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Petersen
Cronologia 79
CIP-Brasil. Caralogação-na-fonre
Sindicaro Nacional dos Edirores de Livros, R].
Sugestõesde leitura 81
Neves, Eduardo Góes, 1966-
N423a Arqueologia da Amazônia / Eduardo Góes Neves. _ Rio de Janeiro: Agradecimentos 84
Jorge Zahar Ed., 2006
·7·
EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
cupados OU ocupados por populações caboclas e mes- ções - otimistas, se ações concretas não forem imple-
mo por cidades, é comum nas margens desses rios a rnentadas - feitas por cientistas especializados apre-
presença de sítios arqueológicos, muitos deles de gran- sentam um quadro de redução drástica da cobertura
de porte. Isso indica que, no passado, essas áreas eram florestal no nem tão longínquo ano 2030. Todos esses
ocupadas por povos indígenas, embora não o sejam no problemas mostram que o Estado brasileiro não sabe
presente. direito o que fazer com a Amazônia, embora a neces-
De meados do século XVI ao início do XVII, quan- sidade de ações seja premente.
do os primeiros europeus visitaram ou se estabeleceram Neste livro, procurarei mostrar que parte dos pro-
na Amazônia, era comum a referência à presença de blemas sensíveis no que se refere à condução e à dis-
grandes aldeias, algumas ocupadas por milhares de pes- cussão - por parte de cidadãos organizados, agentes
soas, integradas em amplas redes regionais de comércio governamentais, cientistas, políticos e intelectuais -
e em federações políticas regionais. Já no início do de estratégias voltadas para a ocupação e o desenvolvi-
século XVIII, tais referências desaparecem dos registros mento sustentável da Amazônia está diretamente liga-
históricos. Isso está diretamente ligado ao processo de da ao completo desconhecimento, ou até mesmo de-
diminuição populacional resultante do início da colo- sinteresse, com relação à milenar história de ocupação
nização européia da Amazônia, conseqüência da trans- humana da região. Proponho aqui que um olhar vol-
missão de doenças, da guerra e da escravidão. Assim, a tado para o passado remoto pode, no mínimo, nos
aparente baixa densidade demográfica verificada entre trazer parâmetros que possam orientar, de maneira
os povos indígenas da Amazônia contemporânea pro- ampla, alguns princípios de ação no presente.
vavelmente resulta mais das vicissitudes da história Em primeiro lugar, é importante reconhecer que a
colonial e do ciclo da borracha na região do que pro- bacia amazônica era densamente ocupada por diferen-
priamente de alguma inaptidão ecológica inerente. tes povos indígenas no final do século )01, época do
Atualmente, o contexto político e ecológico da Ama- início da colonização européia nas Américas. Confor-
zônia é complexo: o desmatamento aumenta a níveis me veremos adiante, essa ocupação não era uniforme,
nunca vistos, os conflitos pela posse dos recursos natu- variando no tempo e no espaço. Os modos de vida
rais são cada vez maiores e cidades como Manaus e desses povos eram também diversificados: alguns gru-
Belérn crescem a um ritmo vertiginoso, com as típicas pos estavam organizados em sociedades hierarquizadas
conseqüências da urbanização descontrolada. Proje- que viviam em assentamentos que hoje chamaríamos
EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
de cidades, como pode ter sido o caso dos índios modo que não se pode entender a história dos povos
Tapajó, enquanto outros eram nômades que tinham amazônicos sem considerar também as relações que
suas economias baseadas na caça, na pesca e na coleta. esses povos estabeleceram com a natureza.
Em segundo lugar, é também fundamental perceber As pesquisas arqueológicas na Amazônia têm uma
que os povos que viviam na Amazônia antes do início tradição centenária, iniciada por pioneiros brasileiros
da colonização européia eram ancestrais dos povos e estrangeiros na segunda metade do século XIX e
indígenas que ainda ocupam a região, apesar do grande organizada inicialmente a partir de dois centros princi-
processo de redução demográfica, deslocamento geo- pais: o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e o Museu
gráfico e mudança cultural ocorrido nos últimos 500 Paraense Emilio Goeldi, em Belém. Paradoxalmente,
anos. Nesse sentido, a arqueologia da Amazônia é, apesar dessa tradição, existem ainda grandes lacunas de
antes de tudo, uma espécie de História Antiga dos conhecimento. Com exceção do Pará e do Amapá,
povos indígenas da região. Em terceiro lugar, é neces- estados ou regiões inteiras, como Acre, Roraima, Ma-
sário reconhecer que a ocupação humana pré-colonial, ranhão e norte do Mato Grosso, são virtualmente
de certo modo, guia alguns dos processos de ocupação desconhecidos. Em outros estados, como Rondônia,
no presente. Freqüentemente, cidades contemporâ- Amazonas e T ocantins, há mais informações disponí-
neas estão localizadas sobre sítios arqueológicos, como veis, mas mesmo assim insuficientes ante as suas gran-
é o caso de Santarém, Manaus, Manacapuru e T efé. des dimensões. O mesmo vale para os outros países
Nas áreas rurais, ocorre o mesmo fenômeno. amazônicos, já que a pesquisa nesses locais é ainda
Finalmente, as hipóteses aqui enunciadas levam a bastante incipiente. Sendo assim, as informações aqui
que se reconsiderem as idéias de "última fronteira" ou apresentadas terão necessariamente caráter hipotético,
"natureza intocada". A Amazônia é ocupada há mais e é provável que sejam modificadas com o avanço das
de 10.000 anos, em alguns casos por populações de pesquisas na região.
milhares de pessoas. É de se esperar, portanto, que a Este livro é baseado em minha própria experiência
floresta que hoje recobre muitos sítios arqueológicos de pesquisa no estado do Amazonas e também em
tenha, além de uma história natural, também uma informações produzidas pelos poucos arqueólogos que
história cultural. Assim sendo, é impossível entender trabalham na região. Por Amazônia, entende-se aqui a
aspectos da história natural da Amazônia sem conside- chamada Amazônia Legal - os estados de Rondônia,
rar a influência das populações humanas, do mesmo Acre, Amazonas, Roraima, Amapá, Pará e partes do
EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
Maranhão, Tocantins e Mato Grosso -, as porções história de mais de quatro bilhões de anos do planeta.
amazônicas de países como Bolívia, Peru, Equador, As montanhas da cordilheira sofrem um processo ero-
Colômbia, Venezuela e, finalmente, os países ou terri- sivo intenso, causado pelo regime de chuvas e pelas
tórios fronteiriços com o Brasil, mas que tecnicamente variações anuais de temperatura, que levam ao derreti-
não pertencem à bacia amazônica, tais como Guiana, mento das geleiras no verão e ao desbarrancamento dos
Suriname e Guiana Francesa. terrenos adjacentes às áreas de cabeceiras dos rios que
ali se originam. Por outro lado, como conseqüência de
sua juventude geológica, os sedimentos transportados
o meio físico pela erosão são bastante ricos em nutrientes. Seu trans-
porte pelos rios e conseqüente deposição em áreas mais
Qualquer descrição do meio físico na Amazônia será baixas leva à fertilização destas a cada cheia anual, em
cheia de superlativos. No Brasil, a bacia amazônica um processo semelhante ao verificado, por exemplo,
ocupa mais de 40% do território nacional. Na América no rio Nilo. Em uma clássica tipologia, proposta ainda
do Sul, tem uma área de sete milhões de quilômetros no século XIX, os rios amazônicos que nascem nos
quadrados, quase igual à de todo o continente europeu. Andes são conhecidos como "de água branca", devido
O rio Amazonas despeja, em média, 200.000m3/seg de à coloração barrenta de suas águas. Já os rios que têm
água e sedimentos no oceano Atlântico, o que repre- suas nascerites no planalto das Guianas ou no planalto
senta quase 1/5 do total de água doce despejada nos Central, como por exemplo os rios Negro e Xingu,
oceanos e mares por todos os rios da Terra. As nascen- respectivamente, têm suas áreas de cabeceiras em re-
tes do Amazonas e de seus afluentes estão localizadas giões geologicamente mais antigas. Como conseqüên-
em três áreas principais: a cordilheira dos Andes, a cia, não trazem carga sedimentar rica em nutrientes, o
oeste, o planalto das Guianas, ao norte, e o planalto que faz com que não fertilizem suas planícies de inun-
Central, ao sul. No caso do rio Amazonas, as nascentes dação. Na mesma tipologia, tais rios são conhecidos
estão nos Andes centrais, hoje território peruano. como "d e aguas c1"
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Os Andes são uma formação geológica recente, cujo do da sua coloração. Rios de águas pretas, como o rio
processo de soerguimento se encerrou há "apenas" seis Negro, são normalmente os mais pobres em nutrientes,
milhões de anos, muito pouco quando se considera a apesar de apresentarem alta biodiversidade .
