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cadernos culturais de Ourique 

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cadernos culturais de Ourique 
 cadernos culturais de Ourique
Cadernos Culturais
d’ Ourique

orik 2006

cadernos culturais de Ourique 


I Cadernos Culturais d’ Ourique
Agosto de 2006
Publicação anual

Edição
ORIK – Associação de Defesa do Património de Ourique
Rua D. Afonso Henriques, 3

Direcção
Henrique Albino Figueira

Colaboraram neste número:


Hélder Mendes, Joaquim Pereira Baraona, Inês Vargas de Carvalho, Carlos Tavares da Silva,
Mário Varela Gomes

Grafismo
Jacking Produções
Francisco Espada, Jaques Candeias

Impressão
Gráfica Comercial

Tiragem
500 Exemplares

Capa
Cavaleiro retirado das Armas Helrádicas do Antigo Grémio da Lavoura de Ourique

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ÍNDICE

APRESENTAÇÃO 9
Henrique Albino Figueira
Memórias d’ Ourique nos idos de 1939/40 11
Hélder Mendes
Moinhos e Moleiros de Santana da Serra 25
Maria Inês Vargas de Carvalho
O SANTUÁRIO PROTO-HISTÓRICO DE GARVÃO 43
Carlos Tavares da Silva Mário Varela Gomes
A visita de el-rei D. Sebastião em Ourique 55
Henrique Albino Figueira
Notas Históricas - A Aldeia da Conceição
e os Barregões 59
retirado do Jornal “O Campo d’Ourique” de 27 de Outubro de 1898

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APRESENTAÇÃO

Os I Cadernos Culturais de Ourique constituem-se como o corolário da ambição


da ORIK – Associação de Defesa do Património de Ourique em divulgar a história e
as estórias de Ourique e do seu Concelho.

Este espaço que idealizámos, aberto a intervenções essencialmente de âmbito cul-


tural, pretende perpetuar, dar a conhecer e valorizar a nossa história comum.
Será esse o nosso compromisso.

Através dos Cadernos Culturais de Ourique, é nossa intenção recolher um con-


junto alargado de contributos que incidam sobre Ourique e o seu Concelho e que, na
forma de artigo, tese de investigação ou ensaio, se possam constituir como referência,
no que se refere à história local.

O Presidente da Direcção
Henrique Albino Figueira

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Memórias
d’ Ourique nos idos
de 1939/40

Hélder Mendes
Natural de Ourique.
Licenciado em Ciências Históricas e Filosóficas pela Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa.
Foi realizador da RTP – Rádio Televisão Portuguesa

N os anos de 1939/40 eu tinha 9 anos de idade e frequentava a escola


primária dirigida pelo saudoso professor Guerreiro, Manuel Joaquim
Guerreiro, de seu nome completo.
A minha memória desses tempos é naturalmente fragmentária e difusa, constituída
sobretudo por acontecimentos que mais me impressionaram. Algumas das coisas que
recordo talvez ajudem a rememorar e evocar facetas do quotidiano numa pequena
povoação do Alentejo profundo como era Ourique, na transição da década de 30 para
40 do século passado.

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I

O Manuel Sousa

N aquele ano de 1939, segundo os meus cálculos, o Inverno foi particularmente


frio. Noites de geada intensa amanheciam com os telhados da vila esbran-
quiçados e brilhantes sob os primeiros raios de sol. Bem assim, branqueavam
os campos e as veredas dos arredores por onde saltitávamos sobre as poças de água gelada
que se quebravam sob os nossos pés.
Uma das figuras de Ourique desse tempo era o Manuel Sousa.
Vencido da vida, mendigo, alcoólico, orgulhoso de uma vida anterior para andar a pedir
esmola, ganhava alguns cobres exercendo a profissão de “pregoeiro”, figura há muito desa-
parecida do dia-a-dia das nossas vilas.
Quando vinha alguém de fora a vender algum produto – melancias, peixe fresco, etc.
– o Manuel Sousa era encarregado de ir apregoar a novidade por todas as ruas e praças,
gritando em voz sonora: “Queeem em em quiser comprar carapaus frescos… a quatro tostões a
dúzia… vá ao Mercado que lá se vende…”.
Funcionava o Manuel Sousa como funciona agora um anúncio de televisão, pois de
outra maneira era difícil às recatadas donas de casa saberem que havia peixe fresco no
Mercado ou melancias no Largo da Carreira.
Quando alguém perdia na vila alguma coisa de valor – um relógio de bolso, uma pul-
seira, ou qualquer objecto de estimação, o Manuel Sousa ia também anunciar a perda, o
nome do perdedor, o local da entrega e as alvíssaras a quem encontrasse.
Nesse tempo ainda havia quem entregasse o que não era seu.
Manuel Sousa embebedava-se frequentemente.
Porém, mesmo bêbado, a sua figura impunha um certo respeito.
Não que ele fosse muito alto. Era um homem mediano, magro de formas, muito
moreno, talvez de origem magrebina, mas com olhar agudo, por vezes duro, quase feroz.

