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IberografIas
NOVAS FRONTEIRAS, OUTROS DIÁLOGOS:
PaIsageNs, PaTrIMÓNIos, CULTUra
Coordenação de
Rui Jacinto
IberografIas
35
Colecção Iberografias
Volume 35
Âncora Editora
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1350-179 Lisboa
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Apoios:
Novas fronteiras, outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura 7
Rui Jacinto
PaIsageNs: (bIo)DIversIDaDe e IDeNTIDaDe
Rui Jacinto
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT)
Nesse artigo, nós vamos enfatizar o papel da geodiversidade e das mudanças climá-
ticas do Quaternário na explicação do paradigma da complexidade da biodiversidade.
A biodiversidade varia com as diferentes regiões ecológicas, sendo maior nas regiões tropicais
do que nos climas temperados. Um dos problemas centrais da Biologia é o da diferença
em diversidade entre os ecossistemas tropicais e temperados. Os estudos biogeográficos,
aliados à paleogeografia, paleoclimatologia, palinologia, pedologia etc., no que se refere ao
continente sul-americano, demonstram que os mecanismos básicos que deram origem à
complexa flora atual, não só são relativamente simples como recentes. Ao longo de todo o
Quaternário, até nossa época, um período de drásticas mudanças climáticas, alternando-se,
seguidamente, fases úmidas e fases secas com intensa atuação na distribuição da cobertura
vegetal, ou seja, retração das florestas nas fases secas, cedendo lugar para o crescimento de Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
formações vegetais abertas xerofíticas, e reexpansão das florestas nas fases úmidas. Durante
as fases secas, pequenas “ilhas de ambiente tropical” teriam subexistido onde condições
climáticas e topográficas eram favoráveis servindo de abrigo ou de “refúgio” para animais
de florestas. No estudo dos solos e na geomorfologia, são encontradas as evidências mais
confiáveis e incontrovertidas sobre as variações paleoclimáticas. A presença de linhas de
pedra (“stone lines”) interceptando horizontes de paleo-solos, principalmente em áreas de
interflúvio, terraços fluviais, pedimentos, crostas ferruginosos etc., indica períodos áridos
sob cobertura vegetal rala. Por outro lado, o espaço geográfico ocupado pelas formações
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11 // Novas
vegetais abertas, por ocasião do avanço das correntes frias e secas da última glaciação, pode
ser melhor compreendido, pelo menos no momento, pelos estudos da compartimentação
topográfica e pelos enclaves florísticos residuais.
A biodiversidade
A diversidade tropical
Um dos problemas centrais da Biologia, problema já claramente formulado no come-
ço do século xix e hoje ainda nem perto de solução, é o da diferença em diversidade entre
os ecossistemas tropicais e temperados. Os números variam de grupo para grupo, mas os
ecossistemas tropicais são, em todos os grupos, mais diversificados que os temperados,
12 // Novas
embora a biomassa de alguns destes (por exemplo, a floresta de sequoia, ou as florestas de
coníferas) seja comparável ou até maior que a das florestas equatoriais.
A mais antiga das explicações propostas para esse fato é que as comunidades tropicais
são velhas e estáveis, e assim tiveram mais tempo para evoluir. Essa hipótese já está descartada
pela paleoclimatologia.
A pesquisa de sistemática evolutiva nas regiões tropicais é dificultada exatamente pela
natureza do seu problema central: a biodiversidade.
No Brasil, temos ao alcance das mãos um dos processos mais importantes e ainda não
totalmente explicado da teoria evolutiva: a origem das faunas tropicais complexas.
A fauna e a flora das regiões tropicais, e especialmente das grandes florestas equatoriais,
são muito mais diversificadas que as das regiões temperadas, isto é, abrigam um maior nú-
mero de espécies, cada qual representada, via de regra, por um menor número de indivíduos.
Nas regiões temperadas há um número distintamente menor de espécies, mas as densidades
de população são muito maiores (DARLINGTON, 1957; IN: VANZOLINI, 1970).
Especialização Ecológica
De modo geral (excetuados os casos de adaptação a ambientes muito especiais),
a distribuição dos animais terrestres nos continentes é correlacionada com as grandes
formações vegetais, ou com a temperatura, ou com uma combinação de ambos os fatores.
Cada espécie explora, de uma maneira que lhe é própria, os recursos ambientais de sua
área de distribuição: espaço para viver, alimento, energia solar, locais de reprodução etc.
Esse conjunto de especializações constitui o nicho ecológico da espécie. Toda vez que duas
ou mais espécies exploram da mesma maneira um mesmo recurso ambiental que não exis-
ta em quantidade suficiente para todas, diz-se que estão em concorrência ou competição.
O resultado da concorrência continuada pode ser a sobrevivência de uma única espécie,
com a extinção das demais concorrentes (princípio da “exclusão competitiva”).
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Fragmentação do Território
A área ecologicamente favorável a uma espécie não permanece imutável no tempo. Ela
pode aumentar ou diminuir como um todo, ou ainda, fragmentar-se. A fragmentação é
causada por mudanças climáticas (glaciações pleistocênicas), eventos geológicos (orogenia,
subsidência etc.), ação antrópica (desmatamentos, lagos artificiais etc.)..., que determinam
o aparecimento de faixas de território, onde a vida da espécie é impossível, separando áreas
ainda favoráveis, onde ela sobrevive.
À uma faixa desfavorável, separando duas áreas onde a espécie se mantém, chama-se
uma barreira ecológica. Quando as barreiras são muito amplas e, paralelamente, as áreas
de sobrevivência relativamente muito pequenas, estas se dizem refúgios.
14 // Novas
Vejamos o raciocínio e a ilustração gráfica (Figura 1) que se presta para explicar a
especiação geográfica:
Figura 1. Representação diagramática das possíveis sequências de eventos no modelo de especiação geográfica.
(Extraído de VANZOLINI, 1970, p.8)
Especiação Geográfica
A importância das barreiras ecológicas reside em que interrompem o fluxo gênico entre
2
Do grego “syn” = junto; “patra”= pátria. Vivem juntas, tendo, portanto, a oportunidade de intercruzamento.
3
Do grego: “allos”= outro; “patra” = pátria. Espécies separadas geograficamaente.
16 // Novas
estudos com o objetivo de verificar as implicações do “isolamento geográfico” sobre
populações de determinada espécie subexistentes nessas “ilhas”.
É muito conhecido, de longa data, que a Amazônia comporta uma das biotas mais
diversificadas e mais complexas do mundo, porém, até o fim dos anos 1960, nada, ou
quase nada, se sabia sobre como se originou e de como é mantida essa complexidade.
Era considerado, até essa época, um paradoxo ecológico de difícil solução o fato de uma
imensa floresta, praticamente contínua e, aparentemente, homogênea e estável, comportar
espécies politípicas (ou seja, espécie subdividida em populações com peculiaridades taxo-
nômicas, habitando áreas geográficas distintas e exclusivas, mas que apresentam, entre si,
zonas de intergradação), espécies endêmicas, muitas espécies afins vivendo lado a lado etc.
Os estudos biogeográficos, aliados à paleogeografia, paleoclimatologia, palinologia,
pedologia etc., no que se refere ao continente sul-americano, que começaram a cristalizar-
-se há pouco mais de 40 anos, mostraram, por outro lado, que os mecanismos básicos que
deram origem à complexa fauna atual, não só são relativamente simples como recentes.
O geólogo e ornitologista J. HAFFER, em 1969, trabalhando com distribuição de
aves e lagartos, respectivamente, teceram um modelo geográfico para explicar essa diver-
sidade a nível de espécie (espécies politípicas, superespécies etc.), ou seja, o modelo de
refúgios climáticos durante o Quaternário, que nada mais é que o ortodoxo modelo de es-
peciação geográfica, usualmente aceito para explicar a maior parte dos casos de especiação,
ou multiplicação de espécies, em faunas terrestres.
Para entender o modelo, entretanto, é preciso conhecer um pouco da sua história e do
processo de sua elaboração.
HAFFER, em seus trabalhos de 1969, sugere que ao final do Terciário e início do
Quaternário (1-2 milhões de anos atrás), quando se deu a elevação final dos Andes e o
preenchimento da bacia sedimentar Amazônica, criaram-se condições úmidas propícias
para o crescimento da floresta, outrora, possivelmente restrita ao longo dos rios e às terras
dendo a etapa final da última grande era glacial, que começou há cerca de 100.000 anos
AP. Assim, ao contrário do que alguns autores supunham, os períodos de expansão da
aridez estão associados a condições glaciais e níveis de mares baixos, portanto frios e secos.
O rebaixamento do nível marinho condicionado pelos movimentos glácio-estáticos expôs
grande parte da plataforma continental (por exemplo, colocou as ilhas do litoral paulista
em contato com o continente). Os rios Amazônicos poderiam ser imaginados, em períodos
de extensa regressão marinha, como um grande “canyon”. Por outro lado, os períodos úmidos
correspondem aos períodos interglaciais com elevação do nível dos mares. As transgressões
marinhas interglaciais são particularmente importantes na calha do vale amazônico, cujo
leito (talvegue), em grande extensão, está abaixo do espelho marinho. O pico da última
transgressão marinha, que corresponde ao otimum climaticum da atual fase interglacial,
18 // Novas
ocorreu por volta de 4.000 - 6.000 anos atrás e atingiu entre 5 e 12 m, causando o afoga-
mento da foz de numerosas afluentes do rio Amazonas, como se vê ainda hoje (isso pode
ser muito bem estudado nos relatórios e mapas do projeto Radam).
No estudo dos solos e na geomorfologia, são encontradas as evidências mais confiáveis
e incontrovertidas sobre as variações paleoclimáticas. A presença de linhas de pedra (“stone
lines”) interceptando horizontes de páleo-solos, principalmente em áreas de interflúvio,
terraços fluviais, pedimentos, crostas ferruginosos etc., indica períodos áridos sob cober-
tura vegetal rala. Evidências dessa ordem foram encontradas em muitos lugares do espaço
geográfico sul-americano, desde a Amazônia central até os altiplanos do sul e na região
andina. Em vários trechos da rodovia Manaus-Itacoatiara encontram-se as “stone lines”.
Com a abertura de muitas estradas como a Transamazônica e a Perimetral Norte, entre
outras, estas evidências já se tornaram comuns.
Por outro lado, o espaço geográfico ocupado pelas formações vegetais abertas, por
ocasião do avanço das correntes frias e secas da última glaciação, pode ser melhor compre-
endido, pelo menos no momento, pelos estudos da compartimentação topográfica, pelos
enclaves florísticos residuais (p. ex., enclaves de cactáceas no Sul do Brasil, enclaves de
cerrados no interior da floresta amazônica, que indicam uma passada continuidade com
os cerrados do Brasil Central e os de Roraima e Venezuela etc.) e, de forma indireta, pelos
estudos biogeográficos.
Em 1977, AB’ SÁBER apresentou um mapa, como primeira tentativa, dos Domínios
Naturais da América do Sul há 13.000 - 18.000 anos, que foi, nesse mesmo ano, comple-
mentado, no que se refere às “ilhas de mata”, pelo trabalho de K. S. BROWN, JR.(Figura 2)
Tudo indica, de acordo com Ab’Sáber, que por ocasião dos períodos glaciais, especialmen-
te o último, a vegetação aberta xerofítica e não xerofítica predominava no vale amazônico.
As florestas úmidas mantiveram-se apenas nas galerias dos rios e em algumas encostas de
morros e pequenas serras e, em alguns lugares na periferia das terras altas que circundam o
Considerações Finais
Referências
AB, SÁBER. A. N; Espaços ocupados pela expansão dos climas secos na América do Sul,
por ocasião dos períodos glaciais quaternários. Paleoclimas (3).São Paulo. 1977.
HAFFER, J. Speciation in Amazonian Forest Birds – Science, nº 165, 1969
MAYR, E. Populações, Espécies e Evolução. EDUSP, 1977.
PASSOS, M.M. DOS – Biogeografia e Paisagem. Maringá: Edit. Massoni, 2003.
VANZOLINI, P.E. Zoologia Sistemática, Geografia e a Origem das Espécies. São Paulo:
IGEOG/USP, 1970.
Introdução
acrescentar, também, as mudanças culturais das sociedades que se assentaram nesses lugares.
Desta forma, o Eje Cafetero apresenta uma identificação cultural própria, que se man-
tem com a lavoura cafeeira, mesmo com as suas transformações e novas representações, a
partir de uma tradição familiar que se esperança de que a cada ano as condições possam
melhorar apesar das dificuldades no momento (DURÁN, 2017).
1
Transformações da paisagem e processos de territorialização no Norte Pioneiro Paranaense e no Eje Cafetero
Colombiano: o papel das organizações de pequenos cafeicultores na produção-comercialização de cafés
especiais e sua relação interescalar. Doutorado em Geografia, Unesp -Presidente Prudente, Brasil. Bolsa
FAPESP (Processo: 2017/ 03517-5).
23 // Novas
Destaca-se que a maior parte dos municípios da área em estudo conservam como ativi-
dade a produção cafeeira; assim, o habitat criado historicamente através de processos endó-
genos relacionados à construção social e cultural do território, o converteram pela UNESCO
em Paisagem Cultural Cafeeira. Assim, a declaratória da UNESCO permite estimular pro-
cessos de identidade coletiva e incluir novas funcionalidades nos espaços rurais, porém, isto
não deveria implicar uma visão idealizada da situação, sabendo que desde o começo esta
declaratória se alicerça sobre uma série de exigências difíceis de ser mantidas no tempo.
É importante lembrar que na década de 1990 começaram processos de produção de
cafés especiais na Colômbia, formação de organizações sociais e o fortalecimento do turismo
rural, porém, só na década de 2000 essas iniciativas apresentaram progressos significativos
por meio da consolidação das organizações e associações de cafeicultores.
O Eje Cafetero na Colômbia (Figura 1) tem se caracterizado por desenvolver uma intensa
produção cafeeira, porém tem passado por diferentes fases e processos de colonização e/ou as-
sentamentos. Primeiro, passou por um processo mais espontâneo, principalmente, a partir de
deslocamentos de pequenos produtores que procuravam novos lugares para morar. O nome
de Eje Cafetero foi dado a esta região pela forte presença dos cultivos de café, configurando
um processo cultural e histórico, especificamente, nos departamentos2 de Caldas, Quindío e
Risaralda3, localizados no centro-ocidente na cordilheira central e ocidental dos Andes que
antes de 19664, conformaram o departamento de El Gran Caldas, o qual se caracterizou pelos
sucessos obtidos na exportação do grão de café. A área que integra o Eje Cafetero compreende
12.906 km2, 48 municípios e, aproximadamente, 2.700.000 habitantes (DANE, 2010).
O elemento cultural neste tipo de agroecossistemas é visto por meio das expressões
locais de cada região, pois o café é produzido em várias partes do país, só que a sua confi-
guração está condicionada à estrutura de cada território e o grupo de pessoas que confor-
mam (produzem) o mesmo. E, como frisam os autores, Rodríguez e Duque (2009, p. 124,
tradução nossa): “[...] A cafeicultura de policultivo é uma expressão de formas engenhosas
Considerações
Agradecimentos
Referências bibliográficas
Um primeiro olhar
A primeira impressão sempre é que nos influencia a “gostar’ ou “não gostar”. Mas
quando nos lançamos à experiências novas, como é o caso de trilhar por um patrimônio
cultural, essas impressões ganham uma potencialidade ainda maior.
O momento inicial dessa nossa “viagem” pelo universo cultural de Alcântara ocorre
com o embarque no barco tradicional à vela, o mesmo que há muito tempo tem seu uso
O outro período, época seca, temos uma melhoria nessas condições de ventilação,
que também tem uma outra singularidade: os ventos alísios que sopram com muita força,
nos meses de agosto a novembro, justamente no tempo seco, que provoca intensas ondas,
conhecidas como “maresias” pela população local.
Essa paisagem do verão, período seco, e do inverno, período chuvoso, traz alterações
consideráveis para a frequência de turismo para o município de Alcântara e também in-
fluencia o cotidiano das pessoas do lugar. Outra questão que dificulta a travessia é que
o Cais da Praia Grande, local do transporte, quando a maré está baixa se torna inviável
acontecer o embarque no mesmo, sendo transferido para a Ponta de Areia, que provoca
muitos transtornos devido a deficiência da infraestrutura no local.
A travessia aqui relatada é a do período seco, onde o embarque segue sempre o horário
da maré, que também rege o tempo em Alcântara, pois tudo está interconectado com esse
movimento natural do oceano, neste caso, o Atlântico. Dependendo do vento e das condições
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Uma parcela dessa população foi atraída para a sede municipal, ocuparam áreas sem ne-
nhuma infraestrutura, áreas de vales e fazendo construções com o quê tinham a disposição,
muitas áreas de declividades altas e formando assim uma espécie de favelização. Almeida
(2006) escreve que devido a essa movimentação populacional começou a ocorrer a retirada
de pedras das ruínas antigas como matérias primas para construir as novas moradias.
Havendo assim a necessidade da intervenção do IPHAN para reverter a situação e
proteger a área tombada, em 2004, que passou a considerar o patrimônio de Alcântara
como de valor cultural, histórico, artístico, paisagístico, urbano e arqueológico.
A importância desse patrimônio está entrelaçada aos seus traços culturais marcantes e di-
versos, graças a sua gente e sua história. Para facilitar a compreensão de cultura, recorre-se a
definição de Santos (2006), que retrata duas concepções de cultura:
A primeira diz respeito a tudo aquilo que caracteriza a existência social de um povo
ou nação ou então de grupos no interior de uma sociedade. A segunda refere-se mais
especificamente ao conhecimento, às ideias e crenças, assim como às maneiras como
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
eles existem na vida social. A maneira de pensar a vida e a sociedade na qual a natureza
e a realização individual são enfatizadas, e que tem por temas principais a ecologia, a
alimentação, o corpo, as relações pessoais e a espiritualidade. (SANTOS, 2006, p.24-25).
com vários casarios em estado de degradação (Foto 5), ruínas em acelerado processo de
desmoronamento, principalmente as que estão localizadas na rua da Amargura. Além
da presença de muitos resíduos sólidos em diversos pontos do roteiro histórico, e áreas
de erosão nas encostas que protegem o sítio histórico como um todo.
Destacamos que Alcântara possui inúmeros poços antigos no seu Núcleo Histórico,
com destaque para o Poço dos Frades que se encontra na área da Beirada. Além das Fontes
de Mirititiua e das Pedras. Esse potencial hídrico está sendo impactado por resíduos sólidos
e existe a necessidade de uma melhor atenção para esse recurso natural.
42 // Novas
Foto 5. Processo de degradação de casario do Núcleo Histórico
de Alcântara foi parte fundamental para a compreensão dos passos necessários para se
alcançar a conservação do Patrimônio Cultural Alcantarense mediante o diagnóstico das
fragilidades e potencialidades a serem consideradas para o envolvimento da comunidade.
Foram discutidas a importância da paisagem com a comunidade local, por meio de en-
trevistas e rodas de conversas, buscando dialogar sobre os problemas relacionados à fragilida-
de do patrimônio histórico representado pelo conjunto arquitetônico e paisagístico tombado
e também sobre a biodiversidade existente nas áreas adjacentes deste conjunto, suas potencia-
lidades como entender essa relação de modo a sensibilizá-los da necessidade de conservação.
As potencialidades paisagísticas são imensas, com diversos atrativos, com destaque para
a área da Beirada de Alcântara, onde existe a predominância do ecossistema de Manguezal.
Onde ao trilhar conhecemos diversos pescadores artesanais que nos disseram:
44 // Novas
“Pra mim significa vida. Porque se esse mangue for tirado, aonde é que o camarão
vive, da lama, tudo isso vai se acabar. Se cortarem o mangue, se tirarem o mangue, ehh,
tirar ele todo, e ficar só o lago, onde o caranguejo vai ficar”. (Sr.Mariano, 22/01/2016).
“O que mais nós fazemos é preservar porque ninguém corta, se você olhar
a gente não deixa cortar, em todo caso nós estamos dando uma grande força
para que não destruam, vejam que só tem um caminho que a gente passa, vocês já
viram? É mangue desde lado é mangue do outro”. (Sr.Cildinho 29/05/2016)
A percepção de seu Cildinho está relacionada à trilha utilizada pelos pescadores no coti-
diano para ir ao lugar da pesca, um caminho estreito entre o manguezal, acessos espontâneos
no meio do manguezal, como ele frisa bem “sem destruir, primando pela conservação”. Para
ele, a paisagem de Alcântara é um lugar único e é um grande defensor da sua conservação.
É importante também destacar que as formas tradicionais de pesca como o Curral, de-
finida pelo CEPENE (2003) como “armadilha fixa construída em geral por estaqueamen-
to, com objetivo de reter peixes no seu interior, vulgarmente conhecida como armadilha
fixa, curral de pesca, zangaria, camboa, tapagem”. Os pescadores criam cerco de varas do
próprio mangue com uma rede em volta para apreender os peixes, nas últimas atividades
de campo verificou-se a desativação do curral onde é possível encontrar somente resquícios
da estrutura, sendo substituído pela puçá de escora em que varas de mangues são fincadas
e rede (puçá) é prendida na estaca com a finalidade de apreender peixe e camarão.
Em relação a puçá de escora, na Beirada de Alcântara funciona em sistema comuni-
tário, com um filão de estacas fincadas e as puçás prendidas nas estacas, de várias pessoas
(filhos e compadres), e quando um não pode ir naquela maré avisa aos demais e assim se
ajudam mutuamente. Conforme relata o senhor Moacildes Pereira Pinheiro conhecido
popularmente como senhor Cildinho.
Os usuários desta área da Beirada de Alcântara possuem uma forma coletiva de pescar
para sua subsistência, para seu lazer, e esta questão é parte fundamental da elaboração de ações
voltadas para o turismo na área em questão, pois a população local precisa ter o seu modo
de vida respeitado e valorizado, é parte integrante desta paisagem cultural e a diferencia de
outros lugares. Reflete a singularidade do mesmo.
Esses são os mecanismos do sentir uma paisagem nem sempre estão postos à primeira visão,
ao olhar, e sim como destacam os autores, com um caráter subjetivo, invisível aos olhos, porém
45 // Novas
perceptíveis por meio de outros sentidos. Trata-se de compreender a paisagem que detém o
significado, tanto da abordagem física como humana, e que traz a percepção sobre as transfor-
mações que foram impressas neste ambiente, no decorrer dos tempos, e, ao serem analisadas,
pôde-se compreender os processos históricos culturais que se processaram em Alcântara.
O tempo vivenciado por essas pessoas, os passos que são repetidos por inúmeras gerações
(Foto 6), representam o sentir a força inerente a esse lugar, que antes de mais nada é o lugar
de suas relações, de suas memórias vivas. E em consideração à essas questões que estão além
do que se pode se ver, será proposto um roteiro ecocultural para a Beirada de Alcântara, sob
a ótica da paisagem cultural que envolve essa cidade Monumento em questão.
Um breve encerramento
Apresentamos neste trabalho uma parcela das atividades desenvolvidas com a comu-
nidade alcantarense, que tem participado de diversas ações e reflexões conjuntas com a
equipe da pesquisa relatada. Se passaram três anos de envolvimento, com alguns resultados
já alcançados.
Foram realizados dois cursos de extensão em parceira com o Instituto Federal de
Educação (IFMA) campus Alcântara, e Sítio da Praia do Barco, que resultou na consolidação
do roteiro ecocultural da Trilha da Beirada de Alcântara a ser implantado no próximo ano.
46 // Novas
No decurso do trabalho foram sinalizadas algumas leis vigentes que servem para a pro-
teção desta paisagem cultural em sua integridade, mas se faz urgente e necessário a mobi-
lização da sociedade civil para assegurar o cumprimento da proteção ambiental interligado
com o desenvolvimento sustentável não somente da economia, mas de toda a conjuntura
existente em equilíbrio. Em busca de qualidade de vida dos moradores em sintonia com a
natureza, como já se verifica com a prática dos comunitários através da pesca artesanal de
subsistência, o caminho trilhado, o lazer vivenciado na Beirada de Alcântara.
Mas há fragilidades, pela falta de infraestrutura devido às descontinuidades do proces-
so de gestão pública local e do próprio distanciamento articulatório da comunidade em
se organizarem coletivamente para ampliar e consolidar as políticas públicas de melhorias
sociais, ambientais e culturais de outra esfera de gestão como apoio do CLA, Centro de
Lançamentos de Foguetes da Aeronáutica, e também da Secretaria Estadual de Turismo.
Neste trilhar, conhecer a percepção ambiental dos moradores e usuários da Beirada nos
ajudou a perceber as motivações existentes e interagir com as pessoas do lugar, em uma
proposição para a conservação do manguezal utilizando a Trilha Educativa como instru-
mento de sensibilização, valorizando as práticas cotidianas existentes no local e fomentando
novas formas de apropriação do meio ambiente e da paisagem cultural.
