Nova, por um grupo de professores envolvidos na Formação do
seus alunos tende a surgir em concomitância um estreitamento Programa Nacional para o Ensino de Português (PNEP).
de relações potencia um melhor desempenho académico das
crianças. O PNEP é um programa da responsabilidade do Ministério da
Educação, desenvolvido em parceria com as Universidades ou
No entanto, estatutariamente possibilitadas de participar na Escolas Superiores de Educação.
gestão da escola, as famílias fazem-no essencialmente por
representação. Os professores olham-nas como recursos A orientação deste programa está a cargo de uma Comissão
a quem solicitam apoio pontual para o desenvolvimento de Nacional de Acompanhamento, coordenada pela Professora
actividades múltiplas e são alguém a quem, normativamente, Dra. Inês Sim-Sim e de uma outra comissão mais alargada da
precisam de informar sobre as suas intenções de trabalho e qual também faz parte a Professora Dra. Lucília Salgado. Há em
sobre o desempenho global dos seus alunos. cada núcleo de formação um coordenador regional que faz a
ponte entre as diferentes instituições envolvidas, sendo também
Isto é, as relações escola-família e vice-versa, tendem a o responsável pela coordenação da formação dos Formadores

101 05
Residentes e por consequência da formação que se desenvolve e ainda continua a ser uma das mais elevadas. No que diz
nos diferentes agrupamentos abrangidos pelo seu núcleo de respeito à dimensão educativa e de acordo com os resultados
coordenação. No nosso caso, é com muito agrado que temos publicados pela OCDE em 2006, Portugal continua posicionado
como coordenador regional o Professor Dr. Pedro Custódio. ao lado dos outros países com níveis de escolaridade mais
baixos, designadamente para a população com idades situadas
O PNEP teve o seu início no ano lectivo de 2006/07 e tem entre os 25 e os 64 anos.
como objectivo melhorar os níveis de compreensão de leitura
e de expressão oral e escrita em todas as escolas do 1º ciclo, De acordo com o tabela 1, verificamos que Portugal é um
num período entre quatro a oito anos, através da modificação dos países que revela índices mais frágeis de qualificação
das práticas docentes do ensino da língua. Surge como mais escolar e profissional da sua população adulta e, sobretudo,
um reforço às medidas urgentes que possam contribuir para a mais lenta capacidade de recuperação no conjunto dos
a melhoria dos desempenhos dos alunos em competências países europeus. Cerca de 3.500.000 dos actuais activos têm
referentes ao domínio da língua materna, estabelecidas para a um nível de escolaridade inferior ao ensino secundário, dos
União Europeia, na Cimeira de Estocolmo de 2001. Tudo por quais 2.600.000 têm um nível de escolaridade inferior ao 9º
causa dos resultados obtidos, pelo nosso país, em todos os ano. Mesmo considerando a população mais jovem, cerca de
estudos internacionais de literacia. 485.000 jovens adultos entre os 18 e os 24 anos (45% do total)
estão a trabalhar sem terem concluído 12 anos de escolaridade,
Em 2001, a taxa de analfabetismo, no nosso país, era de 9% 266.000 dos quais não chegaram a concluir o 9º ano.

Tabela 1: Indicadores socioeducacionais (Cruz, 2005).

HM 25-64 anos 25-34 anos 35-44 anos 45-54 anos


Sec. Sup. Sec. Sup. Sec. Sup. Sec. Sup.
PORTUGAL
13,0 11,4 21,2 16,1 13,9 13,9 8,9 8,9
UE15 (2000) 43,0 21,7 48,0 26,8 46,4 22,9 40,7 20,2

Na zona da União Europeia, e no período de 2002-2004, de recuperar a diferença que o separa dos demais países da
Portugal, juntamente com Malta, apresenta as taxas mais baixas OCDE (Pinto-Ferreira et al., 2006)
de diplomados com o ensino secundário para o segmento etário
dos 20-24 anos (abaixo dos 50%), quando a média da Europa Todavia, perante estes dados do PISA 2006, em que se
dos 25 se situa acima dos 75% (Comissão Europeia, 2005). comparam os desempenhos globais, a literacia de leitura,
Também os dados da OCDE (2005) relativos ao número médio nos três ciclos PISA, por nível de proficiência atingido pelos
de anos de escolarização da população adulta, em 2003, (média alunos portugueses, Portugal continua com níveis abaixo dos
da OCDE = 12 anos) vêm confirmar que o nosso país, com uma desejados em comparação como os resultados dos outros
média de 8,2 anos de escolarização, se encontra ainda distante países do espaço da OCDE.

Tabela 2: Resultados comparativos dos níveis de literacia (PISA 2006).

OCDE (2000) Portugal 2000 Portugal 2006


0% Abaixo do nível 1 8,3% 5,8%
22% Nível 3 25,62% 25,62%
29% Nível 4 11,62% 14,9%
9% Nível 5 2,1% 2,8%

102
Portugal apresenta ainda uma percentagem superior à da OCDE relacionadas com literacia são agora também preocupações
e à da União Europeia, de 22% de Leitores com muito baixo nível pedagógicas diárias. Só tendo os pais e a família como parceiros
de literacia. Leitores que, acredito, estão nesta condição não a aprendizagem da linguagem escrita poderá ser mais natural
por convicção mas porque ao longo do seu percurso académico e significativa.
não tiveram oportunidade de aprender a descobrir o prazer de
ler. Também, nos três ciclos PISA, mais de 50% da população Tal como considera Miller (1996), os professores e educadores
portuguesa abrangida neste estudo se encontra ainda no nível 1 ao iniciarem uma abordagem à literacia, terão que ter em
e 2, no que diz respeito aos desempenhos globais na literacia de consideração todo o background social e cultural das crianças.
leitura. Em 2007, a EUROSTAT, coloca Portugal em último, dos Só assim, “conseguirão atribuir valor à literacia desenvolvida
27 países que compõe actualmente a União Europeia, quanto à pela família e ao contributo que cada criança pode dar para
leitura de livros predominando por cá os pequenos leitores, ou o trabalho desenvolvido na escola ou no jardim-de-infância.”
seja os que lêem até cinco livros por ano. (Mata, 1999, p. 66). Hoje, os pais passaram a ser considerados
como elementos fundamentais, cuja participação deve ser
Perante esta realidade nacional, o que é facto é que no nosso mobilizada. “Só tendo os pais e a família como parceiros a
caso, enquanto professores e profissionais da educação, muito aprendizagem da linguagem escrita poderá ser mais natural e
nos temos esforçado para que os objectivos do PNEP sejam significativa.” Hannon (1995, 1996) considera que a importância
realmente atingidos. Na certeza porém que este programa não do papel dos pais no processo de apreensão da linguagem
se esgota em dois anos de formação. escrita, deve ser considerada quanto a quatro grandes tipos de
experiências que podem proporcionar - ORIM:
Na verdade, muitas são as razões apontadas, por todos os - Oportunidades para aprender;
nossos colegas, para que não tenhamos dúvidas em afirmar - Reconhecimento das aquisições da criança;
que este Programa do Ministério da Educação, para além do - Interacção em actividades de literacia;
seu sucesso, era realmente imprescindível. Acima de tudo - Modelos de literacia
porque cativou os professores e lhes devolveu uma boa dose
de autoconfiança e segurança pedagógica. Depois porque é - Oportunidades quando, por exemplo, as levam a contactar e
consensualmente reconhecido como um impulso e um estímulo as ajudam a interpretar os escritos do meio; ou quando lhes
positivo à vontade de mudar algumas rotinas pedagógicas lêem, por exemplo, histórias, revistas ou notícias dos jornais;
enraizadas, até, por alguma negligência política a que esteve ou quando os levam à biblioteca ou mesmo ao possuírem
sujeita a educação, em geral, e a formação de professores em materiais escritos diversificados em casa.
especial, no que diz respeito ao ensino da língua. Mas, mais
importante que o passado é que o PNEP, para além de tudo o - Reconhecimento e valorização dos avanços que as crianças
que já foi dito, veio contribuir, em muito, para uma tomada de vão fazendo (estímulo).
consciência social e educativa, da necessidade de aproximar a
escola da família, criando condições efectivas para um maior - Interacção entre pais e filhos em torno da linguagem escrita
envolvimento da família nas actividades da escola. em situações do dia-a-dia.

Actualmente, a nossa escola já sente necessidade de um - Modelos de como e quando utilizar a linguagem escrita e, de
modelo que admita, para lá dos imperativos legislativos, como valorizar e tirar prazer das actividades de literacia.
um projecto educativo alargado à comunidade em que pais,
professores, alunos e outros actores sociais tenham um espaço Também para o nível de motivação para a leitura, a família
de participação efectiva. possui um papel relevante.
As crianças que começam a ler cedo, possuem em casa um
O convite permanente à introdução precoce dos livros e ambiente de literacia rico e um maior interesse em aprender a
à participação das crianças em interacções com os pais ler e a escrever (Durkin, 1966; cit. in Purcell-Gates, 2000);

103 05
Aquelas que possuem maior interesse na leitura, têm mais livros Por outro lado, de acordo com Leseman e Jong (2001),
em casa e os pais lêem-lhes com maior frequência histórias, para o desenvolvimento das competências de literacia as
(Morrow, 1983; Scher & Mackler, 199 cit. por Purcell-Gates, características parentais (o nível vocabular; o nível de educação;
2000); o registo linguístico, em casa; o prazer e frequência de leitura);
o ambiente linguístico (frequência e duração da leitura conjunta
Fernandes (2004), em relação às experiências de literacia, de livros; número de livros em casa; frequência de biblioteca;
comenta que o contexto familiar, tomado como uma só visibilidade de comportamentos literácitos familiares) e ainda, o
medida, não explica os níveis de desempenho nem o sucesso ambiente familiar podem contribuir de forma indirecta, através
posterior na aprendizagem da leitura e escrita, porém algumas de oportunidades de aprendizagem que podem estimular
características de determinados meios ou estratos sociais o desenvolvimento do raciocínio em geral, e as capacidades
parecem explicar o processo de aquisição de determinadas de resoluções de problemas, promover o reconhecimento de
competências nesta área nomeadamente: palavras, e promover atitudes sócio-emocionais favoráveis à
aprendizagem escolar.
- Formação Académica - segundo estudos de literacia realizados
em Portugal (Benavente et al., 1996 cit. por Fernandes, 2004) A literacia manifesta-se no ambiente físico, familiar, na
o nível de formação académica dos indivíduos é directamente comunidade, no trabalho e lazer sendo a sua utilização visível
proporcional à variedade, qualidade e quantidade de às crianças, consoante os outros significativos recorrem
comportamentos leitores. a ela no seu dia-a-dia. Conscientes da importância desta
relação, para que o sucesso educativo seja uma realidade, e
- Atitude face à educação - atitude face à educação, e expectativas da necessidade de criar laços efectivos, de cooperação e co-
parentais sobre os filhos. responsabilidade entre a nossa escola e a nossa comunidade,
criámos e desenvolvemos, no nosso concelho de Condeixa-
Num estudo realizado por Fitzgerald, Spiegel & Cunningham a-Nova, um projecto que pretendia despertar, na família, a
(1991), que explorava a percepção parental acerca da tomada de consciência das suas competências literácitas e da
aprendizagem da literacia emergente, em pais com baixo sua importância para o sucesso escolar, pessoal e social, dos
e elevado nível de literacia; verificam que os pais em geral seus educandos.
concordavam que a aprendizagem da literacia poderia iniciar-se
durante a idade pré-escolar, no entanto, o modo como esta se 1.2. Um Projecto – Um contributo para o desenvolvimento da
processa, é percepcionado de modo distinto; os pais com nível literacia familiar
literário baixo atribuem mais importância à presença de materiais
de apoio no lar, preferencialmente aqueles orientados para É com os pais que as crianças começam a aprender e é também
capacidades; os pais de nível literário elevado percepcionavam- com eles que passam mais tempo. Assim, não se pode por
na como uma prática cultural, atribuindo mais importância à um lado, esquecer as suas vivências e as suas experiências
modelagem de comportamentos de literacia. de literacia, e por outro lado ignorar estes enquanto parceiros
educativos. Contudo, os pais têm que ser tratados como
Pode-se, então, concluir que para uns Literacia é uma capacidade pais, devendo ser incentivados a ler e a desenvolver outras
de trabalho, a ser adquirida principalmente na escola e para actividades de literacia com os filhos, mas não a ensiná-los no
outros é uma transmissão cultural, adquirida de modo indirecto sentido formal do termo. Todas as orientações e intervenções
e implícito no lar e comunidade, assim como na escola. com famílias, com o objectivo de mobilizar e facilitar a sua
participação deverão: apoiar-se nos seus interesses, nas suas
Assim, o que as crianças aprendem acerca da linguagem potencialidades e nas suas vivências; considerar as suas rotinas
escrita antes da escola está constrangido pela forma como o e hábitos de literacia e também proporcionar oportunidades,
impresso é utilizado pelos outros significativos na sua família e recursos e condições para que as estratégias e actividades
comunidade social (Purcell-Gates, 2000). possam ser postas em prática e nas suas vivências; considerar

104
as suas rotinas e hábitos de literacia e também proporcionar de acordo com os dados fornecidos pela Carta Educativa de
oportunidades, recursos e condições para que as estratégias e 2007, tinha, em 2001, cerca de 15.340 habitantes, apresenta
actividades possam ser postas em prática (Mata, 1999). uma localização privilegiada no Centro Litoral, à curta distância
de 12 km de Coimbra.
Escola e família são parceiros co-responsáveis mas nunca
se podem substituir. Se esta cooperação e consciência dos A análise da repartição da população activa empregada por
objectivos comuns não for aceite, vai continuar a ser difícil sector de actividade económica sublinha a importância que
estabelecer uma ponte entre a família e a escola. as actividades relacionadas com o sector terciário têm no
município, uma vez que este sector representa, no ano mais
Por um lado, a abordagem ao processo de aprendizagem da recente (2001), 69,8% dos empregados.
leitura feita pela família é normalmente diferente da abordagem
adoptada na escola. Regra geral, a abordagem que os pais No que se refere ao sector secundário, actividade com marcada
fazem é semelhante à que tiveram quando foram alunos. expressão no município, indica-se que apresenta uma estrutura
com um número de activos inferior ao registado no Continente
Por outro lado, a escola fornece pouca informação sobre em 2001 (28,1% contra 35,5%).
as perspectivas com que aborda a leitura. Esta falta de
conhecimento mútuo e de informação pode conduzir ao uso Por último, no sector primário, actividades ligadas à agricultura
de dois diferentes métodos de ensino. Se a escola tem por e principalmente dedicada à produção hortícola, especialmente
objectivo desenvolver parcerias com a família, então deverá dar para auto-consumo, o número de empregados é de apenas
todas as informações relevantes e conhecer as abordagens que 2,2% dos activos, valor inferior ao verificado no Continente
a família adopta, encarando-as numa perspectiva positiva. (4,8%).

De acordo com estas considerações, este projecto teve como Na leitura da evolução e da estrutura da população residente
objectivo geral, promover e criar momentos de leitura e escrita empregada efectivamente por grupos de actividades, em 2001
partilhada entre pais e filhos, visando o desenvolvimento tinha o seguinte panorama:
de competências de literacia familiar. Tendo como alvos - trabalhadores da produção industrial e artesãos 18,9% dos
de intervenção crianças e adultos pretendeu-se, mais activos empregados, que registou desde 1991 um reforço dos
especificamente, promover: activos (5,0%, de 1191 para 1251 indivíduos), domésticos
- na criança, momentos de diálogo com os seus pais e contribuir e trabalhadores similares, que se cifrou em 62,5% (superior
para o desenvolvimento de competências relacionadas ao ocorrido no Continente 18,8%) num contexto também de
com a leitura e a escrita de textos (desenvolver vocabulário, acréscimo em termos estruturais (de 13,7% para 16,8%).
relacionar acontecimentos, desenvolver a imaginação e - trabalhadores não qualificados da agricultura, indústria,
criatividade, levantar questões, trabalhar conceitos, clarificar comércio e serviços tem na estrutura da população residente
e expandir informação, relacionar com experiências pessoais, empregada uma importância também elevada, mesmo tendo
fazer inferências ...), desenvolver a consciência fonológica e a ocorrido uma diminuição de 3,1% desde 1991, representando,
oralidade. ainda em 2001, cerca de 14,0% dos empregados.
- no adulto, competências para cativar a atenção da criança, - profissões intelectuais e científicas e empregados
proporcionar a leitura e escrita interactiva, apoiar a compreensão administrativos, apresentando importância na estrutura de
da criança, e utilizar estratégias de desenvolvimento da literacia emprego do município (12,2 e 10,7%, respectivamente), que
familiar partilhadas com prazer por todos os seus membros. devem ser entendidas no quadro da dinâmica económica (e
demográfica) que descrevemos.
1.3. Contextualização local
A taxa de analfabetismo no ano de 2001 era de 17,14%,
Condeixa-a-Nova, é um concelho da periferia de Coimbra que valor acima da média nacional. No entanto, importa referir

105 05
que se observou uma diminuição da taxa de analfabetismo, fizeram às famílias propondo-lhes um desafio informal onde
representando um decréscimo de 2,86% relativamente ao ano todas participaram de uma maneira muito simples e muito
de 1991 (20%). peculiar. O que é facto é que para participarem, cada família
teve de se organizar, procurar um espaço, no seu quotidiano,
Foi neste contexto social que ousámos apresentar um desafio para um tempo partilhado de leitura e de escrita. E, este era
às famílias, utilizando a leitura e a escrita como pretexto de sem dúvida o grande objectivo deste projecto. Pelo menos
diálogo entre pais e filhos. durante um momento cada família dedicou à leitura do texto a
sua atenção. Juntos tiveram de ler e planear o desenvolvimento
2. Implementação de um projecto de escrita que lhe iriam dar, para finalmente serem capazes de acrescentar
colectiva por escrito o parágrafo que seria o seu contributo familiar.

2.1. Metodologia Na escola, os alunos, todos os dias, disputavam a vez de


levar a “Escrita Mensageira” para casa. Pois, nesta actividade
Ao longo destes 22 anos de práticas pedagógicas a defender eles sabiam que iam dar uma opinião e partilhar com os seus
uma escola aberta à comunidade, em que esta relação se pais um tempo e um espaço familiar de forma entusiasta e
efectivasse em projectos educativos de parceria e cooperação, descontraída para que o cunho da sua família ficasse patente
deparei-me nestes últimos anos com uma realidade um tanto naquela história.
ou quanto diferente. Por isso, e aproveitando a formação do
PNEP, resolvi desafiar os meus colegas que faziam parte O mais importante, é que no final, no dia apresentação do
do meu grupo de formandos a desenvolver um projecto de projecto, dia 1 de Junho, na Biblioteca Municipal, uma grande
literacia familiar a que chamámos “Escrita mensageira entre parte das famílias esteve presente e quem não esteve fez
a escola e a família”. Assim, todas as famílias das crianças chegar, até nós, a sua imensa curiosidade em saber qual seria o
pertencentes às turmas envolvidas, nesta formação, foram resultado da história em que tinha participado e o que seria que
convidadas a participar na elaboração de um texto colectivo, as outras famílias, das outras escolas teriam feito.
iniciado na sala de aula passando depois de casa em casa,
onde cada família, o lia e lhe acrescentava mais um parágrafo Este projecto foi sem dúvida uma experiência única e diferente
contribuindo desta forma para o desenvolvimento da história para todos os Encarregados de Educação e alunos, tendo sido
em construção. A ideia era conseguirmos um conjunto de aceite com muito agrado.
textos “verdadeiros” e não artefactos escolares. Em que cada
família tivesse a espontaneidade, a autonomia, a liberdade A participação de todos foi um contributo muito enriquecedor
para ler o mundo à sua maneira e escrever as suas próprias para os educandos, no sentido de os despertar, de uma forma
palavras. Sem a preocupação de usar frases já mecanizadas e, diferente, para a escrita. Por outro lado, quando cada um dos
fundamentalmente, sem medo do erro. professores leu o texto da família da sua turma, foi capaz de
reconhecer, apenas pela leitura do parágrafo, a Família que o
No final, compilámos todos os textos, fizemos apenas a sua escreveu. Uns porque se denunciaram através dos seus gostos
correcção ortográfica tentando respeitar o mais possível a musicais, do fascínio pela música “pimba”e pelo bairrismo,
estrutura do texto original e apresentámos uma maqueta outros porque aproveitaram para mostrar preocupações
do trabalho à Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova que de sociais e se retratavam numa família altruísta, de poucas
imediato reconheceu a importância deste trabalho e o apoiou, posses, desempregada, ou então, numa família numerosa,
fazendo a edição de uma pequena brochura que reuniu todos os num desgosto de amor que marcou toda a vida e, porque não
textos construídos que contou com a participação de cerca de também, uma família feliz…. O que é certo é que em todas
200 famílias. as histórias havia um cunho familiar facilmente detectável para
quem trabalhava naquela escola, com aquele grupo de alunos,
O projecto teve a sua mais-valia na aproximação que as escolas daquela comunidade.

106
Porém, foi no momento da compilação e correcção dos textos Na certeza, porém de que o objectivo fundamental tenha
que sentimos maiores dificuldades. Encontrámos, para além sido o de realizar um trabalho de escrita familiar comum
dos erros ortográficos, parágrafos completos com marcas de à nossa comunidade escolar que permitisse, no final uma
oralidade, estruturas sintácticas complexas e inadequadas e reflexão conjunta e a tomada de consciência que a partilha e
uma falta imensa de coesão textual, com repetições daquilo a cooperação entre a escola e a família é a chave para ajudar
que atrás já estava escrito sem conseguirem dar continuidade as nossas crianças a desenvolverem as suas competências de
ao desenvolvimento do texto, emaranhados de sucessivos leitura e de escrita descobrindo na escola e em família o prazer
acontecimentos, repentinas alterações do rumo da história e de ler e de escrever.
a existência de uma linguagem escrita pouco clara e coerente,
principalmente em alguns dos textos construídos. 3.Projecto: Escrita mensageira entre a escola e a
comunidade escolar
O que é certo é que todas contribuíram com o seu melhor e
o resultado obtido seja motivo de congratulação geral: pais, 3.1. Alvos de intervenção
escolas e comunidade educativa.
Incluímos neste trabalho todas as crianças das onze turmas do
Guardámos para nós uma frase que ficou da intervenção de 1º ciclo do ensino básico, envolvidas na Formação do PNEP,
uma mãe e encarregada de educação acerca deste projecto: pertencentes a sete Escolas do Agrupamento de Escolas de
“Chamem-nos mais vezes à Escola, peçam-nos mais coisas… Condeixa-a-Nova, no ano lectivo de 2008/09
que nós Pais gostamos!” A nossa população-alvo distribuiu-se da seguinte forma:

Tabela 3: Alvos de intervenção.

Escola Famílias Nº alunos da turma

Anobra 3º e 4º ano 12+4=16


Avenal 1º e 3º ano 10+10=20
Condeixa 1º A 20
Condeixa 1º C e 4º D 12+8=20
Condeixa 4º C 21
Eira Pedrinha 1º e 4º ano 8+13=21
Ega 1º e 2º ano 12+6=18
Ega 3º e 4º ano 8+8=16
Sebal 1º e 2º ano 9+10=19
Sebal 3º e 4º ano 9+10=19
Venda da Luisa 3º e 4º ano 6+3=9

Total de Alunos / Famílias 200

3.2. Estrutura do projecto As estratégias usadas para lançamento destes objectivos foram
diferenciadas, de acordo com a opção pedagógica de cada
O projecto e os seus objectivos foram apresentados aos pais professora.
em reunião de escola e o texto em construção era sempre
acompanhado por um pequeno texto informativo, comum a Em duas turmas, as professoras pediram o contributo
todas as escolas, que apresentava algumas directrizes para esta do Formador Residente do PNEP e a partir da análise das
tarefa familiar. características sócio-familiares da turma preparámos “o

107 05
pontapé de saída” para a história que iria ser construída por numa floresta mágica à procura de seus pais …)
aquelas famílias.
Também na Escola do Sebal, na turma do 3º e 4º anos, a história
Na Escola de Eira Pedrinha: “O tempo estava esquisito e o começava assim: “Era uma vez dois polícias trapalhões que
nosso herói sentia-se submerso numa enorme melancolia… não sabiam como prender os ladrões…” (prendiam sempre as
”(Enquanto recordava o seu tempo de criança, resolveu formar pessoas erradas e só se metiam em problemas…)
um clube de futebol com as crianças que brincavam no recreio
da escola que ficava em frente a sua casa) Na Escola de Venda da Luisa: “Era uma vez uma menina que
vivia numa casa muito velhinha…” (… mas tinha uma paixão
Na Escola de Condeixa, na turma do 4º C,: “Passaram depressa tão grande por livros que, por não ter dinheiro para os comprar,
estes últimos anos, na vida do pequeno Jaime. É o seu último resolveu semeá-los…)
dia de aulas…”
Numa outra escola, de uma aldeia onde predominam os pais Depois do mote estar dado a história começou a sua viagem
jovens com baixo nível de expectativas em relação à escola, mas de casa em casa e de família em família sempre acompanhada
que em número significativo estão agora a frequentar os cursos de uma folha que continha as informações necessárias para a
integrados na Iniciativa Novas Oportunidades, a professora continuação do texto, em questão.
optou por falar com uma família que se disponibilizou a começar A verdade é que em cada uma das turmas envolvidas e em cada
a história. um dos alunos, se conseguiu criar uma grande expectativa e
uma enorme ansiedade para que chegasse a sua vez de levar
Na Escola de Anobra: “Há muito, muito, tempo dois guerreiros a história para casa para que a sua família também desse o
enfrentaram um dragão de três cabeças. Um destes guerreiros seu contributo. Mas, o mais importante, para nós é que todos,
seria S. Jorge…” em todas as escolas e em todas as famílias se mostraram
Nas restantes turmas as professoras optaram por propor o entusiastas e cooperantes durante todo o processo.
desafio à turma e juntos fizeram a selecção duma personagem
principal. Depois, alguns deram início à sua caracterização, 3.3. Produto
outros optaram por localizar a acção no tempo…Enfim, foram
usadas diversas estratégias e foram feitas opções pedagógicas Finalmente, no dia 1 de Junho de 2009, à noite, na Biblioteca
diferentes. Municipal de Condeixa-a-Nova, através da apresentação de um
Desta forma, surgiram mais onze motes diferentes que deram pequeno livro que reunia os onze textos construídos editado
origem a histórias completamente distintas. pela Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova que desde o início
apoiou o nosso projecto, mesmo sem ter muita certeza do seu
Na Escola de Avenal a história teve este começo: resultado – tal como nós – demos a conhecer o trabalho final a
“Há muito, muito tempo, quando os teus trisavós ainda eram toda a comunidade.
vivos e, em algum lugar, havia um relógio que falava…” (Era um Porém, o que é realmente relevante é que as famílias
relógio especial companheiro e confidente da sua dona…) responderam positivamente ao desafio e o produto conseguido
foi de uma extrema riqueza. Principalmente, porque ao longo
Na escola de Ega – (nas duas turmas): “Numa bela manhã, a de todo o processo de construção das histórias foram vários
Ritinha acordou com uma sensação estranha…” (Uma, é a os momentos em que os professores se reuniram e reflectiram
história do dia-a-dia de uma menina que frequenta a escola - a sobre o desenrolar deste desafio. Aprendemos imenso.
outra turma uma aventura num dia de escola…) Percebemos que o contributo de um simples parágrafo escrito
em família, numa história colectiva, pode ser revelador de uma
Na Escola do Sebal, na turma do 1º e 2º anos: “Era uma vez maneira de ser e estar em sociedade. Pode inclusive ajudar a
um pónei branco de olhos brilhantes, bem pestanudos, a cauda um desabafo e contribuir para a resolução de um problema
comprida e muito fofa…” (…que viveu grandes aventuras, pessoal ou familiar.