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Tinha um belo bigode branco de pontas reviradas para cima que ele cofiava com
frequência com ar majestoso. Tornava-se simpático para toda a gente naquele meio
pequeno em que todos se conheciam.
Quando estava sóbrio passava pela rua cumprimentando quem encontrava e nós,
os miúdos, tínhamos então oportunidade de nos aproximarmos dele. Tinha sempre
uma palavra amiga: “Olá, tu és filho do Zé Mendes…”. Conhecia-nos a todos.
Mas se tinha bebido uns copos, e não precisava muitos, mal alimentado como an-
dava, balançava nas pernas como se o vento o empurrasse. Chegava à esquina onde
era costume gritar o pregão, olhava à volta como se estivesse à espera de público e
lá vinha: “Quem em em… quiser comprar…”.
E era então que, às vezes, entravam em cena outros personagens coevos: o Zé
Barrote, o Nico Grazina ou o Dimas Canhestro. Faziam um trio atrevido e brincal-
hão que não perdia a oportunidade de provocar o Manuel Sousa.
Escondidos num portal ou numa esquina chamavam por ele mal acabava o
pregão. No silêncio que se seguia ouvia-se uma voz, vinda não se sabia donde que
gritava: “Gula…guloso… gula…”.
O epíteto tinha o dom de tornar furibundo o pregoeiro que se voltava para o lado
do grito, abria e fechava as mãos caídas ao longo do corpo como quem desfazia
qualquer coisa imaginária e vociferava palavras ininteligíveis tais como “Chinabu-
na...” e outras que já não recordo.
Quando o Manuel Sousa se dirigia no sentido em que lhe parecia ter ouvido
voz, outro gritava da retaguarda “Gula…” e assim o faziam voltar até ficar meio
doido. Às vezes pegava numa pedra e atirava-lhes com o cuidado de não acertar e
aquilo transformava-se numa brincadeira com a cumplicidade de todos, mas com a
aparência de ser a sério.
O Dimas era muito generoso. Foi um dos amigos mais generosos que conheci.
Como a sua mãe, a D. Márcia Canhestro, tinha uma pensão, ele encontrava maneira
de trazer alguns restos de comida ao Manuel Sousa.
Havia então um tempo de tréguas, momentos de paz e cordialidade em que o
Manuel Sousa falava com a malta e contava da sua ida a África e às guerras, com o
seu “capitão Mouzinho”. Se estava com os copos quando falava no capitão Mouzinho,
punha-se em sentido e fazia a continência.
Nunca tive oportunidade de averiguar da veracidade destas histórias do Manuel
Sousa, mas fazendo as contas à sua idade avançada na década de 30, era perfeita-
mente possível ele ter combatido em África.
Quem sabe se não estaria ali um herói português na pele de mendigo!
Quer fosse verdade ou invenção da sua mente perturbada pelo álcool, merecia
ter tido melhor sorte.
Um dia em que não havia escola e andávamos a espezinhar o gelo das poças de

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água, eu e um grupo de três ou quatro companheiros da escola, numa manhã fria e
branca de geada, fomos ter com o Manuel Sousa morto. Ele dormia habitualmente
numa espécie palheiro, salvo erro, lá para as Eirinhas. Naquela noite, talvez embria-
gado, talvez enfraquecido pelas fomes e sem roupa capaz, não resistiu ao frio.
O seu corpo estava meio dentro meio fora da porta do palheiro, caído de lado.
O rosto magro, de olhos fechados, aprecia dormir resignado com a má sorte. Os
seus pés, sem peúgas, estavam roxos do frio, da cor das mãos, também geladas. Os
sapatos rotos e meio descalços ainda tinham laivos de geada brilhante.
Só o bigode branco, de pontas viradas para cima, emprestava alguma dignidade
àquela cena indigna que ficou registada até hoje, em pormenor, na minha memória
de criança.
Quando regressámos a casa todos chorávamos o Manuel Sousa.

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II

O Zé Pequeno, o Cagoite
e Uma Mulher de Armas


Q uando ao fim da tarde saíamos da escola primária, que se situava na
Praça da República, junto à Câmara Municipal e Tribunal, num prédio
do Sr. Jacinto Nobre, a maior parte dos alunos descia em direcção à
Praça D. Dinis e dali se espalhava pela Torre do relógio, pelo arco ou
pela Rua Gago Coutinho, vulgo Rua da Calçada onde se situava a cadeia da vila.
Naquele tempo, uma enorme curiosidade levava-nos até à janela do rés-do-chão
da cadeia, de grades de ferro duplas, a espreitar um preso célebre que ali se encon-
trava encarcerado, o Zé Pequeno.
Merecia a nossa admiração porque, dizia-se, conseguia fugir sempre das cadeias
onde o metiam.
Tinha uma fraca figura, baixote e franzino, mas sempre sorridente e bem dis-
posto. Na nossa imaginação e comentários ele passava por frestas incrivelmente
estreitas, em números de contorcionismo e agilidade, saltava de telhados e janelas
iludindo os carcereiros em fugas célebres.
Uns pensavam que ele era apenas um ladrãozeco incapaz de fazer mal a uma
mosca. Roubava porque não tinha outro modo de vida, precisava comer, vestir-se,
numa palavra, sobreviver.
No final da década de 30 os tempos eram duros. Faltava o trabalho, a fome
grassava pelo País, principalmente no Alentejo. Havia um clima de medo e de preo-
cupação permanente. Acabara a Guerra Civil de Espanha e estava a rebentar a II
Guerra Mundial.
Outros, porém, asseguravam que o Zé Pequeno até era capaz de matar, sobretudo