Uma grande parte desta trilha ocorre no Manguezal da Beirada de Alcântara, e essa
área toda encontra-se situado na APA das Reentrâncias Maranhenses, o que implica a
existência de mecanismos legais de proteção desse ecossistema, porém os instrumentos de
gestão ambiental no estado do Maranhão ainda são pouco efetivos e essas áreas naturais
necessitam de uma atenção maior tanto em nível de governo estadual como por parte do
municípios onde elas ocorrem.
Com a efetivação deste roteiro ecocultural, e a ampliação da gestão compartilhada
entre os poderes públicos, instituições privadas em parceria com as forças vivas da comu-
nidade, esperamos ampliar o cuidado e a conservação desse potencial paisagístico, cultural
Thiago Romeu1
Universidade Federal de Campina Grande
Introdução
É comum nas discussões que envolvem a noção de paisagem que sua apreensão seja
reduzida exclusivamente ao papel do olhar. Mesmo em abordagens mais complexas como
a clássica definição de Carl Sauer (2010) da paisagem enquanto morfologia, em que o
papel das formas espaciais é ressaltado, a dimensão do olhar ainda é predominante. Por seu
turno, Cosgrove (1993 apud CORREIA, 2014) enfatiza a importância do passado para
entendê-la, mas outra vez, o olhar é o caminho metodológico. Besse (2014, p. 240 - 241),
explicando conceitualmente a categoria, mostra que o olhar pode se dar por ângulos varia-
dos e diferentes pontos de vista. Também afirma que numa abordagem mais tradicional,
a paisagem é sempre uma “realidade territorial”, o que dá ao aspecto visual da paisagem
sua principal característica, induzindo-nos à crença que é inexorável o papel do olhar
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
como forma predominante para se acessar a paisagem. Todavia, o autor afirma que esta
abordagem da categoria ultrapassa a dimensão física do visível, assumindo sim, conotações
políticas. A percepção da paisagem envolveu, na verdade, desde sempre uma “naturaliza-
ção” sobre a dimensão desigual das relações sociais, ocultando os processos históricos e
conflituosos de sua formação(p. 243). A presença cada vez mais cidadã de cegos ocupando
papeis sociais relevantes e a valorização de sujeitos outrora invisibilizados, cujas matrizes de
construção das paisagens são de natureza distinta das europeias, como o caso dos indígenas
latino-americanos, confrontam a perspectiva mais tradicional e fazem necessário encontrar
novas formas de reconhecimento das paisagens.
É fato, porém, que as paisagens tem contribuído, enquanto parte integrante dos
modos de vida e da constituição dos sujeitos no mundo, para forjar os modos de vida e
50 // Novas
o “ser-no-mundo” dos sujeitos. Portanto, é um desdobramento desta relação com a pai-
sagem um certo desejo de perenizá-las e mantê-las imutáveis, ignorando sua realidade
dinâmica e conflituosa.
[...] a paisagem teria sido desenhada e construída como uma relação imaginá-
ria com a natureza, uma relação graças à qual a aristocracia e a burguesia puderam
representar-se elas mesmas e o seu papel na sociedade. Esta percepção da paisagem
do mundo, com efeito, acompanhou o aparecimento e o desenvolvimento do capi-
talismo europeu, ou seja, a transformação do território simultaneamente em mer-
cadoria e em espetáculo para contemplar visualmente do exterior. A paisagem, mais
precisamente, teria servido ideologicamente para “naturalizar” a dimensão desigual
das relações sociais, e para ocultar a realidade dos processos históricos e conflituosos.
As ciências sociais contemporâneas acrescentaram várias características suplementa-
res a esta instituição burguesa que seria a cultura paisagística europeia. Sintetizo-as
esquematicamente: (1) é uma cultura que põe o olho e a visão no centro do processo
de percepção da paisagem, em detrimento dos outros sentidos, (2) é uma cultura
principalmente europeia, ocidental, branca, em detrimento dos outros modelos cul-
turais de relação com a paisagem, (3) é uma cultura essencialmente masculina, (4) a
representação da paisagem corresponde à implementação de um espaço de controle
de tipo militar, (5) as imagens de paisagem desempenharam um papel fundamental
na constituição dos imaginários nacionais, ou mesmo, nacionalistas, (6) por último,
a imagerie paisagística, sob todas as formas, sejam artísticas ou midiáticas, desempe-
nhou um papel decisivo na “naturalização” das empresas coloniais (BESSE, 2014,
p. 243, grifo meu).
Mas é desta noção excludente em grande medida que se desenrola a ideia de que as
paisagens são patrimônio e, por isso, devem ser preservadas. Na concepção adotada por
Perspectiva do topo da falésia, na Aldeia do Forte, onde se encontram os remanescentes do antigo forte portu-
guês, que dá nome à aldeia. Este ângulo constitui a imagem símbolo da cidade da Baía da Traição, mas só pode
ser captada a partir do aldeamento indígena (foto do autor, agosto de 2016).
2
O mapa 2 (no apêndice), mostra a delimitação da área urbana do município da Baía da Traição fora das
Terras Indígenas.
53 // Novas
Quem são os Potiguara e como constróem suas paisagens
litorâneos, são parte fundante do universo cosmológico e existencial destes indígenas. Estes
ambientes têm no elemento água especial importância. As suas terras, banhadas por rios e
pelo oceano, abrangem áreas de tabuleiros costeiros cobertos por mata atlântica, chegando
até a restinga e o manguezal, nas praias e estuários, construindo verdadeiros gêneros de vida.
Além disso, há Potiguaras que se reúnem em aldeamentos fora da Paraíba, especialmente no
Rio Grande do Norte e Ceará. Neste último, os indígenas habitam caatingas e adotam um
modo de vida sertanejo. Todavia, a ênfase aqui será dada aos Potiguara da Paraíba.
3
Maura Campanili. No mesmo lugar, desde o descobrimento. Disponível em: <http://www.socioambiental.
org/ website/parabolicas/edicoes/edicao58/potiguara.html>. Acessado em 27/01/2017.
4
Mapa 1, no apêndice.
5
José Glebson Vieira. Enciclopédia dos Povos Indígenas no Brasil: Potiguara. Disponível em: <https://pib.
socioambiental.org/pt/povo/potiguara/print>. Acessado em: 28/01/2018.
54 // Novas
Até hoje a resistência parece um traço significativo, pois, a despeito de toda sorte de
dificuldades, entre as quais a miscigenação dos seus hábitos, valores e ritos às do sujeito
ocidental, mantiveram-se existindo e têm assegurado cotidianamente suas terras, suas prá-
ticas econômicas e suas tradições. Tudo isto torna ainda mais necessário o reconhecimento
do valor de suas paisagens culturais. A miscigenação dos hábitos ancestrais às da cultura
dos invasores foi uma estratégia necessária para se manterem existindo, o que lhes exigiu
muita resiliência frente aos poderes instituídos e impostos pelo Estado. No caso da religio-
sidade isto é bastante evidente. Muito de ritos ancestrais ainda são praticados e os(as) pajés
gozam de prestígio na sociedade potiguara, mas a prática do ritual do Toré é perceptível
a relevância de signos católicos nos cânticos, além do fato de muitos indígenas terem
um vínculo direto com comunidades eclesiásticas, tanto católicas quanto protestantes
(sobretudo pentecostais) que disputam influência religiosa nas aldeias.
Em meu entender, a isto se deve a força significativa dos valores ocidentais entre os
indígenas. No entanto, hoje há grande número de jovens líderes escolarizados e com sólida
base acadêmica (mestres e doutores) que têm valorizado sobremaneira os relatos dos idosos
(“troncos velhos”), têm formado associações e coletivos, retomado práticas e ritos ances-
trais, além da prática da língua tupi, valores que tem sido difundidos nas escolas indígenas.
Constato, no entanto, que o reconhecimento de suas paisagens parece não ter sido ainda
despertado de maneira ampla, embora hajam movimentos nesta direção.
Por isso, parece necessário, uma vez mais, enfatizar que paisagens não são apenas a
dimensão visual e ampla da espacialidade. O extenso e já antigo debate acerca do sentido
do termo nos legou um acúmulo que permite dizer que chama-se paisagem a percepção
espacial do resultado do trabalho humano (SANTOS, 1988), mas também o reflexo dos
sentidos captados espacialmente e vividos espiritualmente (BESSE, 2006). A paisagem,
portanto, também é resultado dos processos culturais que resultam de uma morfologia
particular (CORRÊA & ROSENDAHL, 1998) e este entendimento levou ao reconheci-
Foi a sobreposição deste pensamento bíblico totalizante aos ensinos dos gregos clás-
sicos sobre tempo e História que levou ao sentido de multiplicidade dos lugares numa
lógica de espaço universal (ibid. p. 26). Um real ganho de percepção para certo avanço
na dimensão da espacialidade, porém, um modo de conceber a realidade sensível do
mundo bastante unilateral que assentou-se numa postura autocentrada (e eurocentra-
da) de percepção das experiências sensoriais que o espaço proporciona. A paisagem,
portanto, nas concepções vigentes, nem sempre dialoga com modos não hegemônicos
e tradicionais de perceber a realidade sensível. Entendemos que os modos indígenas de
conceber diversas dimensões da realidade guardam muitas diferenças em relação aos
modos fundados em lógicas eurocêntricas, entre estes modos diferenciados, creio que a
paisagem é um deles.
Isto significa que mais que meros reprodutores de uma paisagem natural, ou de uma
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
humanização inscipiente, os Potiguara devem ser vistos como autores de suas paisagens,
fundadores, juntamente com os demais povos indígenas latinoamericanos, de uma manei-
ra muito particular de perceberem suas paisagens, tomando por fundamento a ideia de que
as paisagens constituem uma noção fundantes de nosso ser-estar no mundo.
A fisionomia das áreas pode ser um importantíssimo indicador do modo como as pai-
sagens são construídas, que derivam dos gêneros de vida que são desenvolvidos na constân-
cia da relação humanidade/natureza (LABLACHE, 2005, p. 114). Não seria estranho, mas
56 // Novas
consoante com nossa crítica de fundo à uma visão estritamente eurocentrada, enfatizar que
a noção de “gênero de vida” é demasiadamente fundada numa perspectiva pautada ainda
na ultrapassada geografia colonial, cujas análises se concentravam nas sociedades e regiões
“exóticas”, ainda a serem reveladas ao “mundo civilizado”, ou a serem niveladas segundo
a medida das “civilizações avançadas”, tendo na Europa sua mais elevado nível. Todavia,
genre de vie não pode ser uma elaboração descartada (mesmo porque os argumentos de
Lablache não foram superados), ao contrário, pode ser ainda muito útil ao se considerar as
espacialidades vivenciadas pelas populações tradicionais.
É assim, ao sabor dos acontecimentos sazonais ou dos movimentos que se
produzem no mundo animal, eles próprios condicionados pelas estações, que o
homem contrai hábitos de existência em vista dos quais ele se organiza, fabrica
instrumentos, cria estabelecimentos temporários ou fixos (Ibid., p. 117).
Indígenas coletando o marisco no maré vazante. Atividade que ocupa grande parte das famílias que residem nas
aldeias à beira do estuário (foto do autor, setembro de 2017).
58 // Novas
Apesar disso, a paisagem potiguara é marcada pela presença destes elementos que
conjugados na cotidianidade das 32 aldeias, acaba moldando um gênero de vida muito
específico e de relevância para a compreensão da dinâmica paisagística do litoral norte
paraibano. Em que pese o olhar do pesquisador de matriz científica eurocentrada, é pre-
ciso considerar que há sim uma singularidade na formação das paisagens com base neste
cotidiano específico. Tal cotidiano que molda o que, ao resgatar Lablache, evoco ser um
gênero de vida, serve de esteio da memória imaterial deste povo. Técnicas, hábitos, gostos
e pontos de vista passados oralmente de geração para geração, marcados pela sazonalidade
das marés, moldaram uma maneira única de viver, tal como a envergadura dos coqueiros
e das retorcidas árvores da restinga sobre as falésias foram moldadas segundo a direção dos
ventos raramente impetuosos.
não tem origem entre os Potiguara, tampouco entre os indígenas brasileiros. A questão do
bem viver tem sido defendida e proclamada há bastante tempo pelos indígenas andinos
Quéchuas e Aymaras, “tendo, apenas, clareza de que o ‘bem viver’ não se propõe a ser um
substituto do ‘desenvolvimento’ em sentido estrito. Não há nele a noção de progresso, de
etapas a serem vencidas, de parâmetros claros definidos” (CÂMARA, 2017, p. 256). É a
possibilidade de outros mundos que orienta esta noção, que atualmente
6
Utopia, segundo o dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa, é “qualquer descrição imaginativa de uma socie-
dade ideal, fundamentada em leis justas e [...] comprometida com o bem-estar da coletividade [...]” (HOUAISS,
p. 2817). O fato é que trata-se de um conceito historicamente resultante de um constructo intelectual europeu,
cuja episteme encontra fundamentos geográficos muito diferentes daqueles onde vem sendo aplicado.
60 // Novas
[...] sublinha que as fontes para identificar modos de vida alternativos vêm dos
povos indígenas originários: culturas nascidas com base na relação ancestral com os
ciclos da Natureza, por meio de práticas agropecuárias ou de coleta, de alguma ma-
neira agrocêntricas. Da vida rural desses povos são extraídas as fontes principais para
pensar concretamente o Bem Viver (IBAÑEZ, 2016, p. 322).
Diante desta posição, assumir o Bem Viver como um devir é algo que não parece
estranho aos modos de vida potiguara, convergindo para a hipótese aqui em realce que
é a de que atualmente suas paisagens requerem valorização não para as finalidades de des-
-envolvimento econômico, mas para o reconhecimento do pleno envolvimento do povo
com suas paisagens, assumindo autonomia sobre o próprio futuro.
Uma perspectiva de leitura da paisagem desta maneira, pressupõe a superação da cos-
movisão ocidental, que é, antes, capitalista, em benefício de uma visão comunitária. Esta
abordagem se contrapõe à lógica do desenvolvimento que, nas leituras da paisagem são
evidenciadas a partir dos pressupostos de sua patrimonialização, que, em última análise,
guardam as intenções de consumo da paisagem como artifício de manutenção da lógica
espacializada do mercado. Uma paisagem para o bem-viver valoriza o diálogo com senti-
dos de mundo dos Potiguara na espera da construção de uma realidade na qual a paisagem
sirva a autonomia e emancipação deste povo.
Referências
ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: Uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de
Tadeu Breda. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016.
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
MAPA 2
Introdução
1
Este trabalho é fruto do projeto intitulado “Saberes e Fazeres Geográficos da FLONA de Tefé/AM: condi-
cionantes para o fortalecimento territorial” em desenvolvimento pelo NEGA/UFRGS.
65 // Novas
Figura 1: Localização da Floresta Nacional de Tefé, Amazonas.
No SNUC – artigo 17 – uma Floresta Nacional é definida como: “uma área com cober-
tura florestal de espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso múltiplo
sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração
sustentável de florestas nativas”. (BRASIL. Lei no 9.985, 18 de julho de 2000).
As FLONAS são estabelecidas com o objetivo de promover um manejo múltiplo e sus-
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Moraes (2016), em relação aos problemas levantados pelos ribeirinhos, destaca as con-
dições precárias de moradia, a elevada incidência de malária, as condições precárias em re-
lação à educação, à saúde e ao saneamento. Evidencia-se, também, uma baixa organização
social e comunitária com presença de conflitos entre pescadores e ribeirinhos por questões
relativas a pesca e áreas de pesqueiro.
Foi com o prosseguimento da gestão pelo ICMBio e devido à necessidade de elabora-
ção de um Plano de Manejo que foi desenvolvido, como um dos requisitos, o mapeamento
do uso da Terra, elaborado de forma participativa. É deste processo que deriva esta ativi-
dade, direcionada à educação e à produção de material didático, solicitação esta advinda
dos professores e ribeirinhos durante as oficinas de mapeamento e de elaboração do plano
de manejo iniciado em 2012.
Este texto, portanto, consiste numa sistematização do material produzido e se apoia em
A metodologia de ação
Esta ação está também referendada em Denzin et. al. (2006, p.102) para ele, “a pesquisa-
-ação concentra-se no contexto, seu objetivo é resolver problemas da vida real em seu contexto”.
O contexto no qual se trabalhou corresponde aos anseios da própria comunidade, ribeiri-
nhos e professores que solicitaram aos pesquisadores materiais didáticos para que melhor
pudessem exercer suas atividades uma vez que muitos deles são professores originários de
outros lugares, por vezes de áreas urbanas.
Como já mencionado, ao longo desta atividade, foram produzidos três livros – sobre
a Geografia da Floresta Nacional, um caderno de atividades dirigidas aos professores e um
livro de literatura infantil. O conteúdo destes materiais será apresentado na sequência.
Este livro texto sobre a geografia da FLONA foi produzido através de várias etapas.
Incialmente foi feita a organização do material e informações obtidos durante a fase de
mapeamento do uso da terra: mapas, entrevistas, imagens, depoimentos e vídeos.
69 // Novas
A partir disso, fez-se a avaliação do material, elencando-se quais seriam os temas para
compor os textos: a história, a natureza, o trabalho e a cultura dos ribeirinhos. A equipe
foi subdividida em grupos para proceder a escritura dos textos.
Num momento seguinte, após a elaboração dos textos, foi feita a apresentação e dis-
cussão coletiva dos mesmos. Esta produção tinha como seu objetivo central a construção
de um texto que permitisse ao professor e aos ribeirinhos ter acesso ao conhecimento sobre
a FLONA por meio de uma linguagem com a qual reconheciam seu mundo de vida.
Em reuniões com os comunitários, professores desta comunidade e de outras pró-
ximas, bem como gestores e pesquisadores foram feitas oficinas para avaliação, revisão e
complementação dos textos previamente elaborados.
Os textos foram avaliados em subgrupos, e depois se fez a leitura integral dos mesmos,
visando a possibilidade de compreensão da linguagem escrita por toda a comunidade en-
volvida, a correção das informações, a definição da estrutura e da sequência a ser adotada
no texto, bem como a avaliação e a complementação de imagens do lugar. (ROSSATO
et al., 2017, p. 4)
As sugestões de reformulação relativas à ordem dos textos e ao uso dos termos foram
fundamentais nessa etapa.
É costumeiro nos trabalhos de Geografia começar pelos aspectos da natureza, contudo
os ribeirinhos entendem que tudo começa com a história da ocupação da área pelas co-
munidades. Na sequência, deve ser apresentada a natureza que encontraram, a expressão
do trabalho como forma de relação e aprendizado das comunidades com a natureza e,
por fim, a manifestação do seu modo de viver, destacando aqueles momentos de encontro
e celebração. (ROSSATO et al., 2017, p. 5).
Com relação à escrita, contrário ao que o grupo estava pensando – ser feita em pri-
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
meira pessoa dando voz aos ribeirinhos –, os comunitários, entendiam que, como foram
os pesquisadores que elaboraram os textos, isso deveria ser evidenciado na escrita e, por-
tanto, o texto seria escrito na terceira pessoa. Segundo eles, o fato de o livro ser escrito por
pessoas que se interessaram pela FLONA valoriza as comunidades, dá visibilidade à UC
e aos seus moradores.
Após as oficinas, os textos foram reformulados e, por meio de sucessivas leituras cole-
tivas, foram finalizados de maneira que refletissem a realidade local e respondessem pelo
objetivo de produção de conhecimento em diálogo com os ribeirinhos. Assim, o livro é
composto por quatro capítulos: I. Meu Lugar e Minhas Histórias; II. A Natureza que nos
Envolve; III. Os Ribeirinhos e suas Atividades; e IV. A Floresta é a Tua Casa. A figura 2
apresenta a capa do livro O lugar onde Moro – Geografia da FLONA de Tefé.
70 // Novas
Figura 2: Capa do Livro O lugar onde Moro – Geografia da FLONA de Tefé.
Figura 3: Rádio de Educação Rural de Tefé. Fonte: Arquivos da Radio Rural, 2014.
Fonte: SUERTEGARAY et al, 2016, p. 30.
71 // Novas
A Natureza que nos Envolve
Este capítulo traz elementos que compõem os estudos da natureza nas aulas de
Geografia, contudo respeitando as toponímias e as lógicas de como os ribeirinhos enten-
dem os processos da dinâmica da natureza. Destaca a relação entre hidrografia e clima,
uma vez que a dinâmica hidrográfica é um importante elemento de influência na vida dos
comunitários. Apresenta as principais compartimentações de relevo, correlacionando-as
com flora e fauna. A título de exemplo, são trazidos aqui dois dos mapas elaborados: o
de cobertura vegetal e o mapa de relevo, que juntamente com a rede fluvial compõem os
elementos mais significativos da vida na floresta (Figuras 4 e 5).
Boyrá e o Menino
Segundo Simielli (1994), no ensino de cartografia nas escolas pode-se trabalhar em dois
eixos, embora ocorram alguns procedimentos em paralelo. Um eixo se refere ao trabalho com
1. Eu e minha família
2. A nossa história
3. Todo mundo tem uma história
4. Objetos que representam a nossa história
5. Imagens e representações de objetos
6. A organização da nossa sala de aula
7. Orientando-se na sala de aula
8. Localização relativa e absoluta
9. Sistema de coordenadas geográficas
78 // Novas
O conceito de paisagem é central na segunda unidade de estudo “A paisagem que
construímos”. Este conceito permite compreender o conjunto de elementos que a compõe
– naturais ou sociais – e como esse conjunto se expressa na paisagem da floresta e das comu-
nidades. Como destaca Santos (1997), o mundo é um conjunto de possibilidades e a paisa-
gem, enquanto materialidade do espaço geográfico, é uma acumulação desigual de tempos.
Nesta unidade, se estudam os elementos que compõem a paisagem, bem como
os diversos tempos presentes na paisagem. Há um avanço no sentido de entender os
diversos elementos que estão presentes na paisagem das comunidades, enfatizando os
naturais e os construídos. A alfabetização cartográfica avança no sentido de compre-
ender as representações da paisagem através de imagens, mapas e maquetes, o que, na
perspectiva de Simielli (1996), é uma habilidade necessária para a constituição de um
“mapeador consciente”.
Como exemplo de atividades para o estudo da paisagem tem-se a seguinte proposição
(DE PAULA et al, 2016, p. 41-42):
Escolha uma fotografia da comunidade para trabalhar com a turma ou utilize as
imagens e desenhos produzidos pelos alunos nas atividades anteriores. A foto é uma re-
presentação da paisagem em um dado instante. As paisagens podem mudar com o tempo,
como vimos nas fotografias antigas ou do passado. Estas também, nos permitem entender
a comunidade no presente.
Conversa em roda
Solicite aos alunos, que apresentem para o grupo as fotos tiradas nas ultimas aulas, expli-
cando aos colegas oque quiseram representar. Mostre a fotografia escolhida por você e explore
os elementos ali presentes. Oriente este debate, fazendo aos estudantes as seguintes questões:
a) Quais são os elementos que aparecem nas fotografias?
b) Na análise de fotografias, podemos distinguir os elementos que estão na frente (pri-
meiro plano) daqueles que estão atrás (segundo plano). Quais estão no primeiro e no segundo
Na unidade três “A natureza que nos envolve”, os elementos da natureza são estudados
com detalhe, uma vez que alguns já haviam sido identificados na análise da paisagem. São
enfatizados processos que independem da intencionalidade humana, como a dinâmica do
clima, do relevo, da hidrografia e da vegetação. Nesse momento, aprofundam-se as habi-
lidades da alfabetização cartográfica, pois as propostas vão além da construção de mapas,
incluem agora análises sobre mapas produzidos durante a elaboração do Plano de Manejo
da UC. A Figura 11 trazida como exemplo das atividades desta unidade corresponde a um
bloco diagrama elaborado para desenvolver a atividade indicada na sequência.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Figura 11: Bloco diagrama mostrando a vegetação da FLONA de Tefé. Fonte: De Paula et al, 2016, p. 69.
Possibilidades de Trabalho
Retomando
Retornar as atividades anteriores de clima, relevo, hidrografia e vegetação, para estabe-
lecer relações entre.
Desenho
Solicite um desenho da paisagem da FLONA em período de cheia. Para desenvolver essa
atividade, você precisará utilizar o bloco diagrama (Figura 12). Peça aos alunos que comparem
80 // Novas
esse desenho com o feito com o bloco diagrama e indiquem as diferenças consideradas impor-
tantes. Oriente-os, indagando: você observou que, num mesmo lugar, a paisagem muda de um
período para outro? Indique algumas diferenças entre o período de seca e o de cheia na FLONA
de Tefé. Antes de iniciar a descrição do bloco diagrama, retome os elementos da natureza que
compõem a paisagem da FLONA de Tefé, dialogando com os alunos de forma coletiva.
Registro
Após a descrição e comparação entre o bloco diagrama e o desenho elaborado pelos
estudantes, solicite que respondam no caderno:
a) Por que, durante o ano, existem dois períodos: um de cheia e outro de seca? Que
fenômeno produz essa diferença?
b) Os dias de cheia, e os dias de seca, na FLONA de Tefé, são diferentes para você?
Quais são essas diferenças?
c) Agora, com base na observação do bloco diagrama e de seu desenho, escreva um
texto sobre a FLONA de Tefé e sua paisagem.
d) Para concluir, escreva o que e uma paisagem.