108
Tal como escreveu uma das colegas na sua reflexão “(…) leitura e a escrita para a construção de uma história colectiva.
Quando li a história Uma lição de Vida, título escolhido no final Foi, apenas, um pequeno contributo para a promoção da literacia
pela turma, pela primeira vez, em voz alta, na sala de aula, fiquei familiar porque temos a consciência da sua importância para o
perplexa e comovida com o resultado. Em cada parágrafo sucesso sociocultural e económico do futuro do nosso país.
estava retratada um pedaço de vida de cada família envolvida
na sua produção. Todas tão diferentes e tão reais! (…)”
Por outro lado, um trabalho assim pode revelar, de alguma
forma, a relação que cada família tem com a leitura e com a
escrita. Mas, acima de tudo contribui para a aproximação da
escola à realidade familiar e isso é sempre um dos factores
mais importante. Porque, acima de tudo, nos permite escolher
o melhor caminho pedagógico para mais facilmente responder
às necessidades educativas de cada uma das nossas crianças
e simultaneamente, permite às famílias um sentimento de
inclusão que facilita a sua proximidade e confiança, na escola.

4. Considerações Finais

Ao concluirmos a nossa intervenção, diremos que este Projecto


de Literacia Familiar, “A escrita mensageira entre a Escola
e a Família”, nas escolas do 1º ciclo do ensino básico, do
Agrupamento de Escolas de Condeixa-a-Nova, só foi mesmo uma
realidade porque contou, com o envolvimento e a cooperação
de doze professores que tal como eu acreditaram ser possível,
com a participação efectiva de cerca de 200 famílias do nosso
concelho que foram sem dúvidas as personagens principais,
sem elas nada disto teria existido e, finalmente, com o apoio
incondicional da Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova. Para
todos e a cada interveniente em especial aqui deixamos o nosso
agradecimento pessoal.

Por tudo isto, continuamos a acreditar que é possível construir


uma escola de qualidade onde cada um – enquanto pessoa
e membro de uma comunidade – se sinta verdadeiramente
envolvido, essencial e feliz.

Por um lado, é necessário que a família não se demita das suas


funções aquando da entrada na escola dos seus educando. Por
outro, é necessário que a escola abra efectivamente as portas ao
envolvimento das famílias, cooperando e co-responsabilizando-
as pelo sucesso escolar de cada um dos seus alunos.

Este foi um desafio que permitiu, a estas famílias, alguns


momentos de convívio e descontracção partilhados com a

109 05
Anexo 1

EB1 de Condeixa-a-Nova Família da Turma – 4ºC

Uma lição de VIDA

Passaram depressa estes últimos anos, na vida do pequeno Jaime. É o seu último dia de aulas…
Jaime está muito triste. Os seus pais estão desempregados porque a fábrica onde trabalhavam fechou. A
distância entre a casa e a escola é grande e os seus pais não têm dinheiro para lhe pagar o passe do autocarro e as
outras despesas escolares. Jaime terá de ajudar os pais na agricultura.
Mas, como todas as crianças, Jaime depressa esqueceu a sua tristeza e o problema, que tanto apoquentava a
sua família; até porque, o último dia de aulas anunciava dias de descanso e divertimento na sua aldeia.
Na aldeia do Jaime, para a festa de encerramento do ano escolar, foi convidado um artista local famoso –
Toneca Bimba – para dar um concerto de música, que ao saber da situação deste menino resolveu dar à sua família os
lucros do evento.
Este foi o impulso que faltava na vida do Jaime. Foi com a doação desse concerto, que o Jaime, passou a ter
uma casa decente, um computador, que ele tanto queria, uma playstation para se divertir com os seus amigos. Assim
começava o realizar de alguns dos seus sonhos.
Um dos sonhos que o Jaime gostava de ver realizado era que os seus Pais arranjassem um emprego, o que
veio a acontecer, porque no concerto da aldeia estava um senhor que tinha um centro hípico e que precisava de um
empregado para o ajudar nas tarefas do dia-a-dia.
Jaime, começava a saber o que era ser Feliz. Passados uns meses, sua mãe também arranjou trabalho e as
suas vidas melhoravam. Jaime regressou à escola feliz e contente, pois seus pais já lhe podiam dar tudo o que ele tinha
direito.
Apesar de andar muito satisfeito com a sua actual sorte, não esquecia os tempos difíceis que vivera. Por isso,
na escola, tentava aplicar-se ao máximo, estar com atenção, participar e fazer o seu melhor. Esta atitude não era muito
bem vista por alguns colegas, uma vez que ele, para além se ser “o menino bonito” dos professores, nunca “alinhava”
nas brincadeiras e ainda por cima tinha o descaramento de lhes dar conselhos: “Sejam responsáveis!”; “Aproveitem a
oportunidade que têm!”; “Estudem!”; “A vida dá muitas voltas…” Quem é que ele pensava que era?!
Jaime começava a perceber que as dificuldades por que passara a sua família fizeram com que deixasse de ser
criança. A partir desse dia, prometeu a si mesmo que nunca mais rejeitaria uma brincadeira, um jogo ou um convívio,
desde que isso não implicasse com o bom andamento das aulas e o seu sucesso escolar. Os problemas seriam para os
adultos porque ele não abdicaria da sua infância.
É verdade que, lá no fundo, o Jaime não esquecia as dificuldades por que haviam passado; mas essas memórias
contribuíam especialmente para que desse valor a tudo o que no dia-a-dia ia conquistando e experimentando: as
brincadeiras e traquinices próprias da sua idade; a Amizade dos seus amigos e companheiros de escola; o Amor dos
seus pais e de todos aqueles que, de uma ou de outra forma, iam entrando na sua vida e davam o seu contributo para

110
fazer do Jaime aquilo que, afinal ele mais desejava ser: um Homem bom e de nobre carácter.
Jaime foi crescendo, tornou-se um adolescente com valores muito próprios, gostava e sentia mesmo uma
enorme necessidade de ajudar as pessoas, talvez por essa mesma razão começou a construir o seu futuro em torno de
uma profissão que lhe iria proporcionar a realização pessoal, podendo contribuir para o bem-estar dos outros: decidiu
ser médico.
Esta seria a profissão perfeita para poder pôr em prática os seus desejos e concretizar as suas ambições. O seu
“samaritanismo” era assim mais fácil de aplicar, a medicina proporcionava-o.
Para conseguir tal objectivo, Jaime teria que estudar cada vez mais. A medicina implicaria excelentes notas
para poder ingressar nesse curso. O nosso protagonista está determinado a atingir esta meta. Além disso já tem a sua
escolha feita, deseja cuidar e cuidar de crianças. Ambiciona ser pediatra!
Poder vir a ser pediatra fascinava-o. Mas Jaime não queria ser mais um pediatra que trabalha num hospital
todo equipado, ou que tem um consultório bonito cheio de brinquedos, o seu desejo era bem maior…
Foi então que Jaime decidiu “arregaçar as mangas”…muitos outros voluntários se juntaram a ele e assim
podiam ajudar desde jovens grávidas, crianças desprotegidas e até mesmo aqueles idosos que estavam tão sozinhos.
Jaime ajudou muitas pessoas ao longo dos anos, como costumava dizer aos amigos “Somos Todos uma Grande
FAMÍLIA!...”
E foi com essa família que o Jaime conseguiu abrir um Centro de Apoio a Crianças, Jovens grávidas e Idosos.
Então a população da Vila decidiu dar o nome ao Centro de “Fundação Menino Jaime”.
Sempre preocupado em ajudar os outros, Jaime esqueceu-se de si próprio, de organizar a sua própria vida, de
ter a sua própria família, mas, essa situação iria alterar-se. Na Fundação apareceu uma rapariga, entre as muitas que lá
chegavam, que lhe chamou a atenção; tinha sido abandonada pelo namorado quando lhe disse que estava grávida e os
seus pais, muito conservadores, também não aceitaram o facto e puseram-na fora de casa sem nada…
Mas Jaime, com toda a sua bondade decidiu ajudar a rapariga e acompanhou-a durante a sua gravidez. No
momento em que surgiu o rebento, Jaime abraçou a criança como se fosse seu filho e ajudou a educá-lo.
Jaime estava pela primeira vez apaixonado…
Pois não teria acontecido isso se não fosse essa rapariga que tanto o fez pensar, e por fim, pensando ainda um
pouco mais, decidiu arranjar uma casa, onde pudesse estar junto da sua nova família, que ele tanto gostava.
A rapariga que se chamava Joana, também ficou apaixonada pelo Jaime e começaram a namorar e a criar o
bebé. Alguns anos depois casaram e tiveram um filho, o Joel, ficando assim com dois filhos.
E assim a vida continuou…
Jaime viveu sempre para além da sua morte. Pois, os seus filhos seguiram os seus passos e continuaram a dar
significado à VIDA.

111 05
Anexo 2

Escola de Venda Luisa Família da Turma B – 3º e 4º ano

“A Árvore dos Livros”

Era uma vez uma menina que vivia numa casa muito velhinha. Essa menina chamava-se Daniela, tinha 21 anos,
uns bonitos olhos castanhos, cabelos ruivos, lisos e compridos, era alta e um pouco magra.
Gostava muito de estudar e ainda mais de ler. Lia todos os livros que tinha em sua casa. Leu tanto… tanto…
tanto… que um dia acabaram os livros...não tinha mais livros para ler.
Então, começou a pensar numa maneira de resolver este problema. Pensou… pensou… pensou… e lembrou-
se de começar a cultivar livros.
Tirou da estante o seu livro preferido, pegou nas ferramentas necessárias e foi para o jardim.
Abriu um buraco e semeou-o. Todos os dias, a menina regava o livro que tinha semeado.
Com a chegada da Primavera, começou a nascer da terra uma pequena planta. Dia após dia, a pequena planta
começava a tornar-se numa bela e grande árvore.
Certo dia, como de costume, a menina, pela manhã, foi visitar a sua árvore. Os seus olhos castanhos brilharam
mais do que o Sol, pois a árvore estava cheia de magníficos livros, que nunca tinha visto.
Sem perder mais tempo, a menina, que estava tão encantada com os livros que a árvore lhe tinha dado,
começou a lê-los.
Ao ler um dos livros, algo a fez pensar que se calhar havia muitos mais meninos pobres, com interesse na
leitura e sem livros para ler. Começou, então, a plantar mais livros para assim poder distribuí-los pelos meninos de todo
o Mundo.
Passado algum tempo, depois de ter colhido todos os livros, a Daniela resolveu ir pedir à sua melhor amiga, a
Rita, que a ajudasse a entregar os livros ao maior número de meninos que conseguissem encontrar.
Começaram, logo, pelos da sua aldeia. Ao entregar o primeiro livro, sentiram-se muito contentes. Pois, sentiram
que tinham feito com que alguém ficasse feliz. Apenas com um gesto tão simples, como o de dar, e a felicidade
começava a espalhar-se!
Lá continuaram as duas a entregar livros, até à próxima paragem… Algum tempo, depois, a Daniela sentou-se
numa pedra, cansada de tanto andar e, aí, acabou por adormecer.
Quando acordou, correu a contar à Rita, uma ideia que tinha tido. Ela tinha descoberto que, afinal, os meninos
possuíam a maior riqueza do Mundo, o gosto pela leitura, e elas precisavam continuar a cultivá-lo.
No dia seguinte, a Daniela pensou em fazer algo diferente… E, se pensou, melhor o fez, formou um Clube de
Leitura. Pois, sabia que o clube também iria ajudar todas as pessoas que não sabiam ler.
As duas amigas, escolhiam, todos os dias, uma pequena história e contavam-na para as crianças e idosos.
- Os livros dão-nos muita sabedoria - dizia a Daniela.
Noutro dia, a Daniela descobriu um livro muito interessante. Tratava-se de uma história romântica. Ela pediu

112
à sua amiga Rita que o lesse no Clube de Leitura.
O Clube de Leitura tornou-se num local de encontro de todos os habitantes da aldeia onde ouviam as
histórias e contavam as suas próprias histórias. E foi através desse clube, e das lindas histórias que a Daniela
e a Rita liam, que as pessoas daquela aldeia, aquelas que nunca tinham andado na escola, tiveram uma grande
ideia: pedir às duas amigas que as ensinassem a ler e a escrever. Sem pestanejarem, elas aceitaram o desafio. Era
maravilhosa, a ideia, e iria dar-lhes muito prazer. Pediram, então, a todos os que quisessem aprender, e também a
quem o já sabia fazer, que comparecessem junto à árvore dos livros, todos os dias, depois do almoço. Para espanto
delas, logo da primeira vez, toda a aldeia estava presente!
A aldeia foi crescendo, construíram-se escolas e até universidades. Todos querem estudar lá. Crê-se que
hoje, a aldeia, que entretanto já é uma cidade, é a mais letrada do país, onde o simples acto de ler tornou as pessoas
mais felizes e melhores cidadãos.

113 05
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114
115 05
116
“ A ler vamos...”: um projecto
da Câmara Municipal de Matosinhos

117 05
Joana Cruz1, Catarina Costa, Célia Silva, Micaela Silva,
Patrícia Pinto, Sara Almeida e Tânia Santos
Resumo
A Câmara Municipal de Matosinhos tem vindo a desenvolver um projecto de
intervenção que visa a promoção de competências de literacia emergente como
estratégia primordial de promoção do sucesso escolar. A Educação Pré-escolar é
considerada a etapa fundamental para o início desta intervenção, uma vez que é o
contexto inicial e mais precoce com que as crianças se confrontam antes da entrada
no ensino formal. A ênfase do projecto é focalizada na aprendizagem da leitura e
da escrita, já que este é um domínio transversal e necessário para as restantes
aprendizagens. Neste documento são apresentadas as evidências na investigação,
a metodologia utilizada no projecto, bem como os resultados encontrados no ano
lectivo 2008/09 e as implicações para a prática quotidiana.

1. Introdução experienciadas pelas crianças em idade pré-escolar,


nomeadamente as oportunidades, a quantidade e variedade
A leitura e a escrita são competências fundamentais e transversais de leitura, assim como a exploração da linguagem escrita
a todas as áreas do conhecimento. A proficiência nestes influenciam o desenvolvimento de competências literácitas
domínios é facilitadora do sucesso escolar, desde a entrada na emergentes.
aprendizagem formal (Brandão & Ribeiro, 2009). No entanto, os
desempenhos das crianças portuguesas, no âmbito da leitura e Investigações realizadas nas últimas décadas têm permitido
da escrita, continuam aquém do expectável e desejável (Santos, verificar, relativamente à aprendizagem inicial da leitura e da
Neves, Lima & Carvalho, 2007; Sim-Sim & Viana, 2007). Face ao escrita, que existe uma estreita relação entre o (in)sucesso
panorama nacional e à necessidade de promover precocemente escolar e três vectores específicos: o desenvolvimento da
o sucesso escolar, a Câmara Municipal de Matosinhos iniciou, linguagem oral da criança, mais precisamente no campo lexical e
no ano lectivo 2005/06, um projecto focalizado na promoção de sintáctico; a capacidade que a criança detém para reflectir sobre
competências de literacia emergente, ou seja, de competências o conhecimento da sua língua (consciência fonológica, lexical e
facilitadoras das aprendizagens da leitura e da escrita.  sintáctica) e os conhecimentos sobre o impresso, potenciados
pelo contacto com materiais de leitura e escrita antes mesmo do
A perspectiva da literacia emergente é recente e baseia-se na ensino formal (Fernandes, 2005; Sim-Sim, 2004).
noção de que para dominar a linguagem escrita é necessário
dominar a linguagem oral (Haney & Hill, 2004; Viana, 2002). A consciência fonológica pode ser definida como a capacidade
A literacia emergente engloba o conjunto de conhecimentos, de manipulação consciente dos elementos sonoros das palavras
competências e atitudes que se assumem como precursores (Silva, 2003). Estas competências passam, sobretudo, pela
do desenvolvimento e da aprendizagem da leitura e escrita, identificação, discriminação e manipulação dos sons da fala
abrangendo igualmente os contextos que facilitam esse e permitem que a criança se aproprie com mais facilidade do
desenvolvimento (Whitehurst & Lonigan, 1998). As situações princípio alfabético que rege as actividades de leitura e escrita.
A literatura revela que a consciência fonológica desempenha um
 Câmara Municipal de Matosinhos.
A correspondência relativa a este artigo pode ser endereçada para:
papel importante na aquisição da literacia e na compreensão do
joana.cruz@cm-matosinhos.pt princípio alfabético (Martins, Silva e Lourenço, 2009).

118
No que concerne ao conhecimento lexical e sintáctico, é Básica Integrada/Jardim de Infância, e 21 IPSS, perfazendo
essencial que as crianças desenvolvam o conhecimento da um total de 1167 crianças de 5 anos avaliadas.
língua, a posse de vocabulário e a sua correcta utilização,
inicialmente em termos de discurso oral e, posteriormente, em 2.2. Instrumentos
termos de discurso escrito (Viana, 2002). Estas competências
de linguagem oral parecem ser fundamentais para a evolução No ano lectivo 08/09 foram avaliados os domínios
da representação global das palavras e para a sua representação facilitadores da aprendizagem formal da leitura e da escrita,
segmental (Whitehurst & Lonigan, 1998), pelo que a exposição designadamente a linguagem oral, o processamento
a modelos linguísticos orais e impressos de qualidade deve fonológico e as conceptualizações sobre o impresso. Os
existir desde tenra idade (Lopes, 2004). instrumentos utilizados foram:
- Bateria de provas fonológicas (Silva, 2003);
Os conhecimentos acerca do impresso (reconhecimento de letras, - Avaliação da linguagem oral (Sim-Sim, 2001);
convenções utilizadas, regras de correspondência grafema- - Nome das letras (Silva, 2003);
fonema e fonema-grafema) são outras competências pré-leitoras - Convenções sobre o impresso (Teixeira, 1993);
necessárias ao sucesso posterior na aprendizagem formal da - Conceptualizações sobre a linguagem escrita (Ferreiro &
leitura e da escrita. A este nível surge também a importância Teberosky, 1986).
desempenhada pelas escritas inventadas das crianças em idade
pré-escolar, que potenciam a aquisição e compreensão do 2.3. Procedimentos
princípio alfabético (Dionísio & Pereira, 2006; Fernandes, 2004).
Ao longo do ano lectivo foram efectuados três momentos
Embora apresentadas de modo seccionado, as competências de avaliação. No primeiro momento, de acordo com o
supracitadas desenvolvem-se de um modo interdependente e desempenho das crianças, foram criados dois grupos: i)
inter-relacionado. Deste modo, as experiências de leitura, as um, cujas crianças apresentavam resultados esperado para
oportunidades de escrita e a proficiência na linguagem oral a idade – grupo de controlo; ii) outro, com as crianças que
influenciam-se mutuamente e facilitam o desenvolvimento de necessitavam de intervenção – grupo experimental. Ao
cada uma destas competências (Teale & Sulzby, 1989). longo do ano lectivo o grupo experimental foi alvo de um
programa de promoção da literacia emergente, enquanto
Considerando o exposto, a Câmara Municipal de Matosinhos o grupo de controlo não beneficiou desta intervenção. No
tem vindo a desenvolver uma intervenção com as crianças final do segundo período as crianças do grupo experimental
da educação pré-escolar com o objectivo de promover foram novamente avaliadas. No final do ano lectivo todas
as competências de literacia emergente. De seguida será as crianças (grupo de controlo e grupo experimental)
apresentada a metodologia utilizada, a abrangência do projecto foram avaliadas. Deste modo, foi analisada a evolução do
e os resultados encontrados no ano lectivo 2008/09. desempenho das crianças do grupo experimental através
de três medidas repetidas no tempo e estudado o impacto
2. Método do programa através da comparação em dois momentos
no tempo entre o grupo de controlo e o experimental,
2.1. Participantes controlando os resultados iniciais, na medida em que no
primeiro momento foram criados grupos de acordo com o
O projecto foi implementado em todo o concelho de seu desempenho e, como tal, não eram equivalentes antes
Matosinhos, não só na rede pública de pré-escolar, como da introdução da variável independente.
também nas várias Instituição Particular Solidariedade Social
(IPSS) existentes, contemplando todas as crianças no último 2.4. Intervenção
ano da educação pré-escolar. Desta forma, colaboraram com
o projecto 10 Agrupamentos Verticais de Escolas, uma Escola Foram seleccionadas algumas obras recomendadas pelo

119 05
Plano Nacional de Leitura e pela Casa da Leitura, bem como papel das educadoras como fundamental no processo de
dois suportes escritos de natureza informativa (uma notícia desenvolvimento das competências pré-leitoras e prevendo
e uma receita de culinária). Com base no Programa “Melhor o efeito multiplicador que uma intervenção conjunta teria na
Falar para Melhor Ler” (Viana, 2002), adaptaram-se esses promoção dessas capacidades, foi organizada, em colaboração
textos e foram criadas sessões de intervenção sistematizadas com a Universidade do Minho, uma acção de formação creditada
com enfoque nos diferentes domínios pré-leitores, com pelo Conselho Científico-Pedagógico para a Formação Contínua
uma estrutura que englobava: i) leitura de uma história; ii) para as educadoras. A acção, cujo objectivo incidiu nos processos
exploração do texto; iii) reflexão morfo-sintática; iv) treino da de literacia emergente no Jardim-de-Infância, contou com a
consciência fonológica; v) escrita inventada. Esta intervenção participação de 55 educadoras, distribuídas por duas edições.
teve um carácter individualizado (grupos com cinco crianças),
estruturado e semanal. 3. Resultados

Paralelamente à intervenção directa com as crianças foram No primeiro momento de avaliação foram criados dois grupos
igualmente realizadas reuniões trimestrais com os Encarregados de crianças consoante o seu desempenho (Figura 1), pelo
de Educação, nas quais se pretendeu a partilha de experiências que com as 478 que apresentavam baixos desempenhos para
no âmbito da promoção de competências de literacia emergente, sua idade, foi iniciada uma intervenção semanal focalizada na
bem como o treino parental neste domínio. Concebendo o promoção de competências pré-leitoras.

Figura 1: Desempenho das crianças sinalizadas vs crianças não sinalizadas no pré-teste.

60

Crianças Sinalizadas
40

Crianças não Sinalizadas


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120
3.1. Grupo alvo de intervenção

No que se refere à evolução das crianças que foram submetidas ao programa de promoção de competências de literacia emergente,
efectuou-se uma análise de medidas repetidas no tempo (com três momentos de avaliação) e verificou-se uma melhoria significativa
do desempenho de todas as crianças ao longo do ano lectivo (Figura 2).

Figura 2: Evolução do desempenho das crianças ao longo do tempo.

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50

40 1º Momemto

30

20 2º Momento

10

0 3º Momento
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Foi ainda avaliado o impacto da intervenção para cada uma das competências pré-leitoras, verificando-se um impacto estatisticamente
significativo para todas as competências de literacia emergente (cf. Tabela 1).

Tabela 1: Magnitude do efeito para cada competência pré-leitora.

P Magnitude do Efeito
Nomeação F (2; 345) = 5.62, p < .001 .765
Reflexão F (2; 344) = 2.30, p < .001 .572
Classificação Sílaba F (2; 345) = 1.62, p < .001 .484
Classificação Fonema F (2; 345) = 1.10, p < .001 .390
Análise Silábica F (2; 345) = 2.04, p < .001 .542
Supressão F (2; 345) = 3.56, p < .001 .673
Compreensão F (2; 345) = 4.53, p < .001 .724
Reconstrução F (2; 345) = 1.08, p < .001 .385
Conceitos F (2; 345) = 3.10, p < .001 .642
Letras F (2; 345) = 1.78, p < .001 .508
Escrita Inventada F (2; 345) = 3.07, p < .001 .640

121 05
4. Impacto da intervenção: comparação entre grupo experimental e de controlo

No que se refere à comparação da intervenção entre o grupo experimental e o grupo que não teve intervenção, efectuou-se uma
análise de co-variância, no pós-teste, na medida em que os resultados iniciais eram distintos para os dois grupos, devendo, por
isso, ser controlados. Verificou-se que (Tabela 2): i) na maioria das competências deixaram de se verificar diferenças em termos
do desempenho das crianças, ou seja, as crianças do grupo com intervenção apresentam no final do ano lectivo um desempenho
similar às crianças que não precisavam de intervenção; ii) nas competências de Nomeação, Compreensão e Supressão da Sílaba
Inicial as crianças do grupo com intervenção apresentaram uma maior evolução do que as que não foram alvo de intervenção;
iii) apenas no reconhecimento de letras, o grupo sem intervenção apresentou uma maior evolução, possivelmente explicada pela
acção do contexto familiar na promoção desta dimensão.

Tabela 2: Análise da co-variância para cada competência.

Dimensão M DP Mestimada Sig.

Nomeação G0 54.30 5.86 49.65


.01
G1 49.20 8.73 51.46
Reflexão G0 27.62 7.67 23.58
ns
G1 21.89 8.03 23.86
Cla. Sílaba G0 7.16 4.12 6.16
ns
G1 5.64 4.07 6.13
Cla. Fonema G0 4.66 3.79 4.07
ns
G1 3.23 2.72 3.52
Análise silábica G0 12.71 1.66 12.45
ns
G1 12.56 1.50 12.71
Supressão G0 7.98 5.08 7.17 .01
G1 8.11 5.20 8.51
Compreensão G0 22.44 3.82 19.17 .01
G1 18.84 5.19 21.43
Reconstrução G0 9.38 .67 9.21 ns
G1 9.04 1.38 9.12
Conceitos impresso G0 19.82 4.60 17.24 ns
G1 15.57 5.43 16.83

122
5. Discussão e conclusão

A implementação do projecto descrito anteriormente parece demonstrar que as crianças envolvidas melhoram significativamente
o seu desempenho. Comparando os resultados encontrados com a implementação do Programa “Melhor Falar para Melhor Ler”
(Viana, 2002) assiste-se igualmente à existência de diferenças estatisticamente significativas entre as crianças que foram sujeitas
à intervenção e as que não participaram em qualquer programa.

O projecto descrito, à semelhança de outras intervenções/programas de promoção de competências de literacia emergente,


parece ter um efeito importante no desenvolvimento literácito das crianças abrangidas. Portanto, a política educativa adoptada
pela autarquia parece constituir uma boa aposta na promoção do sucesso escolar, englobando diversos agentes educativos que,
articulando as suas acções, contribuem para uma acção coordenada, sustentável e adaptada às necessidades das crianças.
Ao analisar o design de intervenção podem ser discutidas diversas ameaças à validade do projecto. No que refere à validade interna
foi controlada a mortalidade experimental através do alargamento do projecto a todos os Agrupamentos Verticais de Escolas e
IPSS do concelho, no sentido de minimizar o desaparecimento de crianças ao longo do tempo. Ocorreu, no entanto, uma selecção
diferencial das crianças na constituição dos grupos experimental e de controlo, uma vez que o objectivo do programa visava a
intervenção com crianças em risco. Para salvaguardar esta opção metodológica foram analisados os resultados através da análise
da co-variância, sendo controlado o desempenho no primeiro momento de avaliação.

