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A desconsideração da personalidade jurídica inversa

Heloisa Bottecchia Cilurzo


Advogada do escritório Marcos Martins Advogados Associados.
Especialista em Direito Processual Civil.

Primeiramente, insta esclarecer que, por força do disposto no art.


45 do Código Civil, com a inscrição do Ato Constitutivo da Sociedade Empresária
(contratos sociais ou estatutos) no registro competente é que a pessoa jurídica
adquire status jurídico, ou seja, personalidade1.

O principal efeito do assento do ato constitutivo é a separação entre


a pessoa jurídica e os membros que a compõem (princípio da autonomia
patrimonial), garantindo, assim (a) titularidade obrigacional; (b) titularidade
processual; e (c) responsabilidade patrimonial2.

Não obstante a inegável distinção entre as pessoas naturais


(sócios) e jurídicas (sociedade empresária), prevê a lei, em casos específicos, a
possibilidade de se afastar a regra geral da autonomia, admitindo-se a
desconsideração da personalidade jurídica, que é a retirada momentânea e
excepcional da separação patrimonial.

1
DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 97.
2
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 14. v. 2.
Situação que exemplifica e justificaria ignorar a autonomia é o
desvio de sua função, ou seja, a fraude contra credores ou o abuso de direito. Em
ocorrendo uma dessas situações, as obrigações se estenderiam à pessoa dos
sócios e administradores, possibilitando, assim, o pagamento de dívidas assumidas
em nome da pessoa jurídica.

A teoria da despersonalização - originária do direito anglo-saxão –


surgiu, portanto, como uma forma de flexibilizar a distinção entre a responsabilidade
do ente societário e seus integrantes, bem como “olhar além” da pessoa jurídica,
considerando as características e o comportamento individual dos sócios.

A finalidade precípua da desconsideração da personalidade


jurídica, conhecida como disregard doctrine, é a de combater a utilização indevida do
ente societário por seus sócios, devendo ser aplicada com cautela e desde que
verificado o uso abusivo da personificação societária para fraudar a lei ou prejudicar
terceiros.

Amador Paes de Almeida, em sua obra: “Execução de Bens dos


Sócios”3, explicita que:

A transgressão do contrato social ou do estatuto se traduz no desvio dos


fins objetivos da sociedade, quando os sócios excedem os poderes e as
atribuições que lhe são conferidas.
A assertiva de que a sociedade não se confunde com a pessoa dos
sócios é um princípio jurídico, mas não pode ser um tabu a entravar a
própria ação do Estado na realização de perfeita e boa justiça, que outra
não é a atitude do Juiz procurando esclarecer os fatos para ajustá-los ao
direito. (RT, 238/394).

Nesse passo, uma vez comprovados a adoção de comportamento


fraudulento, o desvio de finalidade, a confusão patrimonial ou o abuso de direito,
poderá o juiz, no mesmo processo,

3
ALMEIDA, Amador Paes de. Execução de bens dos sócios. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2004 p. 191-193.
levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os
bens dos demais sujeitos de direito envolvidos, nos termos do disposto no artigo 50
do Código Civil, a saber:

Artigo 50, CC:


Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de
finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a
requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir
no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de
obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores
ou sócios da pessoa jurídica. (BRASIL, 2002)4

Com a evolução do estudo da teoria da personalidade, surgiu no


direito uma espécie do gênero desconsideração: a inversa. Em vias gerais, possui a
mesma finalidade da desconsideração da personalidade jurídica pura, porém, num
contexto diverso. Explica-se. Enquanto a primeira prima pela responsabilização dos
sócios por dívidas ou obrigações da sociedade, a segunda (invertida), ao revés,
almeja o reconhecimento da responsabilidade da sociedade por obrigações
contraídas pelo sócio.

Exemplo comum da aplicação da teoria invertida é a transferência


de bens do sócio ou administrador para a pessoa jurídica, com nítido interesse de
fraudar credores ou frustrar execuções em curso.

Nessa situação, a afetação do patrimônio da sociedade se justifica,


porque, “[...] [o sócio] continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua
propriedade, mas da pessoa jurídica controlada. ”5 Ou seja, em última análise,
não poderia ser objeto de constrição judicial, muito embora, por vezes, mantido na
posse do sócio, ou só por ele

4 o
BRASIL. Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. 2002. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 17 ago. 2010.
5
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 46. v. 2.
(grifo nosso).
utilizado, e para fins exclusivamente estranhos à atividade da sociedade empresária.

A Ministra Nancy Andrighi do Superior Tribunal de Justiça explica


que:

[...] tem-se que a interpretação teleológica do art. 50 do CC/02


legitima a inferência de ser possível a desconsideração inversa
da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade
em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador,
conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma.6

E complementa:

Ademais, ainda que não se considere o teor do art. 50 do CC/02


sob a ótica de uma interpretação teleológica, entendo que a
aplicação da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica em sua modalidade inversa encontra justificativa nos
princípios éticos e jurídicos intrínsecos a própria disregard
doctrine, que vedam o abuso de direito e a fraude contra
credores. Outro não era o fundamento usado pelos nossos
Tribunais para justificar a desconsideração da personalidade
jurídica propriamente dita, quando, antes do advento do CC/02,
não podiam se valer da regra contida no art. 50 do diploma atual.