Conversa em roda
Retome a discussão com os alunos ao final da atividade.
Faça uma síntese do conteúdo aprendido, complementando com as informações que
considerar relevante (DE PAULA et al., 2016, p. 67-68).
Na quarta unidade “O ambiente em que vivemos”, a ênfase está nas relações que os
ribeirinhos estabelecem com a natureza. Estas relações se expressam tanto no trabalho e em
atividades diárias (extrativismo, pesca, roçado, etc.), como nas normas a que estão sujeitos
por serem residentes de uma UC. Nesta unidade, também se faz uso do ciclo anual da
produção e do ciclo de atividades diárias para expressar os diversos usos que os comunitá-
rios fazem da natureza no espaço-tempo. Continua-se o processo de aprofundamento da
Figura 12: Boyrá e o Menino de autoria de Maíra Suertegaray, ilustração de Carla Pilla,
editado pela Editora Compasso Lugar Cultura em 2015.
Por fim, a oitava unidade apresenta uma discussão sobre a avaliação das propostas con-
tidas no livro, destacando o conteúdo e as habilidades necessárias para o bom desempenho
na aprendizagem de Geografia.
Em cada unidade há uma série de temáticas que serão abordadas. Essas propostas de
“encontros” apresentam a temática específica a ser estudada e o objetivo desta. Na sequência
da proposta são expostas algumas questões norteadoras ou noções básicas.
O resultado deste projeto foi a elaboração, a editoração, a impressão, a divulgação e a
doação de 250 exemplares de cada um dos materiais produzidos para o acervo das biblio-
tecas das comunidades que compõem a FLONA. Os livros estão disponíveis para cópia no
endereço https://www.ufrgs.br/nega/producao/.
No presente o NEGA produz outro material que servirá de apoio às aulas, um atlas escolar.
Além disso, a pedido dos professores e gestores da FLONA, entre agosto e setembro
de 2017 foi realizado um curso de extensão para formação de professores que desenvolvem
suas atividades nas escolas da FLONA de Tefé e do seu entorno, nos municípios de Tefé
e de Alvarães. O curso, desenvolvido para propiciar a reflexão e a apropriação do material
produzido, foi ministrado por integrantes do NEGA-UFRGS e contou com apoio da
Secretaria de Educação dos municípios de Tefé e de Alvarães e do ICMBio. Foram mo-
mentos muito ricos, com troca de experiências, uma vez que vislumbrando os possíveis usos do
material, os docentes compartilhavam experiências práticas de sala de aula. Sobretudo, pode-
-se ver a dinâmica de abrir um horizonte para desenvolver atividades mais práticas e lúdicas.
(FONTANA et al., 2018, p. 173).
86 // Novas
A elaboração coletiva destes materiais e sua aplicação nos cursos de formação de pro-
fessores propiciam o que entendemos ser algo essencial no campo da educação: a criação
de espaços para valorização das comunidades, dando-lhes protagonismo e gerando espaços
críticos de reflexão sobre sua a realidade.
Referências
O acumulo de resíduos nas cidades tem se tornado uma preocupação mundial, não há
o que se fazer com tanto resíduo. O consumo desenfreado da população e a pouca reciclagem
de muitos materiais contribuíram muito para isso.
Segundo a APRELPE (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos
Especiais), a humanidade produz aproximadamente trinta bilhões de toneladas de lixo ao ano e dá
uma destinação a todo esse lixo não é trabalho fácil. Devido a esse imenso problema, alternativas
sustentáveis foram se tornando fundamentais, em todos os lugares do planeta, o lixo acumulado
nos aterros, tem se tornado um grande desafio logístico, não há o que se fazer com tanto resíduos.
Para Abraham Moles (1973), vivemos numa sociedade que produz para consumir e cria para pro-
duzir, num ciclo em que a noção fundamental é a velocidade e a descartabilidade dos materiais.
A globalização mundial e o capitalismo estimulam o consumo desenfreado e a descartabili-
dade de produtos e bens na mesma proporção. Quando Irina Bokova (2016), chefe da UNESCO
diz que a ignorância é nossa inimiga ela esta se referindo também ao fato do ser humano aceitar,
sem refletir e se posicionar, quanto as questões ambientais futuras, o consumo desenfreado esti-
mulado pelas grandes mídias, tem levado o planeta ao extremo. O lixo tem se tornado cada vez
mais um problema para a engenharia, tanto na forma de reduzir, quanto reaproveitar.
No países mais desenvolvidos, a exemplo de Portugal, a geração de energia em sua
grande maioria, já é sustentável, a fonte dessa produção é o vento, alimentando as usinas
eólicas. Em outros países, o resíduo alimenta biodigestores, levando gás e energia de forma
sustentável. No Brasil, essa realidade sustentável esta distante, por isso, alternativas tornam
se necessárias para que se inicie essa mudança.
Segundo Araia (2011), algo está profundamente errado nisso, relacionado ao processo
socioeconômico de geração de lixo e agravado pela falta de política pública no setor e de
uma educação mais abrangente que seja trabalhada na base educacional.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Assim como nos grandes centros, em Porto Velho, Rondônia essa realidade não é dife-
rente, toneladas de lixo são acumuladas em formato de montanha, já que a cidade ainda não
dispõe de um aterro municipal. Entre todo tipo de resíduo, esta a embalagem tetra pak, que
foi desenvolvida na cidade de Lund na Suécia no ano de 1943, com a finalidade de acomodar
com maior durabilidade e segurança alimentos. Com o passar do tempo, essa embalagem
tem se tornado um grande acumulo nos aterros e lixões, por ser uma embalagem de difícil
decomposição, ultrapassando mais de cem anos para se decompor e que contribui com o au-
mento de doenças, devido ao resíduo do leite, achocolatado e suco que ficam na embalagem.
Segundo a Tetra Pak (2001), no Brasil somente em 2001 foram seis bilhões de emba-
lagens distribuídas em todo o território nacional. Sendo que menos de 2% desse material
foi reaproveitado.
90 // Novas
Em algumas cidades, essa embalagem esta sendo reutilizada para artesanato, em Porto
Velho, Rondônia, além da finalidade de resguardar o alimento, essa embalagem tem se
tornado uma importante ferramenta sustentável no combate ao calor rigoroso da região
amazônica. O aproveitamento destas embalagens contribui para o desenvolvimento sus-
tentável, o qual visa atender as necessidades do presente sem comprometer a possibilidade
das gerações futuras atenderem as suas próprias.
Próximo ao lixão municipal de Porto Velho formou se a princípio uma pequena comu-
nidade, onde grande parte dos moradores vive da coleta de materiais recicláveis. Suas casas
na grande maioria são construídas de madeira, onde as falhas dessas construções provocam
grande incômodo, principalmente quando chove ou a alta temperatura está em evidência,
o que acontece em boa parte do ano na região norte do Brasil.
Diante do exposto, que melhorias podem ser apresentadas com a reutilização dessas
embalagens, nas comunidades carentes de Porto Velho?
Referencial teórico
De acordo com a UNESCO (2016), foram necessários bilhões de anos para que se
criasse a biosfera de que nós desfrutamos, com sua incrivelmente rica diversidade de plan-
tas e animais, é nosso dever e responsabilidade agir agora para preservá-la para as gerações
futuras e cuidar do planeta verde.
Não há mais espaço para depositar resíduos e a questão de onde colocá-los virou um
enorme problema logístico. Grandes metrópoles descartam o seu lixo muitas vezes a qui-
lômetros de distância. Nova York é uma dessas cidades, a 500 km de distância descarta o
seu lixo. O Brasil não fica atrás. Segundo o relatório de 2010 da Abrelpe a média de lixo
domiciliar de cada brasileiro que é de cerca de um quilo, é semelhante à de um europeu.
Metodologia
Para realização deste estudo, inicialmente foi realizada revisão literária de artigos, livros e
revistas eletrônicas. Em seguida, foi realizado trabalho de campo, com aplicação de questioná-
rios, para diagnóstico da realidade local. O estudo realizou levantamentos na pesquisa através
de questionários semi estruturado. Os questionários incluíam informações quanto à idade, sexo,
número de filhos, naturalidade, nível de escolaridade, dificuldades encontradas e a falta de apoio
por parte do poder publico. Para que a eficácia do questionário seja aumentada, Marconi e
Lakatos (2012, p. 100) afirmam que a elaboração deve seguir algumas recomendações: (1) os
temas escolhidos devem estar de acordo com os objetivos da pesquisa, (2) o questionário deve ser
limitado em sua extensão e em sua finalidade, pois um questionário muito longo causa cansaço
92 // Novas
e desinteresse e um questionário muito curto pode não oferecer informações suficientes, (3) as
questões devem ser codificadas, a fim de facilitar a posterior tabulação, (4) deve estar acompa-
nhado de orientações sobre como respondê-lo, (5) o aspecto e a estética devem ser observados.
A preparação da entrevista é uma das etapas mais importantes da pesquisa que requer tempo
e exige alguns cuidados, entre eles destacam-se: o planejamento da entrevista, que deve ter em
vista o objetivo a ser alcançado; a escolha do entrevistado, que deve ser alguém que tenha fami-
liaridade com o tema pesquisado; a oportunidade da entrevista, ou seja, a disponibilidade do
entrevistado em fornecer a entrevista que deverá ser marcada com antecedência para que o pes-
quisador se assegure de que será recebido; as condições favoráveis que possam garantir ao entre-
vistado o segredo de suas confidências e de sua identidade e, por fim, a preparação específica que
consiste em organizar o roteiro ou formulário com as questões importantes (LAKATOS, 1996).
O objetivo da entrevista visava apurar as condições da família, melhorar a estrutura
física do imóvel, diminuir o calor e proporcionar o resgate de valores que visivelmente,
estava esquecido pelos entrevistados.
Após essa etapa, a família foi selecionada, levou se em conta, o maior numero de
crianças na residência, pessoas idosas, famílias que realmente necessitavam. A família se-
lecionada era composta por oito pessoas, que viviam em um espaço físico de aproxima-
damente 25m2 sendo quatro adultos e quatro crianças, a idade dos adultos de 24 anos a
54, as crianças tinham idade de 6 meses a 12 anos. A renda total da família era em torno
de R$ 200,00 (DUZENTOS REAIS), que recebiam da coleta seletiva de lixo. As crianças
dormiam juntas em uma cama de casal, dois adultos em outra cama e os outros dois em
uma colchão de casal no chão, pela manhã, o colchão do chão virava cadeira.
Fonte: Autores.
93 // Novas
No dia em que as medições foram iniciadas, houve a necessidade de retirada da cama
onde as crianças dormiam, para facilitar o trabalho e melhorar o espaço. Quando a cama
foi puxada, uma cobra aparentemente venenosa, estava embaixo da cama, causando muita
tensão, porém, para as crianças aquela situação parecia comum, chegaram a comentar que
era comum encontrar esse tipo de réptil (Figura 2).
Fonte: Autores.
Resultados e Discussões
Durante a pesquisa, foi constatado que 77% dos moradores eram do sexo feminino
com idade média de 42 anos. Apesar disso, foi possível observar jovens e idosos, com idade
entre 6 meses e 55 anos. A naturalidade dos moradores era bastante diversificada, conforme
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
observado na Tabela I:
Fonte: Autores.
Fonte: Autores.
Discussão
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Fonte: Autores.
Conclusões
Além de ter sido dada uma destinação sustentável as caixinhas de leite, também
GALLO, S. Transversalidade e educação: pensando uma educação não disciplinar. In: ALVES, N.;
GARCIA, R. L. (orgs.) O Sentido da Escola. Rio de Janeiro: DP&A.
MARCONI. M. A.; LAKATOS, E. M. TÉCNICAS DE PESQUISA. São Paulo: Atlas, 1999.
MOLES, Abraham. Cibernética e ação. Trad. Leonidas Hegenberg; Octanny Silveira da Mota.In:
EPSTEIN, Isaac. Cibernética e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1973a.
NASCIMENTO, R.M.M.; VIANA, M.M.M.; SILVA, G.G.; BRASILEIRO, L.B. Embalagem car-
tonada longa vida: Lixo ou luxo? Química Nova na Escola, v. 25, p. 3-7, 2007.
SCHMUTZLER, L. O. F. Projeto Forro Vida Longa, 2001. Disponível em: <http://www.fem.
unicamp.br> Acesso em: 22/09/2018.
TETRA PAK, Disponível em: <http://www.tetrapak.com/br>Acessado em 03/09/2018.
98 // Novas
Desertificação e Arenização no Brasil
O presente texto trata do tema Desertificação e Arenização no Brasil, e tem por obje-
tivo traçar um comparativo entre esses dois conceitos através da descrição de paisagens em
que há ocorrência desses processos em território nacional (BR), associando esses estudos a
questões de ordem ambiental e de ordenação territorial.
Foram selecionadas áreas representativas, no território brasileiro, com presença de feições
decorrentes de processos de arenização e desertificação, tornando o objetivo central deste ca-
pítulo a elaboração de uma análise comparativa entre três áreas em território nacional sujeitas
a esses processos, com o foco de análise em localização, distribuição e dinâmica socioespacial.
A primeira das áreas a serem analisadas é o sudoeste do Rio Grande do Sul (SW), área
com ocorrência de arenização, ou seja, processos de erosão do solo associados às dinâmicas
hídrica e eólica atuais e sob condições de clima subtropical que, através de precipitações
relativamente bem distribuídas e presença de chuvas torrenciais, promovem mobilização
Arenização e Desertificação
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Fig.1: Paisagens com ocorrência de areais. Município de Quaraí, RS, BR. Foto: Dirce Suertegaray, 2017.
101 // Novas
Fig. 2: Feições erosivas. Grotas e Malhadas. Gilbués PI. Foto: Dirce Suertegaray, 2018
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Fig. 3: Área desertificada. Região dos Cariris. PB. Foto: Dirce Suertegaray, 2007.
102 // Novas
As paisagens em processo de arenização no sudoeste do RS (Fig. 1), constituem en-
claves no bioma Pampa, cuja cobertura vegetal dominante é o campo. Segundo Rossato
(2012), o clima é do tipo subtropical Ib, ou seja, pouco úmido com inverno frio e verão
quente. Em relação à precipitação, a autora destaca uma média de precipitação anual entre
1400-1700 mm, concentrada em 70-90 dias de chuva que ocorrem em poucos dias ao
mês – entre 6 e 9 – e, particularmente, no outono e na primavera.
Os areais ocorrem em áreas cujo substratos são a Formação Botucatu e a Formação
Guará, ambas constituídas de arenitos. Sob essas formações tem-se formações superfi-
ciais arenosas, de deposição recente, agronomicamente denominadas de Neo Solos
Quartzarênicos Órticos (NQo). Scopel (2012), ao estudar, com maior detalhe, os solos da
região sudoeste do RS com ocorrência de areais, descreve-os como solos que:
apresentam cores avermelhadas ou amarelo-avermelhadas, muito salientes no
P1RS (perfil 1) e no P2RS (perfil 2). Geralmente, a cor mais avermelhada deve-se
ao óxido de ferro, na forma oxidada. A literatura informa, entretanto, que pequenas
concentrações de óxidos de ferro no solo podem resultar em cores avermelhadas ou
amareladas. Assim, apenas com análises específicas do ferro presente nesses solos,
poder-se-ia quantificar o seu teor e evidenciar sua importância quantitativa para a
diferenciação desses solos. Os solos estudados foram classificados como de textura
“areia”, contendo ao redor de 90% de areia essencialmente,” sendo esses solos na
região classificados como NQo (Scopel et al. 2012, p.511). V. Fig. 4.
Fig. 4: Solos NQo. Areal do Morro da Panela. Quaraí. RS. Foto: Dirce Suertegaray. 2015.
103 // Novas
Como área tipicamente desertificada podemos referir as paisagens dos Cariris Velhos
(Fig. 5), no estado da Paraíba.
Fig. 5: Paisagem com ocorrência de solos expostos e reduzida cobertura vegetal (Caatinga). Solos argilo-arenosos,
sujeitos a processos de erosão hídrica. Cariris Velhos. PB.BR.2010. Foto: Dirce Suertegaray, 2007.
Essas áreas se caracterizam pela localização em bioma de Caatinga, sob clima semiárido.
O embasamento é constituído de rochas ígneas e metamórficas, e as formações superfi-
ciais, predominantemente argilo-arenosas, são classificadas, agronomicamente, em dois
tipos de solos: Luvissolo Crômico e Neossolo Litólico.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Fig. 6: Paisagens denominadas Malhadas e Grotas, com ocorrência de solos argilo-arenosos sem cobertura vegetal
e sujeitos a processos de erosão hídrica e eólica. Morrete. PI.BR. Foto: Dirce Suertegaray, 2018.
104 // Novas
As áreas em Gilbués e entorno, onde é notável a presença de malhadas, assentam-
-se sobre formação geológica arenosa e solos areno-argilosos. Silva (2014) destaca
as condições climáticas na região de Gilbués, indicando-a como região associada a
processos de arenização, e não à desertificação: ao analisar a dinâmica pluviométrica
e sua influência no processo de arenização, indica que o clima e subúmido, carac-
terizado por duas estações (uma úmida e outra seca). Em seus estudos, revela que
as condições climáticas na área são bem dinâmicas, apresentando alta variabilidade
pluviométrica e episódios excepcionais de precipitações, e destaca ainda que o regime
e ritmo das chuvas são condicionantes, na dinâmica e potencialização dos processos
erosivos na área.
Como se pode ver, há controvérsia sobre a definição dessa área: ainda que ela seja
reconhecida tecnicamente como área desertificada, interpretações mais atuais não che-
gam a um acordo quanto à identificação dos processos erosivos na região como sendo
desertificação ou arenização.
Arenização
Os estudos sobre a gênese da formação de areais – áreas com areia exposta, sem
cobertura vegetal e sujeitas a processos erosivos hídricos e eólicos – têm sua origem
com a tese de Suertegaray (1987) sobre áreas de ocorrência de areais à SW do estado
do Rio Grande do Sul/BR. Esse conceito foi se difundindo entre os pesquisadores em
território brasileiro e, hoje, a dinâmica de áreas arenosas expostas a processos hídricos
e eólicos, em diferentes regiões do país, é explicada considerando como referência o
conceito de arenização. O mapa (Fig. 7) apresenta a distribuição dos estudos sobre
arenização no Brasil. A partir de sua leitura é possível observar que os processos de
*O entendimento sobre a ocorrência dessas feições e a compreensão de sua gênese como processo de
arenização decorrem da tese de doutorado de Suertegaray (1987)
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Fig. 10: Área de ocorrência de areais e processos de arenização. Sudoeste do Rio Grande do Sul, Brasil.
Fonte: Suertegaray et al, 2012.
A origem dessas áreas está associada a processos naturais que, ao longo de tempo,
promoveram retrabalhamento desses depósitos arenosos (holocênicos). A fig.11 representa
uma imagem dos areais localizados no município de Quaraí – RS, cuja origem é natural
Em outras áreas foi com a introdução da lavoura de soja em áreas de solos frágeis (na
década de 1960) que se intensificou o processo de arenização.
108 // Novas
Fig. 11: Areal no município de Quaraí-RS. Foto: Dirce Suertegaray, 2017.
Para exemplificar a base deposicional de área com ocorrência de areais, toma-se como
exemplo, neste caso, o modelo construído a partir dos estudos feitos em Quaraí-RS. A
Fig. 12 está representando genericamente 4 fases da evolução da estrutura basal da paisagem.
O processo de arenização
Este processo (ou, de forma mais ampla, a dinâmica da arenização) resulta da disposi-
ção do relevo e dos processos de escoamento vinculados. Nas áreas de ocorrência de areais
(SW do RS) são observáveis de forma mais evidente duas feições.
Uma delas é indicada na Fig. 13 (A) e 14 (A) e constitui-se no que é denominado areal
em rampa. Neste caso, os areais estão associados à dinâmica hídrica concentrada, do tipo
110 // Novas
ravinas e voçorocas, que promovem erosão e transporte de material arenoso e depositando-
-os à jusante, em forma de leque deposicional. A coalescência desses leques, vinculados
com a erosão lateral e remontantes de ravinas e voçorocas, promove a formação do areal.
Sua dinâmica se associa, portanto, à presença de água e a dinâmica dos ventos (deflação).
Uma segunda feição é observável na fig. 13 (B) e Fig. 14 (B). Neste caso a arenização
ocorre em áreas de médias vertentes em presença de cabeceiras fluviais. O escoamento
concentrado a partir dos canais de montante promovem a erosão dos depósitos arenosos
de base e os transportam para áreas de menor declividade. A constituição de areais está
associada aos mesmos processos que dão origem aos areais em rampa. A Fig. 13 C indica
um areal consolidado em expansão, promovendo assoreamento fluvial de pequenos canais.
Fig. 13 (A) Superior: Croqui de areal em Rampa. Fig (B): Croqui de Areal em cabeceiras fluviais
em médias vertentes. Desenho Eri Bellanca. Fonte: Suertegaray et al, 2001.
111 // Novas
A
C
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Fig. 14: Exemplos de formação de areais em rampa – São Francisco de Assis (A) e em cabeceiras fluviais
em médias vertentes – São Francisco de Assis (B). Areal consolidado promovendo assoreamento
de canais de pequeno porte – Maçambará, RS(C). Fonte: Suertegaray et al.2001.
112 // Novas
Durante a construção da tese, Suertegaray (1987) observou que os processos hí-
dricos e eólicos poderiam promover uma mobilidade de areias em relação à jusante,
assoreando áreas mais úmidas das várzeas adjacentes e à retaguarda, ou seja, no interior
do próprio areal o processo poderia promover o afloramento do substrato arenítico.
Passados exatos 30 anos, retornou-se aos areais e observou-se a ampliação da exposição
do substrato arenítico. A Fig. 15 permite observar as significativas áreas do substrato que
anteriormente eram recobertas de areais e hoje afloram em superfície. Essa dinâmica
demonstra a irreversibilidade do processo ao atingir esse estágio.
Fig. 15: Afloramento de arenitos – Formação Botucatu. Areal do Cerro da Panela. Quaraí-RS.
Fig. 17: Desertificação nos Cariris Velhos. Paraíba-BR. Fonte: Souza, 2008.
Fig. 18: A) Causas e categorias de desertificação a) queimadas e pastoreio B) área categorizada como desertificação
grave, com presença de caprinos. Fotos: Pedro Vianna e Dirce Suertegaray, 2007/2008.
115 // Novas
A Fig. 19 (A e B) da mesma forma, expressa o que é compreendido como desertifica-
ção no semiárido brasileiro, em particular, nos Cariris na Paraíba. Souza (2008), como já
foi referido, atribuiu diferentes níveis de desertificação, associados à perda da diversidade
da caatinga, da cobertura vegetal original da região, e até à ocorrência de solos expostos,
em parte recobertos por um pavimento detrítico que indica, após a retirada da cobertura
vegetal, a ação do escoamento superficial difuso e ou em lençol.
B
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Fig. 19: Desertificação nos Cariris Velhos. Categoria muito grave. A) Área totalmente desmatada com presença de pavi-
mento detrítico. B) Área com presença parcial de cobertura vegetal de caatinga. Foto: Dirce Suertegaray, 2007/2017.
116 // Novas
Desertificação em Gibués-PI
O Sudoeste do Piauí - Gilbués (Fig. 20), apresenta uma topografia de solos expostos
e erodidos reconhecida, regionalmente, como malhadas, sendo denominados os canais de
escoamento concentrado constituintes dessa superfície de grotas. Os materiais que dão ori-
gem ao solo, oriundos da alteração de rochas sedimentares, são espessos, friáveis, arenosos
e pobres em matéria orgânica.
Conforme a classificação agronômica, são solos dos tipos Latossolo Amarelo,
Argissolo Vermelho Amarelo, Neossolo Quartzarênico e Neossolo litólico. Essas áreas,
correspondentes a feições de malhadas e grotas, estão incluídas entre os principais núcleos
de desertificação do Nordeste.
Os processos que dão origem a essas formas estão vinculados a erosão e transporte de
material sedimentar através de fluxos concentrados em canais, dando origem a ravinas e/
ou voçorocas. Ocorrem geralmente nas altas e médias vertentes e os sedimentos trans-
portados durante o período de chuvas (a região apresenta duas estações – uma chuvosa e
outra seca) são careados à jusante e depositados ao longo dos canais de leitos largos e de
fundo plano. A Fig.21 (A) e (B) constitui registro do que se denomina malhada (já referida
117 // Novas
denominação regional para a superfície erodida a descoberto) e as ravinas (canais de escoa-
mento localmente denominados grotas).
B
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Fig. 21: A) Malhadas e grotas na região de Gilbués/Morete, B) Grota, canal de escoamento e deposição do material
erodido. Fotos: Dirce Suertegaray, 2018.
118 // Novas
Os sedimentos transportados são depositados ao longo das grotas e, em maior quan-
tidade, à jusante, onde os canais fluviais se ampliam. Essas áreas à jusante são as maiores
receptoras dos sedimentos provenientes de áreas à montante. O escoamento em época de
chuva poderá seguir seu fluxo através de um canal raso, serpenteando sobre os sedimentos
depositados, ou na forma de escoamento anastomosado. Fig. 22 (A) e (B).