• 12 . . 13 .
EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
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Há na Amazônia grande variação anual no regime '"
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mento das várzeas e da floresta, formando igapós, cria i '-<l 1
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. 14 . • 15 •
EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
rem manchas de solos mais férteis, como ao longo da Em uma típica floresta madura, isto é, sem desma-
rodovia T ransamazônica, próximo à cidade de Altami- tamento recente, seja por agentes naturais ou humanos,
ra, no Pará. Essa baixa fertilidade é explicada pela his- é comum que a maior parte da biomassa esteja locali-
tória geológica da região. Com exceção dos Andes, que zada na copa das árvores e não no chão. Tal padrão é
são uma formação recente, a bacia amazônica está importante para o entendimento da ocupação huma-
implantada sobre áreas geologicamente antigas, sujei- na: na Amazônia, ao contrário das savanas africanas, é
tas às condições extremas dos climas tropicais. Sob essas incomum a ocorrência de espécies de animais caçáveis
condições, os solos são expostos anualmente a chuvas que andem em bando e vivam na superfície do chão.
A maior parte dos animais preferidos por grupos que
torrenciais, bem como à evaporação causada pelo sol
vivem de caça, pesca e coleta habita a copa das árvores.
equatorial. Em conseqüência, tornam-se ácidos e inca-
Veados, antas, pacas, capivaras
pazes de manter seus nutrientes, em um processo co-
e cotias são presas valiosas, mas
nhecido como lixiviação. Como explicar, então, o de-
também animais solitários e
senvolvimento da floresta? Isso ocorre por causa de uma
com comportamento territorial
eficiente reciclagem, permitindo que boa parte dos
relativamente imprevisível, o
nutrientes que compõem a biomassa, produzida pela
que dificulta a caça. As exceções
floresta e depositada sobre seu leito - folhas e troncos são os porcos-do-mato, que an-
caídos, por exemplo -, seja decomposta e reabsorvida dam em grandes bandos em al-
com a ajuda de micorrizas, fungos que vivem nas raízes gazarra pela mata, mas também
das plantas. A reciclagem eficiente faz com que apenas com grande e imprevisível mo-
uma pequena quantidade dos nutrientes seja absorvida bilidade. O padrão de distribui-
pelo solo e, mesmo assim, só em suas camadas mais ção dos animais terrestres, soli-
superficiais. Por isso, é comum que, em áreas desma- tários ou de comportamento
Os índios Nukak da Amazônia
tadas, a floresta demore muito a se recompor: o des- imprevisível explica por que colombiana têm alta mobilida-
matamento interrompe a ciclagem de nutrientes, em- macacos são presas privilegia- de, permanecendo poucos dias
pobrecendo os solos, além de torná-Ios expostos à chuva, das por caçadores da Amazônia, no mesmo local. Atualmente,
seu modo de vida encontra-se
o que favorece a erosão e a perda adicional dos eventuais pois são animais barulhentos, ameaçado pela guerra civil no
nutrientes que ainda restavam. que vivem em bandos nas copas pais.
. 16 .
EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
das árvores e com comportamento territorial marcado, localizadas junto aos inúmeros rios, lagos e igarapés da
o que facilita sua identificação e caça em quantidades região. O terceiro compartimento, de maiores dimen-
mais produtivas. É também por tal razão que a zara- sões, porém menos conhecido, inclui as imensas áreas
batana é, por excelência, a arma preferida de muitos de interflúvio, ou "de terra firme", distribuídas por
grupos caçadores e coletores. Suas grandes dimensões toda a bacia. Trata-se de áreas não alagáveis, distantes
e o fato de ser silenciosa permitem a captura de animais dos grandes rios e, portanto, sem acesso a recursos
que vivem no alto das árvores. ribeirinhos em larga escala. Essas são também as áreas
Em contraste com o incerto e imprevisível padrão que vêm sofrendo o maior desmatamento desde a
de distribuição de animais terrestres, os animais aquá- década de 1970. O último compartimento inclui as
ticos são uma fonte mais previsível e abundante de zonas de estuário e litoral, incluindo, no Brasil, partes
recursos alimentares. Dentre eles há, além da imensa dos estados do Amapá, Pará e Maranhão. Trata-se de
variedade de peixes, mamíferos aquáticos - como o uma região onde há forte influência das variações
peixe-boi -, répteis e aves. As áreas ribeirinhas são, diárias das marés, com vários metros de amplitude,
portanto, mais ricas e previsíveis em recursos para além da própria variação anual dos níveis fluviais.
populações humanas do que as de terra firme. Tal fator Nesse compartimento foram identificados sítios com
pode explicar o padrão pelo qual sítios localizados junto. algumas das cerâmicas mais antigas de que se tem
aos grandes rios tendem a ser maiores e mais densos do notícia na América do Sul. Foi ali também que flores-
que os outros. ceu uma das civilizações pré-coloniais mais conhecidas
Para efeito de estudo da ocupação humana, a bacia na Amazônia: a marajoara.
amazônica pode ser dividida em quatro grandes com- Da breve discussão aqui apresentada, depreende-se
partimentos de diferentes tamanhos, distribuídos, gros- que existe uma característica subjacente ao processo de
so modo, de oeste para leste. O primeiro comparti- ocupação humana da Amazônia: a imensa biodiversi-
mento é formado por uma longa faixa, orientada do dade ali verificada. Isso se manifesta no grande número
sul para o norte, que segue paralela à cordilheira dos de espécies de plantas e animais que ocupam a floresta,
Andes, na Bolívia, Peru, Equador e Colômbia, e inclui representando, para as populações humanas, um imen-
áreas de cabeceiras do próprio rio Amazonas e de so banco de recursos utilizado ao longo de milênios.
alguns de seus principais afluentes. O segundo com- Ao mesmo tempo, a natureza sempre proveu referên-
partimento é formado pelas áreas ribeirinhas e alagadas cias para as sociedades indígenas - que podem ser
EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
verificadas, por exemplo, nos ricos padrões de decora- cem a uma única família lingüística, a indo-européia.
ção das cerâmicas produzidas por diferentes grupos da Nela incluem-se línguas tão diferentes como, por
Amazônia pré-colonial, em que é freqüente a repre- exemplo, o português e o polonês ou o alemão e o
sentação de seres fantásticos compostos por formas italiano. Uma família lingüística é, como o próprio
humanas e animais. Curiosamente, entre as socieda- nome indica, o agrupamento, no presente, de várias
des indígenas contemporâneas, é também comum en- línguas diferentes que têm origem comum. Isso fica
contrar processos similares, através dos quais seres claro no caso das línguas neolatinas como o francês, o
humanos estariam constantemente envolvidos em romeno, o castelhano, o caralão, o português e o italia-
transformações nas quais assumem identidades de ou- no. A óbvia semelhança entre elas deriva do fato de
tros animais. Como exemplo, há as narrativas de pajés terem se desenvolvido a partir do latim, a língua oficial
que se transformam em onças ou pássaros durante o do Império Romano. As línguas neolatinas, por sua
transe xamânico. Assim sendo, o mundo da natureza, vez, compõem um ramo de um agrupamento mais
para as populações indígenas da Amazônia, representa amplo e inclusivo, o da família indo-européia. O mes-
não somente um grande estoque de recursos materiais mo ocorre, nessa família, por exemplo, com as línguas
a ser urilizado de diferentes formas - para alimenta- eslavas ou as germânicas.