No que concerne à validade externa, procurou controlar-se a validade de tratamento, através da aplicação da variável independente
de igual modo pelas nove psicólogas envolvidas no projecto, o que implicou a realização de reuniões periódicas de monitorização
da implementação. Uma vez que se trata de uma intervenção alargada a todo o concelho de Matosinhos, verifica-se que ocorreu
uma especificidade nos participantes, bem como um enviesamento na selecção das crianças, ainda que o número de sujeitos
abrangidos seja abrangente. No entanto, estas opções levantam problemas de generalização dos resultados a outras populações.
Finalmente, houve uma preocupação de controlo da validade das conclusões estatísticas do programa, através do cálculo da
significância estatística para cada teste utilizado, bem como a análise da magnitude do efeito. Considerando estes parâmetros,
verificou-se que, no final do ano lectivo, deixaram de se verificar diferenças significativas em termos do desempenho das crianças,
ou seja, as crianças do grupo com intervenção apresentavam antes da entrada no 1º ciclo, um desempenho similar às crianças
que não precisaram inicialmente de intervenção. A magnitude do efeito para cada dimensão avaliada foi considerada moderada, na
medida em que os resultados variaram entre .39 e .77 (Cohen, 1988).

De um modo geral, o projecto de intervenção “A Ler Vamos…” permite que haja uma estimulação atempada no âmbito da aquisição
de competências de literacia emergente por parte das crianças, que facilitem o sucesso escolar.
Uma questão que merece uma atenção especial relaciona-se com a influência do projecto na facilitação das aprendizagens
formais da leitura e escrita. A investigação tem demonstrado que a implementação de programas específicos de promoção de
competências de literacia emergente desde a entrada na educação pré-escolar promove a aquisição de competências facilitadoras
do sucesso escolar em momentos posteriores de aprendizagem (Bishop & League, 2006; Fernandes, 2004; Haney & Hill, 2004;
Martins & Farinha, 2006; Whitehurst & Lonigan, 1998). Paralelamente, torna-se essencial conhecer as variáveis preditoras do
sucesso na aprendizagem da leitura e escrita, pelo que estes constituirão novos desafios da Câmara Municipal de Matosinhos:
identificar competências preditoras e analisar o impacto do programa implementado na educação pré-escolar ao longo do 1º ciclo
de escolaridade.

Concluindo, a autarquia pretende continuar a apostar na promoção do sucesso escolar, incidindo a intervenção na leitura e na
escrita e acompanhando as crianças desde a educação pré-escolar até ao final do 1º ciclo, auxiliando igualmente a transição para
o 2º ciclo. A ler vamos…

123 05
Anexo: Participantes no Projecto Centro Social Leça Balio Gondivai
Centro Social Leça Balio Manso
Divisão de Educação e Formação – Câmara Municipal de Matosinhos Centro Social Leça Balio Recarei
Centro Social Padre Ramos
Vereador da Divisão de Educação e Formação Centro Social e Paroquial do Padrão da Légua – “Infantário Encanto”
Prof. António Correia Pinto (antonio.correia.pinto@cm-matosinhos.pt) Centro Social e Paroquial Padre Ângelo Ferreira Pinto
Cooperativa de Habitação Económica “Aldeia Nova”
Director do Departamento de Intervenção Económica e Social Irmandade Santa Casa Misericórdia Bom Jesus de Matosinhos –
Eng. Manuel Orvalho (manuel.orvalho@cm-matosinhos.pt) Creche e Jardim-de-Infância da Biquinha
Irmandade Santa Casa Misericórdia Bom Jesus de Matosinhos
Chefe da Divisão de Educação e Formação – Centro Infantil
Dr.ª Fátima Pombal (fatima.pombal@cm-matosinhos.pt) Irmandade Santa Casa Misericórdia Bom Jesus de Matosinhos
– Paraíso
Jardim-de-infância Santa Cecília
Técnicas da Divisão de Educação e Formação – Projecto IP Jardim-escola João de Deus
O Lar do Comércio
Joana Cruz (joana.cruz@cm-matosinhos.pt) Solinorte
Patrícia Pinto (patrícia.pinto@cm-matosinhos.pt)
Marta Almeida (marta.reis@cm-matosinhos.pt)
Liliana Monteiro (liliana.monteiro@cm-matosinhos.pt)
Ana Macedo (ip.cmmatosinhos@gmail.com)
Cristiana Ferreira (ip.cmmatosinhos@gmail.com)
Elisa Lopes (ip.cmmatosinhos@gmail.com)
Patrícia Constante (ip.cmmatosinhos@gmail.com)
Rita Silva (ip.cmmatosinhos@gmail.com)

Consultadoria

Iolanda da Silva Ribeiro, CIPSI- Universidade do Minho


iolanda@iep.uminho.pt

Agrupamentos e IPSS’s participantes

Agrupamento Vertical de Escolas de S. Mamede de Infesta


Agrupamento Vertical de Escolas de Perafita
Agrupamento Vertical de Escolas de Custóias
Agrupamento Vertical de Escolas de Leça do Balio
Agrupamento Vertical de Escolas de Leça da Palmeira/Santa Cruz do Bispo
Agrupamento Vertical de Escolas de Lavra
Agrupamento Vertical de Escolas de Matosinhos
Agrupamento Vertical de Escolas de Matosinhos Sul
Agrupamento Vertical de Escolas da Senhora da Hora
Agrupamento Vertical de Escolas de Irmãos Passos
Escola Básica Integrada da Barranha
Associação Baptista Ágape
AMAS – Associação Mamedense de Apoio Social
ASDG – Associação Social e de Desenvolvimento de Guifões
ASSUS – Associação de Solidariedade Social da Urbanização do Seixo
Casa do Povo Santa Cruz Bispo
Centro Cultural de Solidariedade Social Guifões
Centro de Infância, Velhice e Acção Social da S. Hora
Centro Infantil Cruz de Pau
Centro Infantil de S. Mamede de Infesta

124
Bibliografia

- Bishop, A. & League, M. (2006). Identifying a multivariate screening model to predict reading difficulties at the onset of kindergarten:
A longitudinal analysis. Learning Disability Quarterly, 29, 235-252.
- Brandão, S. & Ribeiro, I. (2009). Promoção da compreensão leitora: avaliação dos resultados de um programa. Actas do X
Congresso Internacional Galego-Português de Psicopedagogia, 3376-3390. Braga: Universidade do Minho.
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- Dionísio, M. & Pereira, I. (2006). A educação pré-escolar em Portugal. Concepções oficiais, investigação e práticas. Perspectiva,
24 (2), 597-622.
- Fernandes, P. P. (2004). Literacia Emergente. In J. Lopes, Velásquez, P. P. Fernandez, & Bártolo. Aprendizagem, ensino e dificuldades
da leitura. Coimbra: Quarteto.
- Fernandes, P. P. (2005). Concepções e práticas de literacia emergente em contexto de Jardim de Infância. Tese de Doutoramento.
Braga: Universidade do Minho
- Ferreiro, E. & Teberosky, A. (1984). Psicogénese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas.
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Child Development and Care, 174 (3), 215-228.
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dificuldades da leitura. Coimbra: Quarteto.
- Martins, M. & Farinha, S. (2006). Relação entre os conhecimentos iniciais sobre linguagem escrita e os resultados em leitura
no final do 1º ano de escolaridade. Livro de Actas da XI Conferência Internacional de Avaliação Psicológica: Formas e Contextos
(pp.1051-1060). Psiquilíbrios Edições.
- Martins, A. M., Silva, C. e Lourenço, C. (2009). O impacto de programas de escrita na evolução das escritas inventadas em
crianças de idade pré-escolar. Actas do X Congresso Internacional Galego-Português de Psicopedagogia, 3164-3176. Braga:
Universidade do Minho.
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125 05
126
PARTE 3

O projecto de escolarização para


os filhos e a literacia familiar:
contexto e práticas

127 05
128
La formation entendue comme processus
construit dans l’histoire d’une vie

129 05
Pierre Dominicé1

Resumo
La formation a toujours sa part de singularité. Elle s’inscrit dans une construction
biographique, Les dynamiques d’apprentissage, quels que soient le contexte
social et le cadre d’enseignement, correspondent à des processus principalement
individuels. Les auteurs travaillant sur l’éducation des adultes ont ainsi toujours
insisté sur la part d’autoformation ainsi que sur l’impact des dimensions informelles
de l’apprentissage. Il est donc important que l’apprenant adulte ait conscience
de sa manière propre d’apprendre, qu’il sache intégrer le temps d’apprentissage
dans l’organisation sa vie. Sans minimiser le rôle des acquis du passé scolaire, la
clarification du rapport au savoir caractérisant la vie adulte constitue un levier qui
va fortement faciliter l’apprentissage, recommandé de nos jours, tout au long de la vie.

Il y a une trentaine d’années, lors de ma première visite au les situations et les personnes à partir desquelles ils avaient
Portugal dans le milieu de l’éducation des adultes, un petit appris ce qu’ils savaient. Sachant que la formation a toujours
avion m’a conduit, avec une délégation du Conseil de l’Europe, sa part de singularité, je me suis constamment interrogé sur les
à Braganza. Nous avons atterri sur un aéroport qui finissait origines biographiques des positions intellectuelles tenues par
à peine d’être construit, le taux d’analphabétisme était élevé, chacun de mes interlocuteurs. Les diplômes qu’ils ont obtenus
des coopératives se créaient, le tourisme rural démarrait. Le ne signifient pas que leurs connaissances soient identiques. En
Portugal a connu depuis lors un développement considérable. raison de différences découlant de leur âge, de leur insertion
La vitalité du projet éducatif qui vous réunit en fournit un professionnelle et de leur contexte socio-économique leurs
signe évident. D’emblée je tiens à vous remercier de m’avoir parcours exercent une influence déterminante sur le rapport
invité à participer à votre réflexion. C’est sans doute à travers qu’ils entretiennent avec le savoir. Quelles que soient les
ce genre de rencontre qui rassemble des acteurs engagés caractéristiques de leurs curriculum vitae, la construction de
dans le mouvement de l’action éducative, auprès des adultes leur biographie éducative découle de dynamiques individuelles
notamment, que la réflexion sur les processus de formation qui donnent forme à ce qu’ils sont et pensent. La formation
progresse et que l’Europe se dessine.  est donc bien le produit singulier d’un parcours individuel.
Telle est la difficulté majeure à laquelle tout formateur est
Les quelques idées et références que je présente sont destinées confronté. Il doit travailler en groupe ou enseigner à un public
à contribuer à votre débat. Mes recherches sur l’histoire de vie plus ou moins large tout en sachant que ses étudiants, comme
constituent l’éclairage à partir duquel je m’exprime, en sachant ses interlocuteurs de manière générale, vont décoder ce qu’il
par ailleurs que plus de trente années de pratique dans le énonce à partir de présupposés ou d’attentes propres à chacun.
domaine de la formation des adultes nourrissent les positions Le discours adressé à tous, charpenté sur des principes
théoriques que je présente. Pendant plus de deux décennies, didactiques, est reçu de manière différenciée. Les résultats
j’ai proposé aux étudiants de l’un de mes enseignements obtenus lors de contrôles instituionnels ne restituent qu’une
d’élaborer un récit biographique sur leur parcours éducatif part générale de ce qui est appris. L’essentiel s’inscrit dans
en mettant en évidence les expériences, les connaissances, un processus que les récits de « biographie éducative » m’ont
donné l’occasion d’approcher. Telle est la raison pour laquelle
 Universidade de Genebra, Suiça. je privilégie l’histoire personnelle. Il ne s’agit nullement de

130
céder à un courant de pensée largement inspiré de l’avancée ont développé des aptitudes et qui les aident à se lancer dans
de la société libérale qui aboutit à ce que les sociologues l’inconnu de connaissances nouvelles. En d’autres termes,
nomment « la société des individus », mais de reconnaître que contrairement à des représentations erronées, l’apprenant
l’apprentissage de savoirs formels qui a lieu en groupe relève de adulte n’est pas plus autonome ou capable de se prendre en
dynamiques d’appropriation, - je dirais même des dynamiques charge dans le cadre de l’enseignement que le jeune en situation
de sens -, propres à l’apprenant. Les logiques d’enseignement scolaire. Il présente, à propos de l’apprentissage, une fragilité
et celles d’apprentissage ne sont pas les mêmes. C’est aussi certaine qui peut même comporter des sentiments de honte.
une des raisons pour lesquelles, en matière d’éducation des Ce phénomène a lieu à plus forte raison lorsque sa scolarité
adultes, les pionniers de ce domaine ont toujours insisté est limitée et, surtout, lorsqu’il répond aux caractéristiques
sur la part d’autoformation du sujet apprenant. Certains ont d’analphabète. Dans la « société de la connaissance », la
même présenté à son origine la formation des adultes comme valorisation du parcours scolaire est considérable et entraîne
une autoformation assistée. Cette perspective comporte des une sorte de commande à apprendre qui vient renforcer les
dimensions interculturelles frappantes. J’ai pu le constater en difficultés éprouvées, voire les échecs obtenus dans le passé.
Chine, pays dans lequel la norme sociale est suivie à la lettre ou Il est vrai aussi que les exigences cognitives se sont renforcées
en Afrique, région dans laquelle la référence communautaire et dans de nombreux secteurs de l’emploi.
souvent familiale est toujours première. Il en résulte une difficulté
à accepter la part du sujet que l’apprenant, engagé dans une Dans une recherche portant sur le bagage de connaissances
lecture biographique de son parcours, peine à reconnaître. Le requises pour l’entrée à l’université pour des apprenants ne
récit que j’ai pratiqué dans ces deux contextes a alors un « effet disposant pas de diplôme final de l’enseignement secondaire,
sujet », c’est-à-dire que l’apprenant prend conscience, dans la nous avons essayé de préciser comment les apprenants
démarche biographique, que ce qu’il sait est la résultante de adultes parvenaient à se mettre à niveau et quelles étaient les
son parcours davantage que le produit des certifications qu’il compétences mobilisées pour répondre aux exigences des
a obtenues. A Genève, dans une mouvance scolaire marquée programmes. Ce qui s’est révélé frappant, c’est ce que nous
par l’effort d’un meilleur accès à l’enseignement supérieur, avons appelé « la compétence à vivre », en d’autres termes
j’ai pu constater parfois que le détachement avec son milieu la capacité d’organiser sa vie comme apprenant confronté à
d’origine devenait trop fort à tel point que l’apprenant refusait des échéances de travaux à rendre ou d’examens à réussir. Il
les voies professionnelles auxquelles ses succès scolaires ne s’agissait pas tellement de puiser dans les connaissances
lui permettaient d’accéder. Le cas de cette jeune femme acquises précédemment que de savoir distribuer son temps
portugaise m’a particulièrement frappé. Excellente étudiante, pour y inclure l’exigence d’apprentissage de connaissances
elle a finalement choisi de devenir enseignante dans les degrés nouvelles. Ce constat met en évidence l’importance de
primaires pour que ses parents comprennent à quelle activité l’accompagnement et, de manière générale, de la socialisation
reconnue socialement la conduisaient ses études. de l’apprenant et non pas uniquement de la didactique. L’adulte
qui reprend des études ou se lance dans une démarche
Ce constat que tout apprenant a une histoire qui influence comportant des apprentissages formels nouveaux a besoin
très fortement son rapport au savoir m’a conduit à privilégier autant d’encouragements personnalisés que de soutiens
ce que les américains nomment « l’empowerement » du sujet intellectuels lui permettant d’identifier sa manière ou son style
apprenant. Le cursus scolaire a laissé des traces, souvent d’apprendre.
des appréhensions, voire des peurs, qui se réactivent dans la
phase de vie adulte et viennent perturber l’apprentissage. Le Dans une société dans laquelle le marché de l’emploi est devenu
souvenir de l’école, lorsqu’il s’agit d’apprentissage, est souvent plus compétitif et la soumission à la norme davantage prise en
marquant. Il y a, comme je l’ai écrit au terme d’une recherche, compte dans la sélection, il est vrai que ces comportements
une « compétence à apprendre » qui a son origine dans la évoluent. La difficulté d’assumer son autonomie est remplacée
partie scolaire de la biographie. Les matières appréciées des par le souci de répondre adéquatement aux normes attendues,
apprenants adultes sont fréquemment celles pour lesquelles ils d’avoir des chances d’être retenu pour un emploi qui se fait rare et

131 05
qui devient de toute manière sélectif. J’ai observé ce changement forts. Des instances internationales comme l’OCDE ou l’Union
d’attitude parmi les étudiants plus jeunes depuis quelques Européenne recommandent de se former tout au long de la vie.
années. L’appétit d’apprendre diminue. En revanche le souci Essayons, nous les formateurs, de ne pas transformer cette
utilitaire d’obtention des diplômes augmente. Sous l’impulsion injonction en obligation. Sachons que les adultes se forment
des accords de Bologne, la cumulation des certifications est malgré comme avec nous. La formation découle de la vie et de
parfois même recherchée comme si ces diplômes assuraient la réflexion que les événements marquants suscitent chez ceux
davantage de chance d’accéder à l’emploi ou au maintien d’un qui les vivent. Comme je l’ai écrit dans mon ouvrage publié aux
poste de travail. Le contexte socio-économique portugais a sans Atats-Unis et portant le titre de « Learning from Our Lives »,
doute ses caractéristiques propres, mais, de manière générale, chacune de nos vies est source d’apprentissage. Pour se former
l’éducation des adultes est prise aujourd’hui dans un circuit de encore faut-il être attentif aux changements qui se produisent
rendement de la formation continue qui a tendance, à mon avis, tant dans l’environnement que dans sa vie. Les temps plus
à disqualifier l’expérience et à donner l’illusion d’une primauté formels d’apprentissage doivent devenir l’occasion de donner
de l’apprentissage formel. sens à ce qui se passe dans l’existence, en approfondissant les
moments vécus significatifs comme invitation à apprendre. Il
Revenons sur la portée de l’emprise biographique. Quels que y a des lieux et des interlocuteurs privilégiés pour cela. Nous,
soient les justificatifs liés à ce retour vers une conformité de formateurs, pouvons proposer des ressources facilitant ce
l’apprentissage, vu notamment la place prise par le chômage, travail d’apprentissage personnel tout au long de la vie au lieu
et tout en tenant compte de la nécessaire articulation entre de nous complaire dans des programmes qui font croire à ceux
certification et emploi, les tactiques personnelles restent qui apprennent que nous savons pour eux ce qu’ils doivent
centrales. La part du sujet demeure non négligeable. Quelles que apprendre !
soient les conditions dans lesquelles se déroule sa vie, chacun
s’efforce de découvrir des issues, de faire face à l’adversité, Vous m’avez donné la possibilité de profiter de votre réflexion
de se réjouir de moments à vivre. Le récit de vie, selon mon inscrite dans des moments conviviaux. Je vous en remercie
expérience, vient donner une consistance à ce tâtonnement vivement.
personnel. La narration, comme l’affirme le philosophe Paul
Ricoeur, sert de levier à la prise de conscience de son identité.
Ricoeur parle en effet fréquemment d’« identité narrative ».
Du point de vue de l’éducation des adultes, il importe de sortir
les apprenants du silence concernant les voies qu’ils utilisent
dans leur rapport à la connaissance, les pistes dans lequel
ils se démènent pour avancer là où ils veulent aller. Le récit
qui est l’occasion de mettre en forme ces errances participe
d’un mouvement d’émancipation et d’ « empowerement » de
l’apprenant. Celui-ci parvient, grâce à la narration, à solidifier
ce qu’il est et ce qu’il fait, à sortir de normes extérieures pour
découvrir ses propres repères. Cette perspective concerne tout
apprenant et pas seulement les plus diplômés d’entre eux.
Comme je l’ai dit, la « compétence à vivre » est ici première.
Se faire confiance n’est pas le propre des savants. C’est une
condition de l’apprentissage qu’il s’agisse d’alphabétisation ou
d’acquisition de toute connaissance nouvelle.

Il importe de comprendre que l’apprentissage adulte s’inscrit


dans le processus de la vie, avec ses aléas et ses moments

132
Bibliografia

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- Dominicé, P. (2008). La santé en tant que dimension de la formation: du récit de vie de l’apprenant au récit du patient. In Delory-
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- Dominicé, P. , Jacquemet S. (2009). Formation et Santé (note de synthèse), Revue Savoirs 19.

133 05
134
Adultos pouco escolarizados e literacia.
Um olhar sobre a literacia em contexto familiar

135 05
Patrícia Ávila1

Resumo
Nas sociedades contemporâneas, a literacia constitui uma competência-chave, ou
fundamental, para a vida de todos os cidadãos. Os materiais escritos, nos seus
múltiplos suportes, estão presentes em diversas situações e contextos do dia-a-
dia e a capacidade de os utilizar e interpretar é hoje um requisito básico na vida
pessoal, profissional ou social de todos os indivíduos. Isso mesmo tem vindo
a ser afirmado e demonstrado num conjunto amplo de estudos. Com diferentes
enfoques teóricos, metodológicos e empíricos, a centralidade da literacia nas
sociedades contemporâneas têm vindo a ser demonstrada, compreendendo-
se cada vez melhor o modo como a leitura e a escrita constituem ferramentas
fundamentais no quotidiano de todos os sujeitos.

No âmbito desta comunicação procurar-se-á, num primeiro momento, apresentar


alguns elementos de caracterização do perfil de literacia dos adultos em Portugal,
destacando, por um lado, a relação entre literacia e escolaridade e, por outro
lado, o carácter processual e dinâmico da literacia e a importância das práticas
quotidianas de contacto com materiais escritos. Num segundo momento, serão
sistematizados alguns resultados de um estudo qualitativo realizado junto de
adultos pouco escolarizados recentemente envolvidos em processos de educação
e formação; este estudo permitiu perceber a centralidade dos contextos de vida
e das redes de relações, em particular as familiares, no desenvolvimento das
competências de literacia2.

1. Literacia, escolaridade e vida quotidiana resul- contemporâneas, nas quais a informação e o conhecimento,
tados de estudos extensivos de avaliação de codificados através da escrita, estão presentes nas mais
competências  diversas esferas da vida.
A participação de Portugal no primeiro estudo internacional de
O conceito de literacia, tal como tem vindo na ser utilizado literacia (concluído em 2000) permitiu estabelecer o perfil de
em estudos extensivos, nacionais e internacionais, remete literacia da população, comparando-o com o de outros países
precisamente para a utilização de informação escrita para participantes nessa pesquisa (OECD e Statistics Canada, 2000)3.Os
responder às necessidades da vida nas sociedades actuais resultados mostraram que, em Portugal, a grande maioria dos
(Benavente, Rosa et al. 1996; OECD e Statistics Canada 2000; adultos, entre 70 a 80%, se situava nos níveis de literacia mais
Costa 2003; Ávila 2008). No âmbito destes trabalhos, a literacia baixos (níveis 1 e 2), nas três escalas então construídas (literacia
é considerada uma competência-chave, ou fundamental, para em prosa, documental e quantitativa) (Ávila 2008: 166).
lidar com grande parte das exigências e desafios das sociedades
3 Embora já com alguns anos, estes dados são, até à data, os únicos disponíveis
 ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, Departamento de Métodos de Pesquisa para comparar, a nível internacional, o perfil de literacia dos adultos portugueses.
Social da Escola de Sociologia e Políticas Públicas, e CIES, ISCTE-IUL. Está em curso um novo programa internacional neste domínio de investigação,
promovido pela OCDE (o PIAAC – Programme for the International Assessment
2 Este texto retoma os resultados de uma investigação mais alargada, os quais of Adult Competencies), no qual Portugal participa, juntamente com outros 26
se encontram publicados em Ávila, 2008. países, prevendo-se que os resultados sejam publicados em 2013.

136
Figura 1: Competências de literacia (pontuações médias) segundo a escolaridade.

 Prosa

 Documental

• Quantitativa

315


300

• 
285

280


270 

255
Médias

240

225

210

195 •

180

165

150
Até B2 B3 Secundário Superior

Fonte: IALS, 1998, Base de dados Portugal.

A exploração dos resultados alcançados neste estudo permitiu apurados no referido estudo, a maioria dos indivíduos com o
clarificar alguns elementos fundamentais para análise da Básico 3 completo situa-se no nível 2 de literacia (51%), mas
literacia. Um deles remete para a relação entre literacia e cerca de 12% estão abaixo desse nível, enquanto 32% estão
escolaridade e pode ser visualizado na figura 1. Não sendo no nível 3 e quase 6% estão no nível 4/5. Mesmo no ensino
uma relação linear perfeita, a intensidade da relação entre os superior observa-se um padrão de distribuição caracterizado
dois indicadores é bastante forte: à medida que aumenta a pela diversidade: embora seja neste grau de ensino que se
escolaridade, aumentam também regularmente os níveis médios observa uma maior percentagem de indivíduos nos níveis 4/5
de competências de literacia (nas três escalas). Clarifica-se, (27%), a maioria (54%) situa-se no nível 3 e quase 19% estão
assim, a importância (esperada) da escola enquanto principal mesmo abaixo desse nível.
contexto de aquisição das competências de literacia.

Porém, quando a leitura da relação entre os dois indicadores


é feita tomando como referência a distribuição dos níveis
de literacia em cada nível de escolaridade (Figura 2) torna-
se evidente que num mesmo grau de escolaridade podem
encontrar-se indivíduos com perfis de literacia muito
diferenciados. Por exemplo, em Portugal, segundo os dados

137 05
Figura 2: Níveis de literacia (prosa) segundo a escolaridade.

100% 5,7 5,7 14,4 27,2 Nivel 4


24,1 32,0

52,7 Nivel 3
80%

54,2
Nivel 2
70,1

60% 50,7
Nivel 1

40%

28,9

20%
15,4

11,6

4,0 3,3
0%
Até B2 B3 Secundário Superior

Fonte: IALS, 1998, Base de dados Portugal.

O desfasamento entre escolaridade e competências de literacia estudos internacionais de avaliação das competências de
pode ter lugar devido a um alargado e complexo conjunto de literacia. As capacidades de processamento de informação
factores. Podem inventariar-se factores que remetem, em termos estão ancoradas em práticas quotidianas, sem as quais a sua
gerais, para diferenças ao nível dos contextos de aquisição das actualização e desenvolvimento não são possíveis. Ou seja,
competências (sobretudo para o contexto escolar) e outros que nas sociedades contemporâneas a literacia constitui uma
remetem para a utilização dessas mesmas competências ao competência fundamental que se desenvolve e actualiza através
longo da vida, em vários contextos. É sobre este último aspecto da prática. Essas práticas têm, ou não, lugar nos diferentes
que incide, em grande parte, a reflexão a aqui se apresenta, pois contextos de vida dos indivíduos os quais são, em sim mesmos,
pretende-se mostrar que, uma vez adquiridas, as competências entendidos enquanto variáveis decisivas para o entendimento
de literacia não são estáticas: podem desenvolver-se, mas desses mesmos processos.
também podem regredir, para tal contribuindo a utilização que
Um conjunto de análises estatísticas, incidindo sobre os
delas for feita no dia-a-dia.
dados de Portugal obtidos no estudo internacional de literacia,
O carácter processual e dinâmico das competências em geral, permitem de alguma forma evidenciar, empiricamente, aquilo
e da literacia em particular, tem sido destacado nos já referidos que acabou de ser dito (Quadro 1).