A B
Fig. 22: (A) Canais Rasos com presença de depósitos sedimentares recentes. Gilbués-PI. (B) Canais preenchidos de
sedimentos e escoamento anastomosado. Gilbués-PI. Foto: Dirce Suertegaray, 2018.
As causas da origem desse processo ainda são controversas, seja na explicação de sua origem
Não obstante, esse mesmo autor questiona, mais recentemente, a explicação da gênese
desses processos vinculados ao uso, em especial à exploração de diamante que ocorreu em
119 // Novas
áreas pontuais nos municípios de Gilbués e Monte Alegre, mais especificamente na comu-
nidade de Boqueirão, entre os anos de 1940 e 1950. Fica demonstrado em suas pesquisas
mais atuais que, devido à extensão da área de ocorrência de malhadas e o significado do
termo malhada (terra fraca, desde a ocupação indígena de cujo idioma provém o termo),
a origem desses processos seria natural, não sendo correto atribuir a improdutividade da
terra ao impacto das atividades econômicas.
O quadro 1 expressa um comparativo entre as três áreas abordadas neste texto. Ele
foi elaborado considerando parâmetros relativos à natureza e ao uso da terra e expõe o
resultado da pesquisa divulgada por Suertegaray (1987, 1992, 1998, 2001, 2012), Souza
(2008) e Silva (2014).
Clima
Tropical semiárido Subtropical úmido Tropical subúmido
1400 mm/ano, em média 1100/1600, em média
500 mm/ano, em média
Formações superficiais
Formações superficiais profundidade média/alta. Formações superficiais de
rasas. profundidade média/alta.
Solos arenosos: Neossolos
Quartzarênicos Órticos.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Neossolo Litólico.
Feições
Geomorfológicas
Morros constituídos de Colinas, Morros em geral
rochas cristalinas, planícies de topo plano, morros Relevos tabuliformes
de inundação e depressões testemunhos com presença (chapadas e chapadão),
de escarpas acidentadas e Serras, morrotes com
rampas de menor decli- topos planos. Encostas es-
vidade carpadas, morros testemu-
nhos, ruiniforme, rampas
onduladas, depressões e
compartimentos disseca-
dos (malhadas e grotas).
120 // Novas
Cobertura vegetal original Caatinga (florestal) Campos Cerrado (campo sujo
(Herbáceas) e campo limpo) com
domínio de gramíneas
e presença de arbustos e
árvores anãs.
Processos erosivos domi- Hídricos; escoamento Hídricos e eólicos presen- Hídricos, eólicos,
nantes superficial, presença de ça de ravinas, voçorocas presença de sulcos,
ravinas. e areais ravinas, voçorocas e
Estrutura Fundiária Do- Pequenas e Médias pro- Grandes e médias Pequenas e médias
minante priedades propriedades propriedades
Impactos e problemas
ambientais Processo de erosão do Expansão da atividade Improdutividade das terras
solo, salinização, desma- agrícola. Lavoura comer- Mineração de diamantes
tamento e diminuição da cial de soja e silvicultura/ em áreas pontuais Gilbués
biodiversidade eucalipto e Monte Alegre. Comu-
nidade de Boqueirão.
(passado).
Desmatamento
e queimadas
Recursos hídricos
Nascentes do rio Paraíba Zona de fronteira in-
(2ª maior bacia hidrográfi- ternacional (Uruguai e
ca da Paraíba); Argentina). Disponibilidade e abun-
Quadro 1. Comparativo entre as três áreas de estudo: Carirris Velhos PB, Sudoeste do RS, Gilbués PI.
121 // Novas
Comparando essas três áreas, podemos verificar que elas se diferenciam em relação às
condições climáticas – clima subtropical úmido, tropical subúmido e tropical semiárido –
e em relação à cobertura vegetal – campos, cerrado e caatinga.
Da mesma forma, também se diferenciam em relação ao substrato geológico, com
destaque para o Cariris, onde o substrato é constituído de rochas ígneas e formações
superficiais rasas, diferentemente das outras duas regiões – Sudoeste do Rio Grande do
Sul e Gilbués, no Piauí –, onde o embasamento é sedimentar e as formações superficiais
apresentam profundidades médias ou altas.
Os processos de erosão ocorrem em rampas e ou médias vertentes de colinas no sudoeste
do RS e em Gilbués-PI. No Cariris esse processo ocorre nas médias e altas vertentes e/ou
topo de morros.
Esses processos associam-se à dinâmica hídrica superficial, sendo observável nas três áreas
a presença de escoamento superficial na forma de escoamento laminar, difuso ou concen-
trado. Também nas três áreas as feições erosivas tomam a forma de ravinas e voçorocas (no
Piauí, denominadas grotas).
Para duas dessas áreas atribui-se este o processo de mobilização de solos aos
processos de desertificação (Cariris e Gilbués e entorno). A arenização, por sua vez, é o
conceito que explicita a dinâmica de formação de areais para o SW do Rio Grande do
Sul (nessa conceituação, a distinção considera as características climáticas subtropicais
do estado do RS).
As causas desses processos – desertificação ou arenização – foram associadas ao uso
da terra: no caso de Gilbués (PI) ao sobrepastoreio e à mineração; no Cariris, a pecuária
extensiva de caprinos, a cultura do algodão e ao desmatamento; no SW do RS, a expansão
da lavoura /monocultora do soja e, por vezes, o sobrepastoreio.
As pesquisas sobre os areais presentes no SW do Rio Grande do Sul, relativas à tese de
Suertegaray (iniciadas em 1983 e concluídas em 1987), revelam que a origem dos areais é
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Considerações finais
Pedro C. Carvalho1
Faculdade de Letras
Ceaacp / Universidade de Coimbra
Com base em trabalho de campo desenvolvido na Beira Interior nas últimas duas dé-
cadas, e na consequente identificação, caracterização e avaliação do principal património
de época romana, propõe-se que se definam percursos em rede pelos territórios do interior
raiano e leituras históricas dessas paisagens, tendo como polos museus renovados ou novos
centros interpretativos, numa perspetiva de valorização dos recursos patrimoniais e de coope-
ração e desenvolvimento territorial de regiões interiores numa dimensão transfronteiriça.
Apresenta-se ainda, como exemplo, o potencial patrimonial que encerra a Aldeia Histórica
de Idanha-a-Velha, a antiga cidade romana de Igaedis, a Egitânia da época suevo-visigótica,
enquanto um dos principais palcos da História e no quadro de uma rede de cidades do
Quase todo o interior português integra o que atualmente já se designam por terri-
tórios interiores de muito baixa densidade. Aqui, a quebra demográfica e a taxa de enve-
lhecimento da população é significativa e muito preocupante (chega a ser a mais alta de
toda a União Europeia em certas regiões). As fragilidades do seu tecido socioeconómico
não cessam de se acentuar. O diagnóstico, em grande medida, está feito e tudo o que
1
pedrooak@gmail.com
127 // Novas
poderia ter sido dito, sobretudo no que concerne a declarações de intenções, já terá sido
dito. Contudo, verdadeiramente, falta ainda atuar, mudando o paradigma de desenvol-
vimento local e regional, passando este a estar doravante centrado em políticas assentes
fundamentalmente no conhecimento.
Nesse âmbito, torna-se imprescindível apostar numa efetiva valorização do território,
enveredando por novas estratégias de desenvolvimento sustentável de médio e longo prazo
que saibam potenciar as valências mais ricas e genuínas desses territórios. Essas valências
encontramo-las, em grande medida, nos recursos endógenos, isto é, no conjunto de traços
identitários, de caracteres distintivos, que dão corpo ao património histórico e cultural (e
também paisagístico e natural) de cada região. É muito nesse legado histórico e nessa
herança cultural que poderá residir a vantagem comparativa, ou melhor, o tal “fator
diferenciação” que permite a uma cidade ou região aumentar a sua competitividade (e
atratividade), tanto no campo da educação/capacitação como na esfera socioeconómica.
Todavia, não basta que, enquanto fatores diferenciadores, esses recursos endógenos
existam, é preciso saber potenciar ou induzir o seu valor socioeconómico e educativo,
recorrendo a intervenções altamente qualificadas, concertadas e abrangentes, que intro-
duzam, para além do fator diferenciação, a inovação e a criatividade (BERNARDES et
al., 2013 e MATEUS et al., 2013) — inovação e criatividade que as novas Tecnologias de
Informação e Comunicação possibilitam e estimulam, mesmo no quadro da preservação e
valorização do património cultural. É necessário, portanto, que a valorização económi-
ca do território, mediante a promoção dos seus recursos culturais e naturais endógenos,
constitua uma aposta perspetivada numa lógica de desenvolvimento, sustentabilidade e
coesão, por forma a contribuir para a dinamização da base económica local, para a diver-
sificação da economia regional e para a fixação da população, combatendo-se assim tanto
as acentuadas assimetrias de desenvolvimento intrarregionais como as baixas densidades
demográficas concelhias.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
A este nível, apostando-se na qualidade dos projetos, na qualificação dos recursos hu-
manos, nos projetos com escala, continuados e nas parcerias, muito ainda pode e deve ser
feito. Há um campo largo para projetos que se centrem num dado território e nas marcas
da herança cultural que o distinguem: para projetos que assentem na memória e na identi-
dade e que tornem consequente uma definição habitual de património cultural, enquanto
conjunto de práticas e costumes partilhado por um determinado grupo e que se materiali-
zam de diferentes formas materiais e imateriais, contribuindo assim quer para estabelecer
a identidade distintiva do grupo quer para reforçar a sua própria identidade e a coesão
social; para projetos que tornem operativa essa definição, mas sem subvalorizar (antes pelo
contrário) o valor socioeconómico que o património ou essas marcas culturais distintivas
também encerram, mediante o incremento das indústrias culturais e dos fluxos turísticos;
128 // Novas
para projetos, em suma, que procurem captar as relações entre o homem e o território ao
longo dos tempos e os sinais daí resultantes que dão corpo à identidade e memória desses
territórios (CARVALHO, 2014 e 2016).
Projetos que poderão traduzir-se na criação de um Museu ou de um Centro
Interpretativo. De espaços expositivos que reúnam algumas pecas únicas com um singular
valor arqueológico, histórico e etnológico (coleção museológica), recorrendo à criatividade
e à inovação que as novas Tecnologias de Informação e Comunicação (e as novas tecnologias
imersivas) também permitem, e assente numa sólida base documental e em conteúdos
devidamente fundamentados. Museus ou Centros de Interpretação que constituam um
equipamento cultural de excelência, altamente pedagógico, comunicativo e formativo,
capaz de atrair diferentes públicos, desde a comunidade escolar e local, aos turistas que
demandam um dado território.
Referimo-nos também a espaços em que a imagem assuma um lugar de relevo (história
narrada por imagens), ainda que esta não substitua a força da palavra e das ideias que estas
transmitem, resultantes da investigação desenvolvida e do contributo de uma equipa mul-
tidisciplinar e altamente qualificada. Em que o espaço se programe para diferentes públicos
e distintas faixas etárias. Em que se procure e saiba explorar o fascínio que poderá produzir
o passado perdido ou o evocar de um tempo desaparecido. Em que se aposte num número
não muito numeroso de peças expostas (concentrando assim a atenção do visitante no que
for considerado essencial), evitando assim um excesso de informação. Em que às imagens
se associem outros estímulos visuais que despertam os sentidos, recriando ambientes. Em
que se criem paisagens sonoras que reforcem ou confiram profundidade ao conteúdo da
exposição, também enquanto espaço cénico. Em que se aposte em alguma interatividade
(o conhecimento e a aprendizagem através da experiência, ultrapassando-se assim a sim-
ples observação do exposto). Em que se procure que os conteúdos não reproduzam neces-
sariamente uma versão única da história, possibilitando diferentes narrativas sempre que
Referimo-nos ainda a espaços ou projetos que se direcionem para o turismo, mas que
ao mesmo tempo deverão ser pensados para quem vive nesses territórios interiores, pro-
curando, em ambos os enfoques, fazer parte da solução no quadro de uma estratégia local
e regional de desenvolvimento sustentável. E tal significa que este património deverá ser
também entendido como potencial realidade económica, capaz de gerar fluxos turísticos,
estimulando mesmo outro conjunto de produtos e serviços, nomeadamente de natureza
comercial, ou criando mesmo oportunidades de negócio e empreendedorismo, relacioná-
veis com o turismo cultural e com as indústrias culturais e criativas. A cultura, nesse sen-
tido, enquanto produção e consumo de bens e serviços culturais (adentro de um quadro
ou lógica industrial e/ou comercial), deve aqui ser claramente entendida também no seu
sentido funcional, isto é, enquanto realidade económica (VILAR, 2007).
130 // Novas
A essa perspetiva deverá necessariamente juntar-se outra: um equipamento cultural
desse tipo deve igualmente funcionar como centro educativo. Na verdade, este deverá
ser pensado para constituir uma peça fundamental da política local de educação, de um
projeto educativo local, desenhado por atividades de efetivo enriquecimento curricular,
que complemente e reforce o sistema escolar formal e que ligue a escola à comunidade
em que esta se inscreve. Os municípios ao avançarem para a concretização deste tipo de
projetos estão a criar espaços que permitirão dinamizar essa educação não formal. Aliás,
consideramos que um equipamento cultural só será de excelência se for ao mesmo tempo
pensada uma estratégia que confira a possibilidade às crianças e jovens de um concelho
um contacto privilegiado com a história da sua terra, com tudo o que caracteriza a sua
identidade, começando assim, desde muito cedo, a reconhecer e a avaliar devidamente a
importância desses recursos. Tal contribuirá para que estas interiorizem que não só temos
o dever de salvaguardar essa memória e identidade, legando-a as gerações vindouras, como
a memória e identidade, pelo enorme valor (também socioeconómico) que encerra, deve
ser devidamente valorizada e divulgada, por ser também precisamente nessas marcas dis-
tintivas (algumas verdadeiras imagens de marca) que deveria assentar um desenvolvimento
territorial sustentado.
Num projeto educativo local de base comunitária, a educação patrimonial desempe-
nhará um papel central, na medida em que contribuirá para que as novas gerações come-
cem a encarar os territórios (a identidade e memória que encerram) como ativos, passíveis
de criar valor. Projetos desse tipo, portanto, ao envolver a população local e as diferentes
gerações e também por essa via da educação patrimonial (e cívica), constituirão uma solução
educativa que contribuirá, a seu modo, não só para estimular o exercício de uma cidadania
ativa e plena, como poderá constituir a prazo uma resposta objetiva às necessidades de
desenvolvimento sustentável desses territórios.
No percurso de investigação arqueológica que temos feito por estas regiões interiores
promovendo leituras históricas dessas paisagens e contribuindo assim, também deste modo,
para o desenvolvimento territorial destas regiões numa dimensão transfronteiriça.
Alguns dos lugares conhecidos e estudados distinguem-se sob esta perspetiva e marcam a
diferença. Sobressai, desde logo, o que resta das outrora cidades do Império Romano. A nossa
primeira referência, a este propósito, vai para Idanha-a-Velha (classificada como Monumento
Nacional), um dos mais relevantes sítios arqueológicos portugueses. É inegável a Herança
Cultural que encerra e distingue Idanha-a-Velha, palco de encontro entre Culturas. Como já
era referido no anterior Programa Operacional Regional do Centro do anterior QREN (2007-
2013), a Aldeia Histórica de Idanha-a-Velha constitui, na Região Centro do País, um dos
mais eloquentes e relevantes testemunhos de um legado histórico que é necessário estudar,
salvaguardar, divulgar e valorizar, deixando-o bem vivo e atuante para as gerações vindouras.
132 // Novas
FOTO 1: Idanha-a-Velha (Idanha-a-Nova) (© P. C. Carvalho).
2
Projeto enquadrado por um protocolo celebrado em junho de 2017 entre o Município de Idanha-a-
-Nova, a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa – Projeto coordenado por Pedro C. Carvalho e Catarina Tente.
133 // Novas
atual aldeia / cidade antiga, como seja quer o espaço público central da cidade romana (o
fórum, onde mais tarde, sobre o podium do templo romano, se ergueu a Torre Templária),
quer a notável muralha que envolvia a cidade antiga e que continua a rodear a aldeia atual.
Para além das cidades, as paisagens do Império nestes territórios da Lusitânia romana
eram compostas por pontes e estradas (assinaladas por miliários e ligando as principais
cidades), casas de quintas mais ou menos abastadas (dispersas entre novos cultivos, como
o da vinha e da oliveira), e outros lugares que remetem quer para a esfera do sagrado (de
culto aos deuses antigos e às novas divindades que vêm de Roma), como para a explora-
ção intensiva dos recursos naturais, como sejam as explorações de ouro. De todos estes
traços que desenham as paisagens rurais subsistem importantes testemunhos, alguns de
características únicas (como Centum Celas, em Belmonte, e o Cabeço das Fráguas, entre
a Guarda e o Sabugal) e vários encerrando potencial patrimonial significativo (desde as
137 // Novas
pontes de Segura e de Alcántara, em ambos os lados da atual fronteira, às villae da Fórnea,
em Belmonte, e de Vale Mouro/Coriscada, na Mêda, entre outros). Alguns carecem ainda
de intervenção (das escavações às ações de conservação e restauro) por forma a tornarem-
-se visitáveis e entendíveis. Outros, como a Quinta da Fórnea (Belmonte) ou a Raposeira
(Mangualde), já foram recentemente intervencionados neste sentido.
de muito do que marca o nosso tempo. Com efeito, a integração destes territórios no es-
paço comum do Império Romano acarretou então um conjunto de profundas transfor-
mações: uma mesma língua, uma moeda única, produtos que se comercializam a grandes
distâncias, territórios que se delimitam, cidades que surgem e modos de construir que
se generalizam, leis e formas de governo que se replicam, deuses e práticas religiosas
que se partilham – são estas algumas das novidades que deram corpo a esse novo mundo
conhecido e globalizado de então. E seria em torno precisamente das principais marcas
desse tempo longínquo, mas absolutamente decisivo para o delinear da nossa matriz cul-
tural, que a leitura história destes territórios deveria ser feita, numa lógica intermunicipal
e transfronteiriça.
138 // Novas
Valorização patrimonial: apontamentos finais
Pedro M. Tavares
Sofia Salema Guilherme
Fernando A. Baptista Pereira
cola e eleger a carreira dos filhos, o que correspondia ao pagamento de uma aprendizagem
prática em uma oficina. Apesar das diversas descrições póstumas dos seus conterrâneos
sublinharem que Juanelo não teria habilitações literárias, ele aprendeu gramática vernácula
e matemáticas, num ensino público ou privado, promovido pelo seu pai (Zanetti 2015).
As operações militares na Lombardia, provocaram o encerramento das Universidades
durante longos períodos, inclusive a de Pavia, onde o médico Giorgio Fondulo de
Cremona, com um interesse particular pelas matemáticas, leccionava. Ele conhece Juanelo
após retornar à sua cidade natal e, apercebendo-se da sua inteligência, toma-o sobre a sua
protecção ensinando-lhe: astronomia, astrologia, geometria e aritmética.
Segundo a descrição de Antonio Campi (pintor, escultor, cartógrafo e historiador) na
sua obra Cremona fedelissima città, et nobilíssima colonia dei Romani, dedicada a Filipe II
142 // Novas
de Espanha: “De quantos artesãos há tido a nossa cidade, nenhum a há engrandecido mais
que Lionello Turriano, homem de humilde procedência, no entanto dotado por Deus de um
engenho tão sublime que há maravilhado o mundo e há sido considerado por todos um milagre
da Natureza, por sem nunca ter aprendido nada de letras, falava de Astrologia e das outras
artes matemáticas com tanta profundidade e tanto fundamento que parecia no haver estudado
nunca nada mais, tinha aprendido Astrologia antes mesmo de ter aprendido a ler, ensinando-
-o Giorgio Fondulo doutor em medicina e filósofo e matemático famosíssimo que lhe queria
muitíssimo, estimando-o de uma sagacidade sobrenatural.”
Giorgio Fondulo é uma figura incontornável na educação de Turriano enquanto relojoeiro
planetário. No séc. xiv os eminentes construtores de relógios mecânicos eram sobretudo
médicos, pelo seu conhecimento dos corpos celestes (a prática da medicina fundia-se à
astrologia) e pela criação de instrumentos metálicos cirúrgicos. Para tratar os pacientes
consideravam a hora planetária e o horóscopo, utilizando ferramentas específicas para os
cálculos astronómicos, tais como: astrolábios, esferas armilares e relógios planetários. Na
época de Fondulo, o curriculum matemático nas universidades italianas era baseado no De
Arithmetica de Boécio, na geometria euclidiana, na astronomia ptolemaica e no conheci-
mento dos tratados árabes do séc. xiii. A prática baseava-se na Theoria Planetarum, o que
proporcionava informações sobre o uso de instrumentos astronómicos como o astrolábio.
O De Quadrante e o Legatur liber de urina non vista, eram utilizados para traçar a relação
entre os movimentos celestes e a urina humana. Aos professores de medicina eram também
pedidas previsões para o ano escolar, às quais eram entregues ao zelador e ficavam disponí-
veis para que as pessoas pudessem consultar durante o ano. Eles eram ainda responsáveis
pela criação de um almanaque, com calendário e a posição dos planetas.
A Universidade de Pavia, em 1361 obteve os estatutos do Imperador Carlos IV, tornando-
-se rapidamente um importante studium gerale. Era praticamente uma instituição estatal,
onde o Duque de Milão tinha a última palavra na nomeação de professores. Conforme uma
Mestre Turriano
produzir objectos com o seu nome, marca e símbolo da cidade de Milão (Zanetti 2015).
As guildas eram estruturas corporativas que se organizavam em certas categorias de
trabalho, em torno do calendário religioso. Eram promotores privilegiados do monopólio
económico, através da política de preços (salários baixos para empregados) e da estandar-
dização do sistema de aprendizagem. As obras eram submetidas ao controle das famílias
tradicionalmente relacionadas com a produção e comércio. Estas estruturas corporativas
tinham diversas funções: desde o controlo da qualidade, da quantidade e dos métodos
de produção; até à protecção dos afiliados, à ajuda mútua (caridade), à prática de ritos
religiosos e à colecta de impostos. Em Cremona competia aos oficiais das guildas colectar
o dinheiro dos seus membros e entregá-lo ao Estado. O reconhecimento e transferência
de autoridade, do Rei para estas universitates, institucionalizou um sistema de autoridade,
144 // Novas
criando a confiança na classe profissional, sem ser necessário conhecerem pessoalmente os
artesões.(Zanetti 2015)
No Ducado de Milão, na altura em que Torriano abre a sua oficina (por volta dos
28 anos), não existia qualquer guilda de relojoeiros, as primeiras foram criadas em Paris
(1544), Augsburg (1564) e Nuremberga (1565). Apesar de não existirem, na Itália seten-
trional não faltavam importantes oficinas de relojoaria que pertenciam a outras, vincula-
das ao tratamento de metais, como a dos Ourives e a dos Ferreiros (Fig.1). O Paraticum
Ferrariorum (guilda dos ferreiros de Milão), segundo o estatuto manuscrito válido de 1474
e 1592, enfatizava que todas as pessoas que trabalhassem na forja de ferro, aço, latão, bron-
ze e estanho, comercializado na cidade ou em seus terrenos, eram obrigados a ingressa-la,
não restando a Juanelo outra hipótese. De facto um documento de Cremona atesta que a
2 de Janeiro de 1550, Leonello Torriani q. Gerardo é eleito prior da Paraticum Ferrariorum.
Essa mesma documentação menciona o seu contracto como serralheiro das portas de
bronze dourado da pia do baptistério, possivelmente com um cadeado especial que inven-
tou (De Subtilitate libri XXI, Cardano). Durante a sua vida irá continuar a trabalhar com
a forja, tendo inclusive sido chamado em 1578 para definir as tipologias dos 12 sinos do
carrilhão do Mosteiro do Escorial.(Zanetti 2015)
Fig.1: Horologia ferrea, Jan van der Straet, gravura da Nova Reperta, 1580.