ção, construção de habitações, transporte, divertimen- Na bacia amazônica, por sua vez, são faladas línguas
to -, mas também uma verdadeira biblioteca de re- de pelo menos quatro grandes famílias distintas -
ferências, a partir da qual indivíduos e sociedades tupi-guarani, arawak, carib e gê -, sem contar inúme-
constroem narrativas sobre si mesmos e seus papéis no ras outras famílias menores e línguas isoladas. As razões
uruverso. para tamanha diversidade lingüística, já reconhecida
A marcante biodiversidade da Amazônia correspon- no século XIX, são certamente históricas e devem ser
de também uma grande sociodiversidade, que pode, entendidas através do estudo do processo de ocupação
por exemplo, ser aferida pela notável quantidade de pré-colonial, conforme se verá adiante. A diversidade
línguas indígenas, de diferentes famílias, ali faladas. cultural e social amazônica tem também outras ma-
Em termos de comparação, todas as línguas modernas nifestações: alguns grupos têm uma ideologia voltada
da Europa - com exceção do basco, do estoniano, do para a guerra, outros não; há sociedades nômades com
húngaro, do finlandês e das línguas trazidas recente- economia voltada para caça, pesca e coleta vivendo lado
mente pelos imigrantes da Ásia e da África - perten- a lado com grupos agricultores sedentários. Tal varia-
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EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
bilidade, verificada no presente, também ocorria no antiga. Datas ao redor de 9200 a.C foram obtidas na
passado, conforme indicado pela arqueologia. Sendo escavação da caverna da Pedra Pintada, uma gruta
assim, é incorreto projetar um único padrão de orga- localizada no atual município de Monte Alegre, no
nização social e política para as populações pré-colo- Pará. Os achados mostram que esses habitantes antigos
niais, como se elas vivessem todas do mesmo modo. tinham uma economia baseada em caça, pesca e tam-
Ao contrário, à medida que as pesquisas arqueológicas bém coleta de frutas, com destaque para algumas pal-
avançam na região, percebe-se que a variabilidade de meiras até hoje consumidas na Amazônia. O fato de as
formas de vida no passado tenha talvez sido ainda maior descobertas em Monte Alegre terem sido feitas em uma
que a do presente. gruta não quer dizer que os primeiros habitantes da
Finalmente, há também que considerar a grande Amazônia fossem "homens das cavernas". O que ocor-
variabilidade geográfica dentro da bacia amazônica -
re é que grutas e cavernas, pela própria proteção natural
na cobertura vegetal, na distribuição de espécies ani-
que oferecem, têm melhores condições de preservação
mais, na precipitação, na fertilidade do solo, na quími-
de materiais, ao contrário de sítios a céu aberto, geral-
ca das águas e na temperatura -, que tem implicações
mente expostos à ação da chuva, à erosão e a outras
importantes para o processo de ocupação humana da
intempéries.
região. Concluindo, percebe-se que a diversidade é a
No extremo oposto da Amazônia, na bacia do alto
chave para o entendimento da arqueologia amazônica.
rio Guaporé, atual estado do Mato Grosso, outra gruta,
Nada mais distante, portanto, de uma certa visão tra-
conhecida como Lapa do Sol, forneceu datas ainda
dicional que enxerga a Amazônia como um grande
mais antigas, de cerca de 12000 anos a.c. A escavação
ecossistema homogêneo - seja ele um inferno verde
ou um paraíso perdido - ocupado por grupos essen- foi feita na década de 1970 por um arqueólogo brasi-
cialmente iguais entre si. leiro, Eurico Miller, com o auxílio dos índios Nambi-
quara, que vivem na área. No entanto, as condições de
preservação do sítio - que sofreu intensa ação de cupins
o início da ocupação humana e possível mistura de camadas arqueológicas - fazem
com que essa data seja tomada com cautela, tornando
A ocupação humana da Amazônia se iniciou há pelo necessária a realização de novas escavações no local para
menos 11.000 anos, mas é possível que seja ainda mais confirmá-Ia.
EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
De qualquer modo, diferentes partes da Amazônia no mia: algumas eram especializadas na exploração de
já eram ocupadas em torno de 7000 a.c. As evidências recursos marinhos; outras, como na Amazônia, tinham :
vêm de locais tão diversos como a serra dos Carajás, no economias diversificadas; enquanto outras ainda eram
Pará; a bacia do rio Jamari, em Rondônia; a região do especializadas na caça. Os dados obtidos em diferentes
rio Caquetá (japurá), na Colômbia; o baixo rio Negro, partes da Amazônia mostram que, de fato, a floresta
próximo a Manaus, e o alto Orinoco, na Venezuela. tropical foi ocupada antes do advento da agricultura,
Apesar da escassez de dados, há um padrão emergente ou seja, por populações com economias baseadas em
no que se refere ao entendimento da economia dos caça, pesca e coleta. O início da ocupação humana nas
primeiros habitantes da Amazônia. Esse padrão mostra Américas sempre foi um dos temas mais debatidos na
que os povos tinham uma estratégia de exploração de arqueologia, em uma discussão que já tem mais de um
recursos que valorizava a biodiversidade característica século. Atualmente, esse debate passa por uma trans-
da região, isto é, não eram caçadores especializados na formação profunda, já que a maioria dos arqueólogos
captura de animais de grande porte, mas sim pescado- concorda com o fato de que as Américas foram ocupa-
res, coletores e caçadores de animais pequenos. Essa das há mais de 12.000 anos. Os dados da Amazônia
afirmação pode parecer óbvia, uma vez que existem são uma contribuição fundamental para esse debate,
poucas espécies de animais de grande porte na Amazô- ao mostrar que as populações que colonizaram inicial-
nia, mas é importante considerar que, tradicionalmen- mente a região tinham economias diversificadas.
te, a arqueologia americana esteve impregnada de uma Os primeiros habitantes daAmazônia provavelmen-
perspectiva, hoje bastante questionada, de que os pri- te utilizavam uma série de matérias-primas diferentes
meiros habitantes do continente teriam sido especiali- para produzir seus artefatos e organizar seus modos de
zados justamente nesse tipo de captura. Por conta vida, mas, devido às condições de preservação normal-
disso, alguns autores chegaram até a propor que teria mente desfavoráveis a materiais orgânicos, o que resta
sido impossível a ocupação da floresta tropical antes do desses conjuntos são instrumentos de pedra lascada ou
advento da agricultura. Tais hipóteses gerais têm sido polida e refugos de sua produção, como, por exemplo,
derrubadas nos últimos anos, em grande parte graças a lascas. Em alguns sítios antigos na Amazônia brasileira
informações obtidas na América do Sul. Elas mostram, foram identificadas pontas de projétil bifaciais (ou seja,
em primeiro lugar, que, há cerca de 11.000 anos, havia lascadas em ambas as faces), produzidas a partir de
no continente populações com diferentes tipos de eco- diferentes rochas, como o quartzo e o sílex. Por conta
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EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
",disso,alguns autores sugeriram que pontas de projétil nenhum artefato inteiro. Já no sítio a céu aberto Dona
poderiam ser utilizadas como artefatos indicadores de Stella, localizado em Iranduba, no Amazonas, uma
ocupações muito antigas, datadas em mais de 10.000 ponta inteira foi localizada, mas associada a datas mais
anos. 0. problema com esse argumento é que pontas recentes, entre 7000 e 6500 a.c. Dona Stella é, até o
de projétil são muito raras na Amazônia. As estimativas momento, o único sítio onde se identificou uma ponta
variam, mas menos de 20 delas foram identificadas em inteira em contexto arqueológico bem definido em
toda a bacia amazônica, certamente um número muito toda a bacia amazônica. O artefato em questão tem
pequeno. cerca de 6 x 4cm. A matéria-prima utilizada foi um tipo
Para complicar a situação, a maioria desses artefatos de sílex incomum na região, cujos afloramentos mais
foi encontrada fora de contexto, por garimpeiros, próximos conhecidos localizam-se a quase 200km de
crianças ou pescadores. Sendo assim, é muito difícil distância. A técnica de produção incluiu percussão
determinar sua idade com precisão. Por outro lado, em direta e pressão. ° acabamento refinado da ponta, a
outros sítios antigos localizados na serra dos Carajás, simetria nos retoques e a pouca espessura relativa indi-
em Rondônia, e no rio Caquetá, na Colômbia, identi- cam que ela foi confeccionada por artesãos com grande
ficaram-se artefatos de pedra lascada, mas não pontas conhecimento técnico. Em ambas as faces do pedún-
de projétil, o que mostra que elas não tiveram um uso cuIo - a haste da base do objeto - há um pequeno
disseminado. A situação da Amazônia é, de qualquer canal formado pela retirada por pressão. A pequena
modo, contrastante com a de outras partes do Brasil dimensão do pedúnculo coloca dúvidas sobre sua fun-
- como o planalto meridional, no vale do Ribeira, em ção quanto ao encabamento da ponta. De fato, o ótimo
São Paulo, ao norte do Rio Grande do Sul-, onde é estado de conservação da ponta e a ausência de evidên-
comum a ocorrência de pontas de projétil em sítios cias de desgastes no gume, ou mesmo de qualquer tipo
antigos. Em Capelinha, o sítio mais antigo de São de fragmentação, podem até sugerir que sua função
Paulo, as escavações identificaram dezenas de pontas talvez não fosse a de instrumento de caça, mas sim, por
em apenas uma unidade de 1m2! Por essa raridade, o exemplo, um objeto de status. Aliás, as poucas pontas
estudo das pontas amazônicas é importante. conhecidas na Amazônia não têm, aparentemente,
Na caverna da Pedra Pintada, um sítio antigo es- sinais de uso - como, por exemplo, quebra e reaviva-
cavado com bastante cuidado, identificaram-se frag- mento do gume -, o que indica que esses artefatos
mentos de pontas com datas ao redor de 9000 a.c., mas também tenham sido utilizados em contextos mais
·26· • 27 •
EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
rituais que propriamente utilitários. ções na órbita do planeta. Na Amazônia, de 11000 a.c.
