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ISSN 1517-5545 Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva 2001, Vol. 3, m* 1, 9-24 Questdes Referentes a Causalidade e Eventos Privados no Behaviorismo Radical! José Anténio Damasio Abib Universidade Federal de Sao Carlos ‘Maura Alves Nunes Gongora” e Universidade Estadual de Londrina, PR Resumo Examina-se uma questio ainda freqiente entre behavioristas radicais e psicoterapeutas: afinal, eventos privados sao ou na so causas de comportamento? Investigam-se neste artigo dois temas do behaviorismo radical com o propésite de sondar essa questio, Examina-se, em primeiro lugar, 0 conceito de mentenno behaviorisma radic c 1 dominio de eventos pibli- cos. Em segundo lugar, examina-se 0 acesso a eventos privados e a aquisi¢&o de autoconhecimento com base em praticas Sociais piblicas. A partir da andlise desses dois temas, da natureza comum entre eventos piiblicos e privados ¢ com base em um paradigma relacfonal, defende-se uma inter pretagaio contextualista lo behaviorismo radical. Sugere-se que o contextualismase afasta do estilo dualista e mecanicista de pensamento. Sendo assim, nZo faz sentido perguntar se eventos privados si ou no séo causas ce comportamento; com efeito, trta-se de formular perguntas cujas respos- las deserevam as relagbes possivels entre eventos de dominio piiblico e privada Palavras-chave: Eventos privados: causas; behiaviorismo radical; contextualism. Abstract Questions Referent to Causality and Private Events in Radical Behaviorism. It is examined a still frequent question among radical behaviorists and psychotherapists: after all are or not private events causes of behavior? Two themes from radical behaviorism are investigated in this paper ‘with the purpose of searching out this question. tis examined, inthe first place, the concept of mind in radical behaviorism, including i, partially, in the realm of public events. Second, itis examined the access to private events and the self-knowledge acquisition based on public social practices. From the analysis of these two themes, the common characteristics of public and private events, ‘and based on a relational paradigm, itis defended a contextualist interpretation of radical behavio- rism, It is suggested that the contextualism differs from the dualistic and mecanistic styles of thought, Therefore, there is no sense in asking whether private events are causes of behavior ornot; in fact, itis a matter of formulating questions, whose answers will describe possible relations bet- ‘ween public and private events. Keywords: Private events; causes; radical behaviorism; contextualism. O tema da privacidade ou subjetividade no behaviorismo radical tem sido objeto de questionamentos, particularmente na area de Psicologia Clinica. Uma das indagagdes mais freqilentes refere-se 20 estatuto causal dos eventos privados. Em geral, procura-se esclare- cer se, afinal, eventos privados so ou nao sio causas de comportamento. Bste texto examina essa questo a partir de dois temas: o primeiro refere-se as 1. Este texto foi elaborado como parte de estudos realizados em programa de pés-doutorado junto UFSCar. A autora agradece & UFSCar, as condigbes oferecidas para seus estudos ¢ a0 Doutor José Anténio Damésio Abib, pela orientagio recebida no desenvolvimento de todo o programa. 2, Enderego para correspondéncia: Universidade Estadual de Londrina, Departamento: PGAC (CCB), Rodovia Celso Garcia Cid, Londrina, PR, CEP: 86 051 990, Caixa postal: 6001, Fone/fax: (43) 371 42 27, E-mail: maura@uel.br Maura Alves Nunes Gongora e José Antonio Damasio Abib explicagdes ambientais do comportamento que resgatam e inserem no dominio piblico os fend- ‘menos mentais que, no mentalismo, so consi- derados internos; 0 segundo refere-se aos eventos privados, os quais so examinados com énfase no modo de acessé-los. Com base nese exame, © em algumas caracteristicas da visio behaviorista radical de ciéneia, sugerem-se que perguntas do tipo “eventos privados sio ou no sfio causas” pressupdem uma visto mecai e dualista de Psicologia, inecmpativel com a vi- siio pragmiatica ou contextualista do behavioris- ista mo radical, Antes de tratar dos temas deste ensaio, é necessirio esclarecer que no behaviorismo ta- dical, termos como causalidade, cauisa ou cat: sagt referem-se apenas as relagdes funcionais entre eventos, um sentido completamente dife- rente do tradicional modelo de causa-efeito, amplamente refutado por Skinner (1953/1998, 1974). E importante esclarecer, ainda, que no seu exame de eventos privados, Skinner (1974) discute, principalmente, o mentalismo (espe- cialmente 0 cognitivismo e a Psicanilise) e 0 behaviorismo metodolégico. Ao aderit a0 ope- racionismo, 0 behaviorismo metodoldgico ado- tou o critério da concordincia entre observadores para definir a objetividade e 0 va- lor de verdade dos enunciados cienti cos. Como os eventos privados ndo atendem a esses critérios, foram negligenciados pelo behavio- rismo metodolégico. No behaviorismo radical, porém, no foram considerados subjetivos, a0 contririo, considera-se que eventos privados existem em relagéio com eventos piblicos. Tém, Portanto, © mesmo estatuto ontolégico dos eventos piiblicos, motivo pelo qual nfo foram descartados, O tinico problema com eles resu- me-se na dificuldade em acessé-los (Skinner, 1974), uma questo de ordem epistemolégica e no ontolégica. 