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quando andava em companhia de um tal Cagóite, também célebre ladrão daqueles
tempos, já com duas mortes às costas lá para os lados de S. Bartolomeu de Mess-
ines.
Devido à facilidade de acesso ao Zé Pequeno, com a janela do seu aposento
aberta directamente para a rua, ao nível do rés-do-chão baixo, embora fortemente
gradeada, fácil foi ao Cagóite passar-lhe uma lima de ferro pela calada da noite. E,
dando razão à lenda de muitas fugas, Zé Pequeno escapuliu por um buraco incriv-
elmente reduzido onde conseguiu esgueirar o seu corpo franzino e foi juntar-se ao
Cagóite nos matagais da serra.
Muita gente ia em perseguição admirar os pequenos rectângulos recortados nos
dois gradeamentos junto ao ângulo esquerdo, em baixo, por onde se tinha safado
o salafrário.
A desconfiança de que ali andava mão do Cagóite em breve se confirmou, com
alguns roubos do género de artigos de sobrevivência, como comida, agasalhos ou
animais para transporte nos montes dos arredores.
Estes sinais lançavam a preocupação em toda a gente, não só dos que viviam
isolados nos montes mais ou menos afastados, como até na própria vila.
Espingardas caçadeiras e cartuchos com zagalotes passaram a estar de prevenção
noite e dia. A situação piorou quando, apesar disso, a célebre parelha evoluiu para
o assalto à mão armada, arrecadando ouro e prata que encontrava, dinheiro e tudo
o que tinha valor corrente.
O medo começava a dar lugar ao terror, pois a G.N.R. não conseguia saber onde
se escondiam os meliantes.
Um dia fui à farmácia aviar uma receita e deparei com uma cena inesquecível. O
farmacêutico Sr. Ricardo Oliveira, figura de respeito e ex-administrador do Concel-
ho, estava de martelo em punho, auxiliado por dois amigos, a partir frascos de vidro
no meio de grande algazarra de todos a falarem muito alto. Consegui apurar que os
vidros partidos se destinavam a guarnecer os muros do quintal do Sr. Ricardo para
tornar mais difícil a sua escalada.
A situação atingiu o seu ponto crítico quando uma patrulha da G.N.R., nas som-
bras da noite mal iluminada, detectou os meliantes no largo da Carreira altas horas
da madrugada. Os dois guardas (Sr. Rego e Sr. Garcia) deram voz de prisão aos
vultos fugidios. Mas a resposta não se fez esperar, com alguns tiros contra a au-
toridade. Dá-se então a reacção da Guarda também com disparos de carabinas e
a consequente fuga dos bandidos, depois de mais fogo cruzado e sobressalto dos
vizinhos.
No dia seguinte contavam-se os buracos das balas e do chumbo nas paredes cir-
cundantes, aventando-se que a quadrilha já não era só o Zé Pequeno e o Cagóite,
mas outros se lhe teriam juntado.

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A vila inteira tremia de medo quando, mais ou menos por esta altura dos acon-
tecimentos, se dá o episódio que me trás à memória tudo isto.
Vivia nesse tempo na casa que existia na esquina da Rua Prof. Egas Moniz com a
Praça da Vila de Garvão (ao lado do agora BPI, que era então uma adega famosa),
uma senhora de grande coragem que não tinha medo do Cagóite, ao contrário da
maioria.
Era a Senhora Maria José Vitorino, pessoa muito conhecida e estimada na vila.
Mais baixa do que alta, forte mas ágil, a sua figura denotava à primeira vista uma
calma firmeza e decisão.
Andava então o Cagóite e sua gente a rondar aquele local e já tinham sido pressen-
tidos no quintal, na parte detrás da casa. Vultos suspeitos foram avistados a rondar
na rua da frente altas horas da madrugada por almocreves assustados.
E foi então que a Senhora Maria José Vitorino tomou uma decisão drástica.
Uma bela noite carregou uma espingarda caçadeira com dois cartuchos de chumbo
de caça, abriu de mansinho uma fresta da sua janela do rés-do-chão por onde in-
troduziu os canos da espingarda apoiados no peitoril e aguardou serenamente o
desenrolar dos acontecimentos.
Depois de uma espera longa e paciente, já madrugada alta, eis que surge um vulto
a deslizar sem ruído frente ao muro branco do outro lado da rua.
Quando lhe pareceu que a aparição se entrava frente à caçadeira, a senhora, at-
enta, de arma em punho, puxou o gatilho e com um relâmpago saído do cano
estampou o chumbo em pasta na parede a 5 ou 6 metros de distância, certamente
muito perto da cabeça do meliante (ou de quem quer que era), que não deve ter
ganho para o susto.
Desta essa noite, o Zé Pequeno, o Cagóite, ou fosse lá quem fossem, nunca mais
foram pressentidos naquela zona.
E a senhora Maria José Vitorino passou a ser heroína da vila que fez frente ao
Cagóite.
“E se ele estivesse por baixo da janela e agarrasse nos canos da espingarda?”, perguntavam
de boca aberta.
“Então ficava sem cabeça”, respondia com grande calma enunciando uma verdade
óbvia.
Também eu fiz parte da romaria que se formou para ir ver a mancha do chumbo
cravado na parede frente à janela. Algumas pessoas encostavam-se para avaliarem
que a caliça furada se encontrava mesmo junto às suas cabeças e comentavam: “Que
sorte teve o Cagóite! Aquilo é que é uma mulher de armas!”.

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III

Pópófio-ó-Fíodó

O Carnaval vinha sempre com uma semana de férias o que era muito apre-
ciado pela rapaziada da escola primária.
Não havia dinheiro para máscaras, por isso ninguém, ou quase nin-
guém, se “mascarava”, mas para brincar o Carnaval “entrouxavam-se”.
Para um homem se entrouxar bastava um lenço na cabeça de modo a tapar-lhe
a maior parte da cara e assim ficar irreconhecível, vestir umas saias compridas e
enrolar-se num xaile preto muito usual nessa época.
As mulheres mais novas faziam-se passar por mais velhas, colocavam almofadas
tornando-se mais volumosas e as mais velhas disfarçavam-se com pinturas ber-
rantes, alterando as linhas do rosto. Prolongavam as sobrancelhas e os olhos com
carvão de uma rolha queimada e alargavam a boca com batom. Nesse tempo nem
todas tinham o atrevimento de vestir calças como os homens. Quando muito ves-
tiam um capote alentejano que as tapava até aos pés, um chapéu caído para os olhos
e lá se faziam grupos que, principalmente à noite, percorriam as encontrando-se
uns com os outros, entrando em casas de pessoas conhecidas. Aí se desfazia o mis-
tério de quem era e quem não era que vinha entrouxado, comiam-se umas filhós e
bebiam-se uns cálices de vinho doce comprado a granel na adega do Sr. José Pratas,
no Largo da Carreira. Nesse tempo nunca ninguém tinha sequer ouvido falar em
whiskey.
Na malta nova a rolha de cortiça queimada fazia milagres. Grandes bigodes pre-
tos e suíças compridas até ao fim do queixo, as sobrancelhas reforçadas e ligadas ao
meio e quase ficávamos por aí. Um ou outro lá se entrouxava.
Mas cabia-nos a nós divertimo-nos a fazer “partidas”. Uma linha preta presa à
aldraba de uma porta e puxada de longe como se alguém batesse fazia com que a