138
O desfasamento entre escolaridade e competências de literacia estudos internacionais de avaliação das competências de
pode ter lugar devido a um alargado e complexo conjunto de literacia. As capacidades de processamento de informação
factores. Podem inventariar-se factores que remetem, em termos estão ancoradas em práticas quotidianas, sem as quais a sua
gerais, para diferenças ao nível dos contextos de aquisição das actualização e desenvolvimento não são possíveis. Ou seja,
competências (sobretudo para o contexto escolar) e outros que nas sociedades contemporâneas a literacia constitui uma
remetem para a utilização dessas mesmas competências ao competência fundamental que se desenvolve e actualiza através
longo da vida, em vários contextos. É sobre este último aspecto da prática. Essas práticas têm, ou não, lugar nos diferentes
que incide, em grande parte, a reflexão a aqui se apresenta, pois contextos de vida dos indivíduos os quais são, em sim mesmos,
pretende-se mostrar que, uma vez adquiridas, as competências entendidos enquanto variáveis decisivas para o entendimento
de literacia não são estáticas: podem desenvolver-se, mas desses mesmos processos.
também podem regredir, para tal contribuindo a utilização que
delas for feita no dia-a-dia. Um conjunto de análises estatísticas, incidindo sobre os
dados de Portugal obtidos no estudo internacional de literacia,
O carácter processual e dinâmico das competências em geral, permitem de alguma forma evidenciar, empiricamente, aquilo
e da literacia em particular, tem sido destacado nos já referidos que acabou de ser dito (Quadro 1).

Quadro 1: Factores explicativos da literacia em prosa, documental e quantitativa (regressão múltipla).

Escala de literacia (v.d.)


Prosa Documental Quantitativa
Síntese dos resultados do modelo

R2 (% de variação explicada) 0,592 0,531 0,517

R (coeficiente de correlação múltipla) 0,769 0,728 0,719

Contributos das variáveis independentes (beta)

Escolaridade do inquirido 0,301* 0,248* 0,251*

Escolaridade do pai 0,200* 0,186* 0,181*

Idade -0,144* -0,157* -0,080*

Leitura de jornais ou revistas na vida quotidiana 0,250* 0,259* 0,313*

Leitura de livros na vida quotidiana 0,116* 0,076* 0,083*

Escrita na vida quotidiana 0,059* 0,073* 0,050**

Leitura na vida profissional (índice de práticas) 0,089* 0,127* 0,112*

Cálculo na vida profissional (índice de práticas) -0,014* -0,053* -0,001

Fonte: IALS, base de dados Portugal.


Variáveis excluídos por multicolinearidade: escolaridade da mãe e índice de práticas de escrita no trabalho.

(*)p< 0,01; (**)p<0,05

139 05
As análises realizadas (regressões múltiplas) permitem analítica dos contextos, das redes sociais (sobretudo das
hierarquizar o peso relativo de um conjunto de factores que familiares), e das práticas dos indivíduos para a compreensão
poderão estar relacionados com perfil de literacia (prosa, dos processos de desenvolvimento (ou não) da literacia.
documental e quantitativa) dos indivíduos. Os resultados obtidos
permitem concluir, em primeiro lugar, que a escolaridade, do 2.1. Obstáculos e resistências
próprio e dos pais (contexto familiar de origem), é um dos
principais preditores da literacia. Mas não só. Um segundo Um elemento que se tornou claro no decorrer da pesquisa
resultado a destacar é importância da leitura na vida quotidiana, tem a ver com o modo como a relação com a escola, e em
pois, mesmo considerando a escolaridade, o nível de literacia geral com os processos de aprendizagem, pode ser por
dos indivíduos será tanto mais elevado quanto mais intensas vezes, nas várias etapas da vida, fonte de conflito e de tensão,
forem, no dia-a-dia, as práticas de leitura e de escrita. no contexto familiar. Ou seja, não obstante a importância
da escolaridade nas sociedades contemporâneas, muitos
Em síntese, na sociedade portuguesa o perfil de literacia dos indivíduos, sobretudo quando oriundos de famílias com baixos
indivíduos não pode ser entendido sem atender ao meio familiar recursos educacionais, podem confrontar-se com dificuldades
de origem, à formação escolar, mas também aos modos de vida e resistências ao pretenderem desenvolver, ou retomar, um
quotidianos: apenas a presença na vida diária de actividades de projecto de escolaridade que contraria as (baixas) expectativas
processamento de informação escrita pode impedir a regressão familiares nesse domínio.
das competências adquiridas e assegurar novas aquisições
neste domínio. Para a grande maioria dos entrevistados, sobretudo para os mais
velhos, uma escolaridade prolongada não fazia parte do projecto
Estes resultados vêm reforçar a importância dos processos de que as suas famílias para eles definiram quando eram jovens.
aprendizagem informal, não formal e formal que, ao longo da Alguns procuraram contrariar esse projecto, expressando a
vida, podem ter lugar, e reforçam um entendimento da literacia vontade de um prolongamento da escolaridade para além do
enquanto competência que se desenvolve e actualiza através esperado (e mesmo desejado) pelas respectivas famílias, mas
da prática: nas sociedades contemporâneas, as capacidades tal pretensão não pode ser concretizada. A possibilidade de
de processamento de informação e escrita estão ancoradas em regressar à escola, através das novas modalidades de ensino e
práticas e hábitos quotidianos, as quais reforçam as disposições formação hoje disponíveis na sociedade portuguesa, representa,
e as competências que as sustentam. para estes indivíduos, uma oportunidade de reconciliação com
um projecto adiado, o qual, para muitos, já não era sequer
2. A literacia na vida quotidiana: resultados de um sonhado.
estudo qualitativo
Apesar de o contexto social alargado se ter transformado
Num estudo qualitativo centrado nos adultos pouco qualificados profundamente quanto à escolaridade da maioria da população
que concluíram recentemente processos de reconhecimento, (em comparação com o quadro social dominante, quando estes
validação e certificação de competências, foi possível evidenciar, indivíduos eram jovens), em muitos contextos a escola e os
de forma mais aprofundada, a complexidade dos processos processos de aprendizagem formais, especialmente os dirigidos
que, ao longo da vida, contribuem para o desenvolvimento de à população adulta, continuam a ser pouco valorizados.
competências-chave. Serão aqui apresentados alguns resultados,
em particular aqueles que permitem evidenciar a importância A pesquisa realizada revelou a existência de sinais, às vezes quase
imperceptíveis, de resistências por parte de familiares próximos
 Os resultados deste estudo encontram-se sistematizados, de modo exaus-
tivo em Ávila, 2008. Os dados aqui retomados decorrem de um conjunto de
entrevistas em profundidade realizadas a adultos que haviam sido recentemen-  A possibilidade de as relações familiares poderem constituir um obstáculo
te certificados após frequentarem processos de Reconhecimento, Validação e aos processos de educação e formação na vida adulta tem vindo a ser confir-
Certificação de Competências (RVCC). mada noutras investigações (Brassete-Grundy, 2004).

140
dos entrevistados relativamente à sua decisão de progressão dos processo de RVCC, existem sinais, mais ou menos explícitos,
estudos. Como se verá, na maioria dos casos essas resistências do modo como os quadros de interacção familiares podem
são relatadas por parte das mulheres. Muitas contrastam a atitude constituir um obstáculo à progressão escolar. Especialmente no
dos filhos e a do marido. Se os primeiros as apoiam e incentivam caso das mulheres, é de registar a forte oposição que algumas
(tema a que mais à frente se voltará), os segundos tendem muitas delas sentem, em diferentes fases da sua vida, para poderem
vezes a alhear-se do processo, ou mesmo a manifestar-se contra progredir em termos escolares. Nesse sentido, as situações
o regresso das mulheres “à escola”. analisadas mostram como a formação escolar pode ser objecto
de tensão. São forças “invisíveis”, dificilmente objectiváveis,
“Ele não diz nada. (…). Nem diz para ir, nem para não ir”. construídas quotidianamente, que podem dificultar o
Quando compara a reacção do marido e a do filho face ao facto desenvolvimento de competências e a progressão escolar de
de ter conseguido alcançar o 9º ano, afirma que foi sobretudo o uma parte da população.
filho quem ficou contente, pois, quanto ao marido, “ele não liga a isso.”
(Josefina, 41 anos, empregada de serviços administrativos) É à luz deste quadro, e atendendo à complexidade das forças
que nele se jogam, que podem ser interpretadas as reacções
“Os meus filhos incentivaram-me, mas já o meu marido não me dos indivíduos, após terem alcançado o diploma escolar.
motiva! Eu ainda lhe disse: “Tu vens também!”, mas ele disse
“Sinto que me vinguei! A sério!”
que nem pensar nisso, que andava cansado do trabalho. (…)
(Pedro, 38 anos, chefe de vendas numa empresa multinacional)
Não, ele não me dá (apoio). Os filhos sim, o pai não.”
(Teresa, 44 anos, vendedora e proprietária de uma loja de decoração)
“Mudou tudo (com o 9º ano). Concretizei o sonho que tinha de
fazer o 9º ano. Posso não fazer mais nada, mas o 9º ano estava
“ (…) O meu marido não é muito aberto a este tipo de iniciativas
aqui atravessado.”
minhas, devo dizer. Ele habituou-se a mim vinte e quatro horas (Josefina, 41 anos, empregada administrativa)
ao lado dele. (…) Ele está habituado a que eu esteja sempre com
ele (…). Então não entende como é que eu tenho a necessidade “Sinto-me mais realizada porque era um sonho pelo qual eu
de sair de casa e fazer outras coisas. É escusado perguntar-lhe andava a lutar há já um tempo...”
porque à partida ele é contra e portanto não quer saber.” (Maria, 45 anos, auxiliar de acção educativa)
(Helena, 51 anos, empregada de escritório, reformada)

A intensa satisfação que a obtenção do diploma escolar


Não é apenas por parte dos cônjuges que podem surgir proporciona revela a concretização de uma etapa há muito
manifestações de oposição ao envolvimento dos entrevistados ambicionada e reforça o modo como a reduzida qualificação
neste tipo de iniciativas. Por vezes surgem também referências à escolar até aqui detida potenciou o desenvolvimento de
não concordância por parte dos pais dos entrevistados. Embora, sentimentos de inferioridade social, com reflexos em diferentes
por motivos óbvios, esta seja uma situação menos frequente, esferas da vida. Em si mesmo, o certificado (finalmente) obtido
não deixa de ser de assinalar que alguns pais manifestem, ainda é sentido pelos próprios sujeitos como vindo preencher uma
hoje, oposição à continuação dos estudos por parte dos filhos, lacuna, uma falha, e sendo por isso mesmo decisivo ao nível da
mesmo sendo estes já adultos. melhoria da sua auto-imagem e auto-estima.

“A minha mãe como lhe digo não achou graça nenhuma: ‘Ó filha, Assim, o reconhecimento do valor social das qualificações
tu já tens tanto que fazer e tanta preocupação!’. Ela continua na escolares na sociedade actual, associado a uma história de
mesma, passados trinta anos continua na mesma.” vida marcada por dificuldades (e contrariedades) evidentes
(Teresa, 44 anos, vendedora e proprietária de uma loja de decoração) nesse domínio, fazem com que o diploma escolar alcançado
corresponda a um “ajuste de contas” com o passado e à
No decorrer da pesquisa foi então possível perceber que, possibilidade de, finalmente, ultrapassar muitas das barreiras
desde o momento da saída da escola, até à própria vivência do e resistências enfrentadas ao longo da vida.

141 05
2.2. Apoios sistema de ensino, surgem referências ao cônjuge (que pode
estar a frequentar outras modalidades de ensino), ou a outros
Tão importante como a localização de sinais de desvalorização familiares próximos (como é o caso de irmãos que também
da escola e a identificação de factores que terão condicionado frequentaram o processo RVCC). Em si mesmo este é um dado
e limitado as aspirações e os projectos pessoais dos importante, pois parece indiciar que os contextos familiares
entrevistados, é a procura dos factores facilitadores de um em que a escola já está presente poderão ser particularmente
regresso a um projecto adiado, ou simplesmente facilitadores favoráveis ao envolvimento dos adultos em acções destinadas a
da sua reformulação e actualização. promover o desenvolvimento de competências e a qualificação
escolar.
A este nível haveria que distinguir vários tipos de factores
(Jarvis, 1992), dando particular destaque aos factores Ao longo das entrevistas realizadas foi possível perceber alguns
institucionais, ou seja, à importância inequívoca que têm hoje dos modos concretos como a “coexistência” ou “partilha”
em dia, na sociedade portuguesa, as novas modalidades de da experiência escolar no espaço doméstico se traduz num
educação e formação de adultos, em particular os processos importante factor de mobilização dos adultos. Como se verá,
de RVCC e também os cursos EFA. Isto porque a mobilização tal é particularmente nítido na interacção entre mães e filhos,
e envolvimento de um crescente número de adultos em potenciando o “regresso à escola” das primeiras a emergência
processos de educação e formação não pode ser dissociada de uma nova dinâmica de aprendizagem e de desenvolvimento
do alargamento deste tipo de ofertas e da sua adequação à de competências no contexto familiar.
população a que se dirige.
De um modo geral, os entrevistados referem que os filhos
Partindo deste contexto, ou seja, de um quadro social em que apoiaram a sua decisão de entrar num processo de RVCC.
os adultos pouco escolarizados têm acesso a um conjunto de
iniciativas e programas que eram, até há poucos anos atrás, “Os meus filhos têm-me dado sempre força, sempre força. Um
inexistentes na sociedade portuguesa, pretendem-se destacar dos meus filhos até dizia muitas vezes: ‘Oh mãe, vai e aproveita
outros factores, em particular situacionais e relacionais, que eu vou contigo e faço-te companhia.’
considerando-se que estes devem igualmente ser tidos em (Maria, 45 anos, auxiliar de acção educativa)
conta quando se procuram compreender, de forma alargada,
as condições que favorecem o envolvimento dos adultos em “Comecei a ver os meus filhos na universidade e isso
processos de educação e formação. entusiasmou-me e eles também me incentivam: ‘Oh mãe!
Estuda, tu tens capacidades!”
Um elemento central que emergiu da análise realizada, comum (Teresa, 44 anos, vendedora e proprietária de uma loja de decoração)
a praticamente todos os entrevistados, foi a existência de filhos,
ou outros familiares próximos, que se encontravam, na data da “O meu filho acha bem que eu estude. Mas diz logo: ‘Não é para
decisão do “regresso aos estudos”, a frequentar a escola. Ou desistires!’
seja, o universo escolar, e tudo aquilo que ele representa, em (Josefina, 41 anos, empregada administrativa)
termos simbólicos e de rotinas diárias, não era algo distante
para os entrevistados; pelo contrário, por via da experiência “O meu filho de início ria-se. E depois deu-me força”.
quotidiana de familiares, a escola estava já, de alguma forma, (António, 55 anos, electricista por conta própria)
presente no dia a dia de muitos deles.
A importância dos filhos não se limita à opinião favorável
A situação mais frequente corresponde à presença no espaço que têm quanto à progressão escolar dos pais. Sobretudo
doméstico de filhos que se encontram a estudar. Mas mesmo quando se encontram a frequentar um grau de escolaridade
quando não existem filhos, ou estes já não se encontram no não muito afastado daquele que também os pais procuram

142
alcançar, os filhos acabam por constituir a principal fonte de pedi ajuda ao meu filho, porque eu nunca tinha feito isso (…)
ajuda nos processos de aprendizagem informal que os pais têm E como eu desconhecia como era, foi o meu filho do meio que
desenvolver. Embora a ajuda concreta que dão aos pais incida me ajudou.”
primordialmente na área das Tecnologias da Informação e da
Comunicação, surgem igualmente referências a outras áreas, Também Josefina (41 anos, empregada administrativa) men-
como a Matemática para a Vida. De qualquer forma, como se ciona a importância do seu filho na resolução de diferentes
pode ver pelas declarações que em seguida se apresentam, o problemas durante o processo.
apoio dado pode ser também de carácter geral (não incidindo
sobre nenhum domínio em especial). Mais do que uma inversão “O meu filho ajudou-me muito em casa, em muita coisa que eu
de papéis (em que são os filhos que ensinam os pais), os relatos lhe pedia. E quando eu fazia algum problema dizia-lhe assim:
sugerem que as competências que os pais têm de desenvolver ‘olha isto surgiu-me, vê lá se eu fiz isto mal que eu estou
potenciam uma forte, e provavelmente inesperada, aproximação desconfiada que fiz isto mal!’ E às vezes tinha bem, mas outras
entre dois universos, até aí pouco comunicantes. tinha mal é claro! Nós não fazemos tudo bem, é lógico.”

Catarina (33 anos, vendedora numa loja, actualmente desem- Ainda sobre este tópico, é importante destacar dois aspectos
pregada) contou com a ajuda do filho. Mas não se tratou de uma que atravessam as situações atrás retratadas. Um deles foi
ajuda pontual e descontinuada. O elevado grau de envolvimento já avançado e tem a ver com a importância da proximidade
do filho no seu processo de aprendizagem e a proximidade que entre, por um lado, a fase do percurso escolar em que os filhos
entre ambos se estabeleceu parece ter sido decisiva. se encontram e, por outro lado, as competências que são
requeridas no nível de certificação escolar que os pais pretendem
“Tive a ajuda do meu filho, que me ensinou! Passava horas alcançar. Quanto maior for essa proximidade, maior parece
comigo: ‘Mãe não é assim, mãe é não sei o quê!’ O meu filho ser a probabilidade de existência de uma forte cumplicidade
tem a capacidade de me ensinar sem humilhar. As dificuldades e envolvimento recíproco nos processos de aprendizagem.
que eu tenho, são sempre a ele que pergunto, mesmo ao nível Pelo contrário, quando os filhos são muito novos, ou quando
de programas e isso assim. Ele também é muito curioso, é estão em etapas escolares já muito avançadas (por exemplo
como eu. Conversamos sobre um programa, uma doença, um na universidade), ou mesmo quando se encontram já fora do
desporto. (…) A ajuda dele foi mesmo muito importante. Eu sistema de ensino, o distanciamento é mais marcado.
acho que sozinha não conseguia. Acho que é o que falta às
outras pessoas, falta-lhes ajuda.” Um segundo elemento a sublinhar é que, entre os entrevistados,
apenas as mulheres mencionam o forte envolvimento e interesse
Maria (45 anos, auxiliar de acção educativa) refere em concreto dos filhos pelo seu processo educativo. Nenhum quadro
a ajuda que lhe foi dada pelo filho no domínio das Tecnologias semelhante foi descrito por entrevistados do sexo masculino. Este
da Informação e da Comunicação. é um dado que pode ter a ver com a situação familiar da maioria dos
entrevistados do sexo masculino, mas também poderá decorrer
“Do Excel não percebia nada, foi o meu filho do meio que me deu do facto, identificado em diversas pesquisas, de serem as mães
as luzes (…). Mas ainda tenho um bocadinho de dificuldade na quem assegura, em geral, o acompanhamento escolar dos filhos
Internet em determinadas coisas. Para ‘falar com outra pessoa’ (ver, por exemplo, Lahire 1995), o que propiciará uma maioria
aproximação e envolvimento destes nos processos de educação e
aprendizagem ao longo da vida por elas desenvolvidos.
 Embora os processos de RVCC prevejam a possibilidade de os indivíduos po-
derem frequentar sessões de formação para desenvolver as competências em
falta (a designada Formação Complementar), estas são de curta duração, pelo  Esta mesma percepção é dada por uma formadora a partir da sua experiência
que surgem sempre referências à necessidade de desenvolver em paralelo, por de trabalho num centro de RVCC.
via informal, processos de auto-aprendizagem. É neste quadro que os entrevis-
tados podem fazer referência a pessoas exteriores ao processo que os auxilia-  Dois dos entrevistados do sexo masculino não têm filhos e um tem um filho
ram: os filhos foram, sem dúvida, aqueles que foram referidos mais vezes. já na universidade.

143 05
Embora a relevância dos filhos em idade escolar seja, 2.3. Diploma e competências em uso: a importância do
inegavelmente, o dado mais marcante quando se analisam as contexto familiar
redes sociais que se constroem e desenvolvem a propósito da
entrada dos adultos no processo de RVCC, a verdade é que essas As consequências associadas ao desenvolvimento de
redes podem, por vezes, ser bastante mais alargadas. Tal pode processos de educação e formação que conduzem à melhoria
ser evidenciado continuando a tomar como referência o tema da qualificação escolar da população adulta (em particular da
das ajudas concretas de agentes exteriores ao processo que população pouco escolarizada) são múltiplas e entrecruzadas.
contribuíram, segundo os entrevistados, para a aquisição das
competências em falta em determinados domínios. As pessoas Um dos elementos mais destacados pelos entrevistados, aqui
referidas vão desde familiares próximos (irmãos, cunhados), já mencionado, é sem dúvida a forte importância simbólica
a amigos. Um dado importante nestes casos é o facto de as atribuída ao diploma escolar, a qual não pode ser entendida
ajudas virem sempre de indivíduos com níveis de escolaridade independentemente do valor social que as sociedades
relativamente elevados. contemporâneas lhe conferem e das oportunidades e recursos
que a ele estão associados. Mas o que aqui se pretende chamar
Rosália (28 anos, técnica de aquacultura) faz referência à ajuda a atenção é o facto de os reflexos desse crescente valor social
que teve de uma cunhada. poderem ser apreendidos não apenas através das análises
que identificam os seus efeitos ao nível das condições de vida
“Houve um trabalho em que eu precisei de ajuda. Porque para (ver Ávila, 2008, p:193-232), mas também em dimensões
mim ainda era muito novo trabalhar em computador e foi ela socialmente menos visíveis, mas igualmente decisivas, que
que me ajudou a fazer isto tudo.” têm a ver, por exemplo, com o modo como os indivíduos se
relacionam com os outros.
No caso de Helena (51 anos, empregada de escritório,
reformada), as dificuldades e problemas que teve de enfrentar Nas diferentes redes e contextos de sociabilidade que fazem
durante o processo passaram a constituir tema de conversa no parte do quotidiano, ter ou não ter um determinado grau de
jantar semanal em que se reúne com os amigos. escolaridade afecta o modo como os indivíduos se auto-
posicionam e são pelos outros posicionados. Por outras
“Tive a ajuda dos amigos todos. Olhe um deles, que é médico, palavras, com a melhoria da qualificação escolar é o estatuto
esteve até às tantas para fazer uma equação que deu uma dor social que se altera.
de cabeça a toda a gente naquele jantar.”
“Os meu filhos ficaram muito orgulhosos. Principalmente
As referências ao envolvimento de pessoas pertencentes a um para o meu filho (…) foi muito importante. Ele queria que eu
círculo social alargado e diversificado, e com uma qualificação continuasse, ele gostava que eu fosse professora de Francês:
escolar mais elevada do que a dos próprios, permite colocar a ‘Mãe, tu és capaz, tu vais ver que és capaz!’ Eu pude demonstrar
hipótese de essas redes de relações terem sido importantes, aos dois seres que eu mais amo, não verbalmente, mas na
não apenas durante o processo, mas terem desempenhado prática, que agora foi o 9º ano e um dia mais tarde pode ser o
também um papel no desencadeamento da decisão de retomar 12º ano.”
um percurso de escolaridade. Poderá ser também por referência (Catarina, 33 anos, vendedora numa loja, actualmente desempregada)
a esses contextos, e pessoas, que alguns entrevistados
desenvolvem a motivação necessária para entrar num processo “Acho que pessoalmente foi importante para mim porque
de RVCC. consegui, e até talvez em relação ao meu marido, que é contra

 Outras pesquisas têm vindo a incidir especificamente na investigação desta


dimensão, destacando o impacto dos processos de educação e formação da
população adulta para além da esfera económica e profissional, nomeadamente
ao nível da saúde, das relações familiares e do capital social (Schuller, 2004).