Talvez por isso sejam tão raros. em diante, os registros indicam aumento da pluviosi-
Em torno de 10000 e 8000 a.c., na dade, do nível dos rios e da sedimentação aluvial. O
transição entre as épocas geológicas co- crescimento gradual do nível do mar, o derretimento
nhecidas como Pleistoceno e Holoceno, de geleiras nos Andes e o aumento do volume de água
é provável que as condições climáticas e nos rios levaram ao afogamento de cursos d'água e à
ecológicas da Amazônia fossem seme- formação de lagos, típicos da paisagem regional. Desse
lhantes às atuais, como conseqüência de modo, é provável que os primeiros habitantes tenham
Pontas d.e projétil de um processo de aquecimento global ini- vivido em um contexto ecológico semelhante ao atual.
pedra sao raras na . .
bacia amazônica. ciado alguns milhares de anos antes, a Paradoxalmente, os registros paleoclimáticos e pa-
Esseexemplarfoi co- partir de 16000 a.C. Nessa época, há leoecológicos do Holoceno médio - ou seja, da época
letado por James Pe- 18.000 anos, a temperatura do planeta entre 6000 e 1000 a.c. - são menos conhecidos que
tersen em 2002, no 'do 6 C . bai os do início do Holoceno. As melhores fontes de in-
sitio Dona Stella, e é era, em me Ia, o mais aixa que a
datado entre 7000 e atual. Parte considerável da água do pla- formação disponíveis para o entendimento do clima e
6500 a.C. neta estava retida em grandes geleiras do meio ambiente de então provêm de fontes distintas:
localizadas no alto das montanhas ou nas altas latitu- pólens preservados no fundo de lagos, geleiras nos
des. O território que corresponde atualmente ao Ca- Andes, química dos solos, microvestígios vegetais co-
nadá, por exemplo, estava coberto por uma massa de nhecidos como fitóliros e a própria implantação dos
gelo de 3km de espessura e milhões de quilômetros sítios arqueológicos. Todas essas fontes independentes
quadrados de área. Uma conseqüência da formação de parecem indicar que, na Amazônia, o clima foi mais
geleiras foi o recuo do nível do mar, que em alguns seco entre 6000 e 1000 a.c. Uma possível conseqüên-
pontos ficou até 100m abaixo dos níveis atuais. No cia desse intervalo seco deve ter sido a retração de áreas
caso do rio Amazonas, esse recuo fez com que sua foz cobertas por floresta, com conseqüente expansão de
ficasse num local muito distante de onde é hoje, pró- áreas de cerrado, assim como - nas áreas onde a
ximo à costa da Guiana Francesa, a mais de 100km de floresta permaneceu - a mudança na freqüência de
distância do litoral atual. espécies de plantas. É também possível que o nível
A partir de 16000 a.c. ocorreu um processo de médio dos rios tenha diminuído. No baixo rio Xingu,
reaquecimento cujas causas estão relacionadas a varia- a base de alguns sítios conhecidos como sambaquis,
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EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
datados de cerca de 2000 a.c., está atualmente sub- ziamento demográfico da região, resultante das mu-
mersas, indicando que o nível médio do rio devia ser danças climáticas? Ou, por outro lado, os sítios dessa
mais baixo que o atual. Na baía de Caxiuanã, próxima época não estão sendo identificados devido a proble-
ao baixo Xingu, houve aumento de chuvas a partir de mas nas estratégias de levantamento utilizadas pelos
700 a.c., enquanto no período anterior, de 4000 a 700 arqueólogos? A ainda baixa quantidade de pesquisas
a.c., o lago era bem mais raso do que atualmente, impede que tais perguntas sejam respondidas com
embora a vegetação circundante já fosse composta por certeza. Baseado nos dados atualmente disponíveis,
floresta tropical. apenas duas áreas da Amazônia foram ocupadas mais
Resumindo a discussão, as evidências aqui apresen- ou menos continuamente durante o Holoceno. A pri-
tadas apontam para a ocorrência de variações climáti- meira inclui a região do baixo rio Amazonas e estuário,
cas e ecológicas na Amazônia durante o Holoceno. Os desde a atual cidade de Santarérn até o litoral, no estado
dados são quase concordantes em um aspecto funda- do Pará. A segunda inclui a bacia do alto rio Madeira
mental para a história da ocupação humana na região: e seus afluentes, onde atualmente está localizado o
o fato de que houve aumento nas condições gerais de estado de Rondônia. Talvez não por acaso, essas áreas
precipitação e umidade - além da expansão da floresta correspondem também a locais onde a floresta ficou
em alguns casos - a partir de cerca de 3000 anos atrás. mais estável ao longo do Holoceno.
Tal processo deve estar relacionado às mudanças visí-
veis no registro arqueológico da região, notadas a partir
da mesma época, conforme se verá a seguir. Particular- A transição para a agricultura e
mente, no que se refere ao estudo do início da ocupação o início da produção cerâmica
humana, o reconhecimento de que ocorreram mudan-
ças climáticas significativas ao longo do Holoceno Uma das maiores contribuições dos índios das Améri-
pode explicar por que houve uma aparente diminuição cas para a humanidade foi a domesticação de uma série
da freqüência de sítios arqueológicos nesse período. de plantas que atualmente são consumidas de diferen-
Paradoxalmente, conhece-se mais sobre os sítios mais tes modos por todo o planeta. A lista é grande e será
antigos, ocupados antes de 6000 a.c., do que sobre os aqui parcialmente mencionada, em ordem alfabética:
sítios ocupados entre 6000 e 1000 a.c. Estará essa abacate, abacaxi, abóbora, amendoim, batata, caju,
lacuna nas informações relacionada de fato a um esva- feijão, mamão, mandioca, maracujá, milho, pimenta-
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EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
vermelha, pupunha, tabaco e tomate, entre outros, agricultura não foi "inventada" por alguns poucos
foram domesticados em diferentes partes do continen- indivíduos. Ao contrário, resulta de processos longos e
te americano muito antes da chegada dos europeus. cumulativos no decorrer dos quais a seleção intencio-
Como quase tudo em arqueologia, há um grande de- nal de características morfológicas acaba por levar ao
bate sobre a antigüidade do início desse processo, mas surgimento de novas espécies, aparentadas às espécies
é provável que os colonizadores iniciais - que tinham selvagens das quais se originaram. É óbvio que hoje isso
seu modo de vida organizado em torno de caça, pesca mudou. Basta, por exemplo, ver as fortunas investidas
e coleta - já praticassem algum tipo de manejo de por grandes laboratórios internacionais no desenvolvi-
plantas, conforme dados obtidos, por exemplo, na mento de espécies transgênicas.
Amazônia equatoriana. A domesticação de plantas de- Pode-se considerar a emergência da agricultura
ve ser entendida como um processo a partir do qual como um processo coevolutivo no qual seres humanos
algumas espécies selvagens são manipuladas com o e plantas desenvolveram uma dependência mútua que
objetivo de destacar algumas de suas características, tornou a vida de ambos impossível sem a presença do
num raciocínio semelhante ao feito atualmente por outro. A mandioca é um bom exemplo: foi domestica-
criadores de animais de raça. Assim, por exemplo, o da na Amazônia e atualmente é consumida em larga
processo de domesticação da mandioca envolveu a escala pela América Latina, Caribe, África e Ásia. Ela é
manipulação de espécies selvagens com o objetivo de tão dependente dos seres humanos para se reproduzir
desenvolver variedades com raízes mais grossas e lon- que muitas variedades já perderam a capacidade de
gas, já que esta é a parte da planta que é consumida. lançar sementes no solo. Nesses casos, é necessário que
Do mesmo modo, a domesticação da pupunha - uma talos do galho sejam quebrados e plantados pelos agri-
espécie de palmeira cujos frutos, do tamanho de uma cultores. Por outro lado, é correto afirmar que muitas
ameixa, são amplamente consumidos na Amazônia e populações do mundo em desenvolvimento provavel-
em outros países da América do Sul e Central - mente teriam dificuldades nutricionais ainda piores
envolveu um processo de seleção que privilegiou, ao sem o cultivo de mandioca. Esse exemplo é ilustrativo
longo do tempo, as variedades com frutos maiores. O e impressionante, já que os índios - provavelmente as
processo de seleção intencional que leva à domestica- índias - do passado desenvolveram uma tecnologia
ção de uma planta é bastante longo, com duração de sofisticada, baseada no uso de vários instrumentos,
muitas décadas ou mesmo séculos. Nesse sentido, a como o ralador, o tipiti e o cumatá, que transforma
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EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
uma planta extremamente venenosa em vários produ- também tem sido considerada um centro inde-
tos importantes, como o beiju, a farinha, a tapioca e o pendente de domesticação. A lista de plantas domesti-
caxm. cadas ali é extensa e inclui, entre outras, o abacaxi, o
amendoim, o mamão e, principalmente, a mandioca e
a pupunha.