145 // Novas
De artesão a cortesão
nas matemáticas aplicadas, foram enaltecidas da mesma forma que a pintura, escultura,
arquitectura e anatomia haviam sido nos reinados anteriores. Temos o exemplo de nobres
como Sofonisba Anguissola e Francesco Sitoni, artistas conterrâneos e contemporâneos
de Turriano, que para ganhar mais do que as suas pensões anuais começaram a criar obras
mecânicas, aumentando o seu prestígio na Corte. À Rainha Isabel de Valois, a qual se terá
interessado igualmente pelas artes mecânicas, foi-lhe aconselhada Sofonisba, através do
Duque de Alba (que fora governador de Milão de 1555 a 1556), como maestra e boa com-
panhia. O próprio Imperador era um aficionado na construção e planeamento de relógios
astronómicos, actividade que não diminuía a sua nobreza.(Zanetti 2015)
A partir de 1550 observamos uma transformação na imagem pública de Juanelo, pro-
cesso que inicia quando ao mudar-se para Milão e alterar o patronímico Torresani pelo
146 // Novas
milanês antigo Torriani, promovendo através da associação homonímia essa nobre linha-
gem. Os Médici di Marignano (que fizeram parte da rede de suporte familiar de Juanelo)
usaram estratégia similar, ao revindicarem um antepassado comum ao seus familiares tos-
canos, os quais deixaram de negar este laço quando um membro da família milanesa se
converteu em Papa.(Zanetti 2015)
A ascensão económica e social de Turriano está directamente relacionada com a eleição
de Ferrante Gonzaga como Governado de Milão, encarregando-o do relógio planetário para
o Imperador. O mecenato do governador e a maravilha tecnológica que cria surpreende os
grandes escritores da época, descreve-o o influente Cardano, no De Subtilitate, como “um
homem de intelecto agudo em qualquer coisa que concerne máquinas”. Juanelo é citado em deze-
nas de tratados e obras literárias impressas com o marco cultural ligado ao Ducado de Milão,
tornando-se conhecido nos meios intelectuais como o novo Arquimedes.(Zanetti 2015)
Em 1552 o Imperador atribui-lhe uma pensão perpétua de 100 ducados por ano,
declarando no documento de privilégio: “Nós, Carlos V, pela graça da divina misericórdia,
Augusto Imperador do Romanos (…) nós reconhecemos e pelo teor das cartas presentes, nós ma-
nifestamos para aqueles que podem-lhe interessar que, sobre o trabalho artístico digno de louvor,
o que para nós, para o Nosso Império e para os vassalos do mesmo Império, foi executado pelo
Nosso querido Janellus Turrianis, um matemático de Cremona e, sem duvida o Príncipe dos ar-
quitectos de relógios, em construção para nós, com admirável técnica e talento, um excepcional
relógio, e – a menos que seja conhecido- nunca visto em nenhum outro sítio.”(Zanetti 2015)
Turriano foi investido com o título de Príncipe dos Arquitectos de Relógios conferindo-
-lhe, o prestígio e a pensão, uma posição social mais elevada. A natureza hereditária desta
pensão pertencia a um sistema que possuía como fonte o poder pessoal do Imperador. Ao
serviço de Filipe II esse valor duplica, sendo que em 1581 Juanelo vai transferi-la para a sua
neta e mais tarde, reduzida a metade por Filipe IV, à sua bisneta. (Vera 1996)
Em vida Juanelo foi retratado no relógio que construiu, acrescentando à sua efígie a frase
Governador de Milão. A família do Papa Pio IV era também milanesa, seu irmão Gian
Giacomo Médici, marquês de Marignano, era um implacável General Imperial. Foi o veto
de Filipe II à candidatura de Ercole Gonzaga que facilitou a eleição de Giovanni a Papa
em 1559. A família Médici di Marigniano era muito próxima dos Gonzaga de Guastalla
(linhagem de Ferrante). A irmã do Papa era esposa do Conde Gilberto II Borromeo e a
sua filha Camilla Borrommeo de Cesare Gonzaga, filho de Ferrante. O sobrinho do Papa
Frederico Borromeo casou-se também com uma descendente dos Gonzaga, a filha do
Duque de Urbino, cuja mãe era a Princesa Isabella Gonzaga de Mântua, irmã de Ferrante
e do primeiro Duque de Mântua.(Zanetti 2015)
Estas três famílias exerceram influência em Itália, através do papado e da Casa de
Áustria. A consolidação dos territórios de Milão, Mântua, Parma, Ferrara, Florença e
148 // Novas
Turim, foi feita a partir da política matrimonial da Casa da Áustria, todos tinham Mulheres
Habsburgo no seu trono. É nesta rede de influências, sustentada por cortes femininas, que se
auto promoveram. É a partir do circuito familiar dos Gonzaga e dos Áustria que, os Papas
Pio IV, Pio V e Gregório XIII, encomendam e atribuem patentes a Juanelo. Gregório XIII,
através de Filipe II, solicita a sua participação na reforma do calendário, atribuindo-lhe
uma pensão e um privilégio de invenção (associado à publicação de um livro que trataria
de instrumentos matemáticos utilizado na sua concepção).(Zanetti 2015)
Após a morte do Imperador (1558), Juanelo permanece ao serviço do Rei de Espanha. Aos
65 anos, depois de trabalhar na Torre Dourada do Alcázar de Madrid, é convidado por Filipe II
a participar nas obras do Escorial. É por volta desta altura que, por iniciativa própria, começa a
delinear o Artifício de Toledo. O antigo aqueduto romano estava em ruínas e a cidade dependia
dos aguadores, para transportar água do Rio Tejo. Diversos engenheiros alemães e flamengos
tinham fracassado, até à altura, em conseguir bombear água do Rio até ao Alcázar de Toledo,
um desnível de 90 metros. Em 1565 ratifica-se o contracto entre a cidade, o Rei e Juanelo. A
autoria e construção do Artifício de Toledo cimentou o seu prestígio como engenheiro, o que
era invulgar não tendo ele feito parte de quaisquer campanhas militares. Os engenheiros seus
conterrâneos eram sobretudo militares, cujos conhecimentos práticos de matemática eram
essenciais para o sucesso das batalhas. “Dava-lhes oportunidade de enobrecerem-se e à sua
disciplina ao pertencer ao alto status social dos milites”.(Biagioli 1989)
No séc. xvi artistas italianos ao serviço da coroa moviam-se entre as cidades do Império
Habsburgo, onde formavam as suas oficinas e famílias. Na época moderna não existiam
quaisquer garantias de cuidados sociais, indigentes dependiam da caridade que era um con-
Fig.2: Projecto para o Forte da Cabeça Seca (alçado e planta), Frei João Turriano, 1646.
IANTT, Conselho de Guerra, Decretos, M. 6, DOC. 204.
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Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Introdução
Arquipélago é composto de cinco partes (“A terra tremendo-nos debaixo dos pés”,
“As cinco partes de um homem”, “A conspiração”, “Luísa” e “Vingança”, além do “Epílogo”)
em que flui a epopeia, haja vista a primazia de um herói que se submete a vários contra-
tempos e obstáculos com o intuito de não apenas decifrar o mistério do desaparecimento
de Elisabete, a menina de seis anos, mas, e sobretudo, de apreender a frustração que tomou
conta de suas relações amorosas e cujo fruto, o filho André, permanece envolto em bruma
e pouco entendimento. José Artur, o protagonista dessa saga, anseia pela felicidade ao lado
da viúva Luísa, além de persistir na preservação da memória do avô, duramente maculada
durante a descoberta dos ossos de Elisabete quando da reforma da casa de sua infância.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Sob a pena de uma tinta levemente fantasiosa, o percurso épico do protagonista enreda-se
com as lendas e tradições da ilha Terceira, em que subsiste a especulação em torno da sua
origem atlante, inspirada no diário do personagem real Gordon Mason. Semelhante ob-
jeto reflexivo impulsiona José Artur à investigação, nos moldes clássicos de uma pesquisa
científica, com vistas ao Doutoramento em História, em Lisboa.
Curiosamente, José Artur não sente a terra tremer sob seus pés, o que muito o inco-
moda a ponto de não se considerar um filho da ilha Terceira. Tamanha sensação de não-
-pertencimento irá se desfazer no decorrer da história, quando da consagração do herói
com a conquista definitiva de Luísa e do amor incondicional do filho André. Um dos
momentos mais emblemáticos se verifica no momento em que adentra a casa da infância
para lá reviver a memória individual porque também coletiva:
158 // Novas
Era uma sexta-feira de Julho quando, pela primeira vez, José Artur meteu a
chave à porta da casa da infância na qualidade de seu proprietário. [...] Ansiava por
aquele momento e temia-o ao mesmo tempo. [...] Um vento frio assobiou através da
fechadura, lambendo-lhe os dedos, e a maçaneta rodou com dificuldade, esforçando-
-se por vencer a ferrugem. José Artur hesitou por instantes, mas depois empurrou
a porta com decisão. [...] apesar das teias de aranha, do desalinho do mobiliário so-
brante e do cheiro a humidade e a caruncho, não parecia terem passado quase vinte
anos desde que alguém habitara aquele lugar. Pendia ali um resto a gente, como se
algo dos avós o esperasse ainda para poder descansar em paz, e a sua dúvida era se
seria homem o suficiente para o libertar. (NETO, 2015, p. 243-244).
Não somente pelo arquivo da memória envereda José Artur em seu retorno à ilha
natal, tendo em vista a riqueza das tradições e manifestações culturais que apresenta ao
leitor, acompanhada dos mistérios e superstições que compartilham espaço com as desco-
bertas arqueológicas que o estimulam à pesquisa e à delimitação de seu objeto de estudo.
Na sequência 028 (o romance se distribui em sequências), o narrador situa a freguesia do
Posto Santo, mais precisamente no Outeiro das Pedras onde está a Grota do Medo, lugar
de culto e de práticas religiosas secretas:
Desceu de um salto, percorreu-a de uma ponta à outra e descortinou nova gran-
de rocha, em cuja superfície havia sido esculpido um canal para a condução de água.
Seguiu o rasto do canal e encontrou, por fim, aquilo que já esperava: um pequeno
tanque para recolha de água, com uma bancada em semicírculo ao lado.
“O ônfalo...”, murmurou, estupefacto.
Repetiu em voz alta, como se precisasse de o ouvir:
– O umbigo! Meu Deus, é o ônfalo!
E sentiu uma súbita vontade de chorar, porque nada do que viesse a encontrar
José Artur anseia por encontrar um tema para seu doutoramento que justifique sua
estada nos Açores. Várias são as motivações, extraídas ora das tradições e lendas, ora das
marcas, inscrições e artefatos descobertos bem antes de 1400 nos Açores. Na página 85
da 3ª edição de 2015, o personagem descortina essa riqueza cultural e patrimonial da
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
ilha Terceira:
Havia, desde logo, as touradas à corda, em nenhum outro lugar do mundo exis-
tentes senão na ilha Terceira, e que evocavam os toiros deixados à solta no templo
dedicado ao grande senhor dos mares. Aí mesmo os desafiavam os dez reis atlantes,
em jeito de prova de valentia, com recurso apenas a varas de madeira e a cordas.
Mas não só. Havia a tradição de sangrar o bezerro, ainda praticada nos Açores,
com lógicas curativas que evocavam os poderes mágicos atribuídos, nas sociedades
antigas, ao sacrifício dos bois. Havia a circunstância de o açor, que um dia dera nome
ao arquipélago, ser muito semelhante a um falcão, sendo que o deus Hórus, o da
cabeça de falcão, azul, a cor que a pele dos atlantes assumia, ser a cor da chamada
terceira função, produtora e artesanal, o que também constituía nova hipótese para a
160 // Novas
origem do nome da Terceira, a que os descobridores tinham chamado, sem sucesso,
Ilha de Jesus Cristo. Havia as marcas, inscrições e artefactos que permitiam defen-
der a existência de povos nos Açores muito antes de mil e quatrocentos. E havia a
evidência de as ilhas açorianas, não sendo dez, serem nove e mais uma décima ilha
submarina, à qual se tinha dado o nome de Banco D. João de Castro, baixio de pesca
grossa e mistérios vários. (NETO, 2015, p. 85).
Considerações Finais
autor com a insularidade. O evidente apego a esse lugar de refúgio que a ilha Terceira
representa já aparece demonstrado na dedicatória (“À paisagem dos Açores,/ com o seu
maravilhoso cheiro/ a erva húmida, leite morno/ e bosta de vaca”); em sequência, nas
epígrafes que descortinam o livro, uma de Charles Darwin e outra da Odisseia; um peque-
no trecho de Rumo ao farol, de Virginia Woolf a abrir o primeiro capítulo e, por fim, no
“Epílogo”, com o poema “Azores”, de John Updike. Tamanho é o envolvimento do autor
com o ambiente e o cenário construído que o leitor torna-se partícipe das aventuras e des-
cobertas do protagonista e, o que se configura mais interessante, do amor que José Artur
nutre pelas ilhas açorianas, mergulhadas no mar azul do Oceano Atlântico.
Ainda que o foco do olhar de José Neto seja a ilha Terceira, ela sozinha não constitui o
arquipélago retratado no romance, juntando-se a ela as ilhas Graciosa, Pico, São Miguel e
162 // Novas
São Jorge. Embora suscitadas em ocasiões especiais, como no que diz respeito à família de
Elisabete, detêm singular importância no conjunto que compõe os Açores, dado a conhecer
pela pena apaixonada de um de seus conterrâneos.
A ênfase na descrição do patrimônio cultural constitui um espetáculo à parte em
Arquipélago. O seu poder simbólico extrapola os limites do romance e ganha as asas da
imaginação, a envolver com insuperável surpresa os que se entranham em suas histórias
e lendas. Os Açores estimulam a vontade do viajante; neles “exercitamos o conhecido e o
desconhecido, o velho e o novo, a ousadia e o medo”. (BORRALHO, 2010, p. 90).
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HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo – Parte II. Trad. Marcia de Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis:
Introdução
Real. Contudo, e devido ao mau tempo, os órfãos efetuaram uma viagem penosa tendo
mesmo sido necessário alterar a rota do navio para Vigo.
Na casa onde se refugiavam da falta dos progenitores, facilmente perceberam que ali
não encontrariam nem o amor nem o apoio de que tanto precisavam, tendo Carolina sen-
tido a necessidade de constituir família muito cedo. O enlace deu-se, em 1839, com um
estudante de medicina, Francisco José de Azevedo, irmão de padre António de Azevedo,
figura crucial na vida e na obra de Camilo.
Após o casamento, o casal e o rapaz foram viver para Vilarinho de Samardã, no dis-
trito de Vila Real, onde o padre se encarregou da instrução do jovem, tendo os anos aí
passados sido determinantes para a formação do escritor. Foi nessas terras do Norte que
viveu as primeiras paixões e, fruto do seu espírito inquieto, se casou aos dezasseis anos com
166 // Novas
Joaquina Pereira de França, foi pai de Rosa Pereira de França aos dezoito e se apaixonou
por Patrícia Emília do Carmo de Barros, aos vinte e um anos, abandonando nessa altura a
jovem mulher e a filha de ambos para fugir para o Porto com o novo amor.
Na capital do Norte, em 1843, o mestre participava nos certames poéticos denomina-
dos abadessados ou outeiros de abadessados e neles terá seduzido a freira beneditina Isabel
Cândida Vaz Mourão. Em 1845, estreou-se na Literatura com os poemas Os Pundonores
Desagravados, O Juízo Final e O Sonho do Inferno. De doze a vinte e três de outubro de
1846, esteve preso na Cadeia da Relação do Porto devido à acusação de roubo por parte do
tio de Patrícia Emília, tendo Camilo passado a colaborar nas gazetas O Nacional e Periódico
dos Pobres por forma a poderem subsistir.
Dado como inocente, o romancista e a amada regressaram a Vila Real onde o mestre
exerceu as funções de amanuense no Governo Civil. Em 1847, publicou a sua primeira
obra dramática, Agostinho de Ceuta, tendo, a vinte e cinco de junho de 1848, sido pai
de mais uma menina, Bernardina Amélia Castelo Branco. Sem recursos para a criarem,
a criança foi inicialmente colocada na Roda dos Expostos e mais tarde entregue a Isabel
Cândida que a educou no Mosteiro de S. Bento da Avé-Maria, no Porto.
Cansado da vida conjugal, abandonou Patrícia Emília e regressou ao Porto, ainda em
1848, tendo-se dedicado ao jornalismo e à literatura de cordel. Dividindo o tempo entre
os salões ilustres e o café Guichard, conviveu com a burguesia e os intelectuais portuenses,
tendo-se tornado amigo íntimo de José Augusto Pinto de Magalhães, morgado da Quinta
do Lodeiro, que o viria a salvar de uma tentativa de suicídio.
Em 1849, trouxe a lume O Marquês de Torres Novas, texto dramático, mas foi em
1850 que o mestre se assumiu como verdadeiro escritor após a publicação do seu primeiro
grande romance, Anátema. Crê-se que a crise mística vivida então, levando-o a matricular-
-se no Seminário Episcopal do Porto, terá estado diretamente relacionada com o facto de
Ana Augusta Plácido, a mulher que ele conhecera e amava em segredo, se ter casado com
2
Na obra de Camilo o vocábulo brasileiro não designa alguém natural do Brasil mas sim o emigrante português
que foi para esse país, tendo por lá enriquecido (muitas vezes de forma ilícita), regressando gordo, velho e in-
culto mas abastado, condição que o tornava num ótimo pretendente para as mais belas donzelas da burguesia.
167 // Novas
A participação jornalística foi uma constante na carreira do génio, tendo o mesmo atin-
gido a maturidade literária, em 1856, com o romance intitulado Onde Está a Felicidade?.
Um ano mais tarde, mudou-se temporariamente para Viana do Castelo desempenhando
aí a função de editor do periódico A Aurora do Lima, fundado em 1855, no qual publicou
a narrativa Impressão Indelével.
Camilo foi exímio na criação de romances passionais de grande intensidade dramática nos
quais as donzelas eram seduzidas ou encarceradas em conventos, os boémios se regeneravam,
os perversos se convertiam, os sacrificados se vingavam e os amantes contrariados se perdiam.
Em 1857, o jornalista e Ana Plácido viviam uma relação íntima que escandalizava a
sociedade portuense, tendo o marido desta feito inumeráveis tentativas infrutíferas para
afastar os amantes. Assim, moveu-lhes um processo judicial no qual a esposa era indiciada
pelo crime de adultério e Camilo acusado de copular com mulher casada. D. Ana foi presa
na Cadeia da Relação do Porto, a seis de junho de 1860, ficando a residir no Pavilhão das
Mulheres, com o filho, Manuel Plácido. O escritor andou foragido, entregando-se às autori-
dades a um de outubro do mesmo ano, tendo ficado alojado no piso superior, destinado aos
reclusos ilustres e abastados, nos designados quartos da malta. Foi numa dessas celas que o
escritor redigiu Amor de Perdição e Memórias do Cárcere, duas das suas obras mais enaltecidas.
Na cadeia, após a visita de D. Pedro V, a vinte e três de novembro de 1860, e uma autoriza-
ção do Ministro da Justiça, em abril de 1861, passou a ter direito a saídas diárias dado o seu frágil
estado de saúde. Este privilégio era muitas vezes aproveitado pelo autor para descer ao primeiro
piso e visitar os prisioneiros que viviam nas condições mais miseráveis, nas designadas enxovias.
A dezasseis de outubro de 1861, foi lida a sentença que absolvia o escritor e a sua
amada. Este ano de clausura marcou Camilo de forma permanente, estando bem patente
na obra então composta o considerável amadurecimento do mestre das paixões. Após a
absolvição, partiram para Lisboa, mantendo o escritor uma atividade literária notável, não
só pela urgência catártica mas principalmente por questões económicas.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Não cabe neste artigo citar todas as obras redigidas, prefaciadas e traduzidas por
Camilo, nem evocar as polémicas em que se envolveu ou as contribuições em inúmeros
jornais, mas importa salientar que foi o autor com mais obras publicadas no país, assim
como o pioneiro da escrita profissional em Portugal.
Para além de Doze Casamentos Felizes, foi também em 1861 que levou ao prelo a sua
obra favorita, O Romance de Um Homem Rico. Em 1862, publicou Amor de Perdição,
Coisas Espantosas, Estrelas Funestas, Memórias do Cárcere, As Três Irmãs, e ainda a narrativa
Coração, Cabeça e Estômago na qual se adivinha o humor sarcástico de outras que se lhe
seguiriam, nomeadamente A Queda dum Anjo, Eusébio Macário e A Corja. Em 1863, trou-
xe a lume mais oito publicações, das quais destacamos O Bem e o Mal, Noites de Lamego e
Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado.
168 // Novas
A vinte e oito de junho de 1863, nasceu Jorge, o primeiro filho (legítimo) do casal.
Quanto ao segundo, Nuno, dado à luz a quinze de setembro de 1864, o nascimento já
ocorreu na quinta herdada por Manuel Plácido, após a morte de Manuel Pinheiro Alves,
seu progenitor. A partir de então, esta propriedade, situada em S. Miguel de Seide, no
concelho de Vila Nova de Famalicão, passou a ser a residência oficial da família.
A dois de março de 1872, o Imperador D. Pedro II concedeu-lhe a Ordem da Rosa.
Porém, a dezassete de setembro de 1877, a tragédia abateu-se de novo sobre a família com
a morte precoce, aos dezanove anos, de Manuel Plácido, na Póvoa de Varzim.
Quando a nova estética literária do Realismo-Naturalismo surgiu em Portugal, por
oposição ao Romantismo, vindo desenvolver olhares postos no futuro, no progresso e
na ciência, o romancista criticou-a sem, no entanto, deixar de escrever obras de pendor
realista. Como exemplos de transição poderemos citar Novelas do Minho e A Brasileira de
Prazins, datando, respetivamente, de 1875/1877 e de 1882.
Por forma a enaltecer o seu mérito enquanto escritor, o Rei D. Luís agraciou-o com
o título de Visconde de Correia Botelho, a dezoito de junho de 1885. Agradado por ter
obtido a insígnia sem ter sido necessário ceder às pressões de legalizar o relacionamento
com a mulher da sua vida, mas preocupado com o futuro desta e dos filhos de ambos,
desposou-a a nove de março de 1888.
Na data do seu 64º aniversário, a saúde do escritor inspirava grandes cuidados. Estava
muito frágil em termos físicos e profundamente deprimido pelo que João de Deus lhe
organizou, em Lisboa, uma homenagem na qual estiveram presentes figuras proeminentes
do país, dado que era enfim reconhecido o notável papel de Camilo Castelo Branco na cul-
tura portuguesa. De facto, o autor fora por duas vezes visitado, na prisão, por D. Pedro V;
recebera a visita, na sua residência sita na Rua de S. Lázaro, no Porto, de D. Pedro II,
Imperador do Brasil; fora nobilitado por D. Luís; e mantivera, ao longo da sua existên-
cia, relações próximas e de amizade com alguns dos maiores intelectuais de então, entre
Viagens de Camilo
“Camilo foi toda a vida um viajante. E nunca se afastou para muito longe: não
procurava nada, senão a velha esperança da procura” (Correia, 1997: Prefácio).
Camilo Castelo Branco, o escritor português mais odiado e venerado de que há memória,
foi um turbulento viandante, atraído mas fatigado pelo progresso e consequentes revoluções.
Para falarmos dos itinerários por ele percorridos não poderemos ignorar quão rudi-
mentares eram os meios de transporte no século xix, nem deixar de salientar a realidade
em que se movia. À época, as vias marítimas e fluviais detinham a primazia, sendo as
deslocações por terra morosas e arriscadas. Os salteadores eram verdadeiramente um
perigo para os viajantes que faziam os trajetos a pé, de burro, a cavalo, em caleche ou
de liteira.
Em 1856, surgiu o primeiro comboio em Portugal, tendo a viagem inaugural sido efe-
tuada entre Lisboa e o Carregado. Graças ao empenho de Fontes Pereira de Melo, Ministro
das Obras Públicas, a rede ferroviária expandiu-se rapidamente e, em 1862, já era possível
fazer o percurso entre Lisboa e o Porto. No entanto, havia poucas linhas e o nosso escritor
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
não demonstrava apreço pelo uso deste meio, tendo mesmo relatado um acidente em que
se lesionara no ombro num descarrilamento entre S. Romão e Ermesinde, no ano de 1878.
De acordo com a opinião dos críticos mais eruditos, mas sobretudo partindo dos de-
sabafos do escritor, poderemos afirmar que para o romancista as viagens eram um convívio
social imprescindível, um cotejar a vida com a dos seus congéneres, um estremecer ao
conhecer outros mundos e novas realidades. As jornadas eram mágicas e imprescindíveis,
qual intervalo entre dois atos de uma tragédia grega, a que recorria na demanda de um
colírio para os olhos, da esperança no Senhor da Pedra, da cura de ares no Bom Jesus do
Monte ou da paz ao pôr-do-sol da Foz.
3
Alusão à obra homónima do mestre.
170 // Novas
Viagens através dos Livros
Camilo era um viajante, percorria novos caminhos sem cessar, sendo as suas expedi-
ções mais longas e audaciosas realizadas através das páginas que compunha ou lera, já que
o seu génio privilegiava a ação intelectual em detrimento da física, e um convívio mais
próximo com as personagens que habitavam as imediações ou os enredos das suas obras do
que com os moradores de alguma localidade distante.
É do conhecimento geral quão ávido leitor Camilo foi, peregrinando sobretudo pelos
livros, quer por puro prazer, quer por obrigação. Não obstante, e após ter encontrado o seu
Lar na propriedade de S. Miguel de Seide, visitava outros locais com alguma frequência na
procura de novas experiências inspiradoras, por necessidade de se afastar transitoriamente
dos temporais que por vezes assolavam a casa ou, apenas, pela simples obrigação de tratar
de assuntos análogos aos que acometem os comuns mortais.