144
estas coisas, e acha que não consigo fazer nada. (…) Em relação menos revi e aprendi algumas coisas que são úteis. Mesmo em
aos meus amigos deu-me satisfação e eles apoiaram-me.” relação ao meu neto, ele está muito comigo, mesmo aos fins-
(Helena, 51 anos, empregada de escritório, reformada) de-semana, e às vezes faz lá os trabalhos...”
(Maria, 45 anos, auxiliar de acção educativa)
“Vamos fazer uma inscrição para qualquer coisa, perguntam-
nos as habilitações… Sabe muito bem ter o 9º ano. Com a “Acho que desde que tirei aqui o 6º ano tenho conseguido
minha idade com 41 anos, já vou a caminho dos 42, o 9º ano ajudá-la (à filha) um bocadinho mais na matemática. Eu tinha
era muito importante. (…) Mesmo aqui dentro muda…” mais dificuldade em ajudá-la em certas coisas, ela sabe que é
(Josefina, 41 anos, empregada administrativa) verdade. Mesmo nos problemas. Já na altura em que andava na
escola, para mim, fazer um problema era uma dificuldade. E aqui
É perante os filhos, o marido, ou os amigos, que se sentem também ao princípio tive esse problema, mas depois consegui
“orgulhosos”. Mas não só, mesmo em contextos públicos, ultrapassar. Ela também teve esse problema, mas agora já está
ou dotados de maior formalidade, a necessidade de informar um bocado melhor, já consegue, e a mãe já consegue ajudá-la
terceiros quanto ao grau de escolaridade detido deixa de um bocadinho mais em certas coisas. Por exemplo, ela diz-me
ser ocultada e passa a ser “exibida” com satisfação. A este ‘Ó mãe ajuda-me aqui!’, posso até nem perceber à primeira,
propósito é de salientar, uma vez mais, que são sobretudo mas se começar a ler sou capaz de lá chegar. É uma questão
as mulheres quem mais expressa a importância simbólica do de a gente puxar mais pela cabeça e começar a pensar. Posso
diploma escolar na relação perante os outros. não saber, mas se eu estiver ali de volta dela a tentar puxar pela
cabeça, aprendo também.”
Associado a esse estatuto social estão novas práticas quotidianas (Paula, 37 anos, cabeleireira, actualmente desempregada)
e novas competências. Tomando unicamente como referência
o contexto familiar, isso é algo particularmente evidente. Com O contexto escolar, transposto para o espaço doméstico quase
efeito, os entrevistados referenciam os filhos como tendo sido sempre através dos filhos, acaba por ser aquele em que as
aqueles que ficaram mais satisfeitos com o nível escolar que entrevistadas mais põem em prática as novas competências
atingiram. Para eles, o diploma alcançado pelos pais tem um adquiridas. A utilização das Tecnologias da Informação e da
importante valor, o qual não é apenas simbólico, pois traduz- Comunicação (TIC), e também a resolução de problemas no
se, muitas vezes, na utilização de novas competências cujo domínio da Matemática, constituem os principais domínios em
domínio por parte dos pais se afigura como sendo cada vez mais que as novas competências são usadas. Tal situação não deixa
fundamental no quadro das interacções familiares quotidianas. de constituir um paradoxo: perante um processo centrado no
reconhecimento e desenvolvimento de competências, tomando
Tal acontece numa situação que apela explicitamente à utilização como referência os diferentes contextos de vida dos indivíduos
dessas competências: a ajuda e o apoio dado aos filhos no e, procurando, por essa via, romper com a abordagem escolar, é
trabalho escolar. perante as exigências da escola mais é destacada a possibilidade
de utilização das competências adquiridas.
“Os meus filhos agora já me pedem opinião. ‘Oh mãe, como
é que isto se faz?’. Agora já falo mais a linguagem deles. (…) Mas, mesmo assim, não deve subestimar-se o impacto,
Passei a mexer no computador. Agora, quando é preciso no contexto familiar, das competências adquiridas. As
fazer alguma coisa para os miúdos eu é que os ajudo, sou eu declarações atrás transcritas mostram que, para os filhos, os
que estou lá a mexer e escrevo para eles. Trabalhos de casa, novos recursos escolares das mães, e as competências a eles
trabalhos de grupo, matérias que eles vão dar. Às vezes, estou associados, constituem uma forma acrescida (e renovada) de
até às duas, três da manhã com eles a fazer os trabalhos.” capital escolar e social, com efeitos directos ao nível do apoio
(Catarina, 33 anos, vendedora numa loja, actualmente desempregada) e acompanhamento que recebem na realização dos trabalhos
escolares. Recorde-se que, durante o próprio processo, o efeito
“Tento ajudar o meu filho (…). Quando ele precisa, ajudo. Pelo foi em sentido inverso, pois foram os filhos que apoiaram e

145 05
ajudaram as mães em diferentes etapas. Em síntese, o que de mobilizando ou antes bloqueando o desenvolvimento de
mais importante se pode concluir é que, existindo crianças determinadas práticas e condicionando as atitudes e mesmo os
em idade escolar, a entrada das mães em processos de projectos de vida dos sujeitos.
aprendizagem que implicam o desenvolvimento de competências
transversais contribui, de forma evidente, para o fortalecimento Em terceiro lugar, foi possível mostrar que, para os adultos
das relações sociais no espaço doméstico. E isto devido não só recentemente envolvidos em processos de educação e
à cumplicidade e compreensão mútua que se estabelece, mas formação, com filhos em idade escolar, o contexto familiar
também à possibilidade de uma comunicação melhorada, em surge como um dos principais contextos mobilizadores das
grande parte devido à partilha de novas linguagens (como é novas competências adquiridas, sendo que os efeitos das novas
o caso das TIC): as novas competências adquiridas permitem práticas e dinâmicas aí (re)criadas são múltiplos e cruzados.
o domínio de novos instrumentos fundamentais, não só na
resolução de problemas, como na interacção e comunicação Para os adultos pouco escolarizados, a existência de filhos
com os mais jovens. em idade escolar revela-se importante ao longo das diferentes
fases do processo analisadas. Na decisão de voltar a estudar e
3. A literacia em contexto familiar: uma dupla durante o percurso formativo, os filhos surgem, muitas vezes,
oportunidade como a principal fonte de incentivo e ajuda (sobretudo no caso
das mulheres entrevistadas). Mais tarde, concluído o processo,
Do conjunto de elementos apresentados podem destacar-se os o acompanhamento dos filhos revela-se fortemente mobilizador
seguintes pontos: das competências actualizadas no decorrer do percurso
Em primeiro lugar, a análise realizada permitiu sublinhar, e ilustrar formativo; mais do que uma mera aplicação ou transferência
empiricamente, a importância dos contextos e dos quadros de dessas competências, o testemunho dos entrevistados mostra
interacção enquanto factores mobilizadores, ou inibidores, do como se alterou fortemente a sua relação com a escrita,
desenvolvimento das práticas e competências dos adultos. A e, através desta, a sua capacidade de resolução de novos
importância do contexto, enquanto elemento analítico central problemas e de aquisição de novos conhecimentos. Parece
que permite perceber a mobilização, ou não, das competências tratar-se de uma nova atitude, ou mesmo de uma disposição e
e disposições dos indivíduos tem sido sublinhada por Bernard reflexividade renovadas perante a literacia e a aprendizagem, o
Lahire (2003) e tem inequívocas potencialidades heurísticas que decorre, em simultâneo, das competências desenvolvidas
neste campo de investigação. e do efeito subjectivo produzido pelo diploma escolar alcançado
(que, como se viu altera fortemente o modo como os sujeitos
Assim, se por um lado algumas redes sociais e contextos de auto-percepcionam o seu estatuto social).
vida podem contribuir decisivamente para criar as condições
que favorecem o regresso a um projecto de melhoria de Por sua vez, relativamente aos filhos, pode colocar-se a
competências e de aumento das qualificações escolares; por hipótese de o envolvimento dos pais em processos formais
outro lado, também é certo que determinadas redes e contextos de aprendizagem ao longo da vida ter efeitos positivos no
podem exercer um efeito contrário, inibindo, ou mesmo seu desempenho escolar. Os resultados de alguns estudos
bloqueando, as possibilidades de formação e aprendizagem. Ou internacionais vão precisamente neste sentido, mostrando
seja, por referência ao tema em análise, fica assim igualmente que quanto maior o nível de escolaridade dos pais, maior a
claro que os efeitos do capital social não são necessariamente probabilidade de sucesso escolar dos filhos. Tendo em conta
positivos, podendo ser também negativos (Portes 2000),
Portes, os laços sociais podem produzir não apenas “um maior controlo sobre
 Ao analisar as origens e aplicações do conceito na sociologia contemporânea, comportamentos desviantes e fornecer acesso privilegiado a recursos; podem
Alejandro Portes chama a atenção, precisamente, para o facto de os efeitos nega- também restringir as liberdades individuais e vedar a terceiros o acesso aos mes-
tivos do capital social tenderem a ser “esquecidos” e menos investigados, desig- mos recursos através de preferências particularistas” (Portes, 2000).
nadamente em pesquisas como as de Putnam, que apenas pretendem destacar
os efeitos benéficos do comunitarismo (Putnam, 2000). No entanto, como afirma  Os resultados de importantes estudos, de carácter extensivo, incidindo sobre

146
a dimensão do processo de melhoria das qualificações da
população adulta actualmente em curso na sociedade portuguesa
faz sentido colocar a hipótese de esta ser uma dimensão em
que poderão vir a registar-se importantes resultados. Em
certo sentido, com o regresso dos pais “à escola”, pais e
filhos passam a partilhar um mesmo universo – construído
em torno dos processos de aprendizagem – e as interacções
que aí se estabelecem poderão produzir efeitos em vários
patamares, favorecendo quer a utilização e o desenvolvimento
de competências-chave dos adultos, quer o percurso escolar
dos próprios jovens.

os jovens que se encontram a frequentar o sistema de ensino (PISA – Pro-


gramme for International Student Assessment) vão precisamente neste sen-
tido. Antes de mais, porque a qualificação escolar dos pais (em particular das
mães) tem, em todos os países participantes no estudo, uma relação com as
competências dos filhos: os estudantes cujas mães completaram pelo menos
o ensino secundário têm, em média, níveis de desempenho mais elevados nos
vários domínios. Além disso, porque o facto de os pais estarem a estudar e
partilharem com os filhos algumas das suas dúvidas e problemas contribui para
aumentar o nível de comunicação cultural no contexto familiar, o que, segundo
o mesmo estudo, também influência positivamente o nível de competências
dos filhos (OECD, 2003).

147 05
Bibliografia

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148
Conciliação trabalho-família em adultos em
formação nos Centros Novas Oportunidades

149 05
Cláudia Andrade1

Resumo
O presente estudo pretende reflectir sobre a problemática da conciliação de
papéis familiares e profissionais junto de adultos que frequentaram Centros Novas
Oportunidades. Parte dos contributos retirados de 40 entrevistas exploratórias
efectuadas no âmbito do Projecto “Centros Novas Oportunidades: da promoção da
literacia familiar ao sucesso escolar das crianças”. Na primeira parte faz-se alusão
aos estudos efectuados sobre o tema das relações trabalho-família centrando
esta temática no conflito de papéis e destacando as diferenças de género para
este domínio. Na segunda parte, e na linha dos modelos de análise das relações
trabalho-família mais recentes, são apontadas estratégias adoptadas pelos
indivíduos que demonstram a existência de transferências positivas no exercício
concomitante dos diferentes papéis de vida.

1. Introdução tradicionalmente pouco estudada. Estes programas podem


também promover efeitos positivos e duradouros nos filhos
destes pais trabalhadores que frequentam o processo de RVCC,
A percentagem da população portuguesa qualificada permanece
ao facilitar mais experiências positivas decorrentes da frequência
bastante baixa, quando comparada como outros países europeus
da formação dos pais e ao aumentar a probabilidade de, eles
(Martins, Mauritti & Costa, 2005). Este facto tem efeitos directos
próprios, progredirem com sucesso na sua escolaridade.
tanto na qualificação da mão-de-obra portuguesa, como na
capacidade do país corresponder às exigências das actuais
“sociedades do conhecimento”. Por esse motivo, nos últimos 2. Relações trabalho-família: do conflito à concilia-
anos tem sido feito um esforço político para trazer de volta ção de papéis
para o sistema de ensino indivíduos que já estão no mercado
de trabalho, nomeadamente para completar os níveis do ensino A literatura sobre as relações família-trabalho tem sido centrada
secundário. Uma vez que se trata de um fenómeno recente no numa perspectiva de conflito de papéis. Apesar do exercício do
contexto nacional, poucos estudos se têm debruçado sobre os papel profissional ser indispensável à manutenção económica
desafios e necessidades de apoio que são específicos desta da família, a gestão das obrigações familiares e profissionais
população, nomeadamente no que refere à gestão que fazem da não está isenta de conflitos. Segundo Greenhaus e Beutell
sua actividade profissional, o seu papel familiar e a frequência (1985), os indivíduos possuem uma quantidade limitada de
de um sistema educacional como é o caso da frequência de um recursos psicológicos e fisiológicos em termos, por exemplo,
processo de RVCC. Uma compreensão da forma como estes de tempo, atenção e energia, o que torna difícil fazer face às
adultos que são pais gerem os seus múltiplos papéis afigura- diferentes exigências de cada papel, podendo surgir o conflito
se como imprescindível para sustentar o desenvolvimento entre papéis. Mais especificamente, Greenhaus e Beutell (1985),
de políticas e de programas que possam reduzir as barreiras evidenciaram três formas de conflito trabalho-família: conflito
e apoiar os desafios com que se confronta esta população baseado no tempo, conflito baseado na tensão e conflito baseado
no comportamento. O conflito baseado no tempo implica que
 Escola Superior de Educação de Coimbra os múltiplos papéis que o indivíduo desempenha competem
Investigadora do Centro de Psicologia da Faculdade de Psicologia e de Ciências
da Educação da Universidade do Porto. entre si em termos de tempo, ou seja, o tempo dispendido num

150
papel interfere com a disponibilidade de tempo para o outro Bass, 2003; Gutek, Searle & Klepa, 1991), possivelmente devido
papel. O conflito baseado na tensão implica que a pressão à permeabilidade assimétrica das fronteiras entre o domínio
criada no âmbito do desempenho de um dos papéis dificulta o familiar e profissional (Pleck, 1977 cit. por Frone, Russel &
cumprimento das exigências do outro papel. Por exemplo, as Cooper, 1992b). Isto poderá significar que é mais tolerado que o
pressões para o desempenho, as pressões psicológicas e os domínio familiar seja influenciado pelas exigências profissionais,
problemas interpessoais levam a irritabilidade, fadiga ou apatia, do que o domínio profissional pelas exigências familiares. Tal
o que afecta, necessariamente, o desempenho do outro papel. tolerância é reforçada pelo facto das tarefas de âmbito familiar
O conflito baseado no comportamento corresponde a padrões serem mais flexíveis do que as tarefas do domínio profissional.
comportamentais específicos de um determinado papel que Com efeito, as tarefas familiares podem ser efectuadas de
podem ser incompatíveis com as expectativas comportamentais acordo com horários mais flexíveis ou mesmo não chegarem
de outro papel. Por exemplo, um estilo de comportamento no a ser cumpridas integralmente pelos próprios (por exemplo, a
desempenho do papel profissional que é pautado por poder, limpeza, o cuidado das roupas, etc.).
autoridade e impessoalidade pode ser incompatível com
comportamentos esperados na esfera familiar que exigem Mesmo existindo uma quantidade apreciável de estudos
afectuosidade, carinho e relações próximas. centrados sobre o conflito de papéis e suas consequências,
A maioria dos estudos sobre o conflito de papéis tem centrado a análise das relações entre papéis profissionais e familiares
a sua atenção na transferência de atitudes ou “estados de não se esgota nesta perspectiva. A “Teoria da Valorização do
humor negativos” de um domínio para o outro, bem como Papel” (Theory of role enhancement) constitui-se como um dos
nos efeitos da competição na utilização do tempo disponível primeiros quadros teórico, que parte do pressuposto de que a
para o exercício de cada papel, isto é, no conflito baseado na actividade profissional pode influenciar positivamente a família,
tensão e no tempo (Edwards & Rothbard, 2000). Greenhaus e vice-versa (Sieber, 1974). A tese fundamental do autor baseia-
e Beutell (1985) assumem também uma conceptualização se no princípio segundo o qual o desempenho simultâneo de
bi-direcional do conflito inter-papéis defendendo a distinção vários papéis, ou a acumulação de papéis, facilita o acesso a
entre a interferência do papel profissional no papel familiar e a recursos, que podem ser úteis para o desempenho de outros
interferência do papel familiar no papel profissional. O conflito papéis (por exemplo, os recursos económicos provenientes do
entre o papel profissional e o papel familiar ocorre quando a exercício de uma actividade profissional podem ser utilizados
participação ou as emoções associadas à actividade profissional na melhoria das condições de vida familiar). Assim, os recursos
têm um efeito negativo no exercício do papel familiar. Pelo obtidos, bem como, as competências individuais desenvolvidas
contrário, a interferência do papel familiar no papel profissional no exercício concomitante de vários papéis, podem
ocorre quando a participação numa actividade familiar colide desencadear resultados positivos, tanto no domínio familiar,
com a participação numa actividade profissional (Greenhaus & como no domínio profissional. Alguns estudos demonstraram
Beutell, 1985). De um modo geral, as pressões profissionais a influência positiva do exercício de uma actividade profissional
têm sido identificadas como uma fonte poderosa de conflito remunerada, no exercício mais satisfatório do papel parental
trabalho-família, enquanto que as pressões familiares estão (Hughes & Galinsky, 1994). Outros estudos comprovaram que
mais fortemente relacionadas com o conflito família-trabalho os sentimentos de bem-estar físico e psicológico, decorrentes
(Frone, Yardley & Markel, 1997a). do exercício do papel profissional, têm repercussões positivas
na vivência do papel familiar (Barnett & Hyde, 2001). Parece,
No entanto, a investigação tem-se debruçado mais sobre a portanto, que a possibilidade de investir em vários papéis
influência negativa da esfera profissional no desempenho do de vida pode ser vista como um estímulo e um desafio, que
papel familiar do que o oposto (Frone et al., 1992a; Frone et potencia o desenvolvimento do indivíduo e do casal.
al., 1997b; Greenhaus & Beutell, 1985; O’Neil, Greenberger, &
Marks, 1994). Os autores justificam esta tendência pelo facto Assim, o conceito de “Equilíbrio de Papéis” (Role balance)
das interferências do domínio profissional no domínio familiar de Marks e MacDermid (1996) realça que, apesar do mesmo
serem as mais frequentes (Frone et al., 1992a; Grzywacz & indivíduo poder estar intensamente envolvido num ou noutro

151 05
papel, consoante as circunstâncias, o “equilíbrio dos papéis” Dos 53% dos entrevistados que consideram o processo de RVCC
apresenta-se como uma orientação geral, ou corresponde a não colidiu com a gestão dos papéis familiares e profissionais
uma certa predisposição para integrar os múltiplos papéis apontam, como razão principal para o seu sucesso a facto de
de vida. Esse equilíbrio organiza-se, deste modo, em torno serem eficientes na gestão do tempo.
de comportamentos que actuam transversalmente em todos
os papéis de vida e que permitem alcançar um equilíbrio “Eu não acho que me tenha roubado algum tempo, se calhar
satisfatório, ao nível da concretização de cada um deles (Marks eu aproveitei foi melhor o tempo, deixei de fazer coisas que se
& MacDermid, 1996). De acordo com esta perspectiva, o calhar não são tão importantes (…)”
indivíduo faz ajustamentos constantes, transferindo aspectos (E14; Sexo feminino; Meio Rural; Região Centro)
positivos de um papel para outro, tanto na profissão como na
família, de modo a que o resultado final traduza um sentimento Noutros casos os indivíduos apontam para soluções que
de equilíbrio. Contudo, é de realçar que este equilíbrio é implicam uma negociação prévia de actividades na família.
dinâmico e sustentado pelas experiências e aprendizagens que
são transferidas do trabalho para a família, e vice-versa (Marks “É assim, também foi falado com a família, porque quando
& MacDermid, 1996). entro nestas acções falo sempre com a família, principalmente
com a mulher, para ela também compreender um pouco que
3. Relações trabalho-família durante a frequência eu tenho que desligar (…) refugio-me um pouco ali dentro
dos Centros Novas Oportunidades: implicações sozinho, para poder desenvolver os meus trabalhos, os meus
pessoais e familiares projectos, e os meus estudos e tento sempre fazer. (…) Eles
aceitaram e pronto! Quando isso acontece peço sempre a
Ora, a partir dos resultados de entrevistas vamos dar conta, opinião da mulher”.
justamente, das articulações entre os papéis profissionais (E31; Sexo masculino; Meio Suburbano; Região LVT)
e familiares durante a frequência do processo de RVCC e as
estratégias utilizadas para a articulação destes papéis. Iremos “Também não me roubou tempo nenhum. E como eu já disse.
ainda debater o modo como a articulação família-trabalho se E uma questão de gerir o tempo e dedicava-me a fazer os
reflectiu, mais especificamente, ao nível das relações pais-filhos. trabalhos do RVCC quando o meu filho e a minha mulher já
estavam a dormir.”
Assim, no que se refere à exploração da gestão do tempo para (E8; Sexo masculino; Meio urbano; Região Centro)
família e para o trabalho durante a realização do processo de
RVCC 53% dos entrevistados considerou que, de uma forma 4. Relações trabalho-família durante a frequência
geral, conseguiram fazer uma boa conciliação de papéis durante dos Centros Novas Oportunidades: questões de
a frequência do processo RVCC e que este não retirou tempo nem género e relações pais-filhos
para família ou nem para o trabalho. Contudo, 48% considerou
ter vivido momentos de conflito de papéis, revelando o processo Quando evocamos as relações família-trabalho não é possível
RVCC lhes retirou tempo para a família ou ao trabalho. esquecer que esta questão não tem as mesmas implicações
para homens e para mulheres. Na realidade, os estudos sobre
“Meter este trabalho (processo de RVCC) no meio da família, as relações família-trabalho surgiram como consequência das
no meio da casa e no meio do emprego, digo-vos foi mesmo mudanças sociais ocorridas nos países industrializados, onde
complicado em todos os aspectos (…)” se verificou a entrada da mulher no mercado de trabalho. A
(E12; Sexo feminino; Meio Rural; Região Centro) presença generalizada, nas últimas décadas, das mulheres no
campo laboral teve consequências directas na vida familiar, na
medida em que se rompeu, parcialmente, com o modelo de
 Resultados obtidos com uma amostra de conveniência de 40 indivíduos que
terminaram o processo de RVCC e que têm, pelo menos um filho, a frequentar
complementaridade entre homens e mulheres. Modelo este
o 1º ciclo do ensino básico. que assentava na diferenciação de tarefas entre os dois sexos,

152
segundo o qual o trabalho remunerado era da responsabilidade participação das mulheres no mercado de trabalho, não tem
masculina e o trabalho não remunerado, isto é familiar, era da tido correspondência dos homens na participação no trabalho
responsabilidade feminina. Este facto criou novos desafios e não pago (Perista, 2002; Stier & Lewin-Epstein, 2000; Torres,
dilemas para os indivíduos e para as famílias, introduzindo 2004). De facto são as mulheres que são maioritariamente
alterações nos papéis de género, tanto no domínio profissional responsáveis pelo desenvolvimento emocional e intelectual dos
como no familiar. filhos o que poderá implicar que estas sintam, de forma mais
activa, sentimentos de “culpa” quando não conseguem integrar
O estudo da integração harmoniosa das relações trabalho- de forma harmoniosa as suas actividades fora do lar com o
família tornou-se, assim, particularmente saliente dando cuidado das crianças.
origem a um conjunto de quadros de análise conceptual e
de estudos empíricos. Estes estudos, salientam, em geral, “Quando nos mandam alguma coisa para casa (…) chateamo-
que as dificuldades sentidas na articulação entre papéis nos e são os pequenos que às vezes ouvem sem terem culpa
profissionais e familiares são mais intensas e frequentes nas nenhuma… e depois arrependemo-nos no fim.”
mulheres (Zimmerman, Haddock, Current & Ziemba, 2003). Se (E29; Feminino; Meio Rural; Região Norte)
actualmente, e para o contexto nacional, as responsabilidades
relativas ao trabalho profissional parecem ser partilhadas Apesar de esta realidade ainda estar presente em muitas
por homens e mulheres, o mesmo não acontece no domínio sociedades a verdade é que as expectativas sobre os papéis
familiar: as tarefas domésticas e cuidado dos filhos continuam parentais têm sofrido também alterações significativas. Assim,
a ser maioritariamente da responsabilidade feminina (Fontaine, um “bom pai” já não e um ganha-pão ausente e benevolente. É
Andrade, Matias, Gato & Mendonça 2007; Torres, 2004; Wall, esperado cada vez mais que o pai esteja intimamente envolvido
2005). Esta realidade coloca obstáculos à conciliação dos nos aspectos da vida da criança, desde o brincar ao cuidar,
dois domínios para as mulheres, podendo mesmo criar um ao alimentar e ajudar nas tarefas da escola (Jacobs & Gerson
conflito entre papéis profissionais e familiares. Apesar desta 2004). Estes dados parecem ser também válidos em Portugal,
realidade, particularmente penalizadora para as mulheres, onde se considera que o elemento masculino do casal deve
ter sido documentada por alguns estudos, as mudanças nos também dedicar-se a família, colocando os interesses desta
papéis de género estimulam também um maior investimento acima de outros assuntos (Andrade, 2006; Poeschl, 2002). Esta
dos homens na vida familiar, nomeadamente ao nível dos realidade encontra-se também expressa nos depoimentos de
cuidados aos filhos, podendo, também para estes, surgir um alguns pais entrevistados.
quadro de conflito de papéis. Apesar do papel evidente que as
ideologias de género têm tido na divisão do trabalho familiar e “ – Oh, eu não faço hoje, vou fazer amanhã porque já chega e já
profissional, a análise dos efeitos moderadores do género na passa do tempo”. Porque estamos a dar uma hora, duas horas
relação trabalho-família não têm sido alvo de muita atenção por àquilo (trabalho) e aquela pessoa (filho) a precisar de nós”
parte da literatura. Assim, das mudanças sociais que afectam (E24; Sexo masculino; Meio urbano; Região Norte)
os papéis de género parece que a diferenciação em função do
sexo do exercício dos papéis profissionais e familiares é ainda “Na hora de jantar, que chegava a casa e vinha jantar sozinho,
visto como uma base legítima e ideologicamente aceitável para na hora de ir tomar o café, na hora de ir ajudar o meu filho nos
a distribuição dos direitos, poder e responsabilidades (Franks, deveres, por exemplo havia um dia ou outro que eu vinha para
1999; Hughes & Galinsky, 1988; Poeschl, 2002). Embora, nos a escola e ele às vezes ainda não estava em casa porque estava
contextos de trabalho actuais, a mulher exerça a sua actividade em casa do primo ou assim, e quando chegava eu já estava a
em quase todos os sectores de actividade e possua horários de dormir... esse género de coisas assim.”
trabalho e exigências, na maioria dos casos, idênticas às dos (E27; Sexo masculino; Meio Rural; Região Norte)
homens (Cabral-Cardoso, 2003; Gutek et al., 1991; Peterson
& Gerson, 1993), não se observa uma repartição equivalente Outro aspecto particularmente relevante para as exigências
das tarefas familiares, entre homens e mulheres. Ou seja, a crescentes da maternidade e da paternidade diz respeito

153 05
ao papel privilegiado que a criança ocupa no contexto da temática salientam as repercussões negativas do conflito entre
família. De facto, ter uma criança implica actualmente maiores papéis familiares e profissionais, com especial incidência para
investimentos nos planos afectivos, relacionais e mesmo o conflito de papéis sentido pelas mulheres. Estes estudos
materiais que possibilitem percursos escolares mais longos apontaram para a necessidade de se considerar que os domínios
tendo em vista a sua futura inserção profissional. profissionais e familiares são interdependentes e estão sob
a influência dos papéis de género, dado que estes definem a
Adicionalmente, a preocupação, em particular dos pais, em divisão de papéis, tanto na família como no trabalho.
promover o desenvolvimento cultural e social das crianças.
Nesse sentido a família desempenha um papel fundamental no Nesta linha, a compreensão da forma como os adultos que
sucesso escolar das crianças, sendo muitas vezes referenciado são pais e que frequentaram o processo de RVCC gerem os
pela literatura que os pais são os primeiros professores e que seus múltiplos papéis parece imprescindível para fundamentar
a casa e a primeira escola (Bandura, 1997; Morrow, 1995). o desenvolvimento de políticas, programas e recursos que
De acordo com Epstein (1990), os pais contribuem para o possam apoiar os desafios com que confronta esta população.
desenvolvimento intelectual das crianças de diversas formas Para além deste aspecto estes programas e recursos podem
que incluem actividades como preparar os filhos para o promover efeitos positivos e duradouros nos filhos destes
ingresso na escola, valorizando a educação e encorajando os pais trabalhadores, ao facilitar mais experiências positivas
filhos a acreditar nas suas capacidades para enfrentar com decorrentes da frequência da formação dos pais e ao aumentar
sucesso as tarefas escolares. Importante é também salientar a probabilidade de, eles próprios, progredirem com sucesso na
que estas influências podem ser recíprocas, ou seja, também sua escolaridade.
podem ocorrer de filhos para pais como é caso que se ilustra
a seguir.

“Foi muito engraçado, porque eu conseguia com que a minha


filha (…) até partilhassem comigo e até estivéssemos mais
tempo, porque também me ajudava a fazer o trabalho.”
(E4; Sexo feminino; Meio Urbano; Região Centro)

5. Reflexões finais

O interesse pelas relações entre o exercício concomitante de


papéis profissionais e familiares surgiu como consequência
do aumento do número de mulheres que começou a aliar ao
seu papel na família a um papel activo ao nível do mercado de
trabalho. Esta realidade alterou o funcionamento familiar, onde
o tradicional modelo do elemento masculino como “ganha-pão”
e do elemento feminino como responsável pela manutenção
da harmonia da família e do lar, deu lugar a um modelo onde
ambos os elementos do casal são sustentadores económicos
da casa. Este novo modelo familiar levou os cientistas sociais,
numa primeira fase, a preocuparem-se com as possíveis
consequências negativas da competição, para as mulheres,
entre o exercício de uma actividade profissional e a organização
da vida familiar, ao nível da execução das tarefas domésticas e
do cuidado com os filhos. Assim, os primeiros estudos sobre a

154
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156
Os adultos no contexto do processo de RVCC:
uma abordagem das representações
e práticas da leitura e da escrita

157 05
Carolina Cardoso1 e Joana Ferreira1

Resumo
Em Portugal, a maioria da população adulta apresenta baixos níveis de
escolaridade, acompanhados por níveis de literacia também eles muito reduzidos.
Considerando que a qualidade do ambiente familiar de literacia é determinante
no processo de aquisição de competências neste domínio e na forma como as
crianças se tornam mais predispostas a compreender a natureza da linguagem
escrita, é fundamental conhecer as concepções parentais acerca da literacia, bem
como os comportamentos e práticas que os pais desenvolvem com os filhos neste
domínio.