Normalmente, um centro de domesticação pode ser
identificado a partir dos próprios vestígios paleobotâ-
nicos encontrados nos sítios arqueológicos ou de estu-
dos botânicos e genéticos indicando a ocorrência, em
áreas específicas, de espécies selvagens que tenham
parentesco com as espécies domesticadas. Dentro da
grande diversidade ecológica e geográfica que caracte-
riza a Amazônia, há uma área específica que pode ter
sido um importante centro de domesticação: a bacia
do alto Madeira e seus afluentes, onde hoje está o es-
tado de Rondônia. De acordo com evidências botâni-
A domesticação da mandioca é um exemplo de como as antigas cas e genéticas, esse foi o centro de domesticação de
populações amazônicas desenvolveram técnicas avançadas de cul-
duas das mais importantes plantas cultivadas atual-
tivo. Essa imagem foi feita por Robert Schomburgk em 1841.
mente na Amazônia: a mandioca e a pupunha. Curio-
N o estudo do processo de domesticação de plantas samente, e talvez não por acaso, essa é uma das poucas
e animais, algumas áreas são classificadas como centros, áreas onde há claras evidências de ocupação humana
isto é, locais onde esses processos inicialmente ocor- contínua durante todo o Holoceno. Conforme se verá
reram, enquanto outras são consideradas receptoras, adiante, o alto Madeira pode também ter sido o centro
ou seja, locais que posteriormente receberam essas ino- de origem das línguas tupis.
vações. Nas Américas, existem dois centros conheci- As formas antigas de agricultura da Amazônia foram
dos de domesticação de plantas: a Mesoamérica - partes provavelmente bastante parecidas com algumas práti-
do México, Guatemala e Honduras - e os Andes cas atuais, tal como o cultivo nos quintais das casas-
centrais. Paulatinamente, no entanto, a Amazônia às vezes em hortas suspensas, geralmente sobre canoas
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EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
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EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
que em uma floresta madura, o que facilita a derruba- Domesticação é o processo pelo qual características
da, mesmo com machados de pedra. É também prová- genéticas de plantas selvagens são intencionalmente
vel que o tempo de vida útil das roças tenha sido maior modificadas até o surgimento de novas espécies, em
que o verificado atualmente, o que levaria a um cuida- muitos casos dependentes de intervenções humanas
do maior no combate às pragas e a algum tipo de para sua reprodução. Ou seja, algumas dessas plantas
investimento na manutenção da fertilidade. Finalmen- perdem a capacidade de se reproduzir naturalmente.
te, deve-se também considerar a hipótese de que a Agricultura, para a discussão aqui apresentada, refere-se
ocupação das aldeias tenha tido também uma duração ao estabelecimento de um modo de vida totalmente
maior, como conseqüência da menor mobilidade dos dependente do cultivo de plantas domesticadas.
sistemas agrícolas. Uma possível resultante dessa prá- A domesticação de plantas é uma condição funda-
tica de cultivo são as chamadas "terras mulatas": solos mental para o estabelecimento de modos de vida agrí-
normalmente férteis, de coloração marrom, relativa- colas, mas é possível que sociedades com economias
mente extensos, próximos a sítios arqueológicos, nor- baseadas em caça, pesca e coleta também tenham se
malmente interpretados como vestígios de antigas utilizado de plantas domesticadas sem que se tornas-
áreas de cultivo. Outros tipos de evidência arqueológi- sem completamente agrícolas. Esse padrão ainda é ve-
ca apóiam essa hipótese: na Amazônia central, em sítios rificado entre populações indígenas amazônicas como
ocupados por muitas décadas ou mesmo alguns sécu- os Maku, Nukak, Parakanã, Sirionó, entre outras.
los, é comum a ocorrência de machados lascados ou Trata-se de populações que, tecnicamente, vivem de
polidos de pequeno porte, instrumentos adequados à caça, pesca e coleta, mas que também mantêm o cultivo
derrubada de árvores menores, típicas de áreas de em pequena escala de algumas espécies de plantas. Para
vegetação secundária. certos autores, alguns desses grupos teriam sido agri-
Embora a Amazônia, em particular sua porção su- cultores que regrediram a um modo de vida caçador,
doeste, tenha sido um centro independente de domes- coletor e pescador devido às pressões da conquista
ticação de plantas na América do Sul, não se sabe ainda européia, numa espécie de "marcha a ré evolutiva". A
quando esse processo teve início. Para entendê-lo, é hipótese é interessante, mas traz uma carga evolucio-
necessário diferenciar os termos "domesticação" e "agri- nista unilinear, como se os processos de mudança
cultura", já que, embora estejam intimamente relacio- ocorressem por um único caminho. Tais "regressões",
nados, referem-se a atividades ou processos distintos. porém, podem ser vistas de outra maneira. A idéia de
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EDUARDO GÓES NEVES ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
regressão implica o retorno a um modo de vida antigo As diferentes maneiras pelas quais a agricultura foi
e superado, mas é também plausível que alguns desses ou não incorporada aos modos de vida na Amazônia,
grupos contemporâneos tenham oscilado entre econo- durante o período entre 6000 e 1000 a.c., tiveram
mias mais ou menos agrícolas ao longo de milênios e também um papel importante no processo de expansão
que a opção recente pela agricultura seja mais uma das línguas indígenas na região. À medida que se
manifestação dessa oscilação estrutural. estreita a cooperação entre lingüistas e arqueólogos
A discussão acima é importante porque ajuda a trabalhando em diferentes partes do planeta, fica cada
explicar outro paradoxo da arqueologia amazônica: o vez mais claro um padrão que correlaciona a distribui-
grande intervalo cronológico, de alguns milhares de ção de línguas de algumas famílias lingüísticas no
anos, entre as evidências mais antigas de domesticação presente a processos de expansão agrícola no passado.
e a emergência de modos de vida plenamente agrícolas. Esse parece ter sido o caso das línguas indo-européias,
É provável que, ao longo desses milênios, entre 6000 na Europa, das línguas bantu, na África subsaariana, e
e 1000 a.c., a ocupação humana da Amazônia tenha das línguas austronesianas, no sudeste da Ásia e da
sido realizada por populações com economia mista, Polinésia. O raciocínio é simples: a adoção da agricul-
baseada em caça, pesca, coleta e em uma agricultura de tura levaria ao crescimento populacional, e essa expan-
baixa intensidade. Tais estratégias diversificadas, por são demográfica, à colonização de novas áreas, ocupa-
certo, mimetizavam a própria biodiversidade da flo- das anteriormente por populações não agricultoras ou
resta. Assim, embora o processo de domesticação de mesmo totalmente desocupadas por seres humanos,
plantas seja bastante antigo, o surgimento de modos como na Polinésia. No caso da Amazônia, há um
de vida dependentes da agricultura foi muito mais elemento complicador, que é a ocorrência de mais de
recente, tendo se iniciado há mais ou menos 3.000 uma expansão lingüística. Dessas expansões, duas fo-
anos. Essa hipótese é baseada no fato de que, a partir ram bastante amplas: as das famílias arawak e tupi-gua-
de então, são mais claras as evidências de grandes rani. No início da colonização européia das Américas,
aldeias sedentárias, ocupadas por centenas de pessoas no final do século XV, as línguas arawak tinham ampla
durante muitas décadas, o que é compatível com eco- distribuição, cujos limites eram as ilhas Bahamas, no
nomias plenamente agrícolas. Como explicar a longa Caribe, a região do Pantanal mato-grossense, o sopé
duração desse intervalo? Uma hipótese será apresenta- dos Andes e a foz do Amazonas. A distribuição das
da a seguir. línguas tupi-guarani era menor, mas também grande,
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e incluía uma área que tinha como limites o rio Ama- atual estado do Pará, em uma região que começa no
zonas, o norte da Argentina, o sopé dos Andes bolivia- baixo Amazonas, próximo às atuais cidades de Santa-
nos e o litoral atlântico, do Ceará ao rio da Prata. rém e Monte Alegre, passa pelo baixo rio Xingu e chega
Apesar de amplas, as distribuições das famílias arawak à chamada "zona do Salgado", que é, de fato, o litoral
e tupi-guarani não eram contínuas, mas sim entrernea- atlântico desse estado. É provável que cerâmicas com
das por áreas ocupadas por falantes de outras línguas. tal antigüidade sejam identificadas também no litoral
N a antropologia das terras baixas da América do Sul, do Maranhão. Fora do Brasil, no litoral do Suriname
é antiga uma hipótese que correlaciona a expansão ara- também se encontram objetos desse tipo.