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dona de casa acorresse a ver quem chamava. Abria a porta, olhava para fora e não
via ninguém, enquanto os brincalhões gozavam a cena. As batidas à porta repetiam-
se até a linha ser descoberta e se ouvirem algumas invectivas pouco amáveis que
aumentavam o gozo da garotada.
Outros pregavam uma moeda no chão com um prego mais ou menos disfarçado
e ficavam a observar de soslaio. Lá aparecia a vítima que tentava apanhar a moeda
sem sucesso no meio do gáudio geral. Outra brincadeira ainda mais ingénua e sem
maldade consistia em chamar um passante com o habitual “psst psst”. A pessoa
olhava e ninguém se dava por achado. A brincadeira repetia-se até o outro perceber
que estava a ser gozado.
Às vezes, havia uma récita no Teatro Sousa Teles ou até um baile e cada um diver-
tia-se conforme podia e a vida lhe permitia e lhe dava disposição para isso.
Porém, a recordação mais sugestiva que tenho do Carnaval em Ourique é da
Quarta-Feira de Cinzas. Realizava-se então o “Enterro do Entrudo”, festa es-
pontânea, sem combinação nem planeamento.
O Entrudo era simbolizado por uma criança vestida com uma toga branca, geral-
mente representada por um lençol que a enrolava até ao pescoço. Tinha uma grinal-
da de flores amarelas de acácia à volta da cabeça, o que lhe dava um ar de pequena
divindade. Era colocada num esquife (caixote de sardinhas) pleno de flores amare-
las e ramagens verdes igualmente de acácia, onde ficava reclinada. Como adereços
tinha um garrafão de vinho de cinco litros (só a palhinha) numa mão e um rabo de
bacalhau na outra.
O esquife com o Entrudo era transportado aos ombros de quatro homens de
cara mascarrada com a inevitável rolha queimada, eventualmente com o chapéu
enfeitado com as ditas flores amarelas.
Atrás, formava-se um cortejo desordenado constituído só por homens que
traziam o símbolo das flores, quer no chapéu quer nas mãos. Muitos moços se
misturavam ou seguiam atrás.
Esta procissão percorria as ruas da vila, gritando em coro uma cantilena a com-
passo das sílabas que rezava: “Popó-fió-ó-fiódó, Popó-fió-ó-fiódó…”, repetida in-
cansavelmente sem qualquer variante.
Ao cantarem, os homens, a compasso, davam um pequeno salto em cada perna.
O Entrudo, deitado na caixa de sardinhas, via-se aflito para se aguentar lá em cima,
pois os que o levavam aos ombros também marchavam aos solavancos.
O último Entrudo que lembro de ver coberto de flores e com um rabo de bacal-
hau na mão foi o “Frieza”. Era um menino louro, de pele branca, como convinha
a uma divindade.
O grupo detinha-se em locais estratégicos onde estivesse público suficiente.
Então, assistia-se à cena do pranto. Naquele tempo, quem fazia o pranto era o

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Belchior Cavaca, homem com muito espírito, sentido de humor e grandes dotes
histriónicos.
Gritos lancinantes e choro em altos berros lamentavam a morte do Entrudo.
Mas a ocasião era também aproveitada para chistes venenosos, deixados no ar com
grande mestria.
Se em tal rua uma rapariga solteira era suspeita de estar grávida, o Belchior lam-
entava que um chá lhe tivesse feito mal “`a barriga”. Se noutro lugar se suspeitava
que um fulano entrava de noite à sucapa para uma certa casa, lá dizia o Belchior que
ali aparecia “um medo” e não convinha passar lá por volta da meia-noite.
Isto tudo no meio do pranto, de gritos e lamentos e com grande sucesso e gargal-
hadas por parte da assistência. E lá seguiam.
Este cortejo pagão vinha, talvez (quem sabe?), da antiguidade grega e romana.
Espelhava com grande fidelidade as festas a Dionísio ou a Baco. A divindade com a
grinalda de flores (ou com a cabeça enfeitada com cachos de uvas, como o Sileno)
pode ser vista nas pinturas coevas de Pompeia ou nos mosaicos decorativos dos
pátios ou salas de comer das casas romanas.
Dionísio ou Baco, grego ou romano, era celebrado no seu tempo com comida e
bebida em excesso. Daí os já então decadentes e miseráveis, mas ainda assim sim-
bólicos, rabo de bacalhau e garrafão de palhinha. Simbolismos que compunham o
quadro verdadeiro, esquecido no fundo dos tempos, aliás festejado em Fevereiro,
tempo de abrir as pipas do vinho novo.
Este culto que veio do longínquo Mediterrâneo oriental, certamente com as
legiões romanas, mas talvez ainda antes com os comerciantes, com os exploradores
do cobre do estanho e do ouro ou também com aqueles que vinham embalar o
azeite e o peixe salgado nas ânforas que iam para Roma.
Um culto que conviveu durante séculos com os outros deuses pagãos, resistiu à
divindade de Mitra e ao touro sagrado, ao cristianismo e ao islamismo, para vir a
morrer ingloriamente em Ourique, em meados do século XX.
Ficou na minha memória, apesar de tudo, a força que emanava daquele grupo
ululante, saltitante, anacronicamente enfeitado de flores amarelas, cantando uma
música praticamente sem melodia, como se fosse um coro de bacantes no teatro,
numa língua desconhecida, certamente enunciada em tempos imemoriais: “Pópó-
fió-ó-fió-dó”.
Qual seria o significado desta frase na liturgia original? Jamais o saberemos.
Mas é pena, quando toda a gente procura nas suas terras alguma coisa que as
distinga das outras, que o enterro do Entrudo tenha morrido assim em Ourique.
E logo no tempo em que se abriam as pipas do vinho novo, nas adegas do Mira,
do Caetano Augusto, do Sr. Domingos ou do Chichini, com todas as condições
próprias para celebrar aquela festa.