Efetivamente, a urgência de se afastar, como muitas vezes o confessou por missiva,
nomeadamente a Feliciano de Castilho ou a Bernardina Amélia, era angustiante, mas
diversos fatores o prendiam a casa. Por um lado, a difícil situação económica que o acom-
panhou a vida toda4, assim como os condicionalismos das viagens, não lhe permitiam
deambular muito longe de casa nem concretizar jornadas longas. Por outro lado, tendo
Camilo tinha um gosto eclético, sendo possível encontrar na sua biblioteca, lado a
lado, A Comédia Humana, Itinerário da Terra Santa e suas particularidades, ou a genealogia
do Visconde de Azevedo. Uma das características da sua prosa é o uso de citações, como
epígrafes de capítulos ou intercaladas no texto, por conhecimento profundo dos clássicos
latinos, da Bíblia e de autores cristãos, assim como dos escritores cujas obras traduziu e
prefaciou. No escritório do Torturado de Seide5 , local onde passou muitas noites de insó-
nia6 , teve a companhia de Alexandre Herculano, Almeida Garrett, Balzac, Feliciano de
Castilho, Pascal, Racine e Vítor Hugo representados em retratos e bustos..
Ao impressionante saber livresco o mestre associava o contacto direto com os seus con-
temporâneos, fundamentalmente os mais desfavorecidos, tendo sido graças à comunhão
com os habitantes do Minho, de Trás-os-Montes e das Beiras que o autor conheceu o pul-
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
5
Obra de Alberto Pimentel, datada de 1921, na qual o autor analisa a vida e a obra de Camilo evidenciando
a grande admiração que nutria pelo mestre.
6
Título de textos publicados mensalmente, em fascículos, por Camilo, em 1874, e levados ao prelo, em dois
volumes, em 1929.
172 // Novas
Durante a sua permanência na Cadeia da Relação do Porto pela segunda vez, e apesar do
privilégio de poder sair do edifício diariamente, muitas vezes preferia descer às gélidas e imun-
das enxovias onde ouvia as histórias e provações dos outros prisioneiros, apiedando-se deles.
A cumplicidade entre o romancista e os companheiros do cárcere era tão forte que se tornou
amigo de alguns, entre os quais destacamos o Zé do Telhado. Posteriormente, contou as suas
narrativas solidarizando-se com os desvalidos pois as prisões eram fétidos depósitos de suspei-
tos, alguns inocentes, amontoados em celas com condições desumanas, muitas vezes esqueci-
dos até morrerem. Memórias do Cárcere, onde o escritor tão bem retrata os calabouços e o tipo
de pessoas que os habita, é uma das mais aclamadas produções literárias baseadas na realidade.
Fazia parte da rotina diária de Ana Plácido sentar-se no seu mirante, aberto no muro
da propriedade de S. Miguel de Seide, a fumar um charuto, analisando tudo o que se pas-
sava em redor. Consta que as conversas havidas com os empregados da casa de lavoura e
com os habitantes locais que passavam nas imediações eram partilhadas com o romancista
ao serão, servindo-lhe muitas vezes de inspiração.
Cabeceiras de Basto, Caçarelhos, Caldas das Taipas, Caldas de Vizela, Candal, Cavez,
Covas do Barroso, Foz, Friúme, Granja Velha, Landim, Miranda do Douro, Montalegre,
Penajóia, Ribeira de Pena, Santo Aleixo d’Além Tâmega, São João d’Arga, São Julião da
Serra, São Miguel de Seide e Vilarinho da Samardã.
Apesar de termos asseverado que o autor viajava mormente pelos livros, não nos pode-
mos esquecer de que Camilo conhecia bem grande parte do país, especialmente os locais
onde vivera ou a que estava ligado por laços afetivos.
O jovem Camilo iniciou os estudos primários em Lisboa, em 1830, mas em breve se
deslocou para Vila Real, onde o pai fora colocado como responsável pelos correios. No
entanto, e dada a demissão de Manuel Joaquim por acusação de fraude, em 1831, a família
regressou à capital.
174 // Novas
Foi logo após a morte do progenitor, a vinte e dois de dezembro de 1835, que o rapaz realizou
a única viagem marítima e pisou território estrangeiro. Como já referimos, os órfãos fizeram a
travessia de Lisboa ao Porto por mar e, dadas as más condições atmosféricas, houve necessidade
de mudar a rota para Vigo. Por curioso que possa parecer, esta jornada por mar foi irrepetível,
tendo também sido a única vez em que o romancista esteve no estrangeiro. Na realidade, e apesar
de nas suas obras haver frequentemente referência a outros países, designadamente Alemanha,
Áustria, Brasil, França, Inglaterra e Itália, assim como a África e ao Oriente, a verdade é que o
escritor nunca saiu de Portugal Continental exceto quando aportou em Espanha.
Seguidamente analisaremos as viagens empreendidas pelo génio em termos ter-
ritoriais, sendo um facto que a nível nacional Camilo repetiu na sua obra percursos
palmilhados na vida real.
e enobrecido.
Bom Jesus do Monte, Braga: Lugar ao qual se deslocava com frequência, tendo-se
aí encontrado com Ana Plácido, assim como com o morgado da Quinta do Lodeiro e a
esposa deste, Fanny Owen.
Viana do Castelo: Camilo residiu em S. João d’Arga, na encosta do Monte de Santa
Luzia, durante cerca de dois meses, no ano de 1857, onde terá composto os romances
Cenas da Foz e Carlota Ângela.
Caçarelhos, concelho de Miranda do Douro, distrito de Bragança: Calisto Elói, fidal-
go austero e conservador, protagonista do romance satírico A Queda dum Anjo, era natural
de Caçarelhos, no termo de Miranda do Douro, local que Camilo visitara.
Vila do Conde, distrito do Porto: O mestre viveu nesta vila, em 1870, tendo aí redigido
O Condenado, peça levada a cena em 1871.
176 // Novas
Póvoa de Varzim, distrito do Porto: uma das praias de eleição do génio onde convivia
com os literatos, chegando a ser regularmente recebido no Solar dos Carneiros, pertença
do Visconde de Azevedo.
A Norte, muitos outros caminhos foram calcorreados pelo génio, mas seria fastidioso
enumerá-los a todos, sendo preferível afirmar que palmilhou inúmeros percursos nos
distritos de Braga, Bragança, Porto, Viana do Castelo e Vila Real.
Viagens a Sul
O mestre foi exímio a descrever, não apenas as localidades e as paisagens, mas essencial-
mente o modo de ser e de sentir dos povos, concebendo enredos e criando personagens que
refletem exemplarmente a paixão, a desgraça, a amargura e o desespero das almas lusitanas.
Citando Agustina Bessa-Luís, “Português, não há outro tão grande nas letras”.
Considerações Finais
Camilo foi um génio, uma força sobranceira, apesar de todas as agruras que conheceu
desde a mais tenra idade.
Lutando contra uma personalidade instável e depressiva, mas graças a um carácter
inconformado e à vã esperança da felicidade, conseguiu utilizar os seus traumas para dar
voz àqueles que a não tinham, moralizar e aconselhar ou, simplesmente, engalhar o sono
rebelde, como ironicamente afirmava.
Sobranceiro a escolas, tornou-se na figura central do Ultrarromantismo português,
tendo sido o primeiro romancista profissional luso e o mais profícuo da Península Ibérica,
devendo-se a si a criação da típica novela passional.
Territorialmente, viajou pouco e fundamentalmente a norte do Rio Douro, sempre
perto do Lar, tendo chegado a Vigo por acidente e a Lisboa por nascimento.
180 // Novas
As viagens físicas foram curtas e fugazes, muitas vezes meras evasões na desesperada
procura da alegria de viver, sendo sempre rápido o retorno a casa, sem ter encontrado paz
ou felicidade duradouras.
Em termos geográficos, o nosso peculiar viajante não palmilhou estradas a sul de
Lisboa, desconhecendo assim o Alentejo e o Algarve, mas conheceu países distantes e aí
encontrou amor e salvação através da Literatura.
As jornadas prediletas, em que verdadeiramente se divertiu e cultivou, foram as em-
preendidas pelos livros, redigindo uma bela intriga ou deliciando-se com a análise da obra
de um escritor que admirasse.
Considerado o mais fecundo autor luso, o génio decidiu retirar-se do palco da vida
quando a cegueira o afastava do mundo das letras.
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Leopardo Filmes.
SARMIENTO, Valeria & Paulo Branco/Leopardo Filmes/ Alfama Films Production/CB Partners,
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O relevar de um património, de uma maneira de ser e estar, bem como a sua valo-
rização, permitem a aquisição de uma outra consciência vivencial e, em alguns casos, a
concretização de novos espaços de som e arte. Neste sentido, referimo-nos aos diferentes
projetos de fusão artística que têm sido propostos nos mais diversos domínios, mas tam-
bém, aqueles que exteriorizam o que de mais autêntico um território encerra, surgindo
como veículos de manifestação e exteriorização de um imaginário, em si, real. Tendo como
objetivo principal a identificação e valorização dos recursos do território, percebemos que o
património, tanto material como imaterial, reflete a maneira como um povo, uma região,
um país, se mostra e diz, num espaço vivencial que se oferece, a cada vez, mais plural e
multicultural. Pondera-se assim, sobre a efemeridade ou permanência de um ser e ter que
Introdução
Num mundo que se edifica global e globalizante, um mundo que se mostra a cada tempo
e lugar cada vez mais competitivo e fugaz, e onde os interesses económicos superam, quando
não aniquilam, todos os outros, vimos surgirem novas formas de ver e olhar o mundo, novas
formas de conduta interna e externa que indicam um fazer, ser e ter, mais coeso com aquilo
que de mais genuíno o homem tem. Este novo fazer, anulando progressivamente o anterior,
revela e releva aquilo que o global compulsou numa ação perversa e aviltante dos povos e das
gentes, dos tempos e dos lugares. Esses tempos e lugares, assim como o esgotamento físico,
intelectual e moral que ao ser humano constrange, tem-no levado aos poucos a questionar
uma forma de ser e estar no mundo, formando-o outro. Num olhar para dentro, o homem
percebe a necessidade de fazer emergir, nos tempos e espaços que quantas vezes negligenciou,
modos de ser, fazer e ter mais simples, genuínos e consentâneos com os tempos e os lugares
que habita, bem como com as tradições. Buscando e implementando modos de vida mais
puros, trazendo à luz modos de ser, ter e fazer mais tradicionais e compatíveis com formas de
consciência que intentam o respeito da vida nas suas diversas formas, representam, os “novos
rurais”. Na procura desse equilíbrio com a natureza e no respeito que o homem se deve a si
e aos outros, buscam as tradições. Neste fazer, os modos de vida, os rituais e os ritos, saem
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
1
As Festas Joaninas, em honra dos Santos Padroeiros e em louvor da Virgem Mãe adquirem, por outro lado,
uma outra forma de se fazer representar. Nota-se continuamente uma luta entre o bem o e mal, entre as
forças angelicais e demoníacas, forças essas que se encontram presentes em toda a atividade humana.
2
O Carnaval é uma denominação que compreende na sua raiz etimológica um “adeus à carne” (Ferreira 2016).
187 // Novas
Por outro lado, sabemos que o que se designa como recurso de um território, pode
ser delimitado e estudado de diversas maneiras. Não se resumindo a aspetos de ordem
material, geográfica, geológica ou ambiental, esta ação engloba tudo aquilo que respeita ao
conjunto dos recursos imateriais de uma região, de um país, de um povo. Neste contexto,
surgem atividades de divulgação e dinamização de territórios cujas dinâmicas dependem
das atividades sociais e culturais aí desenvolvidas, bem como de fatores extrínsecos de rea-
lização, e também, difusão. Em lugares onde a desertificação se confirma, o estudo desses
locais com vista à sua promoção é urgente. As tradições podem aí ser percebidas como
meios de promoção e difusão, privilegiando a comunicação interpessoal, a criatividade
e expressividade, o equilíbrio, o refazimento, a partilha, o respeito e o desenvolvimento
integrado e integrante de todos3.
Ao estudarmos uma manifestação cultural onde a máscara, mas também o fogo, o es-
cárnio e o maldizer são usados como formas de renovação e expurgação de todos os males,
permitimo-nos olhar a cultura e as tradições nas suas variadas manifestações, buscando o
genuíno e o autêntico. Ao perceber de que forma o património material e imaterial das
diferentes regiões se diz, e de que forma pode contribuir para a preservação da cultura e
das tradições conduzindo ao seu desenvolvimento cultural, social e económico, poderemos
traçar uma perspetiva de desenvolvimento alargado dessa mesma região. A realização e
divulgação de toda uma prática cultural e recreativa que visa não só a promoção territorial,
como o seu desenvolvimento económico, social e cultural, traduz, no nosso entender, uma
preocupação das autoridades na revitalização das diferentes manifestações que agora se
dizem tradições, contribuindo para uma leitura renovada dos lugares, um incitamento à
sua vivência, e sobretudo, experienciação e prática. Neste sentido, podemos afirmar que,
estando presentes em todos os domínios da manifestação humana, seja de caráter religioso
ou profano, estes eventos podem atuar na superação de desigualdades sociais. Ao motivar
e estimular associações e coletividades, encetam processos de desenvolvimento social e
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
3
Ações de emancipação, dinamização ou desenvolvimento de comunidades e grupos, encontram-se presen-
tes quando se fala em gestos de promoção e preservação de territórios e tradições, mormente os que aqui
apresentamos. O modo como a preservação da tradição em territórios se faz, contribui, certamente, para a
manutenção de uma identidade local, permitindo traçar perfis exclusivos em regiões caracterizadas, quantas
vezes, pela interioridade, fator determinante para a conservação de uma autenticidade cultural.
188 // Novas
A máscara na definição de paisagens sonoras e na exteriorização de
um imaginário, em si, real
Espalhados pelo território, os eventos culturais que aqui apresentamos, as festividades
de Inverno e início da Primavera, as Festas Joaninas, aos Santos Padroeiros, ou em honra da
Virgem Mãe, os rituais e ritos com máscara, são importantes para a divulgação da cultura
e a dinamização dos territórios. Pela observação da sua presença em diferentes regiões de
Portugal continental, nomeadamente a raiana, apuramos que as atividades e dinâmicas
culturais deles resultantes, tornam estes territórios mais férteis e empreendedores. Neste
sentido, as populações vertem neles a sua cultura e saber, bebendo em seguida das suas
realizações. Neste fazer, queremos crer, pela observação das dinâmicas produzidas, que os
locais onde estão inseridos, bem como as suas populações, gozam da riqueza que produzem
e adquirem. Dependendo do local onde se inserem, e do território que abrangem, divul-
gam a região que, as mais das vezes, se encontra votada ao abandono. Todas as atividades,
sejam elas de carácter social, cultural ou outro, atraem público, não só um público local,
como aquele forasteiro, cuja presença promove o desenvolvimento da economia, no fluxo
e afluxo de pessoas e bens, saberes e seres. Essa dinamização apela à realização de eventos
de natureza diversa. As festividades de Inverno e início de Primavera, as festas e romarias, a
máscara, o ritual e o rito, contidos nas diferentes manifestações do Entrudo e do Carnaval,
nas Festas Joaninas, dos Santos Padroeiros, mas também da Virgem Mãe, bem como nos
rituais e ritos de iniciação e fertilidade de final de Inverno e início de Primavera, surgem re-
veladores de uma genuinidade, podendo, no nosso entender, constituir-se fatores de desen-
volvimento económico, social e cultural importantes, mas também um meio de identificação
e caracterização de territórios. A necessidade de revitalizar territórios e tradições aporta
aspetos importantes que urge destapar. Neste sentido, salientamos a concretização de rituais
e ritos com máscara, bem como a execução de práticas que se encontram, em alguns casos,
desvalorizadas e esquecidas, promovendo o cumprimento de costumes que contribuem
mas, facetas e expressões. Marcando um ritmo, definindo labores cíclicos nos tempos e
lugares, as festas, os rituais e os ritos, estruturam, apoiados num tempo que se define nas
estações do ano e nos calendários religiosos, um fazer e ser social, que se diz autonoma-
mente enquanto forma de tradição e arte. Para que estas práticas se realizem, organizam-se
grupos e associações culturais, que contribuem para a coesão comunitária, promovendo,
pela festa, o nascimento de um sentimento de pertença, de grupo, de região, confirmando
o valor das relações em sociedade e em grupo. Neste sentido, e segundo Serra, “a solidarie-
dade, a coesão grupal, o sincronismo perfeito e o agonismo acentuado de certos episódios
destas ocupações campestres contrastavam nitidamente com a alegria ruidosa, a surriada, o
chiste, a piada satírica e burlesca, os ditos maliciosos (até obscenos!) e as cenas eróticas de
outros, que lhes sucediam ou com eles se misturavam” (2001: 156). As festas e as romarias
190 // Novas
constituem-se em momentos singulares da vida do homem, um homem que se apoia neles
para reviver emoções, emoções que, as mais das vezes, se encontram traduzidas nas paisagens
e narrativas desses mesmos rituais e ritos.
Além-mar, fruto de uma influência europeia, mas não só, surgem no continente sul-
-americano os rituais do Diablada no Peru, Chile e Bolívia, ou do Boi-Bumbá ou Bumba-
-meu-boi, no Brasil. Nestes casos particulares, as narrativas, poéticas e poiéticas que constroem
mostram-se mais profundas. Associadas a danças representativas de uma luta entre as forças
do bem e do mal, da vida e da morte, neles, as personagens, os trajes, as indumentárias,
surgem ligadas a símbolos, lendas e mitos próprios. A simbologia assoma naturalmente
vinculada à presença do bem e do mal, dos anjos e dos demónios, do homem e do animal.
Reunindo elementos da religião católica introduzidos durante a presença portuguesa e
espanhola no Sul do Continente Americano, mas também aqueles presentes em rituais de
tradição andina e indígena, a dança, sempre presente, particulariza o dizer. Na sua deter-
minação sobressai o ritual e o rito, mas também toda uma indumentária, uma coreografia,
um sonoro e um visual, que convém relevar.
O ritual e o rito
Questionando as narrativas poéticas e musicais onde a máscara se insere, é nosso objetivo
averiguar como a máscara, e as manifestações culturais onde se insere, nomeadamente os
rituais e os ritos, se revelam espaços de exteriorização e libertação de um imaginário em si,
real. Seja em espaço Europeu, seja no Continente Sul-Americano, a máscara e os rituais a ela
associados possuem características que nos permitem identificar, delinear e caracterizar a sua
disseminação. Da sua observação, vemos que existem características que se mostram comuns, e
outras, que se expõem diferenciadoras. No que concerne as características comuns, percebe-
mos que a organização e dinamização dos eventos ao seu uso associados, é feita pelos jovens
solteiros da terra. Esta ação incide tanto nas práticas realizadas no nordeste de Portugal, no
A prática
A prática do ritual e do rito por parte dos jovens solteiros da terra, para além de con-
sentir como resultante, um maior vigor e pujança nas danças, nos saltos, grunhidos e urros,
permite, na componente marcadamente sexual e libidinosa que se mostra coreografada, a
concretização dos rituais e ritos de iniciação e fertilidade próprios aos ciclos de libertação e
191 // Novas
regeneração. A força e a juventude encontram-se presentes igualmente nas praxes e rituais
iniciáticos de passagem à idade adulta, promovendo a integração social no grupo e na co-
munidade. No que concerne a Diablada, os elementos simbólicos e mágicos, de distintos
significados, são materializados em objetos iconográficos e gestos rituais de variado tipo,
nomeadamente as danças, os saltos e os gritos dos seus intervenientes, de forma a captar
a atenção daqueles a quem se dirigem4. Deste facto, surgem nas máscaras, e nos aspectos
zoomórficos que expõem, elementos de uma selvática que pretende o contacto não só com
o bem, como com o mal, com o humano e o animal, os deuses e os demónios, de forma a
concretizar o apaziguamento de todas as forças vitais da natureza. Os líderes grupais osten-
tam distintos elementos que, quando analisados, vertem a sua importância, a saber: varas,
roupas, bastões, coroas, ceptros ou chapéus. Estes elementos afirmam o seu poder dentro do
grupo e perante a comunidade. Devemos ainda referir o carácter disciplinar imposto pela
tradição e pelos códigos de conduta sempre presentes, códigos sempre aplicados pelos líderes
aos jovens participantes de forma a regular e disciplinar as práticas, bem como a práxis e sim-
bologia dos rituais e ritos de passagem e iniciação à idade adulta5. Toda esta prática se faz para a
comunidade6. No que concerne os rituais com máscara no Planalto Mirandês, temos a referir
as rondas em grupo pelas localidades e as visitas aos locais nas arruadas e alvoradas7. Nestas
ações, as refeições, comunitárias, permitem o convívio e a integração dos novos membros
fazendo-se sempre no seio da comunidade. Estas refeições não se limitam à ingestão de viveres
e ao convívio, permitem ainda a iniciação dos jovens em práticas vulgarmente associadas à
4
Sobressaiem a festividade em honra da Virgem Mãe, embora com narrativas visuais e sonoras onde
proliferam elementos pagãos.
5
Neste sentido, lembramos as praxes e os códigos de conduta que devem ser respeitados por todos e não só pelos
“novos”, as multas descritas e aplicadas quando a quebra da boa prática e da conduta assim o exige. A natureza e a
prática de algumas tarefas, bem como a presença, ou não, em determinados espaços dos locais de encontro e ativi-
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
dade, nomeadamente a Caserna no caso dos Cardadores de Vale-de-Ílhavo, também determinam uma hierarquia
grupal que se deve respeitar. Neste caso, podemos ainda referir, a limpeza do espaço ou o puxar das carroças pelos
aspirantes a Cardadores (Ferreira 2016). Noutros casos são as lutas entre os jovens, o suplantar de castigos e de
provas de destreza e resistência física várias, a demonstração que os jovens devem prestar para pertencer ao grupo
e passar, assim, à chamada fase da idade adulta, vislumbrando-se “um morrer para nascer de novo” (Morin 1970).
6
Neste sentido, ela se mostra em espaços e tempos próprios.
7
No que concerne esta ação devemos mencionar ainda a presença dos instrumentos tradicionais comuns a
outras áreas de influência geográfica, nomeadamente a do Planalto Mirandês na zona de Miranda do Douro,
na Raia Alentejana em Vila Verde de Ficalho, e na Zona de Castilha Leon na localidade de Ciudad Rodrigo,
na zona fronteiriça com Vilar Formoso em Portugal, onde tanto a Gaita de Foles como o Tamboril, são ins-
trumentos comummente usados nas Festas e Romarias, e nos rituais aqui apresentados. Simultaneamente,
as Rondas e as Alvoradas são momentos importantes nas Festas Patronais juntando o povo e os festeiros em
comunhão. Desta ação resulta ainda o Peditório que é importante para a recolha de fundos que permite a
continuidade desta tradição. Estes peditórios fazem-se ao som da gaita de foles e do tambor e com recurso
à dança. Os peditórios são efetuados porta a porta em homenagem aos Santos Patronais e à fertilidade da
terra. De referir ainda que na Festa do Menino ou Festa da Velha que se celebra em Vila Chã da Braciosa são
realizadas pinturas faciais e são usados disfarces durante os peditórios (Costa 2017; Ferreira 2105).
192 // Novas
maioridade8. A música, presente em algumas destas manifestações, nomeadamente na re-
gião da raia, realizada por instrumentos tradicionais entre eles a Gaita-de-Foles, a Flauta e
o Tamboril, resulta imprescindível e diferenciadora, conferindo grandiosidade aos atos mais
solenes de cariz religioso, mas também, aqueles de cariz profano (Costa 2017; Ferreira 2105).
A purificação
A queima de elementos fantásticos que serão os meios pelos quais se expurgam todos
os males, acontece em diversas localidades do país (Costa 2017). Nestes rituais e ritos, en-
contramos muitas vezes associada a prática do escárnio e do maldizer como forma de purga
social, usando não só a sátira como o fogo. A crítica, como ritual profano e, simultanea-
mente, a presença do lado purificador e sagrado da confissão pública de todos os males, é
realizada pela altura de final de Inverno e início da Primavera, na prática dos Casamentos e
Testamentos, bem como nos Julgamentos e nas Queimas, formas de purificação das gentes
e das comunidades. Estes elementos estão presentes principalmente nos rituais com másca-
ra realizados em Portugal, rituais esses que exigem a leitura de Testamentos, nomeadamen-
te aqueles que ocorrem na Festa da “Belha, Bailador e Bailadeira” em Vila Chã da Braciosa,
na Festa de Ano Novo e do “Belho” e Galdrapa, Bailador e Bailadeira de São Pedro da Silva
e, na Festa de Santa Luzia, também denominada de Festa da “Belha”. Nesta ação, todos
os males da sociedade são eliminados, conduzindo à purificação de todos e da sociedade
onde se inserem9. Da mesma forma encontramos o Enterro do Galo na Guarda, a Queima
do “Santo” ou dos Judas em Vale-de-Ílhavo, ou a Queima da Comadre e Compadre em
Lazarim. Diversas figuras empalhadas de Caretos são também queimadas em Podence e
Bragança, em rituais de purificação e renovação, com vista à entrada na Quaresma. As
funções dos mascarados passam ainda pela purificação que advém da prática de uma crítica
social dos atos de cariz reprovável por parte de alguns membros ou grupos da comunidade.