wak à domesticação e ao cultivo da mandioca. De fato, Com exceção da caverna da Pedra Pintada, localiza-
nas ilhas do Caribe, os povos responsáveis pela intro- da em Monte Alegre, todos os outros pontos onde
dução desse cultivo, há mais de 2.000 anos, eram falantes cerâmicas antigas foram identificadas são sambaquis
de línguas arawak oriundos do norte da América do - sítios arqueológicos bastante particulares, localiza-
Sul. É possível que o mesmo tenha ocorrido em perío- dos em praias, áreas ribeirinhas ou lagunares por todo
dos mais recentes, no final do primeiro milênio, na o mundo. Formados pelo acúmulo intencional de
bacia do alto Xingu. Além do mais, grupos arawak são conchas e terra, resultam em verdadeiras colinas artifi-
tradicionalmente reconhecidos pela antropologia ciais, em alguns casos com vários metros de altura.
como agricultores contumazes, o que confirmaria a Atualmente, acredita-se que os sambaquis fossem 10-
hipótese. O problema, no entanto, é que a genética de cais de moradia, mas também funcionavam como
plantas indica que o provável centro de origem de do- cemitérios, uma vez que é comum identificar neles
mesticação da mandioca tenha sido a região do alto sepultamentos humanos. No Brasil, os mais conheci-
Madeira, onde atualmente está o estado de Rondônia, dos e estudados são os do litoral sul e sudeste, distri-
uma região aparentemente nunca ocupada por falantes buídos desde o Rio Grande do Sul até o Rio de Janeiro.
de línguas da família arawak. Como resolver esse pro- No vale do Ribeira, em São Paulo, encontram-se os
blema? sambaquis mais antigos dessas regiões, tanto litorâneos
Uma característica notável das ocupações humanas como fluviais, datados de 6000 a.c. A partir dessas
iniciais na Amazônia é a presença precoce da produção datas antigas, sambaquis foram sendo construídos e
cerâmica, com datas que estão entre as mais antigas da habitados no sul e sudeste até por volta do ano 1000,
América do Sul. Tais cerâmicas foram identificadas no quando são abandonados, provavelmente como con-
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Terras pretas. Atualmente, as evidências mais antigas que as terras pretas mais antigas nessa área datam do
de estabelecimento de assentamentos sedentários na século VII, ou seja, têm cerca de 1.400 anos de idade.
Amazônia brasileira vêm de dois locais distintos, situa- Tais solos mantêm, no entanto, alta fertilidade, o que
dos em extremidades opostas da bacia: a ilha de Marajó normalmente seria incompatível com a intensa lixivia-
e a região do alto rio Madeira, onde está atualmente ção que ocorre nos trópicos. Em outras palavras, a expec-
Rondônia. Esse estado tem uma arqueologia pouco co- tativa seria de que solos com essaidade fossem atualmente
nhecida, embora com potencial bastante grande. É ali pouco férteis, após séculos de exposição às condições
que se encontra, hoje, a maior diversidade lingüística climáticas da região. Por conta dessa propriedade, esfor-
entre os povos falantes de línguas tupi, o que sugere ços interdisciplinares têm sido feitos por agrônomos,
que essaseja sua região de origem. É também a região que pedólogos (cientistas de solo), geólogos, químicos, an-
estudos genéticos sugerem ter sido o centro de domes- tropólogos e arqueólogos com o objetivo de determi-
ticação original de importantes plantas amazônicas, nar os processos responsáveis pela formação das terras
como a mandioca e a pupunha. Finalmente, ali foram pretas e as características que promovem sua estabili-
encontradas o que parecem ser as mais antigas terras dade.
pretas de índio da Amazônia, com cerca de 4.000 anos Ainda não se sabe, porém, o que levou à formação
de idade. Nas áreas adjacentes aos rios Solimões e das terras pretas. A hipótese mais provável é que elas
Amazonas, tais tipos de solo - bastante férteis e com resultem do acúmulo contínuo de restos orgânicos -
grande importância econômica - são mais recentes, ossos de peixes e outros animais, cascas de frutas e
tendo mais ou menos 2.000 anos de idade. raízes, fezes, urina, carvão etc, - em aldeias sedentárias
As terras pretas talvez sejam o melhor indicador de ocupadas durante muitos anos ou décadas. Sob essa
que os ambientes amazônicos foram modificados pelas perspectiva, sítios com esse tipo de solo seriam locais
populações indígenas que ocupavam a região antes da de habitação no passado. Alguns deles têm áreas con-
conquista. Atualmente, esse tipo de solo é procurado sideráveis: Açutuba, localizado no baixo rio Negro, a
por agricultores em razão de seu potencial de cultivo, cerca de 40km de Manaus, por exemplo, tem 90ha de
mas pouca gente sabe que foi formado pelos índios no área, com 3km de comprimento por 300m de largura.
passado. Além da alta fertilidade, talvez a propriedade É provável, portanto, que tenha sido uma grande
mais interessante das terras pretas seja a estabilidade. aldeia, com algumas centenas de habitantes, durante
Escavações realizadas na Amazônia central indicam seu período de ocupação .
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"
Amazonas, chamado de tradição pocó, denominada a mas apenas chamar a atenção para os intensos e dinâ-
partir do sítio Pocó, onde foram inicialmente identifi- micos processos de ocupação instaurados na Amazônia
cados. a partir do início da era cristã.
Sítios da tradição pocó são o registro, na calha do
Amazonas, do período imediatamente anterior à cons- A cerâmica marajoara. Na Amazônia brasileira, é na
tituição das grandes aldeias com terras pretas que ca- ilha de Marajó que se encontram algumas das manifes-
racterizariam a ocupação humana dessa parte da região tações mais antigas dos processos de crescimento de-
em épocas posteriores. Nos locais onde foram identi- mográfico e de mudanças paisagísticas. Eles culmi-
ficados, esses sítios surgiram após longos hiatos no naram com a chamada cultura marajoara. Cerâmicas
processo de ocupação humana. Na Amazônia central, d essa eu Itura, ou "I:" ~
rase, compoem acervos de museus
por exemplo, o hiato teve duração de pelo menos 3.000 e coleções particulares no Brasil e no exterior, sendo
anos. fu cerâmicas pocó têm uma série de característi- caracterizadas por grande beleza e imensa diversidade
cas decorativas em comum com outras, mais antigas, de formas e padrões de decoração. Entre os diversos
identificadas no litoral da Colômbia. Uma hipótese
tipos de artefatos há urnas funerárias, vasos, estatuetas
provável é que as populações que as produziram te-
antropomorfas, pratos, tangas e bancos. A decoração é
nham se originado no norte do continente e ocupado
normalmente pintada e inclui motivos antropomorfos,
a Amazônia há aproximadamente 2.300 anos.
zoomorfos e abstratos, sempre com alguma combi-
A partir do período marcado pelas cerâmicas pocó,
nação entre vermelho, laranja, branco e preto. A deco-
as evidências de ocupação nas áreas adjacentes às vár-
ração plástica, também freqüente,
zeas amazônicas são abundantes. Na Amazônia central,
inclui o modelado e também o uso
por exemplo, seguem-se às pocó três ocupações distin-
tas, todas associadas a grandes sítios com terras pretas: de diferentes técnicas de incisão e
as já mencionadas ocupações com cerâmicas rnanaca- excisão. A beleza das cerâmicas ma-
pum, datadas entre os séculos VII e IX; as com cerâ- rajoara torna-as bastante cobiçadas,
micas chamadas de paredão, datadas entre os séculos sendo, sem sombra de dúvida, a
VII e XI; e as com cerâmicas guarita, entre os séculos IX maior categoria de objetos arqueo-
e XVI. A enumeração de diferentes nomes de complexos lógicos contrabandeados para fora Um exemplo típico de urna
cerâmicos no passado não pretende confundir o leitor, do Brasil atualmente. marajoara.
