Você está na página 1de 6

JOSÉ MARIO ORTIZ

RAMOS é professor
do Departamento
de Sociologia do IFCH-
Unicamp e autor, entre
outros, de Cinema,
Estado e Lutas Culturais
(Paz e Terra)
e Televisão, Publicidade
e Cultura de Massa
(Vozes).

Sônia Braga, em Tieta, de Cacá Diegues

102 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 2 ) : 1 0 2 - 1 0 7 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7
J O S É M A R I O O R T I Z R A M O S

cinema
brasileiro:
depois do vendaval
R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 2 ) : 1 0 2 - 1 0 7 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7 103
N
o seio da forte indústria cultural trarmos, o certo é que os filmes estão pipo-
brasileira, o cinema ocupa um cando. Vou tentar aqui passar por uma par-
lugar subalterno. Nem de longe te. Cineasta consagrado, como Cacá Die-
se iguala à televisão e à publici- gues, que havia filmado para a TV Esta é a
dade (em sua forma cinemato- Minha Canção, retorna a médio vapor com
gráfica), que dão o tom das imagens no país. Tieta, que inclusive promove a volta de
E mesmo internacionalmente, nos festivais Sonia Braga às telas nacionais. Sergio
do Cinema Publicitário e na crescente ex- Rezende, um cineasta que não ficou com-
portação da ficção seriada. pletamente esquecido, devido ao seu forte
Foi na era Collor que as imagens cine- Lamarca, prepara um filme sobre a revolta
matográficas do país praticamente desapa- de Canudos. E Carlos Reichenbach lançou
receram. A ideologia neoliberal, de deixar em Paris a sua última produção, Alma
tudo por conta do mercado, afundou as Corsária, que obteve boa repercussão no
poucas instituições que defendiam o cine- circuito cinematográfico. São os pesos-
ma no Brasil. Tivemos também os últimos pesados da cinematografia brasileira que
espasmos da Boca do Lixo, em São Paulo, estão retornando às telas. O próprio Hector
que viu a sua extrema diversidade de pro- Babenco, depois de ter passado por um
dução – que ia dos policiais de David Car- transplante de medula, prepara-se para a
doso, aos dramas às vezes complexos de realização Foolish Heart. Se isso não é uma
Jean Garret, como A Mulher que Inventou retomada, o que seria então?
o Amor, até filmes intelectualizados, reple- Mas vamos entrar um pouco mais no
tos de citações literárias e cinematográfi- cinema das mulheres. Jenipapo, por exem-
cas de Carlos Reichenbach – derivar para plo, é um filme estranho, sendo um drama
um cinema pornográfico e malfeito, que sobre a questão da terra num país quase
depois inclusive desapareceu. Tudo volta- indeterminado, que sugere ser o Brasil. A
va à estaca zero, com a exibição dominada única referência local é o fato de os confli-
pelas grandes companhias norte-americanas. tos agrários acontecerem, segundo indica-
Mas um país necessita sempre de ima- ção dos personagens, na terra onde cresce
gens e sons em celulóide. Assim acabaram a fruta de onde é extraído o licor de jenipapo,
por retornar os filmes brasileiros. Alguns, bebida caracteristicamente baiana. Traba-
como Arnaldo Jabor, apreenderam esse lhando com um ator americano, Michael
processo como uma retomada das mulhe- Colemans, no papel central, o filme é quase
res no contexto cultural, uma vez que as todo falado em inglês, um idioma conside-
produções que emplacaram de início fo- rado universal nesta época de globalização.
ram, entre outros, Carlota Joaquina de E, para confundir ainda mais sua origem de
Carla Camuratti, O Guarani de Norma Ben- confecção, Jenipapo tem música original
gell e Jenipapo de Monique Gardenberg, assinada por Phillip Glass. Maior confusão
além dos filmes esperados de Tizuka étnica é impossível. Diretora brasileira, com
Yamazaki, Ana Maria Magalhães e Suzana nome afrancesado, atores internacionais e
Morais. Há também o caso de Terra Es- trilha sonora de Phillip Glass, famoso atra-
trangeira, que contou com a participação vés dos filmes de Geoffrey Reggio, como
de Daniela Thomas na feitura, mas que não Koyaniskatz. A diretora trabalha dessa for-
deixou de ser de Walter Salles Jr. a alegada ma uma questão regional, localizada – a
autoria do filme, num sinal do machismo luta dos sem-terra –, segundo os padrões de
que atravessa todas nossas relações. Mas um certo cinema policial político, difundi-
essa interpretação de Jabor, que possui do por filmes como Nicarágua, Gritos de
muito de impacto, simpatia pelas mulheres Silêncio e Muito Além de Ragun, que já se
e ousadia, não é correta, pois sabemos que encontra globalizado. Fica assim difícil,
a feitura de filmes não passa obrigatoria- apesar do nome regional, localizar em um
mente pela divisão dos sexos. país a feitura do filme de Monique. Trata-
Seja qual for a explicação que encon- se portanto de um cinema desterritoria-