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Moinhos e Moleiros
de Santana da Serra

Maria Inês Vargas de Carvalho


Natural de Santana da Serra
Licenciada em Antropologia pela Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Apresentação

A trituração de cereais, por meio das energias naturais da água e do vento,


corresponde a uma fase relativamente tardia da história das técnicas de
moagem.
Pretendemos neste artigo demonstrar a importância desta actividade na freguesia
de Santana da Serra durante a primeira metade do século XX.
Nesta época trabalhavam na freguesia cerca de doze moinhos de água e igual núme-
ro de moinhos de vento. Os primeiros estendiam-se na sua maior parte junto das
ribeiras do Torto e do Guilherme, afluentes do rio Mira, enquanto que os outros se
disseminavam por algumas das elevações mais altas da região.

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2
I

Moinhos de água

O
3
s moinhos de água surgiram na História
antes dos moinhos de vento. A refer-
ência mais antiga que se conhece é um
poema de um autor grego de 85 AC. São portanto,
conhecidos desde a Antiguidade Clássica apesar de
na Antiga Roma não serem muito utilizados devi-
do à existência de mão-de-obra escrava.
É durante a Idade Média que conhecem o seu
período de maior expansão.
Em Portugal, o documento mais antigo que se
refere a um moinho de água data do século X, mas
achados arqueológicos testemunham que já eram
conhecidos em tempos mais recuados e teriam
sido introduzidos pelos romanos.
Há vários tipos de moinhos de água os quais se
dividem em duas grandes categorias:

a) Moinhos de roda vertical;


b) Moinhos de roda horizontal.

O que mais perdurou em Portugal e existiu em


maior número, foi o moinho de roda horizontal de
1. Moinho de roda vertical;
rodízio fixo à pela, principalmente “… nas zonas 2. Interior do moinho do Estieiro;
onde o poder senhorial foi menos acentuado e onde 3. Moinho de roda horizontal;

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a moagem manteve um carácter essencialmente
rural e familiar, os moinhos de rodízio muito mais
simples, mas também muito mais baratos sobre-
viveram. (…) ainda há relativamente pouco tempo
funcionavam alguns e onde, inclusivamente, foram
sempre mais numerosos”. [Jerónimo, 2003].
Os moinhos que trabalhavam em Santana da
Serra incluem-se nesta tipologia.
Os moinhos de roda horizontal de rodízio fixo
à pela caracterizam-se por serem edifícios baixos,
situados em terrenos com ligeiro declive, junto dos
cursos de água.
“Edificados sempre em terrenos declivosos, que
formem socalco correspondendo aos dois níveis
da água, à entrada e à saída do seu aparelho motor,
estes moinhos localizam-se junto seja de pequenos
regatos, levadas ou torrente de serra (…), e são
sempre – e necessariamente – de dois pisos, cada
um ao raso do solo em fachadas diferentes, rasgan-
do-se a sua porta (…) no de cima, onde se encon-
tra a moenda, e onde o moleiro trabalha; enquanto
no de baixo, sob este, se situa o cabouco onde fun-
ciona o rodízio, correspondendo cada cabouco a
um (...) rodízio”. [Oliveira, 1983; 116-117]
A ligação entre o rodízio, no piso inferior, e as
mós no piso superior, é feita através de um eixo
de ferro e madeira, a pela, que está no centro do
rodízio e é perpendicular a este. Na parte superior
da pela encaixa-se o lobete e neste último encaixa-se
o veio que se entala no olho da mó de baixo.
Ao par de mós sobrepostas, que se encontra
no piso superior dá-se o nome de moenda. A mó
de cima ou andadeira é a que se move, sendo a de
baixo fixa (as mós vinham geralmente de S. Luís,
no concelho de Odemira).
Sobre a moenda fica a tolda, uma espécie de caixa
de madeira em forma de pirâmide invertida, com
o vértice aberto, onde fica a quelha.
É para a tolda que se despeja o grão que, saindo 4. Moinho de água do Guilherme. Foto do autor;

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pelo vértice, passa pela quelha caindo em seguida
dentro do olho da mó, graças à vibração do ca-
chorro – sistema de pesos preso à quelha. O grão
transforma-se em farinha devido ao movimento
rotativo da mó de cima e cai por entre as duas mós
no tremonhado, que é um espaço vedado no soalho
por peças de madeira ou de pedra.
Devido às características climáticas da região ac-
ontecia com frequência os cursos de água secarem
no Verão. Para continuar a produzir farinha no
resto do ano, houve a necessidade de construírem
moinhos de vento. Portanto, um mesmo moleiro
podia ter à sua responsabilidade dois engenhos 6
de moagem, um movido a água e outro movido a
vento. Assim, tinha trabalho durante todo o ano.

5. Cabouco com rodízio (Oliveira, 1983);


6. Esquema do moinho de rodízio: 1- Cubo, 2- Sétia, 3- Rodízio, 4-
Pela, 5- Lobete, 6- Veio, 7- Rela, 8- Aguilhão, 9- Urreiro, 10- Pejadouro,
11- Bucha, 12- Segurelha, 13 - Tolda, 14 - Quelha, 15 - Cachorro, 16-
Aliviadouro;

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II

Moinhos de Vento

E stes moinhos caracterizam-se por ser


“de planta circular e formato cilíndrico
ou ligeiramente tronco-cónico, em alve-
naria, rebocados e caiados de branco, (…) geral-
mente com um piso acima do térreo, onde se sit-
ua a engrenagem motora e, sob ela, as mós. A sua
“capucha” é cónica e roda por acção de (…) um
sarilho que se acciona do interior do moinho”…
[idem, 234]
Os moinhos de vento só tinham uma moenda
que se encontrava no piso superior, que era onde
estava também o aparelho motor.
O processo de triturar o grão é semelhante aos
moinhos de água. A diferença está no tipo de en-
ergia utilizada. Neste caso é o vento que, batendo
nas velas que se encontram presas ao mastro no
exterior do moinho, faz rodar o mastro e, con-
sequentemente a entrosga – grande roda de ma-
deira, dentada, por dentro da qual passa o mastro.
Os dentes da entrosga fazem rodar o carreto no
meio do qual passa o veio que transmite a energia
do vento para as mós. Sobre as mós está a tolda
para onde se despeja o grão, que resvalando pela
quelha cai dentro do olho da mó e é transfor-
mado em farinha. 7. Moinho da Pomba. Foto de João Mestre;

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8

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Em Santana da Serra os moinhos de vento que
funcionaram em épocas mais recentes, eram to-
dos movidos a sarilho. Em tempos mais recuados
houve moinhos cujos tejadilhos eram movidos
por meio de cabrestos, que mais tarde foram trans-
formados ou então deixaram de laborar, tendo
alguns deles sido reconstruídos para habitação e
outros ruído, com o passar do tempo.
Os cabrestos são cabos de corda que estavam
presos ao focinho do mastro, e que se prendiam
nos marcos de pedra que rodeavam o moinho.