Fábio Ulhoa Coelho7, em sua obra, manifesta-se no mesmo


sentido:

Desconsideração inversa é o afastamento do princípio da


autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a
sociedade por obrigação do sócio.
[...]
A fraude que a desconsideração invertida coíbe é, basicamente,
o desvio de bens. O devedor transfere

6
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp nº 948.117, Brasília, DF, 22 de junho de 2010.
Disponível em:<
https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=985791&sReg=200700452625&s
Data=20100803&formato=PDF>. Acesso em: 18 ago. 2010. (grifo nosso).
7
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 46. v. 2.
seus bens para a pessoa jurídica sobre a qual detém absoluto
controle. Desse modo, continua a usufruí-los, apesar de não
serem de sua propriedade, mas da pessoa jurídica controlada.

É a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO


DE TÍTULO JUDICIAL. ART. 50 DO CC/02. DESCONSIDERAÇÃO
DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. POSSIBILIDADE.
I – A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais
indicados como violados impede o conhecimento do recurso
especial. Súmula 211/STJ.
II – Os embargos declaratórios têm como objetivo sanear
eventual obscuridade, contradição ou omissão existentes na
decisão recorrida. Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC, quando o
Tribunal a quo pronuncia-se de forma clara e precisa sobre a
questão posta nos autos, assentando-se em fundamentos
suficientes para embasar a decisão, como ocorrido na espécie.
III – A desconsideração inversa da personalidade jurídica
caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da
sociedade, para, contrariamente do que ocorre na
desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o
ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar
a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador.
IV – Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é
combater a utilização indevida do ente societário por seus
sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio
controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na
pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do
art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da
personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em
razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto
preenchidos os requisitos previstos na norma.
V – A desconsideração da personalidade jurídica configura-se
como medida excepcional. Sua adoção somente é recomendada
quando forem atendidos os pressupostos específicos
relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no
art. 50 do CC/02. Somente se forem verificados os requisitos de
sua incidência, poderá o juiz, no próprio processo de execução,
“levantar o véu” da personalidade jurídica para que o ato de
expropriação atinja os bens da empresa.
VI – À luz das provas produzidas, a decisão proferida no
primeiro grau de jurisdição, entendeu, mediante minuciosa
fundamentação, pela ocorrência de confusão patrimonial e
abuso de direito por parte do recorrente, ao se utilizar
indevidamente de sua empresa para adquirir bens de uso
particular.
VII – Em conclusão, a r. decisão atacada, ao manter a decisão
proferida no primeiro grau de jurisdição, afigurou-se escorreita,
merecendo assim ser mantida por seus próprios fundamentos.
Recurso especial não provido.(STJ, Recurso Especial nº 948.117
– MS, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 22/06/2010)

Há, é verdade, outras situações em que a desconsideração da


personalidade jurídica inversa é possível, agora, todavia, com reflexo no direito de
família. Não raro nos deparamos com casos em que um dos cônjuges ou
companheiros, a fim de evitar a partilha de certos bens – de maior valor –, os
registram em nome da pessoa jurídica da qual são sócios ou controladores8.

Aqui, se num primeiro momento tal bem, de fato, não poderia ser
visto como integrante da esfera patrimonial comum, e, portanto, passível de meação,
a prova da fraude, somada à aplicação do instituto, imputaria a responsabilidade à
pessoa jurídica.

Ao nosso sentir, a desconsideração invertida constitui mecanismo


eficaz de se exigir o adimplemento de obrigação contraída por sócios de pessoas
jurídicas, que, em total afronta à lei, delas se utilizam como forma de se esquivar da
responsabilidade patrimonial, criando verdadeiro escudo contra credores.

Coíbe-se, na prática, a possibilidade de que os devedores blindem


seus patrimônios através da pessoa jurídica em que são controladores, na tentativa
de fraudar e prejudicar credores de boa-fé, deixando, por exemplo, as contas
bancárias zeradas, para frustrar execuções judiciais, bem como responsabilidades
pelas obrigações contratadas em seus nomes.

Diante desse contexto, conclui-se ser possível a desconsideração


da personalidade jurídica inversa, desde que, repita-se, aplicada com cautela e
como medida excepcional, nos exatos limites do artigo 50 do Código Civil, e desde

8
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 46. v. 2.
que evidenciado que o sócio ou administrador se aproveita da pessoa jurídica para
transferir bens pessoais, da qual detém absoluto controle.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Amador Paes de. Execução de bens dos sócios. 7. ed. São Paulo:
Saraiva, 2004.

BRASIL. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. 2002.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso
em: 17 ago. 2010.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp nº 948.117, Brasília, DF, 22 de junho de


2010. Disponível em:<
https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=985791&sReg=2
00700452625&sData=20100803&formato=PDF>. Acesso em: 18 ago. 2010.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 11. ed. São Paulo: Saraiva,
2008.

DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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