104 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 2 ) : 1 0 2 - 1 0 7 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7
lizado, com potencial para ser recebido e Paulo, eram 47 novos filmes em dezembro
compreendido por diferentes espectadores de 1995, entre prontos até em produção,
do planeta, uma vez que ele se desenvolve que iriam invadir nossas telas em 96.
a partir de uma matriz de domínio comum. As saídas são muitas portanto, e tudo
Carlota Joaquina mostra uma diretora indica que não iremos mais nos prender aos
com domínio técnico e plástico espetacu- ciclos regionais e localizados num espaço,
lar para uma estreante. A precariedade da como a Boca do Lixo. Houve uma explo-
cenografia, que deveria representar a corte são de setores produtivos, e o cinema se-
espanhola, é driblada pela habilidade da guiu-a. Não poderemos mais pensar a pro-
jovem cineasta. Enfim uma lição de cinema dução nacional nos termos em que pensá-
com poucos recursos e que agradou plena- vamos antes, restritos aos limites regionais,
mente o público, o que é fundamental. ou mesmo nacional. Esse fenômeno parece
Muitos poderão dizer que se trata de um ter começado com A Grande Arte, de Walter
requentamento dos épicos literários, como Salles Jr. (1990), que utilizava atores es-
no caso exemplar de Cacá Diegues. Mas trangeiros, como Peter Coyote e Amanda
temos também os novos sinais nos exem- Pais, e foi lançado primeiro nos Estados
plos de Camuratti e Eliana Café. Constata- Unidos, quebrando o que fora, até então,
mos assim uma mistura, que vai desde os uma regra no cinema nacional.
temas clássicos do cinema brasileiro, como A globalização foi tão ampla, que um
o sertanejo no caso de Eliana Café, até uma cineasta como Bruno Barreto casou-se com
segmentação globalizada, que transparece uma atriz norte-americana, Amy Irving Cena de
no filme de Walter Salles Jr. e Daniela (que, diga-se de passagem, é ex-mulher do O Guarani, de
Thomas. Segundo o jornal Folha de S. poderoso Steven Spielberg), afetando por- Norma Bengell

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 2 ) : 1 0 2 - 1 0 7 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7 105
A nova situação demanda uma outra
prática dos agentes: o chamado profis-
sionalismo, ou o fim da outra empreitada
com tinturas aventurescas.
Um exemplo do novo posicionamento
é a feitura do filme O Quatrilho, de Fabio
Barreto, irmão de Bruno, que conseguiu
realizar um filme sobre a troca de casais,
temática ousada por ter como ambientação
um meio rural arcaico, mas empregando
meios modernos da produção cinemato-
gráfica – inclusive atores brilhantes –, o
que lhe valeu a indicação, no Oscar, de
melhor filme estrangeiro, fato louvável
para uma cinematografia claudicante como
a brasileira.
Outros parecem prisioneiros de antigas
idéias cinemanovistas, como Arnaldo Jabor
na sua declaração ao suplemento Mais! da
Marieta Severo, tanto até as relações pessoais. Barreto, que Folha de S. Paulo de 16/4/1995:
em Carlota vinha filmando nos Estados Unidos,
retornou ao país para fazer uma produção “Neste sentido, acho que, se a gente tem
Joaquina, de
em torno de um clássico da literatura de que fazer alguma coisa importante no cine-
Carla Camuratti
esquerda – O que É Isso Companheiro?, de ma brasileiro, temos que fazer uma ima-
Fernando Gabeira – resgatando assim suas gem original de nós mesmos. [...] A gente
origens. Essa alternância entre o universo já saiu dessa fase de ficar se perguntando
nacional e o internacional, através do cine- como se consegue fazer um cinema inter-
ma americano, é uma marca da dupla Hector nacional, multinacional ou transnacional.
Babenco e Bruno Barreto. O que não acon- [...] A gente só se internacionaliza através
tece mais com Walter Salles Jr., Monique da originalidade. É aquela velha história:
Gardenberg e Carla Camuratti, que despon- ‘Seja universal, fale da sua aldeia’”.
tam já imbuídos de uma lógica globalizada,
superando as dicotomias, não oscilando Não se trata de uma idéia velha de Jabor,
desgovernadamente entre o nacional e o que, ao contrário, avança em vários pontos
mundial. por todos nós reconhecidos, mas sim do re-
O que parece não ter mais chance é o torno de um ideário que foi muito forte nos
cinema de cavação, o dinheiro sendo le- anos 60, anos de sua formação como cineas-
vantado na marra, cada filme sendo roda- ta, e que volta naturalmente e talvez sauda-
do numa verdadeira aventura, em desacor- velmente, pois põe certo freio à globalização
do, portanto, com o esforço de racionaliza- desenfreada. Mas como sociólogos não po-
ção que vem com a globalização. Como demos deixar de apontar o seu anacronismo.
coloca Octavio Ianni em A Sociedade Glo- O Cinema Novo foi um período genial, sem
bal (1992): dúvida alguma, mas o país mudou, e seu
tempo infelizmente passou.
“Está em marcha a racionalização do mun- Hoje não podemos deixar de citar o fil-
do, compreendendo as relações, processos me Como Nascem os Anjos, de Murilo Sales
e estruturas com que se aperfeiçoam a do- (fotógrafo e cineasta consagrado com sua
minação e a apropriação, a integração e o estréia em Nunca Fomos tão Felizes). E
antagonismo. Essa é uma racionalização que realiza agora um filme policial perfeito
que aprofunda e generaliza o desencanta- desde a abordagem dos pivetes de morro
mento do mundo” (p. 70). até o seu relacionamento com a família