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arqueológico tão rico, aparente- sítios arqueológicos, que a fase marajoara teria sido
mente característico de socieda- relativamente curta, reflexo de um rápido processo de
des hierarquizadas, em uma área mudança cultural. Estudos posteriores, realizados nas
supostamente marginal como a foz décadas de 1960 e 1980 por Mario Simões e Anna
do Amazonas? Após vários meses Roosevelt, indicaram que tal hipótese não se sustenta,
de prospecções e escavações e vá- uma vez que aquela cultura teve duração de quase
rios anos de análises de labora- 1.000 anos, do século IV ao século XIV. Do mesmo
tório, Meggers e Evans propuse- modo, a hipótese de uma origem andina também não
ram, em 1957, que as populações é válida. De fato, sabe-se hoje que as cerâmicas da fase
que ocuparam o leste da ilha de marajoara são as representantes mais antigas da chama-
Marajó - e que ali produziram as da tradição polícroma da Amazônia. Em arqueologia,
cerâmicas e os aterros artificiais o termo "tradição" denomina um conjunto de fases
Mapa do início da década de típicos - seriam oriundas dos distribuídas por áreas vastas e com grande amplitude
1950 que representa uma Andes, mas que não teriam encon- cronológica.
perspectiva comum na antro-
trado na ilha condições ecológicas As cerâmicas da tradição polícroma são, como o
pologia do período. colocan-
do a Amazônia em um con- para manter padrões de organiza- próprio nome diz, caracterizadas pela decoração pinta-
texto periférico na história ção social, econômica e política da em vermelho, cor-de-vinho, laranja ou preto sobre
cultural da América do Sul.
semelhantes aos das sociedades uma base branca. Do mesmo modo que na fase mara-
andinas complexas. Como conseqüência, tais socieda- joara, as cerâmicas polícromas são também decoradas
des teriam passado de complexas a simples, a partir de com modelado, incisão, excisão etc. Apesar das seme-
uma tipologia evolucionista então em voga na antro- lhanças gerais, há uma considerável variação entre as
pologia norte-americana. diversas cerâmicas e sítios arqueológicos associados à
tradição polícroma. Por conta disso, elas recebem di-
A tradição polícroma. Quando Meggers e Evans reali-
ferentes denominações regionais, a partir de suas carac-
zaram suas pesquisas na ilha de Marajó, o método de
terísticas decorativas particulares. Algumas dessas
datações absolutas por carbono 14 não era ainda am-
denominações são relativamente bem conhecidas.
plamente disponível. Sendo assim, propuseram, a par-
Além da marajoara, há: miracangüera, na região de
tir de análise da cerâmica e de estudos das camadas nos
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ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
distribuição das cerâmicas polícromas, é comum a afluentes dos rios Amazonas e Solimões, síveis pelo tempo -
e as representações
ocorrência de pratos quadrados. Um padrão análogo tais como: Madeira, Uatumã, Negro,Ja- antropomorfas.
purá-Caquetá, Içá-Putumayo e Napo,
de mudança é visto nas urnas funerárias: no alto Ama-
entre outros. A cronologia mostra que
zonas são muito mais usuais as urnas antropomorfas
sítios com cerâmicas polícromas tor-
polícromas, nas quais braços e pernas são modelados,
nam-se paulatinamente mais recentes à
destacando-se do corpo dos vasos, enquanto nas da fase
medida que se percorre, rio acima, o
marajoara braços e pernas são normalmente pintados
Amazonas-Solimões e seus afluentes,
ou modelados junto ao corpo dos vasos. Há ainda
desde a foz até os contrafortes dos Andes.
algumas formas de vasos que parecem só ocorrer em
Tal padrão indica que a tradição polícro-
sítios polícromos em algumas áreas específicas: na
ma é um fenômeno com origem claramente amazôni-
Amazônia central, próximo a Manaus, é comum a ca, e não andina, conforme propuseram Meggers e
ocorrência de vasos de médio porte, com decoração Evans na década de 1950. As descobertas indicam que,
plástica em canais e decoração pintada em branco. enquanto as cerâmicas polícromas encontradas na ilha
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ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
[~~~i
Capoeira recente
área poderá mostrar se a construção de estruturas desse
tipo foi mesmo freqüente naquele período, o que pode
ajudar a entender se a expansão polícroma teve ou não
caráter bélico. Gaspar de Carvajal, cronista da expedi- 50 100m
~
ção de Francisco de Orellana, que desceu o rio Ama-
zonas em 1542, narra como - em um local situado
entre as bocas dos rios Negro e Urubu, próximo à Planta do sítío Lago Grande, localízado em uma península de
cidade de Manaus - avistaram "uma aldeia fortificada 30m de altura junto a um lago da várzea do río Solímões. As
por uma muralha de madeiras grossas". habitações são díspostas em círculo ao redor de uma praça
central, e, ao norte, no ístmo que conecta a península à terra
É certo que as populações que produziram cerâmi- fírme, foi construída uma vala defensíva no séc. X. É possível que
cas polícromas foram as mesmas que testemunharam os conflitos que levaram à construção da vala tenham eventual-
mente causado o abandono do sítio.
a passagem dos primeiros viajantes europeus _ tais
como Carvajal e Orellana - pela Amazônia, nos
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ARQUEOLOGIA DA AMAZÔNIA
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g, teado. Talvez a categoria mais Próximo a Santarém, na região dos rios Nhamundá
conhecida dessas estatuetas se- e Trombetas, bem como na região de Parintins, encon-
jam as de base semilunar, repre- tram-se cerâmicas também pertencentes à tradição in-
sentando mulheres nuas e ador- cisa e ponteada, conhecidas como konduri. São também
nadas. bastante sofisticadas, com prevalência da decoração
modelada em motivos antropomorfos e zoomorfos, e
As cerâmicas tapajônicas
Os vasos de cariátides têm estrutu- com a diferença de que os vasos são geralmente maiores
são encontradas em uma gran-
ra complexa e incluem figuras mo- que os tapajônicos. Os fragmentos desses vasos são co-
de área que tem como centro a
deladas (as cariátides) que susten- nhecidos como "caretas", e comumente encontrados
tam uma vasilha decorada com cidade de Santarém, localizada
incisões e apêndices antropomor-
em áreas de terra preta e roças por toda a região. A ar-
fos e zoomorfos.
sobre um grande sítio arqueo- queologia konduri é ainda menos conhecida que a ta-
lógico atualmente bastante pajônica, mas acredita-se que suas populações tenham
destruído, devido ao crescimento urbano. Elas podem sido contemporâneas. Um aspecto interessante da ar-
também ser vistas em acervos de museus brasileiros e queologia konduri é a presença de um pequeno, mas
estrangeiros, bem como em coleções particulares. A representativo, repertório de estatuetas de pedra polida.
região de Santarém e entorno, apesar de seu grande Elas representam seres humanos e animais, com desta-
interesse, é ainda muito mal conhecida do ponto de que para onças e sucuris. Normalmente, têm duas gran-
vista arqueológico, não havendo, por exemplo, sequer des perfurações, mas não se sabe
uma cronologia básica para os sítios. As poucas datas como eram utilizadas. A iconografia
disponíveis indicam que a ocupação tapajônica remon- de algumas das estatuetas lembra bas-
ta pelo menos ao final do primeiro milênio, e durou tante a das grandes esculturas de pe-
dra encontradas na região de San
até o século XVII, ou seja, após a chegada dos europeus.
Agustín, nos Andes colombianos.
Informações sobre o modo de vida dessa sociedade
Outras, por sua vez, têm traços em
podem ser obtidas nos relatos de missionários católicos
comum com os desenhos encontrados
que com ela conviveram. Esses dados mostram que a
nas pranchetas de madeira produzi-
sociedade tapajônica era bastante hierarquizada e que das pelos índios Maué até o século
as mulheres tinham um papel político e religioso im- XIX e usadas para aspiração de pari-
O paricá era aspirado em
portante. Tais informações são corroboradas pelos pou- cá, um pó alucinógeno feito a partir pranchetas de madeira ri-
cos dados arqueológicos disponíveis. da casca das árvores do gênero virola. camente trabalhadas.