Tendo em conta que tem havido uma crescente procura de formação, por parte
de adultos, nos Centros Novas Oportunidades (CNO), é interessante conhecer e
analisar de que modo o processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de
Competências (RVCC) efectuado nos CNO facilita o desenvolvimento da literacia
familiar e promove a literacia em crianças que frequentam o 1.º ciclo do ensino
básico. Deste modo, este estudo centrar-se-á numa breve revisão bibliográfica
sobre a literacia no contexto da educação de adultos e a literacia familiar, e
dará conta dos resultados e conclusões preliminares do estudo “Centros Novas
Oportunidades: uma oportunidade dupla: da literacia familiar ao sucesso escolar
das crianças”, no que se refere às mudanças nas representações e nas práticas
de literacia.

1. Literacia no contexto da Educação de Adultos uma função fundamental, pois são inúmeras as situações da
vida quotidiana em que o indivíduo tem que utilizar a informação
A aprendizagem da leitura e da escrita era, até aos anos 90, escrita. Deste modo, o conceito de literacia traduz a capacidade
compreendida através da eficácia dos sistemas educativos em de processamento da informação escrita na vida quotidiana, ou
dotar os indivíduos do domínio da técnica da decifração da seja, visa “as capacidades de leitura, escrita e cálculo, com base
informação escrita, e era medida pelo analfabetismo e taxas em diversos materiais escritos (textos, documentos, gráficos), de
de sucesso/insucesso escolar. No entanto, a análise feita a uso corrente na vida quotidiana (social, profissional, pessoal).”
partir destes parâmetros deixava por explicar a aplicação das (Benavente, Rosa, Costa e Ávila, 1996, p.4)
competências de leitura e escrita nas diversas situações do
quotidiano em que elas podem surgir (Gomes, 2005).  O conceito de literacia remete, assim, para o uso de competências
e não para a sua obtenção, pois não existe necessariamente
Assim, a introdução do conceito de Literacia vem, de uma forma correspondência entre níveis de literacia e níveis de educação
mais completa, dar conta da componente comunicativa e funcional formal. Não obstante, verifica-se que quanto mais elevados forem
da linguagem escrita. Na sociedade actual, a escrita desempenha os níveis de instrução de uma população, maior a probabilidade
de que o seu perfil de literacia melhore (Benavente et al., 1996).

 Escola Superior de Educação de Coimbra.


A correspondência relativa a este artigo pode ser endereçada para: No que respeita ao caso português, os recursos escolares e as
carolinapcardoso@hotmail.com ou para joanaferreira_jf@hotmail.com competências de literacia da maioria dos adultos são escassos,

158
considerando que Portugal apresenta elevadas taxas da população só em contextos de educação formal, mas também durante as
adulta com níveis de escolaridade abaixo do ensino secundário (cerca aprendizagens informais (Mata, 2006).
de 78% dos indivíduos com idade entre os 25 e os 64 anos, segundo
dados de 2003) (OECD, 2005 cit. por Ávila, 2008) e com 47,3% da A família é um espaço privilegiado e eficaz para as aprendizagens,
população a situar-se nos níveis 0 e 1 de literacia (Benavente et por possibilitar à criança aprender de forma contextualizada em
al., 1996). Estes dados são preocupantes pois estas dificuldades situações com significado; por ser um espaço em que existe
vão-se repercutir não apenas na inserção socioprofissional dos uma extensa variedade de actividades, proporcionando às
indivíduos, como também no acesso à cultura e à informação e, crianças modelos e oportunidades para aprenderem coisas
consequentemente, na possibilidade de agir de forma autónoma, sobre diversos domínios; por existir uma maior disponibilidade
limitando o exercício pleno da sua cidadania (Ávila, 2008). e uma atenção mais individualizada; e por pais e filhos
partilharem uma vida comum, facilitando a compreensão do
Este novo enfoque dado pela comunidade científica aos fenómenos que cada um diz, relacionando acontecimentos passados e
sociais que resultam do próprio desenvolvimento do sistema presentes, atribuindo-lhes um significado mais vasto (Tizard &
educativo, como é o caso da literacia, possibilitou a inovação Huges, 1984).
conceptual e a construção de novos objectos de estudo e o desenho
de estratégias metodológicas mais adequadas (Ávila, 2008). Também quanto à aprendizagem da linguagem escrita, existe
hoje uma crescente valorização das práticas de literacia
Também na Educação de Adultos, a valorização e entendimento desenvolvidas na família, bem como do ambiente e interacções
da educação em diversos contextos de aprendizagem passou em que ocorrem, sendo as interacções informais, com e sobre
a contemplar, para além da educação formal, dois outros o escrito, presentemente consideradas meios importantes para
contextos: a educação não-formal, que se define como estas aprendizagens (Mata, 2004).
qualquer tentativa educacional organizada e sistemática que,
normalmente, se realiza fora dos quadros do sistema formal, Segundo Morrow, Paratore e Tracey (1994 cit. por Morrow,
e a educação de ensino informal, que define os contextos em 2001), a Literacia Familiar é definida por sete princípios básicos:
que a pessoa adquire e acumula conhecimentos, através de i) esta ser a forma como os pais, crianças e outros familiares
experiência diária em casa, no trabalho e no lazer. usam a literacia em casa e na sua comunidade; ii) ocorrer
naturalmente nas rotinas familiares; iii) o facto de, nos vários
Assim, a Educação de Adultos ganhou novos contornos, exemplos de materiais de literacia familiar, se poder incluir o
começando a ser entendida como um processo que se desenvolve uso de desenhos, escrever para partilhar ideias, compor notas
tendo em conta o contexto de vida das comunidades/formandos, ou cartas para comunicar mensagens, partilhar histórias, etc.;
através de estratégias não-formais que possibilitam reconhecer, iv) poder ocorrer de forma espontânea ou propositada enquanto
validar e certificar as competências adquiridas ao longo da vida. os pais e as crianças realizam as suas tarefas do dia-a-dia;
v) poder reflectir a etnia, raça ou nível cultural das famílias;
Deste modo, a educação de adultos pode configurar-se como vi) estas actividades poderem ser iniciadas por entidades ou
um espaço de introdução e desenvolvimento de competências instituições externas à família, com o objectivo de apoiar a
de literacia, melhorando o nível de literacia dos adultos e dando aquisição e o desenvolvimento de comportamentos de literacia;
lugar à introdução de hábitos e práticas na família. e vii) as actividades de literacia iniciadas por entidades externas
poderem incluir a leitura de histórias nas famílias, a realização
2. A família como espaço de aprendizagem e de de trabalhos de casa, etc.
promoção da literacia
Tal como foi referido, os valores e a cultura da comunidade
A influência da família e do contexto familiar é, nos dias de hoje, na qual as crianças estão inseridas condiciona o modo como
cada vez mais valorizada enquanto suporte para as aprendi- estas desenvolvem as suas competências de literacia. Assim,
zagens das crianças. Esta influência tem sido considerada não o tipo de experiências que são valorizadas e proporcionadas,

159 05
a frequência, diversidade e qualidade destas experiências e caracterizar as práticas de leitura e escrita em ambientes
a forma como estas são desenvolvidas variam consoante a familiares e identificar a frequência e a duração das mesmas.
cultura, a comunidade e a família a que as crianças pertencem Verificou-se que os domínios da vida diária, entretenimento,
(Mata, 1999). técnicas e habilidades de literacia e actividades relacionadas
com a escola são aquelas que ocorrem com maior frequência.
No sentido de sistematizar a influência dos pais nas concepções No mesmo sentido, Baker, Serpell e Sonnenschein (1995)
e conhecimentos que as crianças desenvolvem durante o verificaram, ao comparar as actividades de literacia
processo de aprendizagem da linguagem escrita, bem como desenvolvidas por famílias com crianças em idade pré-escolar
as suas experiências de literacia, Hannon (1996 cit. por com níveis socioculturais diferentes, que todos os pais tinham
Mata, 2006) propõe um modelo teórico denominado ORIM referido práticas de leitura de histórias. Esta actividade surgia
(Oportunidades, Reconhecimento, Interacção, Modelos). Este com carácter de actividade diária, de forma significativamente
modelo considera que os pais influenciam as experiências de mais consistente nas famílias de estatuto sociocultural médio.
literacia dos filhos através: de oportunidades de aprendizagem, Nas famílias de estatuto mais baixo, foram referidas mais
ao facilitar o acesso a materiais escritos existentes em casa, frequentemente actividades com objectivo de aprendizagem
leitura de histórias, revistas e jornais, ou em idas à biblioteca; formal da literacia.
do reconhecimento e valorização das aquisições que as crianças
vão fazendo neste domínio; da interacção com os filhos em Os resultados dos estudos acima referidos podem ser
actividades de literacia em situações do quotidiano; de os pais associados aos obtidos no estudo de Sonnenschein et al. (1997
reconhecerem a sua importância enquanto modelos de como e cit. por Bingham, 2007). Neste, a autora constatou que as mães
quando utilizar a linguagem escrita, valorizando e desfrutando de estatuto sociocultural mais baixo dão mais importância ao
das actividades de literacia, reforçando deste modo não só a desenvolvimento da literacia a partir de uma perspectiva de
funcionalidade e utilidade destas actividades, como também os competências básicas; já as mães de estatuto sociocultural
afectos e sentimentos a elas associados. médio utilizavam mais uma perspectiva de entretenimento. As
mães que possuíam mais do que um foco de entretenimento
Também DeBaryshe, Binder e Buell (2000) referem que o referiam-se com mais frequência a actividades de escrita com
ambiente familiar é um factor relevante para a aquisição da os seus filhos do que as mães que utilizavam uma abordagem
literacia, pois em casa as crianças podem ter oportunidade baseada nas competências.
para: i) tornarem-se familiares com artefactos da literacia; ii)
observarem actividades de literacia dos outros; iii) explorarem Na mesma linha de investigação, Purcell-Gates, Allier e Smith
comportamentos alfabetizados de modo independente; iv) (1995) desenvolveram um estudo que pretendeu observar e
envolverem-se em actividades conjuntas de leitura e de escrita descrever o tipo de actividades realizadas, quantidade e a frequência
com outras pessoas; e v) beneficiar de estratégias de ensino que por famílias de estatuto sociocultural baixo. As famílias foram
os familiares usam quando se envolvem nas tarefas conjuntas divididas em dois grupos quanto ao nível de literacia. Observou-se
de literacia. que as famílias de nível elevado de literacia envolviam-se, por hora,
oito vezes mais em actividades deste domínio do que as outras.
Assim, para conhecer a influência da família é necessário Nas famílias de nível mais elevado de literacia, as categorias
caracterizar as práticas de literacia deste ambiente educativo, mais desenvolvidas eram a aprendizagem da leitura e da escrita,
sendo que a sua caracterização deve envolver vários eixos entretenimento e leitura de histórias; já as famílias de nível mais
de análise, como sejam o ambiente físico, as interacções baixo de literacia apenas desenvolviam actividades relacionadas
interpessoais, o clima emocional e motivacional (Leichter, com as rotinas diárias e entretenimento.
1984). Neste sentido, irá ser feita uma breve apresentação de Por fim, no estudo de Mata (2006), desenvolvido com famílias
vários estudos que foram efectuados neste campo. de estatuto sociocultural médio e médio-alto com crianças em
idade pré-escolar, e que procurou caracterizar as práticas de
Anderson e Stokes (1984) realizaram um estudo que permitiu literacia familiar ao nível da sua diversidade e regularidade,

160
observa-se que a maioria dos pais referiu que os seus filhos processo RVCC de nível básico e cujos filhos estivessem a
os vêem a ler e a escrever várias vezes por semana. Quanto às frequentar o 1.º ciclo do ensino básico.
práticas conjuntas, a maioria dos pais referiu ler várias vezes
por semana, afirmando como práticas mais frequentes ler Para a recolha dos dados utilizou-se como método a entrevista
histórias e escrever o próprio nome, letras e nomes. semi-estruturada. As questões do guião de entrevista foram
definidas através da decomposição em diversas dimensões de
Todos os resultados destes estudos são concordantes na alguns conceitos identificados na revisão bibliográfica. Neste
medida em que concluem que há uma grande diversidade e artigo apenas será tratado o conceito referente à Literacia.
regularidade de práticas desenvolvidas em ambiente familiar. É As questões formuladas tinham como objectivos: i) analisar
ainda relevante constatar o facto de que, em ambiente familiar, a percepção dos inquiridos acerca das mudanças ocorridas
a abordagem dos pais é diferenciada quer pelo seu nível nas suas representações e práticas de leitura e de escrita após
sociocultural, quer pelo seu nível de literacia. frequentarem o processo de RVCC; ii) conhecer a importância
atribuída à leitura, bem como os hábitos de leitura dos pais e
3. Problemática os contextos em que ocorrem; iii) conhecer as mudanças na
frequência e na natureza das práticas de leitura e de escrita que
Sabendo da importância que a qualidade do ambiente familiar os inquiridos realizam com os filhos e, por fim, iv) conhecer
de literacia pode exercer sobre a aprendizagem e sobre a forma as práticas que incluam a leitura e a escrita que os inquiridos
como as crianças se tornam mais predispostas a compreender realizam com os filhos, no contexto do dia-a-dia e em contextos
a natureza da linguagem escrita, é fundamental conhecer de entretenimento e de treino.
as concepções parentais acerca da literacia, bem como os
comportamentos e práticas que os pais desenvolvem com os Posteriormente, foi feita uma análise de conteúdo às respostas
filhos neste domínio (Lynch, Anderson, Anderson & Shapiro, dos sujeitos, de modo a obter uma descrição sistemática e
2006). Os pais podem cultivar as competências de literacia aprofundada do conteúdo das entrevistas, tendo sido o conteúdo
dos filhos se: i) de forma contextualizada e em situações com codificado e dividido em categorias numa variedade de níveis.
significado, fornecerem uma larga diversidade de materiais Em seguida, serão apresentados os resultados e realizada a
de literacia; ii) com frequência, incentivarem as interacções análise e discussão dos mesmos.
interpessoais durante as actividades de leitura e escrita; iii)
permitirem a observação e participação dos filhos nas práticas 4. Análise e discussão de resultados
de literacia do dia-a-dia e em contextos de entretenimento, e
se iv) integrarem materiais de literacia no ambiente social e 4.1. Representações da leitura e da escrita após a frequência
familiar em que estão inseridos. do processo de RVCC

Neste sentido, e sabendo que no processo de RVCC os adultos Como já foi referido anteriormente, procurou-se conhecer
mobilizam e desenvolvem as suas competências de literacia, quais foram as mudanças nas representações sobre a leitura e
procurou-se com este estudo compreender de que modo o a escrita motivadas pelo processo de RVCC. Para tal, colocou-
processo de RVCC efectuado por pais nos Centros Novas se a pergunta: “Considera que a ideia que tinha acerca da leitura
Oportunidades facilita o desenvolvimento da literacia familiar e da escrita se modificou após ter frequentado o processo
e promove a literacia em crianças que frequentam o início do de RVCC?”. A análise dos resultados revela que 70% dos
ensino básico. pais inquiridos atribui uma maior importância à leitura e à
escrita; 28% respondeu que no seu caso não houve mudança,
Deste modo, e por não se conhecer estudos que já tivessem justificando, na maioria dos casos, que já considerava a leitura
abordado esta problemática em específico, realizou-se um e a escrita muito importantes.
estudo de carácter exploratório, através de uma amostra por
conveniência composta por 40 adultos que frequentaram o A análise das entrevistas evidenciou que os sujeitos

161 05
percepcionam mudanças sobretudo nas suas competências e hábitos de leitura aponta para a existência de um ambiente
hábitos de leitura. Verificou-se também que alguns entrevistados familiar de literacia mais rico, pois as crianças têm deste modo
referem que não tinham hábitos de leitura e escrita, e que os mais oportunidades em casa para se tornarem familiarizadas
desenvolveram no decorrer do processo de RVCC. com os artefactos de literacia, observarem a literacia dos outros,
explorarem comportamentos alfabetizados e envolverem-se em
“(...) eu comecei a ler, agora só estou bem com um livro nas actividades de leitura (DeBaryshe et al., 2000).
mãos, tenho que andar sempre com qualquer coisa para ler.
E a escrita também, tenho muito mais facilidade em escrever. 4.3. Leitura: importância atribuída aos hábitos de leitura
(...) desenvolvi muito mais a escrita, e acho que o facto de ler do filho
também me tem ajudado bastante. Sem dúvida.”
(E38; Sexo Feminino; Meio Suburbano; Região LVT) O conhecimento das concepções parentais acerca da importância
dada à leitura é fundamental, pois estas manifestam-se nos
Os sujeitos referem ainda que agora percebem melhor o que lêem ambientes de literacia que os pais proporcionam através das
e o utilizam em diversos contextos. Alguns dos entrevistados práticas que desenvolvem e da natureza das interacções que
mencionam também que passaram a incutir hábitos de leitura têm com os seus filhos (Harkness & Super, 1999 cit. por
nos filhos, passando a compreender melhor as dificuldades de Weigel, Martin & Bennett, 2006). Assim, e de modo a conhecer
aprendizagem, o que pode ser importante no apoio escolar aos a importância atribuída pelos pais aos hábitos de leitura do
filhos. filho, perguntou-se aos inquiridos “Considera importante que
o seu filho tenha hábitos de leitura?”. A análise dos resultados
“Sempre considerei importante ler, mas confesso que não lia indica que todos os entrevistados consideram que é importante
muito por lazer. Depois de ter feito o processo de RVCC criei que o filho tenha hábitos de leitura.
hábitos de leitura que não tinha e incuto isso à minha filha,
É interessante verificar que, mesmo tendo havido 12,5% de
embora ela adore ler.”
entrevistados que declarou que a leitura não era importante para
(E6; Sexo Masculino; Meio Urbano; Região Centro)
o seu dia-a-dia, todos consideram que os hábitos de leitura são
importantes para o seu filho.
4.2. Leitura: importância atribuída e contextos em que ocorre

Na opinião destes pais, ter hábitos da leitura e de escrita é


Quanto à importância atribuída à leitura no dia-a-dia, observou-
fundamental para os seus filhos, uma vez que os ajuda a ler
se que a maioria dos inquiridos (87,5%) considera a leitura
melhor, a escrever melhor, a aumentar os seus conhecimentos
uma tarefa importante revelando, ter práticas de leitura com
e cultura e a ter maior facilidade de comunicação, factores estes
regularidade, sendo os contextos de lazer e de trabalho os que
que constituem competências essenciais na sociedade actual.
surgem com maior incidência. Os suportes de leitura mais referidos
são, por ordem decrescente, os livros, os jornais e as revistas. “Acho que é essencial, desenvolve muita coisa. Desenvolve a
forma de se exprimir, de escrever, que é muito importante, mas
Quando comparados estes dados com os resultados do Estudo principalmente a expressão e a maneira de se exprimir, ajuda a
Nacional da Literacia realizado por Benavente et al. (1996) em comunicar, melhora bastante a comunicação, acho que isso é
que se verifica que 69% da população adulta, entre os 15 e os
muito importante (…)”
65 anos, na auto-avaliação que faz das suas práticas de literacia (E18; Sexo Feminino; Meio Rural; Região Centro)
refere que nunca ou raramente lê livros. É interessante verificar
que 87,5% dos entrevistados considera que ler é uma tarefa Consideram ainda que a leitura é fundamental para as
importante no seu dia-a-dia e que a prática de leitura mais aprendizagens escolares do filho e para o sucesso do seu processo
realizada é a leitura de livros. de escolarização. Em menor escala, os entrevistados referem a
importância da leitura para o desenvolvimento e qualidade de
A informação de que a maioria dos entrevistados refere ter vida dos filhos, nomeadamente no campo dos valores.

162
“[a leitura] é um divertimento, ela gosta mesmo, é um prazer, que a professora traz, ele quer saber o que é que é, eu leio alto
tem sempre o facto de ela se informar.(…) ela faz pesquisas, e ele vê o que é que é, que ele também é muito curioso, e isso
às vezes quer saber qualquer coisa e vai procurar. (…) ajuda- faz que nós trabalhemos um bocadinho na leitura.”
a no desenvolvimento dela, eu penso que ajuda... em termos (E17; Sexo Feminino; Meio Rural; Região Centro)
culturais, em termos pessoais.”
(E33; Sexo Feminino; Meio Suburbano; Região LVT) “Sim. Costumamos escrever cartas juntos (…). Escrevo a
minha parte e depois ele e o irmão escrevem a parte deles.
Os resultados obtidos levam-nos a considerar que estes pais Se eles derem algum erro eu corrijo e assim vamos treinando
têm a percepção da importância que as competências de todos.”
literacia têm, não apenas para um maior sucesso escolar e uma (E7; Sexo feminino; Meio Urbano; Região Centro)
melhor inserção profissional dos filhos, mas também para um
mais fácil acesso à cultura e à informação e para que, enquanto É ainda de referir que praticamente todos os entrevistados
cidadãos, os seus filhos possam agir de forma mais autónoma lêem com os filhos no contexto dos trabalhos de casa, das
na sociedade actual, exercendo de forma mais plena a sua pesquisas, quando contam histórias ao deitar, bem como nos
cidadania (Ávila, 2008). jogos e actividades que realizam no computador. Em relação à
escrita, alguns entrevistados afirmaram que a observação, por
4.4. Mudanças na frequência e na natureza das práticas de parte dos filhos, das suas próprias práticas de escrita incentiva
leitura e de escrita com os filhos os filhos a escrever.

Para conhecer as mudanças na frequência e na natureza Os dados obtidos neste estudo, bem como os resultados de
das práticas de leitura e de escrita, perguntou-se aos pais outros trabalhos desenvolvidos nesta área (Anderson & Stokes,
se passaram a ler e escrever mais com o filho desde que 1984; Baker et al., 1995; Mata, 2006; Purcell-Gates et al., 1995),
frequentaram o processo de RVCC, e qual a natureza da leitura confirmam que existe uma grande diversidade de práticas de
e da escrita que realizam. Dos inquiridos, 62,5% respondeu literacia que são realizadas pelos pais com os seus filhos em
que não considera que o RVCC tenha modificado a frequência contexto familiar. Dão-nos conta também de que, tal como
com que lê ou escreve com o filho, quer porque já tinham esse os estudos indicam, a leitura de histórias é uma das práticas
hábito, quer porque os filhos já são autónomos na leitura, ou que mais vezes surge em contexto familiar (Baker et al., 1995;
porque a tarefa de ler com o filho fica a cargo do cônjuge. Mata 2006; Purcell-Gates et al., 1995), mas que existem
Também há aqueles que responderam que não escreviam antes outras práticas do quotidiano em que as crianças também vão
nem passaram a fazê-lo depois do processo de RVCC. participando e que incluem a leitura e a escrita.

“Neste campo não posso dizer que o processo RVCC tenha É ainda interessante destacar que existem muitos pais que
mudado alguma coisa, porque é verdade que eu criei hábitos referem como exemplos de práticas aquelas que se enquadram
de leitura mais frequente, mas eu próprio, porque com a minha numa perspectiva de ensino formal, procurando com os filhos
filha sempre fiz questão de lhe ler uma história ao deitar.” treinar a leitura e a escrita através do apoio na resolução dos
(E6; Sexo Masculino; Meio Urbano; Região Centro) trabalhos escolares.

Os cerca de um terço que passaram a ler e a escrever mais É positivo verificar que os pais entrevistados realizam com
com os filhos referem que, desde que frequentaram o processo os filhos actividades de carácter escolar e leitura de histórias
de RVCC, passaram a ler mais histórias, a ler e a escrever no pois, segundo Sénéchal e LeFevre (2001 cit. por Mata, 2006),
contexto dos trabalhos de casa ou em actividades de treino e a a incorporação regular em simultâneo destes dois tipos de
incentivar a que os filhos leiam para si. práticas está associada a benefícios para as crianças, quer seja
em termos imediatos, como durante o decorrer do 1.º ciclo do
“Sim, histórias, (…) às vezes os próprios trabalhos ou as notas ensino básico.

163 05
4.5. Práticas de leitura e escrita “Hoje fui dar com ele a mexer na garrafa do azeite. Foi à
dispensa, mexeu na garrafa do azeite: «Ó mãe, tenho a mão
Sabendo que as crianças desenvolvem a literacia de acordo com suja!». «E quem é que te mandou ir ali mexer na garrafa do
os valores e a cultura da comunidade na qual estão inseridas azeite?» «Eu estou a ler ali azeite suave…»”.
e que o tipo de experiências valorizadas e proporcionadas, a (E25; Sexo Feminino; Meio Urbano; Região Norte)
frequência e a diversidade dessas experiências, bem como a
qualidade e a forma como são desenvolvidas dependem desse “ (…) Na parte da lista de compras ela gosta muito de ver o que
contexto (Mata, 1999), colocou-se como objectivo do trabalho escrevo e depois quando vou às compras tem de levar a lista
conhecer as práticas de literacia familiar. para ir buscar as coisas”
(E33; Sexo Feminino; Meio Suburbano; Região LVT)
Para cumprir com esse objectivo, tivemos por base diversos
estudos (Baker et al., 1995; Mata, 2002, 2006; Pucell-Gates et Embora a pergunta não remeta para o processo de RVCC, uma
al., 1995), nos quais as actividades de literacia desenvolvidas grande maioria dos pais refere o interesse e a curiosidade dos
por famílias foram categorizadas de acordo com o tipo de filhos no desenvolvimento do portfólio. Nas tarefas de realização
contexto em que se realizam, tendo sido analisados neste dos portfolios, as crianças questionam, participam nas pesquisas,
estudo os contextos de entretenimento, de treino e de rotinas imitam, corrigem os pais e motivam-se para as suas actividades.
diárias. Os resultados obtidos dessa análise serão apresentados A conversa, a leitura e a escrita acabam, de diversas formas, por
em seguida. estar presentes em todo o quotidiano familiar.

4.6. Observação e participação nas práticas quotidianas


“Tem, tem. Eu achava piada mesmo quando eu estava a fazer os
trabalhos para aqui [RVCC] ele gostava sempre de ir ver o que
Para conhecer de que forma os filhos observam e participam
é que [eu] escrevia.”
nas práticas quotidianas de leitura e de escrita dos pais, foi
(E14; Sexo Feminino; Meio Rural; Região Centro)
colocada a questão: “O seu filho costuma observar ou
participar nas suas práticas de leitura e de escrita?”, à qual
“Eu noto que as brincadeiras dele são muito idênticas à minha
87,5% dos inquiridos respondeu afirmativamente, sendo os
realidade, (…) as brincadeiras dele são um bocado o que ele
trabalhos do processo de RVCC, a leitura de jornais e revistas
vê em mim.”
e a leitura e escrita no computador os principais contextos
(E19; Sexo Masculino; Meio Rural; Região Centro)
em que a observação/participação dos filhos se verifica.