106 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 2 ) : 1 0 2 - 1 0 7 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7
americana e com o bandido ferido que pas- cio da carreira de Glauber Rocha, com
sa a proteger. É um filme sobre a “bandida- Barravento e Deus e o Diabo na Terra do
gem” carioca, tema já presente no cinema Sol. Só alguns anos depois foi que Glauber
brasileiro, até demais, mas com a novidade se libertou das amarrras nacionalistas, fil-
dos garotos e da família “gringa”, ambos mando Cabeças Cortadas, na Espanha, e
muito bem trabalhados pela habilidade e O Leão de Sete Cabeças, na África. Mas
mesmo preciosismo do cineasta. nessa ocasião ele já havia se transformado
Na década de 1990 o cinema foi se re- num cineasta do mundo, cultuado em Paris
cuperando através de produções e sem depender de financiamentos nacio-
diversificadas e com uma característica nais, o que só iria tornar a acontecer no
nova – globalizadas. Todos os filmes têm final de sua vida, com Idade da Terra e Di
um pé no Brasil e um pé lá fora, seja em Cavalcanti. Mas aí já se encontrava próxi-
termos de capital de produção, de padrão mo do fim, numa trajetória dolorosa de um
de linguagem ou da utilização de atores. artista com características nacionais em
Até Sonia Braga voltou temporariamente plena época globalizada.
como uma grande estrela internacional, no Cumpre saber se esta fase globalizada
papel principal e comandando a produção trará uma estabilidade maior ao cinema
de Tieta, quando declarava ser impossível brasileiro – como a que tivemos na televi-
ganhar no Brasil o que ganha nos Estados são com a telenovela –, ou se se constituirá
Unidos. A tentativa do SBT de incluí-la em em mais um dos ciclos que estamos acos-
uma participação especial numa telenove- tumados a atravessar. Resta-nos descobrir
la – por sinal, nem nacional, nem se essa globalização veio para firmar o ci-
globalizada, mas latino-americanizada – nema brasileiro como indústria cultural. Ou
falhou por motivos financeiros. se se converterá em mais um fator para sua
Diante desse quadro estamos longe da histórica instabilidade, vivendo de filmes
“estética da fome” de Glauber Rocha no financiados por esquemas precários como
início dos anos 60, ou da paródia “estética a Boca do Lixo, ou subsidiados pelo Esta-
Marco Nanini,
da vontade de comer”, de Arnaldo Jabor, do, em diversas épocas, inclusive hoje, com
quando a tônica do cinema brasileiro era a novos mecanismos criados na era pós- como D. João VI,
conquista do mercado nacional, sendo que Collor. Esperemos que a primeira hipótese em Carlota
só num segundo momento se tentava o seja a verdadeira. Joaquina
mercado externo.
Hoje os filmes são produzidos já se
pensando no mercado externo, globalizado,
e daí a preocupação em sempre se ter atores
internacionais na produção. Parte do mes-
mo movimento é o esforço de alguns atores
brasileiros, que abandonam o país, numa
tentativa de desterritorializar sua imagem.
É o caso de Sonia Braga, Denise Dumont,
Bruna Lombardi e Carlos Alberto Riccelli.
As produções cinematográficas brasileiras
nos últimos anos vêm lançando mão de toda
sorte de artifícios para tornar o filme mais
palatável ao público externo.
Até então o grande trunfo era vender a
“realidade brasileira”. Podemos detectar
esse fenômeno, que começou com o ame-
ricanizado O Cangaceiro de Lima Barreto,
continuou com O Pagador de Promessas
de Anselmo Duarte, valendo até para o iní-

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 2 ) : 1 0 2 - 1 0 7 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7 107

Você também pode gostar