8. Moinho de cabresto (Oliveira, 1983);


9. Corte de um moinho de vento. Desenho de Fernando Galhano;
1- Catavento, 2- Roda de Entrosca, 3- Capucha, 4- Mastro,
5- Carreto, 6- Tolda, 7- Veio, 8- Quelha, 9 - Mó;

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36 cadernos culturais de Ourique


III

O Moleiro

D os que ainda vivem, apenas dois seg-


uiram uma tradição familiar. Aprender-
am com um profissional, começando
pela ajuda nas diversas tarefas que o trabalho do
moinho exige: limpar o trigo, picar as mós con-
hecer a forma de fazer a melhor farinha; regular
a energia da água, conhecer a forma de colocar
o tejadilho de modo a aproveitar o melhor pos-
sível a energia do vento e a enrolar e desenrolar
as velas. Segundo um dos moleiros, que apren-
deu com o pai, o moinho de vento exige uma
aprendizagem maior. Outro afirmou que nem to-
dos podem ou conseguem ser moleiros: é preciso
gostar do que se faz e “conhecer bem o moinho”. É
toda uma série de conhecimentos empíricos, fei-
tos da observação e da experiência própria e de
outros.
Geralmente os moleiros da freguesia moravam
perto dos moinhos ou então no próprio moinho.
Acontecia muitas vezes passarem as noites a tra-
balhar para aproveitar o vento, se este estivesse
de feição.
Quanto ao trigo, este era levado pelos seus
donos para o moinho, dentro de sacas de estopa 10. O senhor Manuel Silvério, moleiro do moinho da Pomba, ajusta o
e em cima de muares ou em carros de bestas. tejadilho ao vento com o sarilho. Fotografia de João Mestre;

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11

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Quando a farinha já estava feita era transportada
da mesma forma.
Durante uns tempos existiu em Santana da
Serra uma moagem e, mesmo nessa época havia
trabalho para os moinhos e para a fábrica. A
diferença consistia em que a farinha que vinha
do moinho saia do trigo que a pessoa levava,
enquanto que na fábrica, a farinha que se trazia
mediante a entrega do trigo, podia ser de outra
origem.
O declínio da agricultura, a migração para Lis-
boa e arredores assim como para o Algarve, fez
diminuir a mão-de-obra deixando de haver a ne-
cessidade de fabricar farinha, não só porque havia
menos habitantes na freguesia, como os mais
novos preferiram empregos mais rentáveis. O
ofício de moleiro foi assim desaparecendo. A par
disso, a construção da barragem de Santa Clara
submergiu a maior parte dos moinhos de água.
Actualmente, o pão continua a ser muito im-
portante na região e chega aos montes mais
afastados graças às carrinhas que o transportam 12
desde as padarias.
Quanto aos moinhos, restam as ruínas e as re-
cordações.

11. Prendendo o cabresto a um dos marcos (idem);


12. Esquema duma moenda. Desenho de Fernando Galhano:
1- Tolda, 2- Quelha, 3- Pejadouro, 4- Cambeiros, 5- Aliviadouro,
6- Chamadoiro ou Cachorro, 7- Tremunhado;

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40 cadernos culturais de Ourique
Bibliografia

CARVALHO, Maria Inês, Evolução e Complementaridade da moagem tradicional numa


freguesia alentejana (trabalho de investigação no âmbito do Seminário de Investigação
do 4º ano da licenciatura em Antropologia), FCSH da Universidade Nova de Lis-
boa, 1991.
FERREIRA, Armando Carvalho, FERREIRA, Delfim Bismarck, Moinhos do concelho
de Albergaria-a-Velha, Albergaria-a-Velha, Edição de Autor, 2003.
MATIAS, José; Moinhos de Vento do concelho de Santiago do Cacém, Lisboa, Edições
Colibri/Centro de Estudos Documentais do Alentejo, 2002.
NABAIS, António; Moinhos de maré do Seixal; Câmara Municipal do Seixal, 1986.
OLIVEIRA, Ernesto Veiga de, et al, Tecnologia Tradicional Portuguesa: Sistemas de Mo-
agem, Lisboa, INIC, 1983.

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42 cadernos culturais de Ourique
1
O SANTUÁRIO
PROTO-HISTÓRICO DE
GARVÃO

Carlos Tavares da Silva


Coordenador do Centro de Estudos Arqueológicos,
MAEDS. Membro da Academia Portuguesa da História.
Mário Varela Gomes
Professor da Universidade Nova de Lisboa.
Membro da Academia Portuguesa da História.

A colina conhecida por Cerro do Castelo, sobranceira à povoação de


Garvão, no concelho de Ourique, guarda vestígios arqueológicos que
remontam há cerca de 3000 anos, isto é, ao final da Idade do Bronze.
Durante a época seguinte – a Idade do Ferro –, no cimo, aplanado, daquela el-
evação amesetada, existiu certamente um santuário indirectamente documentado
pela escavação e estudo de um depósito votivo secundário. Este foi identificado
em 1982, na sequência de trabalhos de saneamento básico efectuados por retro-
escavadora na Rua do Castelo, a meia encosta daquela colina.