Ao referirem de forma espontânea que servem de exemplo para


“ (…) se ponho o jornal de lado, eles pegam logo e vão ver eles
os filhos quando estes os observam em práticas de leitura e de
o que é que tem. Não, eles são muito curiosos... no computador
escrita, reforçam a ideia proposta por Hannon (1995 cit. por
uma pessoa está a ver os e-mails ou a escrever, eles têm que
Mata, 2006) de que os pais têm uma influência muito grande
estar à beira a ver, nunca deixam de estar à minha beira.”
nas experiências de literacia dos filhos, nomeadamente enquanto
(E26; Sexo Feminino; Meio Rural; Região Norte)
modelos pois, ao funcionarem como referência, ajudam os filhos
Ainda que com menor incidência, foram relatadas situações a compreender melhor a funcionalidade da linguagem escrita, e
quotidianas tais como a elaboração de listas de compras, leitura ao envolverem as crianças neste tipo de situações despertam-
de rótulos ou de manuais de instruções, entre outras. lhes o gosto e o interesse pela leitura e pela escrita.

“(…) algum aparelho que às vezes ele me pergunta como é que 4.7. Observação e participação em actividades de entreteni-
funciona eu mando-lhe ir ler o manual e só depois de ele ler o mento
manual é que, se ele ainda não souber trabalhar com aquilo, eu
vou lá dar-lhe uma ajuda.” À pergunta “Costuma envolver-se em actividades lúdicas com
(E39; Sexo masculino; Meio Suburbano; Região LVT) o seu filho que incluam a leitura e a escrita?”, verifica-se que a

164
maioria dos pais (75%) respondeu que se envolve com os filhos do processo de aprendizagem da linguagem escrita, estão
em brincadeiras que mobilizam e aprofundam conhecimentos familiarizados com o jogo enquanto meio de aprendizagem,
de oralidade, leitura e escrita. Entre as actividades mais experimentaram uma abordagem lúdica da literacia e sentem
correntes, evidenciam-se as que mobilizam conhecimentos de a sua eficácia.
leitura e de escrita. Entre outros, referenciam palavras cruzadas
e sopas de letras, Sudoku, bem como jogos como o Monopólio 4.8. Observação e participação em actividades de treino
e o Trivial. Outra actividade que ocupa um lugar privilegiado nas
brincadeiras com os pais é o uso do computador e das consolas Em relação às práticas de treino de leitura e escrita realizadas
de jogos. Alguns incentivam os filhos a ler as regras dos jogos com os filhos, 78% dos inquiridos respondeu que costuma
para compreenderem o seu funcionamento e poderem utilizá-los. treinar com o filho. Um grande número de pais entende o
treino da leitura e da escrita com os filhos numa perspectiva de
“No Magalhães está a aprender a brincar... ou seja, está-se a reproduzir o modelo escolar, referindo principalmente o treino
aprender a brincar... ele tão depressa diz que está certo como da pontuação, caligrafia, escrita e erros ortográficos. Outros
diz que está errado (...) jogamos aos países, às cidades, aos crêem que o seu papel deve ser o de complementar o trabalho
rios (…) no fundo, a brincar a estas situações eles estão a
da escola, procurando proporcionar actividades que facilitem a
aprender (…), o Monopólio, (...) as consolas que também já
aquisição e a destreza em tarefas de carácter escolar.
têm esse tipo de situações em que nós estamos a brincar e que
estamos a aprender.”
(E35; Sexo Masculino; Meio Suburbano; Região LVT) “Quantas vezes ele estava a fazer os deveres e eu chegava ao pé
dele e dizia-lhe (…) «Isto não está bem!», e apagava”
“A Playstation é de trás para a frente, de frente para trás, lê tudo, (E2; Sexo Feminino; Meio Urbano; Região Centro)

mesmo em inglês, não faz mal. (...) lê, a nível de computador, de


Playstation, isso tudo, ele lê. (...) jogos didácticos... na internet o “Escrevo, e ele gosta muito de elaborar textos, aliás, ele diz que
jogo da forca... há aí um jogo de perguntas, que tem as respostas, quer ser escritor (…). Ele às vezes senta-se no computador e
A, B, C e D, e então a gente anda lá entretidos a ver quem é que escreve, é, às vezes chama-me, «ó mãe, anda cá ver se fica bem
erra mais (...)” assim!». Para além dos trabalhos de casa, ele gosta de escrever
(E39; Sexo Masculino; Meio Suburbano; Região LVT) e chama-me muito para o acompanhar, e tem lá uma pasta com
os textos todos dele, as histórias que ele entende escrever.
Muitos deles revelam, claramente, intencionalidade pedagógica Como se fosse um diário. Ele gosta muito de escrever.”
no seu envolvimento nestas actividades, procurando dar-lhes (E38; Sexo Feminino; Meio Suburbano; Região LVT)

significado social.
Apesar de ser uma percentagem menor, é importante referir que Outros encaram a tarefa de treino da leitura e da escrita numa
alguns pais (20%) declaram que não brincam com os filhos perspectiva mais abrangente, tendo em conta a sua função
por falta de tempo, não deixando de se revelar sensíveis à social, inserindo-as na vida familiar.
importância das actividades de lazer.
“Sempre fiz questão de lhe ler uma história ao deitar e agora ela
“Não costumo fazê-lo com muita frequência, porque não tenho lê para mim, mas estou sempre ao lado dela. Costumamos ver
mesmo tempo, mas talvez agora nas férias possa conciliar mais alguns filmes juntos, em que ela está a começar a acompanhar
essas coisas.” bem as legendas (...) se vamos a um restaurante ela começa
(E11; Sexo Masculino; Meio Urbano; Região Centro) a ler a ementa, os rótulos (...) e eu ajudo-a e “puxo” por ela.
Quanto à escrita, costumamos escrever num quadro pequenino
O facto de a maioria dos pais referir que se envolve em que ela lá tem. Eu invento uma palavra e ela escreve no quadro.”
actividades de carácter lúdico no desenvolvimento da leitura (E6; Sexo Masculino; Meio Urbano; Região Centro)
e da escrita dos seus filhos indica, tal como diz Baker et al.
(1995), que provavelmente estes pais têm uma visão positiva As razões pelas quais 20% dos pais não se envolvem em

165 05
actividades de treino da leitura e da escrita com os filhos devem- que estes efectuavam no âmbito do processo de RVCC. Este
se, em certa medida, ao facto de estes considerarem que não interesse manifestou-se não apenas ao nível da tentativa de
existe essa necessidade porque os filhos têm bons resultados compreensão e participação nas actividades, mas também na
escolares e/ou porque são suficientemente responsáveis. imitação destas, o que reforça a ideia de que os pais podem ser
importantes modelos de como e quando utilizar a linguagem
5. Conclusões escrita e de como valorizar e tirar prazer das actividades de
literacia.
Sabe-se que as representações que os sujeitos têm sobre
um determinado objecto vão influenciar de forma decisiva as De um modo geral, verificou-se que os entrevistados revelam
suas práticas relativas a esse domínio. No caso da literacia, interesse pela aprendizagem da leitura e da escrita dos filhos,
estas manifestam-se nos ambientes de literacia que os pais embora em graus diferentes de envolvimento. Contudo, ainda
proporcionam, nas práticas que desenvolvem com os seus que alguns entrevistados tenham declarado que não modifi-
filhos, e na natureza dessas interacções. A partir dos relatos caram as suas representações e práticas, uma análise mais
dos entrevistados, podemos inferir que as práticas de leitura e detalhada revela que há mudanças de natureza qualitativa
escrita com os filhos serão facilitadoras destas aprendizagens pois, apesar de os pais referirem que estas práticas já estavam
nas crianças. Efectivamente, verificou-se que a maioria dos presentes no seu dia-a-dia antes do processo de RVCC, agora
inquiridos declara que ler é uma tarefa importante no seu fazem-nas de um modo diferente. De facto, o modo como se
dia-a-dia e que lê quer por necessidades profissionais, quer processa o envolvimento nas práticas de leitura e de escrita
em contexto de lazer. Muitos consideram ter agora, uma aparece com vários níveis qualitativos, tendo-se neste estudo
vez concluído o processo de RVCC, maior fluência na leitura identificado três. Primeiro surgem aqueles que realizam
e na escrita, passando a valorizar a leitura como fonte de actividades desta natureza no sentido de tentar reproduzir o
aprendizagem e de desenvolvimento intelectual e cultural. Para modelo escolar, realizando práticas segundo um modelo de
além disso, a leitura e a escrita são consideradas por estes pais pedagogia mais tradicional, como seja a correcção da letra, a
como fundamentais para as actividades do quotidiano e para o correcção da ortografia, entre outras.
apoio escolar aos filhos.
Noutro nível encontram-se aqueles pais que, apesar de ainda
Para estes pais, é fundamental que os filhos tenham hábitos considerarem que as práticas de leitura e escrita que realizam
de leitura e de escrita e um bom domínio da leitura, o que com os filhos devem ter uma perspectiva escolar, ou seja, de
é revelador da consciência da importância da literacia no melhorar o seu desempenho académico, consideram que o
mundo actual enquanto veículo de sucesso escolar e de futuro seu papel deve ser o de complementar o trabalho da escola,
profissional e como promotor de bem-estar pessoal e social. procurando por isso efectuar actividades que promovam a
aquisição de competências e destreza nas tarefas (por exemplo:
Estes dados revelam ainda que os pais inquiridos têm, composições, resumos, diários).
frequentemente, interacções ricas e diversificadas com os
filhos (por exemplo: contar histórias ao deitar, fazer actividades Num outro nível estão aqueles que, para além de
de pesquisa), sendo estas assumidas como componente da complementarem o trabalho escolar, assumem a educação
vida familiar. No campo das actividades de lazer que envolvem dos filhos com consciência da sua importância social, na qual
a leitura, constatou-se que a maioria dos pais assume uma englobam a importância das componentes de desenvolvimento
intencionalidade pedagógica quando, com os filhos, vêem cultural e de literacia nos quotidianos familiares. É nesta óptica
televisão em conjunto, e realizam actividades lúdicas no que se considera que pode ser traçada uma linha “gradativa” de
computador, nas consolas de jogos, e em jogos de tabuleiro. complexidade e da frequência das actividades de conhecimento
e de literacia.
Constatou-se ainda que os pais referem que as crianças
demonstravam curiosidade e interesse em relação às tarefas Por tudo o que já foi referido, verifica-se que o processo de

166
RVCC parece promover a criação ou o desenvolvimento de
hábitos de literacia no adulto, mas também que representa
na percepção dos sujeitos mudanças positivas nos hábitos de
literacia familiar. As mudanças evidenciadas pelos inquiridos
são especialmente importantes por se tratar de uma população
que, pelo seu baixo nível de escolarização apresenta mais
carências nestes domínios.

Visto que foram percepcionadas mudanças a este nível, e que


o número de adultos a frequentar actualmente este processo
é muito elevado, pode considerar-se que este é um espaço
privilegiado que, pelas características que apresenta, pode
ser um importante contexto para promover a literacia na vida
familiar.

Neste sentido, seria interessante que, de uma forma intencional,


e tendo em conta as necessidades e especificidades da
população, a literacia familiar fosse objecto de um enfoque
mais activo por parte dos Centro Novas Oportunidades, através
do desenvolvimento de actividades específicas neste domínio,
aproveitando deste modo o potencial e a natureza única da família
para reforçar o seu valor enquanto espaço de aprendizagem.

167 05
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168
Os adultos no contexto do processo de RVCC:
uma abordagem das representações
e práticas do processo de escolarização

169 05
Joana Ferreira1 e Carolina Cardoso1

Resumo
O envolvimento das famílias nos processos de escolarização dos filhos apresenta-
se como uma condição básica para o sucesso escolar das crianças. Deste modo,
se do projecto de vida dos pais fizer parte a escolarização e o sucesso escolar dos
filhos, se a ideia que os pais têm da escola for positiva, se integrarem a cultura
escolar no meio familiar e tiverem para o seu filho expectativas de sucesso, a
criança tenderá a desenvolver atitudes e comportamentos que serão facilitadores
do seu desenvolvimento cognitivo e sentir-se-ão mais motivadas, integradas e
confiantes no seu desempenho escolar.

Os Centros Novas Oportunidades (CNO) permitiram a muitos pais definir


e dar continuidade ao seu próprio projecto de escolarização, procurando o
reconhecimento, a validação e a certificação de competências adquiridas ao longo
da vida, bem como reciclar e adquirir conhecimentos e competências essenciais a
uma melhor integração e adaptação às exigências da sociedade actual.

Com este estudo pretende-se, então, verificar se o adulto que realizou o processo
de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) modifica
a sua interacção com os filhos, e em que medida as novas competências e
conhecimentos adquiridos permitem aos pais incutirem nos filhos valores que
passem pela vontade e interesse pela escolarização.

Com efeito, considera-se pertinente verificar se um novo acesso à escolarização,


nomeadamente através do processo de RVCC efectuado nos Centros Novas
Oportunidades, cria ou reforça no interior da família a construção de um projecto
de vida que passe pelo investimento na escolarização dos próprios e dos filhos.

1. A Educação de Adultos e o processo de escolarização A adaptação a inúmeros cenários e mudanças de carácter


social, político, económico, cultural e tecnológico (Canário,
Em Portugal, verifica-se que o nível de qualificação escolar da 1999) que a sociedade actual impõe aos cidadãos vem
população adulta se encontra muito abaixo da média da maioria afirmar a necessidade de estes adquirirem conhecimentos e
dos países europeus, sendo um dos indicadores que é apontado competências cada vez mais adaptáveis e transferíveis, bem
como uma debilidade estrutural do país (Quintas, 2008). como uma maior participação nos grupos, na cultura, na vida
social e política (Guimarães, Silva e Sancho, 2000). Hargreaves
Esta carência não se reflecte apenas na actividade profissional (2003) acrescenta ainda que se espera que, nos dias de hoje, o
que o adulto possa exercer, mas também limita o seu acesso à indivíduo esteja apto a lidar com o incerto e o inesperado, sendo
cultura e à informação e a possibilidade de ser um agente activo criativo e eficaz nas soluções que encontra para dar resposta às
na construção da sociedade a que pertence. exigências que a sociedade lhe coloca.

 Escola Superior de Educação de Coimbra. Por tudo isto, quer-se que o adulto, para além da sua experiência,
A correspondência relativa a este artigo pode ser endereçada para:
joanaferreira_jf@hotmail.com ou para carolinapcardoso@hotmail.com adquira continuamente conhecimentos e competências. Neste

170
sentido, entende-se que é essencial que o adulto invista e dê Com vista a responder aos défices de escolarização que afectam
continuidade ao seu processo de escolarização, não apenas a maioria da população adulta em Portugal e as consequências
para aumentar o seu nível de escolaridade, mas principalmente que deles advêm surge, entre outras medidas, a Iniciativa Novas
para promover o seu acesso a melhores condições de vida. Oportunidades e, com ela, o processo de Reconhecimento,
Validação e Certificação de Competências (RVCC), levado a
As medidas que foram inicialmente implementadas para cabo por Centros Novas Oportunidades (CNO). Através das
colmatar os baixos níveis de escolarização da população aprendizagens adquiridas pelos adultos ao longo da sua vida, este
adulta portuguesa não resultavam em respostas educativas programa procura reconhecer, validar e certificar competências
adequadas às características e necessidades formativas da escolares e profissionais de adultos com experiência profissional
população adulta, dado terem por base os mesmos modelos comprovada (http://www.anq.gov.pt).
de programas educativos que se destinavam à formação
de crianças e jovens (Quintas, 2008). Surgiu, deste modo, a Para além destes pressupostos, o processo de RVCC tem
necessidade de se utilizarem outras abordagens formativas e ainda por objectivo promover na população adulta o gosto e a
programas educativos. necessidade de continuar a aprender, que se concretizam numa
procura de formações e/ou no prosseguimento dos estudos.
O aparecimento de novos conceitos no domínio da Educação Os ganhos que o adulto pode obter por dar continuidade ao seu
de Adultos, dos quais se destacam o conceito de Educação processo de escolarização manifestam-se quer ao nível pessoal,
permanente e educação recorrente, permitiram um entendimento como profissional, social e familiar.
mais amplo da educação, reconhecendo-a como um processo
que ocorre ao longo da vida. Este entendimento da educação Considera-se, por tudo o que acima foi referido, que ter
permitiu, assim, considerar vários contextos de aprendizagem, frequentado o processo de RVCC introduz mudanças em todos
não os reduzindo apenas ao sistema escolar, mas valorizando os domínios da vida destes adultos, e que o reinvestimento na
também os processos educativos que se desenvolvem noutros escolarização demonstra, per se, um reforço dado à importância
contextos. Neste sentido, a Educação de Adultos contempla, conferida à escolarização. Sabendo que a família tem um
para além das aprendizagens desenvolvidas nos contextos papel determinante no sucesso escolar das crianças, importa
formais, aprendizagens não-escolares, mais espontâneas e compreender em que medida esta atitude dos pais perante a
menos sistemáticas e intencionais, que são entendidas como sua própria escolarização se reflecte num maior investimento
igualmente importantes e interessantes no contexto das dado ao processo de escolarização dos filhos.
aprendizagens adquiridas ao longo da vida. Assim, para além
da educação formal, são considerados dois outros contextos 2. Família, educação e processo de escolarização
educativos: a educação não-formal, que se define como
qualquer tentativa educacional organizada e sistemática que A família, ao longo de gerações, tem sido considerada uma peça
normalmente se realiza fora dos quadros do sistema formal, fundamental na educação das crianças. É entendida como uma
e a educação de ensino informal, que define os contextos em “instituição fundamental de educação em qualquer cultura. Aí
que a pessoa adquire e acumula conhecimentos através da encontramos, simultaneamente, a educação formal e informal.
experiência diária em casa, no trabalho e no lazer. Os pais, pelo simples facto de coabitarem com os filhos,
constituem fonte e modelo de educação. Eles são exemplos
A Educação de Adultos ganhou novos contornos quando, ao que os filhos seguem quase instintivamente. Também ensinam
passar a ser entendida como um processo que se desenvolve quando falam, exemplificam, elogiam ou até punem. A família
ao longo da vida e em vários contextos, se sentiu a necessidade é a primeira instituição de educação no tempo e, em muitos
de reconhecer, validar e certificar competências dos adultos, casos, a mais importante da sociedade” (Frost, 1966).
conferindo valor às aprendizagens e às experiências ocorridas
ao longo das suas vidas. A família enquanto instituição tem sido constituída como objecto
de análise em várias disciplinas científicas, nomeadamente

171 05
pela Sociologia e pela Psicologia. Estas abordagens sociais e A relação entre o insucesso escolar e os baixos níveis
humanas de análise da família têm procurado compreender de socioculturais tem sido amplamente estudada. É frequentemente
que modo a educação familiar interage com o comportamento considerado que crianças que pertencem a uma classe social
e as aprendizagens das crianças (Neves, 1999). desfavorecida podem estar em risco de insucesso escolar,
dado que o ambiente familiar no qual estão inseridas é,
Considerando que a família tem um papel fundamental no tendencialmente, intelectualmente pouco estimulante (Manning
desenvolvimento e inserção dos filhos nos diversos contextos da & Baruth, 1995).
sociedade, e sabendo ainda que a escolarização é, na sociedade
actual, factor determinante para essa inserção, importa Segundo Bourdieu e Passeron (1966), a relação entre o nível
compreender de que forma é que os pais, bem como a escola sociocultural das famílias e o rendimento escolar das crianças
em relação com os pais, promovem e oferecem condições às reflecte a reprodução das relações assimétricas de classe,
crianças para que estas se desenvolvam plenamente. legitimada pelo sistema educativo que procurava garantir
apenas à classe dominante a “transmissão hereditária do capital
O projecto de escolarização que os pais definem para os seus cultural”, perpetuando assim as diferenças de classes. Deste
filhos não é o mesmo para uma família de nível sociocultural modo, segundo esta teoria, as desigualdades de oportunidades
elevado e para uma família de nível sociocultural baixo: a no acesso e prosseguimento no ensino derivam, em grande
primeira está familiarizada com a escola e as suas práticas, parte, da estratificação social. No entanto, Diogo (1998) entende
permitindo à criança uma inserção mais fácil nos contextos que as diferenças na desigualdade de oportunidades no ensino,
sociais, nomeadamente na escola; a segunda não consegue dar explicadas pela diferença na qualidade da “herança cultural”
resposta às solicitações sociais porque não domina as regras em função da classe social, apenas explicam as diferenças
da escola. De facto, muitas das dificuldades que os alunos de no desempenho escolar entre classes sociais distintas, não
classes populares sentem advêm do facto de, à entrada para a explicando a disparidade no sucesso escolar no seio da mesma
escola, terem de se familiarizar com a cultura escolar e com os classe. Independentemente do rendimento do agregado ou do
numerosos elementos que a caracterizam, visto não terem tido, nível de instrução dos pais, o modelo cultural e educativo dos
até então, oportunidade de os conhecer no ambiente familiar pais e as suas representações são variáveis, pelo que devem
(Pourtois, Desmet & Barras, 1994). ser tidas em consideração quando se analisa o desempenho
escolar das crianças (Clark, 1983; Pourtois et al., 1994). Um
Esta falta de domínio do código escolar resulta, em grande ambiente familiar em que exista o diálogo, o incentivo, a
medida, do baixo nível de educação e de qualificação dos pais e da criação/fixação de objectivos e um clima educativo positivo
pobreza cultural do ambiente familiar, que se manifestam também são igualmente condições importantes para se compreender as
numa pobreza linguística aos níveis lexical e sintáctico. O capital questões associadas ao sucesso escolar (Clark, 1983).
escolar, ou seja, o nível de instrução que a criança será capaz
de adquirir, está fortemente condicionado pelo capital cultural Tendo em conta que o ambiente familiar e o apoio parental
que a família é capaz de transmitir à criança. No entanto, isto contribuem, em grande medida, para explicar a aprendizagem
não significa que crianças provenientes de meios socioculturais escolar e o desenvolvimento cognitivo das crianças, Clark (1983)
menos favorecidos tenham nascido menos inteligentes; significa, considera como práticas determinantes para o sucesso escolar:
sim, que essas crianças têm menos oportunidades de acesso a i) o desenvolvimento de um sentido de pertença e a valorização
determinadas experiências que estimulem e incentivem o seu da escola; ii) o estabelecimento de rotinas; iii) o estabelecimento
desenvolvimento intelectual (Diogo, 1998). Entende-se, por isso, e distribuição de tarefas no contexto familiar; iv) a supervisão
que quanto mais rico e variado for o ambiente familiar, bem como do tempo que a criança despende nas várias tarefas; v) o
as experiências vividas em contextos informais e não formais, incentivo à leitura; vi) a criação de espaços de conversa sobre a
maiores são as possibilidades que a criança tem de desenvolver importância da aprendizagem e da escola; vii) as visitas à escola;
competências e adquirir conhecimentos relevantes para o seu viii) o incentivo à prática de actividades extracurriculares e
desenvolvimento cognitivo. passatempos; ix) a realização de brincadeiras em conjunto, bem

172
como as visitas a espaços culturais. Bloo (1984, cit. por Silva e crenças e valores que os seus filhos têm acerca das suas
Martins, 2002) complementa esta ideia acrescentando algumas próprias competências. Desta forma, verifica-se uma relação
práticas, tais como: i) o acompanhamento e apoio às tarefas positiva entre as expectativas parentais e a performance e
escolares; ii) as actividades que promovam o desenvolvimento motivação para a realização das crianças. Outros estudos
intelectual e linguístico; e iii) a explicitação das expectativas e (Koutsoulis & Campbell, 2001) demonstram que a pressão
aspirações dos pais em relação aos seus filhos e ao seu percurso exercida e baixos níveis de suporte oferecidos pelos pais
educativo, as quais, segundo o autor, também são conducentes desmotivam as crianças e condicionam negativamente o seu
ao sucesso escolar. Também Walberg (1984 cit. por Silva e desempenho escolar. Entende-se, por isso, que um maior
Martins, 2002) define algumas estratégias que os pais podem apoio parental e uma menor coerção permitirá um melhor
adoptar na relação com os seus filhos e que podem contribuir desenvolvimento cognitivo das crianças.
para o sucesso escolar: i) conversar com os filhos sobre os
acontecimentos do dia-a-dia; ii) incentivar a leitura pelo prazer Diversas investigações (Belsky, 1981; Marjoribanks, 1979)
que lhe está associado; iii) assistir e conversar em conjunto sobre têm verificado que a qualidade do clima familiar se relaciona
os programas televisivos; e iv) expressar interesse e dedicação significativamente com variáveis como a inteligência, a
pelo desenvolvimento escolar e pessoal do filho. motivação para a realização, a auto-estima e o rendimento
escolar das crianças.
A representação que os pais têm da escola é influenciada
pelo seu próprio percurso de (in)sucesso escolar, e influencia Nos seus estudos, Katkovsky, Crandall e Preston (1964
fortemente a representação que a criança terá do seu próprio cit. por Eccles, Wigfield & Schiefele, 1998) verificaram
percurso educativo. Se existir uma forte cultura de escolarização que quanto melhor for a imagem que os pais têm da sua
por parte dos pais que passe pela construção de um projecto própria competência intelectual, mais provável será que
de escolarização para os seus filhos, se a ideia que os pais estes participem nas actividades intelectuais dos filhos e os
têm da escola for positiva e estes tiverem, para os seus filhos, incentivem.
expectativas de sucesso, a criança sentir-se-á segura, motivada
e integrada no meio, sentirá confiança no seu desempenho Deste modo, as representações e as atitudes que os pais
escolar e procurará ir ao encontro das expectativas dos pais. têm acerca da escola estão relacionadas com a sua própria
experiência escolar, transferindo para os seus filhos, em
Os pais funcionam, desta forma, como agentes sociais que muitos casos, a sua experiência enquanto estudantes. Assim,
têm uma influência determinante na construção das atitudes e os pais que não tiveram um percurso escolar pautado pelo
comportamentos das suas crianças face à educação e à escola sucesso tendem a ter pouco contacto com a escola dos
(Mackay & Miller, 1982, cit. por Jodl, Michael, Malanchuk, seus educandos. Todavia, Davies (1989), refere que, quando
Eccles & Sameroff, 2001). A família enquanto modelo influencia entrevistados, estes pais manifestam um grande interesse
a criança de acordo com as suas práticas educativas e os seus pela educação dos seus filhos, mas não sabem o que e como
esquemas culturais. Por conseguinte, a família determina fazer para participar mais nas tarefas escolares dos mesmos,
fortemente o desenvolvimento da criança e a qualidade desse quer na escola, quer em casa.
desenvolvimento, que se traduzem, na escola, por um bom
desempenho escolar (Pourtois et al., 1994). 3. Relação escola-família

No estudo realizado por Wang, Wildman e Calhoun (1996) Sabendo que os pais são modelos importantes para a
é comprovada a existência de uma relação positiva entre a realização e aprendizagem escolar e para o desenvolvimento
realização dos alunos e variáveis como as expectativas dos cognitivo das crianças, pois são as suas representações e
pais, a educação e o suporte fornecido por estes. Segundo expectativas acerca da escola que servem de referência
Fredricks e Eccles (2002), as percepções que os pais têm das quanto às atitudes, comportamentos e à importância que a
capacidades dos seus filhos é determinante na formação das criança atribui à escolarização, é fundamental que a escola