Assumindo o papel de profetas, levantam a voz perante todo o povo e apontam o dedo
8
O consumo de álcool, e no caso de os Cardadores de Vale-de-Ílhavo, unicamente o vinho tinto e o bagaço,
são uma constante (Ferreira 2016).
9
Neste contexto, podemos referir ainda todas as Festas que concernem o Dia da Morte ou a Quarta-feira de
Cinzas; a Morte e Diabos que se celebra em Vinhais e a Morte Diabo e Censura, em Bragança.
10
Estas ações são também visíveis em localidades da comarca de Aliste (Zamora) nomeadamente com a presença
do Zangarrón de Montamarta em Espanha.
193 // Novas
sobreponha ao mal, purificando toda a comunidade, contribuindo para que um novo ciclo
de vida e de colheitas se faça, e venha próspero em alento e regeneração11.
A fertilidade
No que concerne os ritos de fertilidade, podemos referir em exemplo o ritual do Carocho
e da “Belha”, um casal, em Constantim. Acompanhados pelo grupo de Pauliteiros, reali-
zam um peditório por todas as casas da aldeia onde são distribuídos tremoços, de modo a
concretizar a fartura e a fertilidade. Também designado de convite, esta prática visa reforçar
esta simbologia da fertilidade, assim como os jogos amorosos que são notoriamente apela-
tivos do ponto de vista sexual (e que chegam a simular mesmo o ato sexual). Sabemos que
os adereços são muitos. No que concerne o Chocalheiro da localidade de Bemposta, e a
prática de um ritual de peditório, notamos, para além do uso da máscara, o uso de chifres,
duas laranjas espetadas nas suas pontas, barbicha de bode no queixo, uma bexiga de porco
cheia de ar pendendo na nuca, uma laranja de baixo relevo na testa. Em outro, num dos
lados da face encontramos uma serpente e no outro uma salamandra (Ferreira 2015)12.
Devemos referir que todos estes elementos remetem para a simbologia da Terra-Mãe e para
as funções do Chocalheiro. Estes rituais e ritos podem ser inscritos nas funções propiciatórias
dos mascarados; a generosidade do povo manifestando-se nos peditórios. Simbolicamente
e dentro do espírito da religiosidade popular e do paganismo funcional, as dádivas con-
têm um ato propiciatório: dar para que a divindade retribua a oferta. O ato de chocalhar,
numa alusão clara ao ato sexual e ao rito de fertilização das raparigas, encontra-se também
associado à prática dos Caretos de Salsas, Lazarim ou Podence, bem como ao realizado,
utilizando as cardas, pelos Cardadores da região de Vale de Ílhavo.
11
Esta luta, para além de acontecer nas práticas e eventos propostos em Portugal, encontra-se patente, e
delineada, nos cortejos do Boi-Bumbá e da Diablada além-mar (Furlanetto 2017).
12
Recorrendo ainda a uma grande serpente que lhe envolvia todo o corpo e a uma tenaz com a qual seviciavam os
presentes, os rapazes atemorizam a todos com as suas práticas, práticas essas que visam a fertilidade (Ferreira 2015).
194 // Novas
sonoridades, sonoridades essas que descerram imagens exclusivas, sendo que as paisagens
encelam uma fisionomia, um olhar, uma escuta, uma expectativa, uma lembrança particu-
lares. Para efetuar essa escuta, acedendo ao mundo geográfico que esta detém, a interpreta-
ção se dá numa perspetiva geográfica emocional, a partir da escuta atenta dos interlocutores
e dos elementos sonoros da festa. Esta interpretação, explora as faces delineadas na intimidade
das relações dos sujeitos entre si e com o lugar. A busca do potencial expressivo das pai-
sagens é realizada pelo testemunho poético e literário, filosófico ou ritualista, artístico ou
figurativo que dispõem, meios através dos quais o contexto geográfico se mostra. Neste
sentido, e segundo Furlanetto, “a interpretação da paisagem é atravessada pela arte, pois
as emoções e os sentimentos impulsionam nossa liberdade espiritual, enriquecem nossa
consciência e nos transmitem o profundo significado do mundo que nos circunda. Nesta
direção, a paisagem pode ser vislumbrada de uma maneira envolvente e solidária, capaz de
revelar a criatividade de cada ser humano, promovendo o reconhecimento do outro em
sua alteridade e dignidade. Portanto, uma geografia emocional, que, legitimando a liber-
dade de criarmos nossos próprios mundos, contempla todos os homens e suas paisagens”
(2017: 95). A paisagem cultural aparece, assim, interligada ao espaço vivido, ao sentido de
lugar e enraizamento, e às questões identitárias, revelando-se essencial na identificação e
preservação dos territórios. Ora, não serão todas estas paisagens e manifestações culturais
semelhantes nos seus atributos e nas suas intenções? Não está o homem intimamente liga-
do ao oculto e ao fantástico através das suas paisagens, máscaras e rituais? Não serão estes
elementos os fios condutores de diferentes histórias, histórias que se tocam e vislumbram
desde tempos idos? Se os elementos zoomórficos são a ligação do homem ao culto das
divindades desde sempre, são também os elementos que nos remetem para os feiticeiros,
os xamãs e agentes de cura e purificação. Todos se tocam, e no nosso entender, não só nos
motivos que as determinam, nos elementos que as compõem, mas também nas narrativas
poéticas, visuais e sonoras que executam, nas intenções e nos atos, mas ainda nos resultados,
A Diablada
Nas celebrações que aqui analisamos existe um forte cunho de autenticidade, pois que
preservam o seu significado e finalidade originais. A criatividade na construção de perso-
nagens com uma rusticidade únicas mostra uma necessidade de revitalização de saberes,
de tempos, espaços e tradições13. No caso de a Diablada presente em terras do Continente
Sul Americano, somos a destacar a natureza dos desfiles e dos elementos que o compõem.
Sendo um caso que deriva do culto à Virgem da Candelária e do agradecimento à Virgem
13
A revitalização destes personagens traz a revitalização dos lugares e o desenvolvimento das regiões pela
movimentação de pessoas e bens e a dinamização do comércio e turismo locais.
195 // Novas
pelo milagre produzido na mina, os constituintes que a formam usam a máscara como ele-
mento que outorga poderes sobrenaturais, permitindo-lhes todas as licenciosidades. Neste
caso, os elementos zoomórficos referem-se ao Diabo, e aos atributos que lhe são próprios;
os outros, às imagens que nos são dadas pelo culto católico e a vitória do bem (Anjos e
Deuses) sobre o mal (Diabo e Caporales). Os desfiles e os corsos, mostram a luta do bem
contra o mal, ilustrando a história que lhe deu origem, a Lenda da Mina de Lakaikota e
da Virgem de Candelária.
O Boi-Bumbá
No caso do Boi-Bumbá estamos perante uma encenação de rua que nos remete para
uma lenda, uma história fantástica onde os intervenientes buscam o contacto e as benesses
de seres transcendentais. De uma forma ou de outra, somos levados a refletir sobre a vida
e a morte, os cultos ao fantástico. Nesta manifestação cultural, a ligação com as divindades
realiza-se na crença de que a ligação ao animal, ao boi, decorrida da necessidade de satisfa-
zer os desejos de uma grávida, permite o rejuvenescimento do vigor e da força necessários à
conceção de uma vida, ao trabalho e à saúde de todos. Todos estes elementos nos remetem,
não só para a vida, como para a morte, o pecado e a virtude, a vingança e o perdão, o sa-
grado e o profano, a purificação e o afastamento de todos os males, de todos os prejuízos.
Concomitante com os nossos objectivos, diversos autores e estudos corroboram o olhar
que se nos apraz realizar sobre estas manifestações culturais onde a máscara se mostra de
diferentes modos em face dos lugares onde é criada, resultado dos materiais, mas também
das intenções, das capacidades e constrangimentos dos artesãos, do seu modo de fazer, de
viver e dizer arte (Costa 2017; Furlanetto 2017; Ferreira 2016; Ferreira 2105).
Tornando-se vivência dos lugares e dos meios de que o homem dispõe, os materiais
dão-nos as formas, os guarda-roupas e as indumentárias diferenciadas, os instrumentos e a
música utilizada. No caso do Boi-Bumbá, também conhecido como Bumba-meu-boi ou
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Boi de mamão14, o som e a narrativa são o fio condutor do espetáculo. A música, o texto
falado e o canto são a base das suas diferentes representações (Furlanetto 2017). A narrati-
va sobre o mito da morte e ressurreição, anuncia os personagens que comunicam os valores
e as histórias do espaço vivido. Ao expressar as particularidades de cada grupo, de cada
local, o som se apresenta delineador de uma paisagem geográfica e cultural que delimita
lugares, emoções. Este leque de emoções, caracterizando o ser humano, é o mesmo que se
anuncia premissa da geografia poética dos espaços íntimos, a mesma que nos permite criar
textos musicais que traduzem essa mesma paisagem.
14
Designação que adquire conforme a região que o sustenta.
196 // Novas
Conclusão
Ao longo deste trabalho percebemos que não só a paisagem sonora, como o uso da
máscara, das indumentárias, bem como a natureza das coreografias que se executam, se
tornam próprias dos lugares. Se em Portugal se encontram ligadas aos rituais de finais de
Inverno e início de Primavera, aos ritos de iniciação e fertilidade, além-mar, encontram-
-se vinculadas às Festas em honra da Virgem da Candelária e às Festividades Joaninas.
Notamos ainda que surge idêntico o ensejo de fomentar e produzir o anonimato dos par-
ticipantes, de os tornar possuidores de forças e energias ditas sobrenaturais, de os tornar,
de alguma forma, superiores, de maneira a lutarem contra o mal. Se os materiais, as formas
e os carateres são similares em todas elas, a exuberância torna-se maior além-mar. A asso-
ciação de uma narrativa confere-lhe uma componente que, em Portugal, não está patente.
A forma como se define e constrói o musical, também.
Em Portugal não existe uma narrativa musical. Quando existe é rudimentar. No en-
tanto, num e outro lado do mundo, surgem como recursos do território de inegável valor,
não só cultural, como social, económico e territorial. A componente musical surge sempre
como construção sonora onde, para além do som ambiente do espaço físico, arquitectó-
nico e urbano escolhido, se sobrepõe aquele executado. Encontramos, muitas vezes, um
sonoro que nos provoca de maneira quase instantânea e que alude sempre a um sentimen-
to, uma emoção, uma vivência. Sabemos que se constrói num espaço de som próprio ao
lugar e território onde se manifesta, constituindo-se dos sons e verbalizações que surgem
no espaço da performance. Num e noutro caso o sonoro surge como suporte a uma ação
física, emocional, conceptual, social e vivencial.
O património imaterial, presente nos saberes, fazeres e tradições, torna-se nas ma-
nifestações ora estudadas, uma riqueza que não se pode menosprezar. Urge atuar no
sentido da promoção da cultura e do património, sendo que todos podemos, e devemos,
Andreotti, G. (2012). O senso ético e estético da paisagem, Ra’e ga. Curitiba, nº 24, p.5- 17.
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Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
198 // Novas
Espacios de devoción de la raya
Hispano-Portuguesa.
Análisis antropológico y turismo religioso
de los paisajes sagrados de frontera
Introducción
Por fortuna, la literatura científica sobre las fronteras, como espacios de contacto y
como lugares de conflicto, es notablemente extensa; la frontera, la raya, el confín, el limes,
lo liminal, en definitiva, cuenta con un enorme interés desde el punto de vista geoestratégi-
co para los Estados para quienes tiene una gran importancia política, cultural, económica,
además de simbólica “tanto en la reproducción de los modelos de identificación interna-
cional, como en la justificación de la existencia de los mecanismos de defensa/protección/
represión” (CAIRO, 2018: 17) que suponen, además, una estrategia de la población para
la territorialización de su entorno y la diferenciación respecto al otro. La creación de la
frontera, frente al concepto de confín (ZANINI, 2000) establece un espacio intermedio
que supone una separación, “un límite mutable a partir del que nos reconocemos y re-
conocemos a unos otros siempre cambiantes” (VALCUENDE, CAIRO, GODINHO,
KAWANAGH y LOIS, 2000: 19). En este sentido, las fronteras, para ciertos autores del
ámbito anglosajón, son espacios paradójicos, enclaves en constante negociación (ibidem, 26).
Una vez que en la actualidad se ha superado el concepto de frontera natural, muy del
gusto de los estudios geográficos clásicos, su análisis se centra tanto en las relaciones inter-
estatales como la óptica antropológica, aspecto ya tratado por Carmelo Lisón (1994) donde
destaca su valor como espacio simbólico (RIVAS, 1994). Dentro de un territorio determi-
nado, la frontera es un ámbito espacial inestable que se encuentra en “continuo proceso de
restablecimiento mediante prácticas constructoras y portadoras de significados” (WILSON
y DONNAN, 2005: 4), lugares donde ocurren ciertos acontecimientos que no se dan en
otros territorios. Constituyen espacios culturales en los que se definen localizaciones muy
propicias para la aproximación y el encuentro transcultural, en especial el religioso. En
estos espacios se genera lo que Paula Godinho denomina una cultura de orla (GODINHO,
2011) o cultura de frontera (URIARTE, 1994), tal y como la encontramos en algunas co-
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
3
Citado por VALCUENDE et alii, 2018: 30.
201 // Novas
tanto que ruptura con lo cotidiano, adquiere en la frontera un aspecto de transgresión
que no es solamente simbólico: refuerza las relaciones de parentesco y amistad, mantie-
ne y recrea los intercambios comerciales, potencia la colaboración de las instituciones
locales, y en definitiva, rompe la definición de barrera que desde el estado se le había
dado a este límite” (VV.AA., 1999: 172-173). Uriarte, en este sentido, apunta que
“(…) la transgresión sistemática de La Raya constituye un paradigma central en la di-
námica social de la cultura de frontera en el Área Rayana” (URIARTE, 1994: 198), que
siempre se acompaña de un riesgo pero también de una recompensa que se encuentra
al otro lado (MAIRAL, 2010: 40).
Estas reflexiones, traídas a vuelapluma, nos sirven de preámbulo a una realidad
que constatamos en la raya de las provincias de Zamora y Salamanca con Portugal
relativa a la existencia de un particular escenario conformado por una serie de ermitas,
romerías y advocaciones que podemos catalogar como “de frontera”, que dan pie a la
existencia de un complejo paisaje sagrado generado en la misma frontera de ambos
países o en sus inmediaciones que conforman una barrera espiritual, continuamente
transgredida en el tiempo festivo de cada santuario y ermita, que se levanta a lo largo
de esta frontera simbólica.
Recogía Bill Kawanagh, en una de sus incursiones de investigación por las tierras de
frontera entre Galicia y Portugal, la afluencia de gallegos a las romerías de algunos san-
tuarios del otro lado de la raya y al contrario, de romeros portugueses a las principales
romerías de la comarca. Parece que las respuestas que halló Kawanagh a la pregunta de por
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
qué tal devoción a los santos y vírgenes del país vecino coincidía en todos los casos; sus
respuestas apuntaban a la creencia de que estos santos y vírgenes de frontera eran especial-
mente poderosos, hasta tal punto que no los consideraban “extranjeros” y eran tan suyos
como de los portugueses (KAWANAGH, 2018: 251). En este sentido, la asimetría reli-
giosa que existe entre los pueblos que se encuentran a ambos lados de la raya se equilibra
por medio de este flujo de peregrinos en el que las fuerzas y choques sociales y culturales
se contrarrestan a través de la celebración de romerías internacionales. La frontera rígida
torna así en momentos determinados del año en frontera laxa que atenúa los conflictos
trans-regionales, una frontera abierta en la que se crean espacios intermedios de límites
mutables que forman parte de una especial geografía sagrada.
202 // Novas
Vigías de la frontera: ermitas y santuarios en la raya hispano-portuguesa
A ambos lados de la frontera hispano-portuguesa, a la altura de las provincias de
Salamanca y Zamora, se documentan un elevado número de ermitas y santuarios que fla-
quean, como si de vigías se tratase, el Duero-Douro y la denominada Raya seca. Trazando
una línea norte-sur que discurre desde las comarca de Alba, Tábara y Aliste, en Zamora, la
Terra Fria Transmontana perteneciente al concelho de Bragança y las comarcas del oeste
salmantino y las fregresias pertenecientes al concelho de Sabugal, se levantan algunas er-
mitas de marcada orientación rayana4; destacan por localizarse en puntos elevados, una ca-
racterística que comparten buena parte de las construcciones sagradas portuguesas a través
de lo que Nuno Resende ha dado en llamar acertadamente “hagiotopografía” (RESENDE,
2015: 354-357), esto es, ermitas y capelas en puntos destacados del terreno, habitualmen-
te en cabezos elevados bien visibles incluso a cierta distancia que permiten ser no solo
referencias espirituales sino también referencias visuales para los pobladores de la comarca.
Al otro lado de la raya también encontramos una larga lista nómina de ermitas y santua-
rios5, si bien las características de su localización topográfica resultan más plurales ya que las
hay que se localizan en espacios indiferenciados en lo topográfico y otras –las que se levantan
en los ribazos de Las Arribes-, suelen estar es puntos destacados del terreno, lo que permite,
como sus homónimas portuguesas, que se vean desde distancias ciertamente extensas.
Ermitas, santuarios y capelas de uno y otro lado de la raya forman, en conjunto, un
gran escenario sagrado, un territorio de confluencia de construcciones, romeros, peregrinos
y prácticas que, en cierto modo, hitan la frontera y la protegen y delimitan de manera sim-
bólica. Nos encontramos ante un ámbito que en sí mismo y a través de sus marcas –mar-
ches- (CARERI, 2013 y 2017: 11) forma un paisaje en el que las ermitas vendrían a marcar
la frontera o borderlans (BRADLEY, 2000: 74) de un espacio simbólico que traspasa las
propias fronteras físicas políticas. El valor como hito demarcador y referencia visible (pero
6
Documental que se expone en el Museu do Douro de Peso de Regua.
7
Las capelas son bien visibles desde la orilla, pero las hornacinas –un simple hueco en la roca en la que se
pintaba la imagen de una virgen-, no se podían ver desde el curso del río, circunstancia que nos lleva a pensar
que sus localizaciones eran “sabidas” por los habilidosos tripulantes de los rabelos.
8
Mapa do Paíz Vinhateiro do Douro, obra de Joseph James Forrester (1852) (MARTINS PEREIRA, 2003: 113).
9
Ermida de São Salvador do Mundo; ermida de São Leonardo de Galafura; ermida de São Gabriel…
204 // Novas
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Lam. 1. Ermitas y santuarios españolas en la frontera: 1.- Santuario de Nuestra Señora de la Tuiza (Las Nieves),
Chanos; 2.- Oratorio de las Ánimas (Capilla caminera), Rihonor de Castilla; 3.- Restos de la Ermita de San
Esteban, Pino del Oro; 4.- Restos de la Ermita de San Mamed, Villardiegua de la Ribera; 5.- Ermita de Nuestra
Señora del Castillo, Fariza; 6.- Ermita de San Miguel, Pinilla de Fermoselle; 7.- Santuario de la Virgen de la
Bandera, Fermoselle; 8.- Ermita de Cristo del Pino (Vera Cruz), Fermoselle; 9.- Ermita de San Cristóbal, Villarino
de los Aires; 10.- Ermita de Santa Marina, Aldeadávila de la Ribera; 11.- Capilla de la Virgen de la Code, Mieza;
12.- Ermita de Ntra. Sra. del Castillo, Vilvestre; 13.- Ermita de la Anunciada, Valicobo (La Fregeneda); 14.- “La
sacristía” Villar de Ciervo; 15.- Ermita del Nazareno, Aldea del Obispo; 16.- Ermita del Cristo de la Salud,
Alameda de Gardón; 17.- Ermita del Cristo, Fuentes de Oñoro.
205 // Novas
Lam 2. Algunas ermitas y santuarios portugueses de frontera: 1.- Ermida de São João das Arribas, Aldeia Nova;
2.- Capela de Santa Caterina, Miranda do Douro; 3.- Ermida de San Amaro, Mazuoco; 4.- Mirador de Penedo
Durão (con Virgen), Poiares; 5.- Capela de Santo André, Almofala; 6.- Capela de Santo Cristo o do Sr. do Pé da
Cruz, Escarigo; 7.- Capela de Nossa Sra. da Póvoa, Vale de Coelha; 8.- Capela Nossa Senhora do Bom Sucesso,
São Pedro do Rio Seco; 9.- Ermida da Nossa Senhora do Consolação, Aldeia da Ponte.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
10
En Zamora la Virgen de la Concha, de la Hiniesta y del Viso, las cuales se hermanaban en los momentos de
adversidad para sus devotos.
11
Covadonga, La Guía de Llanes, Las Nieves de Póo, El Carmen en Celorriu, La Salud en Carreña y El
Rosario en Parres.
12
La Peña de Francia, Virgen del Robledo en Sequeros, La Cuesta en Miranda, La Asunción y Majadas Viejas en La
Alberca, el Socorro de San Martín del Castañar, Virgen de las Nieves en Mogarraz y el Carmen en La Herguijuela.
13
La Virgen de la Encina, la Virgen de la Peña, Virgen de las Nieves, Virgen de Fombasallá, Virgen de las
en número como en lugar de origen de los participantes, de los cuales no hemos sido
capaces de obtener unos datos numéricos lo suficientemente fiables para llevar un análisis
cuantitativo y cualitativo. No podemos dejar de lado, en este sentido, el importante flujo
de romeros que asisten a la mayor parte de las romerías rayanas, especialmente las que
forman parte del “circuito” de las siete vírgenes hermanas de la frontera ya que generan
un importante movimiento de turistas religiosos que no se ha analizado hasta la fecha.
21
Un bien ejemplo es el Atlas de la raya hispano-lusa. Beira interior, Alto Douro, promovido por la Diputación
de Salamanca en 2008. Un buen trabajo de conjunto es el Análisis territorial e inventario de recursos de la
raya hispano-portuguesa: comarca de Ciudad Rodrigo y Tierras de Riba-Cõa, editado por el Organismo
Autónomo de Empleo y Desarrollo Local (OAEDR), publicado en 2008.
22
Cfr. el trabajo de R. Esteve Secall (2002).
210 // Novas
Lam 4. Ermitas y santuarios de las Siete Hermanas: altar de la Petisqueira
en Villarino del Río Manzanas (Zamora), ermita de la Soledad de
Trabazos (Zamora), capela de Nossa Senhora da Ribeira en Quintanilha
(Portugal), santuario de Nuestra Señora de la Salud, Alcañices (Zamora),
capela de Nossa Senhora da Luz, Constantim (Portugal), ermita de la
Encarnación de Villalcampo (Zamora). Recogemos también la ermita de
Nuestra Señora del Castillo en Pereña de la Ribera (Salamanca), recogida
en algunas versiones. (Fotografías Pedro J. Cruz y Beatriz S. Valdelvira).
Lam 5. Algunas ermitas de la frontera. De izquierda a derecha y de arriba abajo, mirador de Penedo Durão, Poiares
(PT). Oratorio de las Ánimas. Rihonor de Castilla (ES). Ermita de Nuestra Señora del Castillo, Pereña (ES). Capela
de Santa Caterina, Miranda do Douro (PT). Ermita del Cristo de la Salud, Alameda de Gardón (ES). Ermita de la
Anunciada, Valicobo (La Fregeneda) (ES). Capela en Covas do Douro (PT). Ermita de la Vera Cruz o de Cristo del
Pino, Fermoselle (ES). Capilla de la Code, Mieza (ES). (Fotografías Pedro J. Cruz y Beatriz S. Valdelvira).
211 // Novas
El turismo religioso conforma un nicho de mercado que va en aumento y que ha ge-
nerado, a su vez, interesantes líneas de investigación entre las que destaca la denominada
turiperegrinación (PEREIRO, 2017). Tal y como se viene definiendo, el turismo religioso
define “las actividades turísticas vinculadas a las prácticas religiosas en lugares determinados
con un significado religioso” (AULET y HAKOBYAN, 2011: 64), si bien las motivaciones
por las que se viaja a los distintos centros devocionales no tienen porqué ser solo religiosas,
sino que responden a diferentes expectativas y experiencias personales de cada uno. Aunque
los lugares sagrados son centros de peregrinación o espacios de celebración romera, la socie-
dad moderna y las nuevas alternativas de los viajes las convierten en espacios turísticos. Si
bien hay investigadores que comparan el fenómeno de las peregrinaciones o de las romerías
al turismo religioso (COHEN, 1998) -cada vez es más complejo diferenciar entre peregri-
nación y turismo, existen notables diferencias que se basan, sobre todo, en las motivaciones
del viaje, del comportamiento y la intensidad de uso de los elementos religioso durante
el viaje (AULET y HAKOBYAN, 2011: 67). Afirma Parellada, en este sentido, que las
peregrinaciones, las experiencias religiosas y el turismo tienen su propia identidad y no se
pueden confundir entre ellos (PARELLADA, 2009); otros autores sostienen que la dife-
rencia entre peregrinación y turismo religioso estriba en la intensidad de la motiva religiosa
que lleva a acudir a los lugares de culto. Inciden en que el motivo de la peregrinación es,
sobre todo, “(…) religioso: la llegada al lugar sagrado, acto de culto unido a la oración, la
penitencia y otras formas de culto. En cambio, en el turismo religioso, el lugar sagrado se
visita durante el viaje, pero no es el destino final” (AULET y HAKOBYAN, 2011: 69).