10 Omentalismo, por outro lado, tem impli= cagdes para a compreensio das concepgdes skinnerianas sobre eventos privados, motivo pelo qual sera aqui abordado, na medida neces- sétria ao exame dos temas deste ensaio, Mentalismo e Behaviorismo Radical Skinner (1945/1984, 1974, 1989a) pro- ura demonstrar que a mente nao pode explicar, apropriadamente, 0 comportamento. Por isso, costuma-se dizer que o behaviorismo radical nega ou refuta a mente. E preciso esclarecer, en- tretanto, que a mente por ele refutada éa mente imaterial, que atua como um agente criador ou propulsor ¢ que evoca comportamentos. Uma mente que permanece na penumbra e que nfio é publicamente observavel. E mais, nao é acessi- vel i intervengao, Em outras palavras, ele refuta a mente tal como concebida pelo mentalismo, uma das filosofias da mente, Skinner (1989") considera que “o que é a mente e o que ela faz sflo coisas ainda longe de ser esclarecidas” (p.22), Ele busca, entio, outro caminho que per ‘mita um avango na compreensio da mente. Skinner (1989*) sugere que “Para se compreender o que significa mente, é preciso primeiro considerar percepgio, idéia, senti mento, intengao ¢ muitas outras coisas (P.22), Ele entende que o caminko é “verificar como apalavra [mente] é usada e o que as pes- soas parecem dizer quando a empregan” (p.23). Em resumo, ele entende que o caminho para compreender a mente é analisar os usas que as pessoas fazem tanto da palavra mente, quanto de outros termos com os quais se refe- rem a fendmenos mentais Quanto 4 mente, um primeiro uso refe- re-se a ela como se fosse “um lugar ou um espa- 0” no qual os fend: © 05 processos mentais acontecem, por exem- plo, quando alguém diz que algo esta na sua menos mentais se localizam Questées Referentes & Causalidade e Eventos Privados no Behaviorismo Radical mente, Supde-s 0s processos mentais ocorram no interior de se que o espago mental e com ele cada pessoa, sendo, em parte, observados in- ‘rospectivamente (por exemplo, sentimentos ¢ idéias) e, em parte, inferidos (processos cogniti- vos de transformagio da informagiio, mecanis- mos psiquicos inconscientes). Outro uso, refere-se uma “disposigéio para agit”, por exemplo, ao se dizer: com voce.” vu tinha em mente falar Um terceiro uso refere-se a mente como executora, semelhante a “um érgio” ou uma pessoa, por exemplo, quando as pessoas dizem fazer coisas com a mente. Diz-se “use sua men- te” quase como um sinénimo de “use sua cabega ou cérebro”. Para o enfoque cognitivo, ela é executora dos processos cognitivos: ela perce- be, organiza e processa a informagao. Pat foque psicanalitico, a mente faz aquilo que a personalidade ou o aparelho psiquico fazem. aoen- Analisando, ainda, os usos de termos mentalistas, Skinner (1974) insiste no fato das abordagens cognitivas e psicanaliticas promo- verem uma “interiorizaga0” de processos com- portamentais que ocorrem em um mundo externo, deslocando-os para um mundo interno. Eventos cognitivos como intengdo, pensamen- to, expectativa, por exemplo, se analisados comportamentalmente, sem interiorizé-los, po- dem indiear relagdes comportamentais nas quais determinadas contingéncias operantes, pablicas, atuaram e aumentaram a probabilida- de de certas formas de agao. ‘A abordagem psicanalitica, por sua vez, promove a interiorizaco ao preconizar um “id” parecem descrever a forga de reforgadores biolégicos, selecionados com seus impulsos q em contingéncias ambientais de sobrevi enquanto 0 funcionamento do “superego”, um agente censurador, parece descrever processos semelhantes aos que ocorrem nas contingéncias sociais punitivas. ll Em uma longa anilise, Skinner (1974, 1989a) procura descrever como todos os usos que se referem & “mente”, seja na sua forma mais intelectual (cognitiva), seja na sua forma mais motivacional ou emocional (psique), po- dem ser atribuidos 4 “pessoa”, pela simples substituigéo da primeira palavra pela segunda, Assim, tudo 0 que a mente faz poderia ser subs- titufdo pelo que a pessoa faz, ¢ 0 que a pessoa faz. éaquilo que um organismo faz apés adquirir um repertério comportamental em decorrénci de uma histéria particular de continggncias ontogensticas e culturais, Portanto, sendo 0 que a pessoa faz, a mente seria, em outras palavras, comportamento. No entanto, lembra Skinner (1954/1972, 1974, 1977, 1989a), no mentalismo, comporta- ‘mentos so explicados por inimeros eventos ‘mentai , entre eles, sentimentos, expectativas, desejos, os quais se situam no interior de cada pessoa e, sendo assim, cada um deveria buscar dentro de si mesmo as explicagbes para o sew comportamento. Skinner (1974) inicia sua critica ao papel causal dos eventos mentais questionando a “sua localizagao e natureza”. Ele levanta duas ques- tes: “Onde estdo os sentimentos ¢ os estados mentais? De que eles so feitos?” (p. 10). Ba resposta tradicional é a de que esto na mente, um mundo sem dimensGes fisicas e no obser- vavel publicamente. Entao, ele formula dois ti- pos de perguntas: 0 primeiro tipo & sobre o acesso & mente, questionando o que realmente se vé pela introspecedo; 0 segundo tipo refe- re-se a natureza nto fisica da mente e suas rela- Ges com o mundo fisico. Ele pergunta: “como un evento mental pode causar ou ser causado por un evento fisico?” (1974, p. 10). Como a mente poderia, por exemplo, agit sobre 0 corpo para fazé-lo comportar-se? Como parte das respostas a essas ques- toes, Skinner (1974) introduz uma de suas teses

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