173 05
crie condições de relacionamento com todos os pais. Torna- No mesmo sentido, um trabalho de investigação-acção que
se essencial existir uma cooperação entre a escola e os tinha por objectivo incrementar a participação das famílias
pais, no sentido de os ajudar a ter um papel mais activo no na vida escolar dos filhos demonstrou existirem ganhos
percurso escolar dos filhos, com vista a um maior e melhor significativos, como sendo o aumento da confiança das famílias
acompanhamento e investimento no processo de escolarização enquanto agentes educativos, a partilha de experiências entre
dos mesmos. Se os professores criarem estratégias de os membros das famílias envolvidas, um aumento dos níveis
envolvimento dos pais promovendo o desenvolvimento de de motivação dos filhos para as aprendizagens escolares e
atitudes positivas face à escola e se os ajudarem a integrar a uma atitude mais positiva dos alunos face aos conteúdos
cultura escolar no contexto familiar, as dificuldades sentidas em programáticos escolares (Silva e Martins, 2002).
compreender o código e a cultura escolar por parte de alunos
de famílias de baixo nível sociocultural poderão ser atenuadas, As investigações que têm sido realizadas nesta área têm
criando, assim, condições para que todos tenham sucesso ao procurado conhecer as variáveis que contribuem para potenciar
longo do seu percurso escolar. a relação escola-família, desenvolvendo alguns modelos
que permitem compreender que tipo de práticas podem ser
Pelo que foi referido, considera-se que o envolvimento das desenvolvidas em parceria por pais e professores.
famílias nos processos de escolarização dos filhos é uma
condição-chave para o sucesso escolar das crianças. No entanto, Um dos modelos criados foi a tipologia apresentada por Epstein
não é suficiente enviar diariamente os filhos à escola para que (1995), que comporta seis modalidades de envolvimento
o processo de escolarização se efective. Entre as necessidades parental, a saber: i) a formação e ajuda às famílias, que se
decorrentes do empenho dos pais na escolarização dos filhos, traduz na ajuda prestada às famílias em criar condições de
parecem sobressair: a implicação das pessoas significativas na trabalho em casa que suportem as aprendizagens escolares;
relação pedagógica, a atribuição de sentido às aprendizagens, e ii) comunicação entre escola e família, comportando várias
a necessidade de uma pedagogia diferenciada (Salgado, 2003). práticas e instrumentos de comunicação com vista a reforçar
e intensificar a comunicação entre a escola e a família,
Os alunos cujos pais e escola trabalham em parceria sentem que nomeadamente através de cartas, reuniões, visitas domiciliárias,
há pessoas de ambos os contextos que se preocupam, investem contactos telefónicos, entre outros; iii) voluntariado na escola,
e coordenam tempo e recursos para contribuir para o seu remetendo para a prestação de qualquer tipo de trabalho que
sucesso educativo, o que lhes permite compreender melhor a os pais, de modo voluntario, queiram realizar na escola, como
importância da sua escolarização e sentirem-se mais motivados sendo a ajuda a outros pais, a participação na associação de
para nela investirem. As famílias e as escolas que cooperam pais e/ou em actividades desenvolvidas na escola (festas,
podem contribuir, assim, para i) melhorar o aproveitamento actividades desportivas, culturais, etc.); iv) envolvimento
escolar dos estudantes, ii) elevar a sua auto-estima, iii) criar em actividades de aprendizagem em casa, contemplando
atitudes positivas face à aprendizagem, iv) promover a sua as competências que fomentam a interacção, orientação e
autonomia e realização pessoal (Diogo, 1998), e v) reduzir apoio em tarefas de casa, de enriquecimento e/ou de estudo;
conflitos entre a escola e a família, tornando o ambiente escolar v) envolvimento no processo de tomada de decisões,
mais positivo (Comer, 1984). remetendo para a inclusão dos pais nos processos decisórios
com vista a uma participação efectiva destes nos órgãos
Estudos realizados nesta área têm vindo a demonstrar que, representativos; e vi) colaboração com a comunidade,
da colaboração entre os pais e a escola, resultam inúmeros contemplando e responsabilizando parceiros comunitários
benefícios e efeitos positivos na vida escolar dos alunos, dos nos programas educativos, rentabilizando os recursos da
quais se destacam a melhoria do rendimento escolar (Walberg, comunidade para o enriquecimento das aprendizagens dos
Bole & Waxman, 1980 cit. por Cavalcante, 1998; Silva & Martins, alunos.
2002) e a diminuição do número de faltas e reprovações a
redução de problemas comportamentais (Comer, 1980). De acordo com Epstein (1995), as parcerias que se estabelecem

174
entre as famílias e a escola contribuem para melhorar o resultados auferidos pela análise dos dados referentes ao
ambiente escolar, oferecem suporte às famílias, aumentam conceito de Processo de Escolarização.
as competências dos pais, aproximam as famílias da escola e
permitem que os pais auxiliem os professores a desempenhar O grupo de questões formuladas tinha como objectivo conhecer
melhor o seu papel de docente. as mudanças provocadas pela frequência no processo de RVCC
quanto: i) às mudanças ocorridas na vida do inquirido; ii) à
Por tudo isto, o envolvimento e a cooperação dos pais com a perspectiva do futuro escolar do inquirido; iii) à importância
comunidade escolar revela-se fundamental para que a criança conferida ao percurso escolar do filho; e iv) à frequência de
se sinta mais motivada e compreenda melhor a importância participação na vida escolar do filho.
e a necessidade de investir na sua escolarização, sendo a
participação activa dos pais, tanto na relação com a escola De forma a obter uma descrição que dê conta, de modo
como no apoio escolar em casa, fundamental neste processo. aprofundado, do teor das entrevistas, procedeu-se a uma
análise de conteúdo das respostas dos sujeitos inquiridos,
4. Problemática tendo sido codificadas e divididas as respostas em categorias,
subcategorias e componentes.
O nível de qualificação escolar dos adultos está, em certa
medida, associado ao domínio da cultura escolar, bem No ponto seguinte, serão apresentados e discutidos os
como às representações que o adulto tem da importância resultados obtidos.
da escolarização. É sabido que um percurso escolar de
insucesso tem implicações na auto-imagem e na percepção 5. Análise e discussão dos resultados
que o adulto tem das suas competências, assim como nas
representações e expectativas de (in)sucesso escolar que tem 5.1. Mudanças de vida provocadas pelo processo de RVCC
para o seu filho. Porque a família, com as suas representações
e expectativas, é determinante na construção de atitudes e na De modo a conhecer as mudanças provocadas na vida dos
adopção de comportamentos por parte das crianças face às inquiridos após terem frequentado o processo de RVCC,
aprendizagens e à escola, é fundamental compreender de que efectuou-se a seguinte questão: “Ter realizado o processo de
modo o reinvestimento, por parte de adultos, no seu projecto RVCC provocou alguma alteração na sua vida? Qual/quais?”. Da
de escolarização, nomeadamente através do processo de análise realizada às respostas dos inquiridos, pôde-se constatar
RVCC, provocou mudanças na sua vida e se estas mudanças se que 82,5% dos entrevistados refere que este processo provocou
traduzem num maior investimento e envolvimento no processo alterações na sua vida.
de escolarização dos filhos.
Quanto às mudanças que alguns dos entrevistados consideram
Para responder aos objectivos deste estudo, procedeu-se a uma que o processo de RVCC provocou, destacam-se as referências
investigação de carácter exploratório, dado não se conhecer feitas às mudanças percepcionadas na sua auto-estima, uma
estudos que já se tivessem debruçado sobre esta problemática vez que lhes foram validados conhecimentos e competências
em específico. Deste modo, recorreu-se a uma amostra por que até então não lhes eram reconhecidos.
conveniência, constituída por 40 adultos que concluíram o
processo de RVCC de nível básico e com filhos a frequentar o “Noto que acabo por ter mais confiança, não naquilo que
1.º ciclo do ensino básico. adquiri, mas naquilo que eu posso mostrar aos outros. (…)
Sempre tive o gosto pelo estudo, o que eu não tinha realmente
Para proceder à recolha dos dados, optou-se pela entrevista era a certificação (...) Trabalhava numa área que puxava muito
semi-estruturada. Esta foi construída tendo por base uma mentalmente, como agora, mas depois quando chegava para
revisão bibliográfica sobre os diversos conceitos abordados perguntar: o que é que tens? - 9º Ano. Descia ali não sei
neste estudo. Este artigo abordará, especificamente, os quantos degraus, e isso frustrava-me, porque na realidade se

175 05
me metessem à prova, era capaz de fazer muito mais do que a É ainda de destacar a aprendizagem de saberes específicos
pessoa que tinha o 9º ano e agora isso já não acontece (…)” fundamentais na sociedade do conhecimento, nomeadamente
(E2; Sexo Feminino; Meio Urbano; Região Centro) na área da informática. O domínio desta ferramenta, para além
de permitir uma maior adaptação às exigências da sociedade
Sendo a dimensão familiar um dos aspectos centrais deste actual, constitui a possibilidade de aproximação à realidade dos
estudo, é interessante constatar que há pais que se sentem filhos, uma vez que estes instrumentos fazem hoje parte da
mais valorizados perante a família, mais especificamente pelos cultura e identidade dos mais jovens.
filhos.
“Nem sabia o que era um e-mail, não sabia nada mesmo, não
“Se calhar as pessoas lá de casa dizem “pai, já tens o nono sabia escrever, não sabia fazer aplicações, nem ir à Internet e
ano!” (…) A gente sente-se mais valorizados, isso é verdade.” fazer pesquisas, e acabei por aprender isso tudo.”
(E28; Sexo Masculino; Meio Rural; Região Norte) (E26; Sexo Feminino; Meio Rural; Região Norte)

Quanto à auto-estima, salienta-se ainda a importância de Alguns referem competências ao nível do trabalho, sendo
terem ganho uma maior consciência das suas competências de salientar, para além das possibilidades de progressão na
e uma maior confiança em dar continuidade ao seu percurso carreira, a capacidade de assumir adequadamente as suas
educativo. funções com maior autonomia.

“Alterou (...) passei a ver as coisas de outra forma (...) fez-me “Mais consciente das minhas capacidades (...) agora estou com
querer atingir objectivos que eu nunca pensei querer vir a atingir a minha carga horária quase sobrecarregada (...) já não mandam
novamente.” no meu trabalho, sou eu que vou gerindo o meu trabalho e o
(E38; Sexo Feminino; Meio Suburbano; Região LVT) poder transmitir a outras pessoas os conhecimentos de 20
anos, para mim isso é muito importante...foi uma subida muito
Foi ainda evidenciado por alguns o entusiasmo para investir na grande.”
cultura e na pesquisa de informação, numa vontade de saber (E36; Sexo Feminino; Meio Suburbano; Região LVT)
mais.
Assim, as mudanças provocadas na vida destes adultos por
“Deu-me mais entusiasmo para participar noutras coisas, deu- terem frequentado o processo de RVCC reflectem-se em
me mais entusiasmo para eu me desenvolver culturalmente, benefícios ao nível da auto-estima, numa maior consciência das
deu-me mais para pesquisar, deu-me mais para me informar suas competências e numa maior confiança em prosseguir os
sobre certos assuntos.” estudos. Estes adultos revelam investir mais na cultura e terem
(E33; Sexo Feminino; Meio Suburbano; Região LVT) agora maior facilidade em pesquisar informação, em parte
devido à aquisição ou aprofundamento de competências no
Das capacidades adquiridas, evidenciam-se as competências de domínio da informática. Estes ganhos são ainda mais relevantes
leitura e de escrita e maiores capacidades de comunicação. quando verificamos que, por terem competências nesta área, se
sentem mais próximos e compreendem melhor as actividades e
“Sem dúvida alguma que mudou um bocadinho na minha interesses dos filhos.
maneira de estar na vida, deixa-me muito mais aberto, uma Estes resultados são concordantes com os estudos de
coisa que eu noto sem dúvida alguma é que sei ouvir e o facto de Katkovsky, et al. (1964 cit. por Eclles et al. 1998), que verificam
saber ouvir ajuda-me a parar para pensar e quando nós ouvimos que, quanto melhor for a imagem que os pais têm de si e da
bem (...) é muito mais fácil de responder correctamente. (…) O sua competência intelectual, mais provável será que participem
facto de ser mais fácil expressar-me.” e incentivem as actividades intelectuais dos filhos.
(E19; Sexo Masculino; Meio Rural; Região Centro)

176
5.2. Perspectiva do seu próprio futuro escolar num período O investimento destes adultos na sua escolarização é bastante
de 5 anos positivo, pois sabe-se que a qualificação escolar possibilita
uma maior e melhor integração e adaptação dos indivíduos às
Procurando perceber se, após terem completado o processo de exigências da sociedade actual, que impõe aos seus cidadãos
RVCC, os inquiridos deram continuidade ao seu processo de uma constante necessidade de resposta à mudança e à inovação.
escolarização ou têm vontade de o fazer, formulou-se a questão: Através da escolarização, desenvolvem os seus conhecimentos
“Como vê o seu futuro escolar daqui a 5 anos?”. Verificou-se e competências, tornando-se mais autónomos no acesso
que a maioria (77,5%) refere ter vontade ou sentir necessidade à informação e à cultura, e melhoram a sua capacidade de
de continuar a estudar, sendo que uma grande parte dos participação e intervenção nas várias dimensões das suas vidas
inquiridos tem por objectivo fazer outras formações, e que (pessoal, profissional, familiar e comunitária).
outros esperam vir a ingressar ou terminar o nível secundário
do processo de RVCC ou dos Cursos EFA, ou ingressar no 5.3. O processo de RVCC e as mudanças ocorridas na
Ensino Superior. Com menos representatividade, surgem ainda importância conferida ao percurso escolar do filho
aqueles que pretendem terminar o Ensino Superior.
Procurando analisar as mudanças ocorridas após o processo
“Vou tirar um segundo curso de informática e vou-me inscrever num de RVCC, no que concerne a importância conferida ao percurso
curso de inglês, e depois então se achar que estou mais preparada, escolar do filho, colocou-se aos inquiridos a seguinte questão:
depois então sou capaz de entrar para o décimo segundo.” “Desde que frequentou o processo de RVCC, como vê a
(E14; Sexo Feminino; Meio Rural; Região Centro) importância do percurso escolar do seu filho para o futuro
dele? O que mudou?”, tendo-se verificado que 65% dos
“O primeiro objectivo é, sem dúvida, tirar uma licenciatura de pais considera que não lhe atribui uma maior importância,
engenharia agrónoma (...) e o outro objectivo está entre aspas, por considerarem que sempre investiram e atribuíram muita
talvez seja fazer um mestrado (...) mas parar de estudar não (...) importância ao processo de escolarização do filho.
uma coisa que eu faço frequentemente é que todas as formações
profissionais que existem ligadas à minha área de trabalho, “Eu tinha a ideia que hoje tenho. (…) Continuo a achar muito
obviamente que eu estou presente em todas as possíveis.” importante que o meu filho tenha um bom percurso escolar e
(E19; Sexo Masculino; Meio Rural; Região Centro) estamos a trabalhar para isso em conjunto, para que o futuro
dele seja bom e mais fácil.”
As razões pelas quais 10% dos entrevistados não tencionam (E8; Sexo Masculino; Meio Urbano; Região Centro)
prosseguir os estudos poder-se-ão dever ao facto de a
passagem do 4.º ano para o 9.º ano já ter representado um No entanto, apesar de os pais não modificarem o sentido
grande esforço e o conseguir de um objectivo que, até à data, do projecto de escolarização que têm para os filhos, muitos
ainda não lhes criou a vontade de reinvestir e dar continuidade enriqueceram este projecto. Da mesma forma, o facto de
ao seu processo educativo. estes terem retomado os estudos revela, só por si, que estão
conscientes da importância da escolarização, ou seja, reconhecem
“(…) não penso em fazer o 12º. Para mim, já chega! Já foi um que é fundamental ter conhecimentos e competências para dar
caminho longo da 4ª classe para o 9º ano.” resposta às exigências da sociedade actual.
(E7; Sexo Feminino; Meio Urbano; Região Centro)
“A minha maneira de pensar é a mesma, é por isso que eu recorri
Deste modo, parece que o facto de terem realizado o processo ao processo RVCC (…). Porque a importância [de estudar] é
de RVCC permitiu a estes adultos não só aumentar o seu nível tão grande que senti necessidade de recorrer (…)”
de escolaridade, mas também criar a necessidade e interesse (E5; Sexo Feminino; meio Rural; Região Centro)
em continuar a estudar, quer para progredir nos estudos, quer
para obter mais formação. Dos 35% entrevistados que consideram que houve mudanças,

177 05
grande parte refere que passou a valorizar mais o percurso A função mais referida remete para a formação para a vida
escolar do filho como uma forma de este ter mais e melhores activa, incluindo a formação profissional. Parecem igualmente
oportunidades de emprego; alguns referem ainda que, agora relevantes as referências feitas à importância dos estudos para
que reinvestiram na sua escolarização, têm uma percepção mais o desenvolvimento pessoal e social dos filhos, quer do ponto
consistente de que estudar possibilita uma maior realização e de vista das relações pessoais e sociais, quer para melhorar as
desenvolvimento pessoal e profissional. suas capacidades de comunicação, quer ainda para potenciar
as suas capacidades cognitivas.
Muitos entrevistados justificam o seu empenho no futuro escolar
dos filhos como forma de colmatar o facto de eles próprios não “Muito importante, (…) os estudos são muito enriquecedores
terem continuado os seus estudos, tendo só posteriormente como pessoa, como profissional, como tudo.”
tomado consciência da necessidade da formação para a (E5; Sexo Feminino; meio Rural; Região Centro)
melhoria das suas condições de vida.
“Eu sempre tive esses valores e acho que o trabalho dela neste
“(…) e eu hoje entendo isso e não quero de forma alguma que momento e o objectivo principal e único é o percurso escolar.”
aconteça isso aos meus filhos, que é o facto de ter que começar (E3; Sexo Feminino; Meio Urbano; Região Centro)
a trabalhar cedo afasta-nos a nossa mente (…) graças ao RVCC,
a abrir esta caixa e a soltar toda esta informação que estava Os pais, de acordo com as suas práticas educativas e o
guardada, que está cá há muitos anos... e deixa-me muito mais seu capital cultural, funcionam como agentes sociais que
à vontade e isso sem dúvida nenhuma ajuda os meus filhos no influenciam e moldam as atitudes e comportamentos que as
processo escolar (…) sempre achei que era importante andar crianças desenvolvem. Deste modo, a família desempenha um
na escola, acredito que hoje dou muito mais importância a esse papel determinante, pois é nela que as crianças aprendem a
facto (…)” importância da educação e da escola (Mackay & Miller, 1982
(E19; Sexo Masculino; Meio Rural; Região Centro) cit. por Jodl et al. 2001). Por isso, a representação que os
pais têm da escolarização influencia fortemente a percepção
É também interessante verificar que a maioria dos pais que os filhos têm da mesma. Assim, e considerando os
gostaria que os seus filhos estudassem até ao Ensino Superior, resultados obtidos, pode-se depreender que existe uma forte
revelando interesse em investir no processo de escolarização cultura de escolarização por parte destes pais, o que poderá
dos mesmos. traduzir-se num ambiente familiar rico e variado, em que se
aposta no desenvolvimento de competências e na aquisição de
“Acho que é muito importante. Espero que ela chegue ao Ensino conhecimentos fundamentais para o desenvolvimento pessoal
Superior. (...) Eu sei que não está fácil arranjar empregos, mas e escolar da criança.
eu como mãe vou fazer de tudo para ela nunca desistir (…) para
lhe dar uma formação que eu não tive (…)” 5.4. O processo de RVCC e as mudanças ocorridas na fre-
(E9; Sexo Feminino; Meio Urbano; Região Centro) quência de participação na vida escolar do filho

Também é de salientar a consciência de que a escolarização e a Como forma de verificar as mudanças nas práticas de
formação são hoje fundamentais para qualquer tarefa. envolvimento na escolarização dos filhos após o processo de
RVCC, procurou-se perceber se os entrevistados passaram
“Eu sempre dei importância a isso, mas agora dou ainda mais a participar mais na vida escolar dos filhos, e de que forma
porque (…) estamos num mundo muito difícil de viver e até o fazem. Neste sentido, à pergunta “Desde que frequentou o
para trabalhar num restaurante, numa pastelaria já estão a pedir processo de RVCC, participa mais na vida escolar do seu filho?
o 9º ano e às vezes o 11º até. (...)” De que forma?”, 80% dos inquiridos considerou que não
(E7; Sexo Feminino; Meio Urbano; Região Centro) participam mais na vida escolar do filho após o processo de
RVCC porque já participavam activamente antes de realizar este

178
processo. É interessante verificar que, quanto à importância então, tinham dificuldade em compreender.
atribuída à participação na vida escolar dos filhos, a maioria Podemos concluir ainda que este maior envolvimento dos pais
dos sujeitos considera ou já considerava importante essa na vida escolar dos filhos leva a que os seus filhos sintam que
participação, mesmo antes de terem realizado o processo de são investidos tempo e recursos no seu processo educativo, o
RVCC. que lhes permite compreender melhor a importância da escola
e sentirem-se mais motivados para aprender, conduzindo a uma
“Sempre participei, sempre tive essa noção de que era atitude mais positiva face à aprendizagem, importante para o
importante participar.” investimento por parte das crianças no seu sucesso escolar.
(E22; Sexo Masculino; Meio Rural; Região Norte)
6. Conclusões
Apesar de muitos pais já se envolverem e participarem no
processo escolar dos filhos, a participação no processo de Ao tentar compreender quais as expectativas que os pais
RVCC parece ter sido uma mais-valia, uma vez que possibilitou demonstram em relação ao processo de escolarização dos seus
o desenvolvimento de competências de comunicação que filhos, a reflexão centrou-se em duas direcções de intervenção.
potenciam e efectivam uma participação mais activa, e também Por um lado, o modo como integram o processo de escolarização
uma maior compreensão e intervenção na vida escolar dos filhos no projecto de vida que traçaram para os seus filhos, e como
(como seja nas reuniões escolares, festas e outras actividades começam a concretizá-lo presentemente. Por outro, quais as
da escola). expectativas que os entrevistados demonstram em relação à
continuação dos seus próprios processos de escolarização,
“Vou às reuniões… eu isso sempre fui, mas se calhar participo explicadas também através das modificações operadas nas
mais, de uma forma mais coerente, com mais firmeza, não suas vidas.
tenho medo de falar. Antigamente ia às reuniões com mais pais,
se calhar estava mais num canto, mais calada, a ouvir. Agora Apesar de a maioria dos inquiridos considerar que não
acho que já participo (…)” modificou a importância que atribuía ao percurso escolar do
(E4; Sexo Feminino; Meio Urbano; Região Centro) seu filho por previamente o considerar já muito importante,
estes pais afirmam, no entanto, juntamente com os que
“Sim, respondo sempre, porque é bom (...) quando foi o dia do consideraram ter havido mudanças durante o processo de
pai também fui (...) participo, gosto de participar. Antigamente RVCC, que têm agora uma percepção mais consubstanciada de
não, antigamente sentia-me à parte, tomara que não me que investir no percurso escolar do filho pode trazer ao seu
chateassem, tomara que não falassem comigo, mas agora não. filho mais e melhores oportunidades de emprego, melhores
Gosto de participar, e mais para dar força ao meu filho.” capacidades de comunicação, bem como uma maior realização
(E34; Sexo Feminino; Meio Suburbano; Região LVT) e desenvolvimento pessoal.

Tal como Davies (1989) refere, também os pais da amostra Do mesmo modo, a maioria considera que não alterou a
em estudo, quando entrevistados, manifestam um grande participação que tem na vida escolar do seu filho porque já
interesse pela educação dos seus filhos, mas referem que antes se implicava nas actividades escolares mas, tal como
antes de retomarem a sua escolarização sentiam dificuldades os que referiram ter percepcionado alterações neste domínio,
em participar na vida escolar dos filhos, tanto na escola como salientam que agora se envolvem com maior frequência e mais
em casa, porque não sabiam como o fazer nem o que fazer. activamente nas actividades escolares, quer na escola, quer
Parece, então, que o processo de RVCC permitiu um aumento em casa.
e melhoria da qualidade do envolvimento parental nas questões
de carácter escolar do seu filho, pois permitiu a estes pais Quanto ao seu próprio processo de escolarização, a maioria
conhecerem melhor a cultura e o código escolar e os numerosos dos adultos demonstra vontade de prosseguir os estudos ou
elementos que a caracterizam (Pourtois et al., 1994) e que, até de realizar outras formações, referindo sentir que ter retomado

179 05
a sua escolarização beneficiou a sua vida ao nível pessoal,
profissional e familiar.

Em suma: ao constituir uma oportunidade para cumprir o


projecto de escolarização do adulto, o processo de RVCC
parece contribuir para uma maior integração e adaptação dos
adultos às exigências da sociedade actual, o que representa
para estes indivíduos mudanças profundas na percepção de si
próprios e das suas competências intelectuais. Estas mudanças
transferem-se também para a sua vida familiar porque, ao
terem uma imagem mais positiva de si próprios, estes adultos,
enquanto pais, sentem-se agora mais capazes e motivados para
participarem e incentivarem os seus filhos nas suas actividades
intelectuais. Reconhecem a importância da escolarização dos
filhos e sentem que podem ter uma participação mais activa
neste processo, tanto em casa como na escola. Esta participação
operacionaliza-se com a criação de ambientes de aprendizagem
ricos e variados, e incutindo nos seus filhos atitudes e
comportamentos positivos face às aprendizagens, motivando-
os para investirem no seu processo de escolarização e criando,
deste modo, as condições necessárias ao seu sucesso.

180
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181 05
182
O sistema educativo português tem vindo a apresentar valores que forçosamente se
correlacionam com o facto da nossa efectiva escolaridade obrigatória ser também a
mais recente do velho continente. Pensávamos então que, com a presença de todas as
crianças na escola, os baixos indicadores subiriam e se colocariam ao nível dos que
ofereciam, há mais tempo, a escola para todos.

Assim não aconteceu como revelam as elevadas taxas de insucesso das crianças e os
baixos níveis de escolaridade e de literacia da população adulta. De facto, a ausência de
uma cultura de escolarização no interior de famílias, para quem a escola não teve na vida
uma presença significativa, dificulta a construção de um projecto de escolarização para
os filhos que lhes permita a necessária motivação e envolvimento nas práticas escolares.
Da mesma forma, sabemos hoje que a aprendizagem eficaz da leitura – fundamental
para o sucesso escolar – só acontece se a criança a vivenciar com os seus adultos
significativos o que não acontece em famílias com baixos níveis de literacia.

Embora não se dispense a escola – e as comunidades envolventes – da necessária


adequação aos seus destinatários, desenvolvendo políticas parentais e pedagogias
específicas, capazes de proporcionar a aprendizagem de todos, um novo fenómeno
começa a desenvolver-se em Portugal contribuindo para a inversão dos nossos
baixos níveis de aprendizagem à entrada para escola. A frequência dos Centros Novas
Oportunidades por mais de um milhão de adultos com baixas qualificações - onde se
encontram incluídos os pais das crianças em idade escolar - demonstra à, partida, um
projecto de qualificação escolar que certamente se transmitirá aos filhos ao mesmo
tempo que se efectiva a entrada na família de práticas de literacia. Estes factores estão
a produzir mudanças que facilitam a motivação escolar, as aprendizagens fundamentais
e o envolvimento dos pais num processo com potencialidades de se apresentar bem
sucedido.

As comunicações apresentadas num Encontro realizado em Coimbra em Novembro


de 2009 foram preparadas de modo a facilitar a organização sistémica de um quadro
teórico que permita a fundamentação da hipótese exposta e constituem o conteúdo do
presente livro. São os primeiros resultados de um estudo, apoiado pela ANQ, que visa
verificar esta hipótese.

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