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2

44 cadernos culturais de Ourique


O depósito votivo

A inda naquele ano, realizámos escav-


ação arqueológica de emergência4 que
pôs a descoberto uma fossa artificial
de planta ovalada, com cerca de 10 metros de
comprimento, 5 metros de largura e pouco mais
de 1 metro de profundidade máxima, e cujo 4
fundo havia recebido revestimento de blocos
lajiformes de xisto. No seu interior, e após a
prática de provável ritual de fundação, tinham
sido depositados, na segunda metade do século
III a.C., numerosos artefactos, oferendas e ex-
votos provenientes de presumível santuário.
Estes materiais, por serem pertença da divin-
dade a que tinham sido ofertados, requeriam ser
guardados em local previamente sacralizado. De
modo ordenado, foram primeiro depositados,
sobre o fundo da fossa, os grandes contentores
cerâmicos, por sua vez repletos de peças mais
pequenas; os espaços livres entre os grandes va-
sos foram também preenchidos por recipientes
de menores dimensões, como taças e pratos. A
cobrir este conjunto, formou-se camada de va-
sos pequenos e médios, por vezes empilhados.
Alguns deles continham ex-votos em ouro,
prata, vidro ou cerâmica. Por fim, o depósito
foi selado por espesso nível de terra e pedras,
procurando-se, deste modo, evitar qualquer
1 - Cerâmica de produção manual do depósito votivo de Garvão;
profanação. 2 - “Queimadores” de essências, em cerâmica, do depósito votivo
de Garvão. Foto de Rosa Nunes;
3 - Recipientes cerâmicos produzidos manualmente do depósito
votivo de Garvão. Foto de Rosa Nunes;
4 - Cerâmica de engobe vermelho e pintada, produzida ao torno, do
depósito votivo de Garvão.

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5

46 cadernos culturais de Ourique


Oferendas e ex-votos

A
grande maioria dos recipientes cerâmi-
6
cos do depósito votivo de Garvão
foi produzida ao torno, com pastas
depuradas e bem cozidas em meio oxidante. A
sua decoração, pintada ou plástica, revelando por
vezes acentuado barroquismo, acusa influências,
ou mesmo proveniência, mediterrâneas, sul-pe-
ninsulares e levantinas, com cronologia dos sécu-
los IV/III a.C.
Em menor percentagem, ocorrem recipientes
produzidos manualmente ou ao torno lento, de
aspecto grosseiro, com pastas mal depuradas;
cozidos em atmosfera redutora, apresentam cor
acinzentada ou negra. São decorados por motivos
incisos, impressos (formando espigas, zigzags, ou
ondulações), ou/e plásticos, como mamilos e
cordões horizontais, verticais, curvilíneos. Esta
cerâmica manual, que inclui numerosos “quei-
madores” de essências perfumadas, é estilisti-
camente conotável com “culturas” continentais
celtizantes que penetraram no Sul de Portugal a
partir do século V a.C.
Além das muitas centenas de recipientes
cerâmicos – que teriam chegado ao santuário ou
contendo oferendas destinadas à divindade aí
venerada, ou com o fim de serem utilizados em
banquetes rituais ou em libações – o depósito vo-
tivo integrava ex-votos, de que destacamos placas
5 - Recipientes em cerâmica, produzidos ao torno, do depósito votivo
oculadas de ouro e prata e peças de pasta vítrea de Garvão. Foto de Rosa Nunes;
ou cerâmica representando maxilares humanos. 6 - Placa em prata com a provável representação da deusa Tanit. Foto
de M. Ribeiro;

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48 cadernos culturais de Ourique
7
A deusa de Garvão

D uas placas de prata mostram repre-


sentação antropomórfica feminina
cujos atributos permitem identificá-
la com a deusa Tanit. Uma estatueta feminina em
terracota, despida e em posição hierática, com o
braço direito semi-erguido e o esquerdo, parcial-
mente fracturado, possivelmente sobre o ventre,
deve também representar a mesma divindade.
Os poderes profilácticos da divindade a que era
dedicado o culto no santuário de Garvão durante
o século III a.C. são evidenciados pelas já referidas
placas oculadas, bem como pelas representações
miniaturizadas de maxilares humanos.
Tenhamos presente que na capela de Santa Luz-
ia, nas proximidades de Garvão, placas igualmente
oculadas, muito semelhantes às do depósito votivo,
em ouro, prata ou latão, são ainda actualmente of- 8
erecidas como ex-votos, em agradecimento a Santa
Luzia pela cura de doenças de olhos.

7 - Estatueta em terracota, reproduzindo, provavelmente, uma divin-


dade. Fotos de Rosa Nunes;
8 - Depósito votivo de Garvão, vendo-se um grande recipiente con-
tendo outros de menores dimensões. Foto de C. Tavares da Silva;

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Um ritual de morte

A nteriormente, ao aludirmos à forma


como se organizou o depósito vo-
tivo de Garvão, dissemos que, após
a abertura da fossa que o iria conter, e antes da
sua constituição, se havia procedido a provável
ritual de sacralização desse espaço. Com efeito,
no nível mais profundo do enchimento da fossa,
a escavação arqueológica revelou um crânio hu-
mano, na zona central da base do depósito e no
interior de pequena caixa construída por elemen-
tos pétreos. Este crânio testemunha o sacrifício
de uma mulher de 35-40 anos de idade e de “tipo
mediterrânico grácil”, cuja morte foi provocada
por três cortes abertos no occipital por objecto
contundente. A maior destas lesões, oblíqua e
curva, pode ter sido produzida por machado, em
pedra polida, de gume arqueado, encontrado no 10
mesmo depósito, ainda que pertencente a época
muito anterior, ao Neolítico ou ao Calcolítico.
A posição das lesões, cada uma delas mortal,
sugere que a vítima estaria deitada e imobilizada,
em decúbito ventral.
O corpo teria sido inumado em um outro
local e só o crânio conservado e ritualizado na
fundação do depósito votivo.
Este sacrifício reflecte um ritual religioso ex-
tremo, dedicado à deusa da vida, mas também da
morte, encarada esta como a suprema via para a
renovação.
9 - Placa oculada, em ouro. Foto de M. Ribeiro;
10 - Ex-voto em pasta vítrea, representando um maxilar humano.
Foto de M. Ribeiro.