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gj
mente pequena. Conhecidas localmente mum é de figuras an-
eram produzidos em vários locais di-
como aristé, mazagão, aruã, cupixi e ma- tropomorfas envol-
ferentes. O fato é que a distribuição tas ou encobertas
racá, as cerâmicas de Maracá foram des-
de muiraquitãs por uma ampla área por figuras zoomor-
cobertas no século XIX, e incluem unias fas, sugerindo tal-
indica que as populações amazônicas
funerárias zoomorfas e antropomorfas vez o transe xama-
Os muiraquitãs mais co- do início do segundo milênio não nista.
munssãoem forma de sapo, estavam isoladas, mas sim integradas com a forma de indivíduos sentados so-
feitos de pedras esverdea- bre bancos - em muitos casos, semelhantes aos usados
das, mas há exemplares de
em redes de comércio ou de outros
rocha branca e com outros tipos, que permitiam o contato. De- por grupos indígenas contemporâneos da região da
motivos zoomorfos. Sua vido a seu tamanho reduzido e alta Guiana. As urnas maracá encontram-se sempre na
função é desconhecida. superfície, colocadas dentro de grutas, na região do
portabilidade, muiraquitãs são peças
sujeitas a roubo e contrabando. igarapé do Lago, a oeste de Macapá, mas há também
sítios a céu aberto, embora sem urnas. Atualmente, o
As cerâmicas de Maracd. Por volta do crescimento econômico da região e a falta de proteção
ano 1000, o registro arqueológico trazem uma ameaça a esse patrimônio, uma vez que os
mostra um quadro de diversidade sítios têm sido saqueados por colecionadores de peças.
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As diversas cerâmicas do Amapá não são ainda muito a região antes do início da colonização européia per-
bem datadas. A exceção são as cerâmicas aristé, conhe- mite que se utilize a tradição oral na identificação e no
cidas também na Guiana Francesa, que remontam ao estudo de sítios arqueológicos na região. Uma experiên-
século IV ou V. O interessante nesse caso é que há uma cia nesse sentido foi realizada em um sítio chamado
clara relação entre os índios Palikur, atuais habitantes
Kwap, localizado às margens do rio Urucauá, escavado
da região litorânea do norte do Amapá e da Guiana
por uma equipe de índios Palikur juntamente com ar-
Francesa, e os grupos indígenas que produziram as
queólogos e antropólogos. Nos trabalhos de campo, as
cerâmicas aristé e viveram na mesma região. Se correta,
informações dos índios foram utilizadas com o fim de
essa hipótese indica que os Palikur e seus ancestrais
identificar áreas para a abertura de escavações, normal-
vivem continuamente nessa área há cerca de 1.500
mente inacessíveis ou pouco visíveis, já que o sítio está
anos. Do mesmo modo que as cerâmicas maracá, urnas
atualmente coberto pela mata. Sem essa colaboração,
funerárias aristé são também encontradas em grutas.
as informações obtidas seriam certamente incompletas.
Os sítios a céu aberto correspondem a antigas aldeias.
Outros exemplos de participação ativa e criativa de
Alguns deles estão localizados sob aldeias contemporâ-
índios em trabalhos de campo arqueológicos têm ocor-
neas, como é o caso de Kumene, localizada no rio
rido no alto Xingu e no alto rio Negro. Na região do
Urucauá. As cerâmicas aristé têm grande beleza, mar-
rio Uaupés, na bacia do alto rio Negro, a tradição oral
cada pela decoração pintada e modelada e por grande
diversidade de formas. Talvez o sítio aristé mais conhe- dos índios T ariano foi utilizada para a identificação de
cido seja Kunani, um poço artificial onde se deposita- sítios atualmente localizados sob a floresta. De acordo
ram diversos vasos e urnas funerárias, localizado pró- com a tradição oral, os T ariano teriam tido conflitos
ximo à cidade de Calçoene e escavado por Emilio armados com outros índios da região quando ali se
Goeldi no fim do século XIX. Do mesmo modo que estabeleceram, mas não se sabia ao certo quando isso
as cerâmicas de Maracá, os sítios aristé são também teria ocorrido. A escavação de sítios identificados gra-
ameaçados pelo interesse de colecionadores particula- ças a histórias contadas de geração a geração pelos
res e pela proximidade com a Guiana Francesa, o que índios permitiu que se determinasse que a ocupação do
facilita o contrabando de peças. rio Uaupés pelos Tariano ocorreu por volta do início
do século XV. No alto Xingu, os índios Kuikuru têm
A contribuição dos índios. O fato de haver uma relação trabalhado com arqueólogos e antropólogos na identi-
direta entre os índios Palikur e os grupos que ocuparam ficação e mapeamento de grandes aldeias circulares,
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índios e ao mesmo tempo de forte ocupação da Ama- vez a partir dessa perspectiva possam ser explicados
zônia por famílias empobrecidas de migrantes nordes- alguns fenômenos interessantes, tais como o colapso
tinos. Foi também nessa época que se iniciaram as da cultura marajoara no século XIV ou o fato de que
pesquisas antropológicas na região. Talvez por isso, a o apogeu demo gráfico na Amazônia central pré-colo-
imagem consolidada entre cientistas e o público em nial tenha aparentemente ocorrido no século XI, e não
geral seja a de que a Amazônia foi sempre esparsamente no XVI.
povoada. Atualmente, a arqueologia contribui para
modificar essa visão, trazendo evidências de uma rica
história pré-colonial. Perspectivas futuras e temas de investigação
É importante, no entanto, evitar interpretações sim-
plistas, ou mesmo anacrônicas, quanto à história da Este livro apresentou um quadro sintético e, espera-se,
Amazônia pré-colonial. Um risco, por exemplo, seria coerente da história pré-colonial da Amazônia. O re-
a suposição de que as sociedades indígenas pré-colo- sultado, no entanto, é provisório e fadado a ser modi-
niais estariam seguindo um caminho inexorável rumo ficado em um futuro não tão distante, à medida que
ao desenvolvimento de uma organização política como novas áreas de pesquisa forem investigadas. Além da
um Estado, e que tal caminho teria sido abortado pelo calha do Amazonas e de alguns de seus afluentes, há
início da colonização européia. A arqueologia mostra regiões virtualmente desconhecidas pela arqueologia.
que as bases econômicas das sociedades amazônicas N o Acre, por exemplo, próximo a Rio Branco, achados
sempre foram centradas no grupo doméstico, isto é, a recentes têm mostrado a ocorrência de estruturas arti-
unidade produtiva sempre foi a família nuclear ou o ficiais, feitas de terra, com formas geométricas qua-
grupo residencial, organizados no cultivo de mandioca drangulares ou circulares e dezenas de metros quadra-
e outras plantas, na pesca, na coleta e, em menor escala, dos de área, conhecidas como geóglifos. Não se sabe
na caça. Tal característica conferia a esses grupos um ainda qual a idade dessas estruturas, mas correlações
grau de autonomia econômica que criava as condições com estruturas semelhantes construídas na Bolívia su-
para o desenvolvimento de formações sociais marcadas gerem que devem datar do primeiro milênio. No mo-
pela instabilidade política de longo prazo, verificada no mento, é difícil estabelecer uma correlação entre os
registro arqueológico através de sucessivos episódios de geóglifos e os povos indígenas que ocupam atualmente
ocupação e abandono de grandes assentamentos. Tal- a região do alto Purus. Entre outras áreas mal conhe-
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Sobre o autor
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Coleção Descobrindo o Brasil
direção: Celso Castro
Cidadania e direitos do trabalho
ALGUNS VOLUMES JÁ PUBLICADOS;
Angela de Castro Gomes
A arte rupestre no Brasil O Estado Novo
Madu Gaspar Maria Celina D'Araujo
Arqueologia da Amazônia O sindicalismo brasileiro
Eduardo Góes Neves
após 1930
Rebeliôes no Brasil Colônia Marcelo Badaró Mattos
Luciano Figueiredo Os brasileiros e a Segunda Guerra
O nascimento da imprensa brasileira Mundial
Isabel Lustosa Francisco César Ferraz
O período das Regências (1831-1840) A Era do Rádio
Marco Morei Lia Calabre
O Império em procissão Da Bossa Nova à Tropicália
Lilia Moritz Schwarcz Santuza Cambraia Naves
Uma viagem com Debret Ditadura militar, esquerdas e sociedade
Valéria Lima Daniel Aarão Reis
Negros e politica (1888-1937) A modernização da imprensa
Flávio Gomes (1970-2000)
A fotografia no Império Alzira Alves de Abreu
Pedro Karp Vasquez Política externa brasileira
Rio, cidade-capital Leticia Pinheiro
Marly Motta política externa e meio ambiente
O Brasil dos imigrantes Lílian C.B. Duarte
Lucia Lippi Oliveira
História do voto no Brasil
O Rio de Janeiro que Hollywood
Jairo Nicolau
inventou
Palmares, ontem e hoje
Bianca Freire-Medeiros
Pedro Paulo Funari e Aline Vieira de
A invenção do Exército brasileiro
Carvalho
Celso Castro
Como falam os brasileiros
O pensamento nacionalista autoritário
Yonne Leite e Dinah Callou
Boris Fausto
As formas do espaço brasileiro
Literatura policial brasileira
Pedro Geiger
Sandra Reimão
O livro e a leitura no Brasil
Os intelectuais da educação
Alessandra EI Far
Helena Bomeny