Como apuntábamos líneas atrás, aún no se ha llevado a cabo un análisis en profundidad
de las motivaciones por la que llevan cada año a los asistentes a las romerías de frontera his-
pano-portuguesa. Es obvio que existe una peregrinación por motivos devocionales en buena
parte de las personas que acuden, de manera continuada, siguiendo una práctica transgene-
racional especialmente importante en el caso de las poblaciones vecinas, tanto portuguesas
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
como españolas, común en la mayor parte de las romerías de la Península Ibérica, siguiendo
un “principio de congregación” a través del cual en todo ritual implica la reunión de un
conjunto de individuos en calidad de actores rituales (VV.AA., 1991: 263). Con todo, las
romerías de frontera han generado otros intereses, aparte de los puramente devocionales, que
son los que las mantienen anualmente e incluso aumentan la afluencia de romeros. No hay
que olvidar que el tiempo de la romería conlleva un “tiempo celebrativo” y genera un espa-
cio de reunión colectiva propicio al intercambio de mercancías, la reunión de viejos amigos
separados por la frontera y, en definitiva, el hermanamiento entre vecinos. La importancia de
los flujos de personas que acuden, con sus diferentes motivaciones, a las romerías de la raya
ha llevado al establecimiento de un itinerario promovido por las administraciones locales
a través de diferentes planes provinciales y transnacionales. Aunque los logros son, en este
212 // Novas
sentido, importantes al establecer un calendario fijo de romerías23 y al contar con el apoyo
institucional para su pervivencia, lo cierto es que carece de un análisis desde la óptica del
turismo religioso que permita sentar las bases para la creación de una ruta que ampare tanto
las necesidades devocionales como turísticas y genere, como ocurre con otros elementos pa-
trimoniales de este espacio rayano, unos retornos económicos y culturales en ambos países.
Bibliografía
23
Editado por la Diputación de Zamora, se trata de una publicación que se agota al poco de salir de la imprenta.
213 // Novas
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Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
1
Professora Doutora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO- Programa de Pós-
-Graduação em Museologia e Patrimônio – Rio de Janeiro/BR. Pesquisadora do Centro Interdisciplinar do
Século XX – CEIS 20, Universidade de Coimbra – Pt; Líder de Pesquisa- CNPQ
2
Professora Doutora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação –FPCE/Universidade de Coimbra
217 // Novas
as capacidades criativas de sobrevivência da população aos embates separatistas e de trabalho,
proporcionando maior atuação governamental e diminuição das resistências da população do
entorno quanto às capacidades laborais e bom exercício da política local da comunidade em
questão. Enfim, o enfrentamento dos desafios em conjunto com a população proporcionaram-
-lhes avanços da autonomia necessária para manter o território conquistado bem como
enfrentar de cabeça erguida nas discriminações frequentes, principalmente oriundas dos
fazendeiros locais, ainda, inconformados com a abolição da escravatura no Brasil (1888).
Introdução
3
Para Michel Foucault, em Microfísica do Saber (1976, 1ª ed) o poder não é um objeto natural, é uma
prática social construída historicamente. Para ele, o poder através de técnicas de dominação, intervém
materialmente sobre os corpos individuais, situando-se no próprio corpo social como mecanismo de poder
que se expande sobre toda sociedade de forma micropulverizada. O que denomina microfísica do poder está
intimamente associado aos procedimentos técnicos do poder que age no controle minucioso e detalhado
do corpo a partir de gestos, atitudes, comportamentos, hábitos e discursos. Microfísica do Poder, Rio de
Janeiro: Graal, 1979. Org e revisão de Roberto Machado.
218 // Novas
buscamos, inicialmente, compreender a intensidade dos processos de construção das ima-
gens tomadas na relação discursos do(s) outro(s) do entorno social, político e cultural sobre
os quilombolas. Ao admitir-se que a diferenciação discursiva presente vem esbater-se no
jogo das identidades e das negociações que se constroem, envolvendo as percepções de si e
do(s) outro(s) em sua complexidade. Entende-se que esta diferenciação é derivativa tanto
dos intercâmbios socioculturais com os não-quilombolas em suas representações escravistas
quanto das imagens destes a partir das imagens produzidas por sua ancestralidade, neste
artigo compreendida como patrimônio cultural em suas (re)construções e traduções margi-
nalizadas por séculos de opressão e associadas às suas vivências e convivências nas culturas
rurais e urbanas contemporâneas. Esta última como produto da tecnocultura e das tecno-
logias da comunicação que ao homogeneizarem comportamentos que silenciam conflitos
e contradições reorganizam outras imagens, novas formas de pensar e conhecer a realidade
implicando um novo modo de encontro do eu (nós) com os outros. Nossa esperança?!!
Trazer à tona o rico patrimônio cultural e a história esquecida desta população rema-
nescente da diáspora africana em terras brasileiras tem sido nosso desafio para, escapando
das ciladas das superfícies, penetrar mais fundo no recorte da realidade aqui situada a
partir: (a) dos recursos territoriais, naturais e humanos, materiais tangíveis e intangíveis
presentes nos patrimônios culturais em sua diversidade, nas paisagens e culturas plurais;
(b) analisar as dinâmicas econômico-sociais, culturais e históricas, visando contribuir para
o enriquecimento das condições de aprendizagens, criando competências interculturais in-
dispensáveis ao futuro dos estudantes em sua profissão; (c) trazer à cena a importância do
trabalho de campo (extensionista) como metodologia educativa capaz de contribuir para
o encontro do “EU“ e do “Nós“ a influir politicamente para a coesão econômica, social e
territorial em nosso país, tão diverso e tão desigual.
Trata-se a relação patrimônio cultural, territorialidade quilombola, educação e seus desafios
e avanços como metáfora em que se permite, entre outros aspectos, refletir sobre a correlação
4
Michel Foucault refere-se aos deslocamentos do discurso da guerra após a ascensão da burguesia ao poder. Entende
que, a partir daí, o discurso histórico sobre a guerra muda de sentido surgindo como luta interna travada
em defesa da sociedade, contra os perigos que nascem em seu próprio corpo. Adverte que todas as batalhas
dão lugar a uma única, aquela que nasce em seu próprio seio (Estado) em nome da sociedade, a “guerra
das raças” que fixa o racismo como ponto nuclear daquilo que denomina biopolítica compreendido como
política dos corpos em submissão. Não mais, pois, o “fazer morrer e deixar viver” como ordem do soberano,
mas o “fazer viver e deixar morrer” como dispositivo que se coloca com a ascensão da burguesia ao poder.
219 // Novas
submissão\dominação como contingente na trajetória histórica dos quilombolas percebe-se
que estes permanecem prisioneiros de uma discursividade que entende a guerra como luta
interna travada em defesa da sociedade contra os perigos que nascem do imaginário dos não-
-negros em relação aos seus corpos, suas diferenças culturais e crenças – como “guerra das raças”
que cede lugar ao racismo contemporâneo e historicamente construído (FOUCAULT, 1999).
Daí, darmos inicialmente importância à uma breve história dos rumos da escravização no
Brasil como ponto de partida as reflexões que partem de uma breve história da escravidão em
Portugal e que nos promete identificar ... o que somos, quem somos, de onde viemos.
O Programa Etnoconhecimento para um EtnoReconhecimento (PROETNO), em de-
senvolvimento, ponte de partida para este diálogo, ao associar ações de pesquisa/extensão
desenvolvidas por 10 anos no Quilombo de Santana - Rio de Janeiro, traz como problema/
objetivo compreender os mecanismos sutis de opressão que silenciam a diversidade do Eu/
Nós como patrimônio sociocultural, as resistências em sua pluralidade bem como as mani-
festações culturais ancestrais transformadas pelas condições locais destinadas ao povo negro e
mestiço a partir da escravização desde o Brasil Colônia. Eis o desafio presente para esta pro-
posta investigativa. O estudo de caso utiliza como metodologia a análise de dados a partir dos
discursos-narrativas presentes na história oral desta população como naquilo que falam os
patrimônios em sua intangibilidade. Para este trabalho ainda inconcluso toma-se como base
de análise a ADC (Análise do Discurso Crítico) proposto por Norman Fairclough (2001).
Esta pesquisa que articula à imersão dos alunos no campo pesquisado aos diálogos inter-
culturais, já conquistados ao longos dos anos em uma ação interdisciplinar, proporcionaram
intensa transformação na comunidade, visíveis na transformação das políticas locais realizada
pelo governo local, sendo melhor interpretadas as competências criativas de sobrevivência
da população aos embates separatistas e de trabalho, proporcionando maior atuação gover-
namental em relação ao território e à educação, histórica e singular dos quilombolas, assim
como a diminuição das resistências da população do entorno quanto as capacidades laborais
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
5
UNODC - United Nations Office on Drugs and Crime - Escritório das Nações Unidas sobre Drogas
e Crime ou Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime é uma das agências especializadas
da ONU criada em 1997.
220 // Novas
cada três meninas escravizadas pelo tráfico regional e internacional, duas dessas crianças
em conjunto com as mulheres representam 70% das vítimas do tráfico total no mundo
inteiro, grande parte escravizada e drogada. “Infelizmente, o documento mostra que não há
lugar no mundo onde crianças, mulheres e homens estão a salvo do tráfico de seres humanos”,
insiste o UNODC. Evidencia-se, desse modo, que a escalada do tráfico de pessoas e escra-
vidão contemporânea se faz com maior e disfarçada intensidade, atingindo seres humanos
reduzidos à coisas e levados à sujeição total em trabalhos forçados e exploração sexual, des-
tituídos de sua humanidade e, atingindo com intensidade a população de afrodescendentes
negra, mais carente e com menor escolarização.
No Brasil, desembargadores e juízes ligados à Procuradoria Geral do Trabalho – PGE,
preocupados com o combate ao trabalho infantil, proibido até os 14 anos, lança em todo
território brasileiro a campanha “Lugar de criança é na Escola – Criança não trabalha “com
grande sucesso vem em defesa das crianças contra os abusos do mercado, principalmente
da economia no campo e nas comunidades urbanas onde a pobreza é característica prin-
cipal. Para Caldeira (2017) a diferença entre a escravidão contemporânea e a escravidão
clássica não está na relação escravizador e escravizado, mas no fato da segunda ser legal e a
primeira ser crime na maioria dos países no mundo.
Em Portugal a abolição oficial da escravatura e das condições análogas à escravidão fez
parte do Código Penal de 1886, entretanto, historicamente, foi um instituto de aceitação
global que desde a necessidade mercantil de se preencher as lavouras nos campos de pessoal
preparado para as atividades agrícolas e outras afim, provocada pelo exôdo rural, as pestes
e pelo ritmo dos descobrimentos, entre outras vertentes economicistas, os primeiros negros
e negras começaram a ser trazidos da África para Portugal, por volta de 1441 (Marques,
2018). Segue-se grande implementação deste comércio regular e oficial provenientes de
mercadores mulçumanos e negros comerciantes de escravos na própria África. A maioria
dos cativos vendia-se com bons lucros para Castela, Aragão e outras nações europeias,
6
A Lei da Terra promulgada pelo Império em 1850 proibia que os descendentes de quilombolas as-
sumissem a posse das áreas onde viviam. Só em 1988 a Constituição revogou a proibição, tornando
responsabilidade da União assegurar a posse da terra aos remanescentes de quilombolas. Porém, só
em 1999 o dispositivo constitucional foi regulamentado. O artigo 215 parágrafo 1 da Constituição
Federal coloca: “O Estado deverá proteger as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-
-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” e no seu parágrafo
5° inciso “V” afirma, “Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências
históricas dos antigos quilombos”. O Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
pode-se ler: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Decreto
n° 4887 de 20/11/2003: “Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimi-
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
tação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades do quilombo
de que trata o Art.68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”. Decreto 5051/2004 “O
Brasil se compromete a executar e cumprir a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho-
OIT sobre povos indígenas e tribais”. A Portaria n°6 de 01 de março de 2004 da Fundação Cultural
Palmares que institui o cadastro geral de remanescentes das comunidades de quilombos, nomeando-as
de: “Terra de Preto”, “Mocambos”, “ Comunidades Negras” e “ Quilombos”. Atendendo apelo dos
movimentos sociais o Brasil ratificou em junho de 2002 através do Decreto Legislativo n°143 assinado
pelo presidente do senado a Convenção 169 da OIT de junho de 1989, que reconhece como critério
fundamental os elementos de auto-identificação étnica, além disso o Artigo 14 assevera o seguinte:
“Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que
tradicionalmente ocupam”. Esse direito de retorno se estende sobre um sem número de situações de
comunidades quilombolas no Maranhão, Mato Grosso, Bahia, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas
Gerais, que foram compulsoriamente deslocadas de suas terras por projetos agro-pecuários, projetos de
plantio de florestas homogêneas(Pinus, Eucalipto Etc…) projetos de mineração, projetos de constru-
ção de hidrelétricas e de bases militares e, agora, numa trajetória de recuperação de terras que foram
usurpadas e tidas como perdidas.
224 // Novas
um dos elementos básicos na mediação opressores-oprimidos é a prescrição. Toda pres-
crição é a imposição da opção de uma consciência a outra. Daí, seu sentido alienado (…)
Por isso, o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescritivo. Faz-se à base
de pautas estranhas a eles – as pautas dos opressores (Paulo Freire, 2011)7.
Certezas, essas possíveis de serem descritas em seu amplo sentido pela narrativa da
quilombola octagenária Vó Nair, ao afirmar: “acabaram com o jongo porque não era coisa de
cristão, quando eu era jovem aqui no quilombo eu dançava o jongo”- E, exibia em seus oitenta
anos já vividos os passos da dança de sua juventude. Jongo patrimônio cultural silenciado e
justificado pelo receio do outro em trazer ao presente as bases políticas da ocultação.
A pesquisa em questão
7
PAULO FREIRE, Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 50ª ed.
8
ABADALLAH-PRETCEILLE, M., PORCHER, L. Éducation et CommunicationInterculturelle. Paris: PUF
(2001) e, do mesmo autor Vers une Pédagogie Interculturelle. Paris: Sorbonne (1986).
225 // Novas
O corpo étnico-racial como produto cultural se investe como valor simbólico, no todo
ou em partes. No que se refere aos seus elementos de grande carga simbólica destacam-se,
entre outros, o sexo e a sexualidade, teorizado por Michel Foucault em meio ao conjun-
to dos dispositivos do poder. Para ele, a sexualidade se elabora como noção a partir do
século xix apontando para a proliferação de discursos relacionados ao sexo e aos corpos,
especialmente aos corpos das mulheres negras usadas e abusadas por seus senhores.
O imaginário do sexo, do gozo, do proibido e do obsceno não escapa à história do
corpo da cultura em suas diferenças raciais. Tomando-se os discursos em relação ao corpo
das mulheres negras, historicamente ainda se observa a onipresença da carne, o corpo na
abundância de suas manifestações. A ideia da mucamba para o “serviço” do homem (senhor,
amo, marido, amante) em seu prazer sexual é frequentemente presentificado neste corpo
imaginado – muitas mulheres do serviço doméstico relatam assédio sexual sofrido por seus
patrões ainda no século xxi. Os corpos de homens negros são também alvo deste mesmo
tipo de assédio em que vicejam as imagens dos reprodutores dos tempos da escravidão.
Nesta mesma direção, calcados por imagens históricas fixadas no passado, os corpos do
trabalhador quilombola é tido como indolente, cachaceiro e sem projetos de vida futuro
(narrativas colhidas entre Junho/Setembro de 2012), fator que legitima a ocupação de suas
terras e desqualificação de sua gente.
Entender o outro por si mesmo é fenômeno prevalente nas relações humanas. A descri-
ção histórica dos corpos e de suas vestimentas sempre provocaram a construção de imagens
sobre eles. Desde muito tempo os corpos de africanos e indígenas passaram por explicações/
definições e especulações dos europeus colonizadores. A cor da pele e seus costumes estra-
nhos suscitaram admiração, desprezo e cobiça, provocada, quem sabe pela associação declarada
no Velho Testamento entre escravos negros africanos e Can, filho de Noé, que ao ver o
corpo nu do pai embriagado foi amaldiçoado e a toda sua geração (PAIVA, 2011, p.69)9.
Tais discursos reforçam imagens pejorativas e desqualificatórias sobre os africanos, ao
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
longo da história, discursos que percorreram séculos associados à vida costumes dos africanos
e práticas, especialmente, as imagens de lascívia, desregramentos sexuais e imorais que
perduram em nossos dias, tornando-se marcas nos corpos negros.
Pelo visto, a sensualidade dos negros africanos e os usos de seus corpos formatavam
ideias que degeneravam o conjunto. Como ideologia que percorre o mundo através das
narrativas de viajantes que analisavam os comportamentos, costumes e conhecimentos com
o olhar do outro, do estrangeiro em seu estranhamento. Ideário que passa a se constituir em
9
Paiva, Eduardo França. Corpos pretos e mestiços no mundo moderno – deslocamentos de gente, trânsito de
imagens (in) História do Corpo no Brasil. Del Priore, Mary & Amantino Marcia (orgs). São Paulo: Editora
UNESP (FEU), 2011. O artigo focaliza os corpos de negros e mestiços escravos que historicamente circulam
entre imagens e comportamentos fixados por estas ao longo da história mundial.
226 // Novas
teses de renomados cientistas fornecendo, inclusive legitimidade, nos séculos xix-xx, aos
supostos da teoria da degenerescência pela mestiçagem biológica, sobretudo nas Américas.
Discursos persistentes sobre os negros e sua nudez desavergonhada, a cor da pele em
variações de tonalidades, seu tipo de cabelos ora lisos ora encarapinhados; ritmos e batuques,
crenças religiosas bizarras, entre os diversos patrimônios culturais não-relativizados contribuí-
ram para compor uma imagem idealizada e a-histórica dos africanos bem como incorporar
tais elementos como indicativos de barbárie, ausência de fé, de moral e de lei entre estes
povos. Valores que se instauram a partir da oposição céu e inferno que admite o negro como
versão sublimada do demônio - daí encontrarmos ao inicio de nossas atividades os conceitos
dedicados pelas população do entorno aos quilombolas locais – preguiçosos, vagabundos,
beberrões e desavergonhados. Imagens construídas historicamente e refletida na indagação
que nos fez um comerciante face ao nosso empenho no trabalho universitário com eles: Que
importância tem esses negros para uma universidade federal? Por que com eles? Cabe lembrar que
a grande custo conseguimos introduzir no restaurante nosso acompanhante, presidente da
associação dos quilombolas, para almoçar conosco, percebendo logo de início que eram proi-
bidos de entrar em restaurantes e/ou outros locais públicos. Ou seja, o apartheid era presente.
Povos selvagens e primitivos habitantes dos confins das florestas de um mundo pouco
conhecido (África e Américas) tiveram pseudo marcas identitárias impostas ao mundo por
cronistas a partir de seu olhar oblíquo. Caminha em 1500, descreve os nativos que encontra
em solo brasileiro a partir de sugestões imagéticas produzidas a partir do conhecimento dos
negros africanos “a feição deles é serem pardos, maneira d´avermelhados, de bons rostos e bons
narizes, bem feitos…” 10. Mais tarde, Gilberto Freyre11 registra “ branca pra casar, mulata para
f.., negra pra trabalhar” como ditado recorrente na Colônia que reforça o forte componente
histórico sexual e sensual discursivo que por séculos se ocupou dos corpos nus de indígenas,
negras e mulatas fertilizando antigos discursos imagéticos e criando novos como o elogio des-
pudorado do resultado biológico da mestiçagem que toma por referência o corpo da mulher.
Resultados preliminares
Diante da reflexão acima postada, trazemos como síntese da pesquisa inicial resul-
tados que nos indicaram o pensamento da população do entorno em relação ao imagi-
nário construído sobre os quilombolas, suas vidas, suas culturas e seus patrimônios. Os
resultados preliminares daquilo que denominamos Inventário das Imagens Construídas
10
Pero Vaz Caminha, Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, citado por Paiva (2011), p.21.
11
Freyre Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal,
Rio de Janeiro: Ed. José Olympo,17ª edição, 1975. p.10.
227 // Novas
Historicamente (ICH) pela comunidade quilombola a partir da visão do outro, ou seja,
descreve-se aquilo que se fala acerca dos habitantes do quilombo. Foram ouvidas oitenta
e sete pessoas (87) entre moradores dos três distritos que compõem o município (São
Joaquim do Ribeirão, Falcão e Centro de Quatis), contemplando questões norteado-
ras que possibilitaram a criação de um instrumento mais amplo – um Inventário de
Preocupações Interculturais a ser adotado futuramente adotado na mesma população
do entorno e os profissionais das escolas do município. Assim, distinguimos a partir do
mapa de dados as seguintes unidades de registro percentualizadas: indiferença/silencia-
mento; positividade; negatividade; crítica social. Lembramos que, por cinco anos, através
dos contatos frequentes com os moradores externos ao quilombo, ouviu-se discursos fre-
quentemente negativos em relação aos quilombolas. Tratava-se de uma discursividade
espontânea e, por vezes raivosa, frequentemente proveniente de pessoas importantes no
município e agentes de construção da opinião pública local (comerciantes, diretores de
escola, fazendeiros e seus empregados, entre outros).
Assinala-se a importância do lugar de poder ocupado pelos sujeitos em meio à rede dis-
cursiva, (a) os pesquisadores (alunos e professores) em sua ação (investidos do simbolismo
das camisas e transporte com a sigla da universidade federal), (b) as pessoas da comuni-
dade externa habitantes de espaços melhor dotados de condições de via e trabalho e (c) os
quilombolas nomeados em sua histórica escravidão, vivendo, no entanto, momentos de
opressão de grupo interno mais forte.
Assim, tendo como fonte de análise tanto as narrativas explicitadas para além das
questões indicadas e a performance corporal dos inqueridos ao responder, considerou-se o
entrecruzamento das respostas indiferença/silenciamento (nada a responder; não conheço) e
crítica social (abandonados pelo governo; sem assistência…) correspondentes a 45%, como
demonstrativa da invisibilidade dos habitantes de Sant`Anna. Outros 45% indicam posi-
tividade (trabalhadores, honestos..) – fato a ser analisado em maior profundidade na medida
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Referências
Introdução
região do Munim, o território estava ocupado por tribos de indígenas que vivenciavam
muitos conflitos sociais, muitos dos quais foram estendidos para as relações com os por-
tugueses, pois eram tribos seminômades que não reconheciam direitos de outros sobre
a terra. Nesta fase, Almeida (2015) discrimina as aldeias de São Gonçalo, São Jacob,
Iguaranos, Tabajaras, Engenho do Munim e as fazendas Tatuaba, Nossa Senhora da
Vitória e Munim Mirim, além de episódios entre os padres e os índios, e registra conflitos
com os índios Guianares, Caicases e Tapuias na forma de quebra de acordos, perseguição
e captura para escravização.
Na medida em que venciam os obstáculos junto à costa, no baixo curso do rio Munim,
os portugueses avançavam para o interior, seguindo o modelo consolidado de exploração
dos recursos através das práticas agrícolas da roça tropical (WAIBEL, 1958) e da pecuária
232 // Novas
extensiva. Desse processo resultou a fundação das primeiras povoações às margens do rio
Munim (TROVÃO, 2008; FEITOSA e TROVÃO, 2006) e de seus afluentes como Icatu
(1688), Axixá (1898?), Morros (1898), Nina Rodrigues (1838), São Benedito do Rio
Preto (1874) e Urbano Santos (1874). As vilas formadas às margens dos afluentes no alto
curso resultaram de processos diversos.
Decorridos quatro séculos da ocupação portuguesa, o território do Munim notabiliza-
-se por seu patrimônio cultural nas cidades situadas no baixo e médio curso, como Axixá,
Icatu, Morros e Presidente Juscelino e Nina Rodrigues, com destaque para as festas religiosas
em homenagem aos santos padroeiros, os grupos folclóricos de bumba-meu-boi, tambor de
crioula, tambor de mina e dança de São Gonçalo. Estes grupos apresentam-se expressando
um sincretismo religioso forjado como tradição e resistência às adversidades enfrentadas.
No presente estudo, analisa-se a importância do patrimônio cultural do território do
Munim, conforme definido na Constituição Federal (BRASIL, 1988) como o conjunto
dos bens materiais e imateriais que expressam caráter identitário de uma comunidade,
considerando sua importância para o desenvolvimento regional local e sua representatividade
no contexto do estado do Maranhão.
A Área de estudo
O patrimônio cultural
Conclusão
ALMEIDA, José. Icatu: terra de Guaxenduba 1614-2014. 2ª edição. Imperatriz: Ética, 2016.
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