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52 cadernos culturais de Ourique
NOTAS

Esta breve síntese sobre o depósito votivo de Garvão baseou-se na seguinte bibli-
ografia:

ANTUNES, M.T. e CUNHA, A. Santinho (1986) – “O crânio de Garvão (século III a.C.):
causa mortis e tentativa de interpretação”. Trabalhos de Arqueologia do Sul, 1, p. 79-85.
BEIRÃO, C. de M.; SILVA, C. Tavares da; SOARES, J.; GOMES, M. Varela e GOMES
R. Varela (1985) – “Depósito votivo da II Idade do Ferro de Garvão. Notícia da primeira cam-
panha de escavações”. O Arqueólogo Português, S. IV, 3, p.45-136.
BEIRÃO, C. de M.; SILVA, C. Tavares da; SOARES, J.; GOMES, M. Varela e
GOMES R. Varela (1987) – “Um depósito votivo da II Idade do Ferro, no Sul de Portugal, e
as suas relações com as culturas da Meseta”. Veleia, 2-3, p. 207-221.
FERNANDES, T. Matos (1986) – “O crânio de Garvão (século III a.C.). Análise antropológ-
ica”. Trabalhos de Arqueologia do Sul, 1, p. 75-78.
GOMES, M. Varela e SILVA, C. Tavares da (1994) – “Garvão. Un sanctuaire protohis-
torique du sud du Portugal ”. Les Dossiers d’Archeologie, Nº198, p. 34-39.

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54 cadernos culturais de Ourique
A visita de el-rei
D. Sebastião
em Ourique

Henrique Albino Figueira


Natural de Ourique
Licenciado em História pela Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra

E m 1573 D. Sebastião deslocou-se pelo Alentejo e Algarve em viagem de


inspecção das companhias de Ordenanças, ou seja, dos corpos de tropas
locais organizados durante o seu reinado, criados para autodefesa das pov-
oações. Nesse ano de 1573, Ourique tinha cinco bandeiras com 1000 homens, “a mel-
hor Ordenança que em todos estes lugares achámos”, como mais à frente se verá.
Para Ourique, D. Sebastião seria o primeiro visitante régio a estas paragens. E El-
Rei é recebido pelos homens bons da terra, que pela importância da visita real lhe
beijam os pés, demonstrando o extremo respeito que lhe devotavam.
Seguidamente, D. Sebastião assiste a danças tradicionais, indo depois assistir à mis-
sa na Igreja da Vila – a antiga Igreja Matriz, destruída no século XVI por um trágico
terramoto.

cadernos culturais de Ourique 55


Aqui janta e confraterniza durante cerca de duas horas com a restante entourage,
entretendo-se e comendo todos tanto, que El-Rei teve que esperar que o Duque e os
fidalgos que comem à sua mesa acabassem o repasto.
Dias mais tarde, a 19 de Janeiro e estando El-Rei em Aljezur, manda soltar mais de
20 detidos da prisão da Vila.
Em Panóias, localidade limítrofe, ofereceu-se El-Rei à cabeça de S. Romão, e nos
campos entre Ourique e Messejana praticou a caça à lebre.
Do itinerário dessa viagem, existe um relato feito pelo cronista João Cascão na
Relação da Jornada d’El-Rei D. Sebastião quando partiu da cidade d’Évora. Nesta
crónica, refere-se que El-Rei permanece em Ourique cerca de duas horas, sendo o
primeiro visitante régio a estas paragens, desde D. Afonso Henriques.
El-Rei saiu de Évora às dez horas de 2 de Janeiro pela porta do Rossio, precedido de
trombetas, atabalos e chamarelas, ladeado por D. Duarte e por D. Jorge de Lencastre,
Duque de Aveiro, e seguido por D. Álvaro de Meneses que conduzia o pendão e pela
restante comitiva. Esta era composta, entre outros, pelo Alferes--Mor Cristóvão de
Távora, João de Castilho e pelos poetas André de Resende e Pêro de Andrade Cam-
inha.
Nesse dia ficou em Viana do Alentejo indo almoçar a Cuba, onde se lhe juntou o
Conde da Vidigueira, e dormiu em Beja. No dia 5 partiu para Entradas, a 7 para Castro
Verde, onde visitou o Outeiro das Cabeças, local atribuído à Batalha de Ourique.
No dia 10 de Janeiro a comitiva real chega a Ourique, depois de permanecer em
Almodôvar no dia 9.
Importa então dar conta dos factos da visita:
Sábado, 10 de Janeiro – Ouviu El-Rei missa muito ante manhã, antes de romper a
alva partiu na forma costumada [de Almodôvar] e veio jantar a Ourique; ao caminho
o vieram receber, como se costuma, os homens bons da terra, e achou mais num
outeiro, pegado a um lugar, um esquadrão de cinco bandeiras que tem mil homens. E
foi a melhor Ordenança que em todos estes lugares achámos; mais adiante estavam as
danças que o trouxeram à igreja, aonde ouviu missa, e depois a sua casa, e eram duas:
uma de meninos em trajos de moças, e outra de homens. Jantou e esteve neste lugar
obra de duas horas, e dizem que se deteve tanto por dar vão a que comesse o Duque e
os fidalgos que comem à sua mesa, cujo fato não chega tão depressa.
E mandou El-Rei a Álvaro de Castro que da sua parte soubesse se comera já o
Duque, o qual logo que comeu veio a El-Rei e partiu para Messejana que são outras
três léguas como de Almodôvar a Ourique. Veio pelo caminho caçando às lebres, e
mataram algumas e numa ribeira botaram os falcões do Conde da Vidigueira a uma
garça, mas foi-se-lhes.
Em Ourique vieram alguns homens beijar os pés a El-Rei.

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[Domingo, 11 de Janeiro] – Foi El-Rei ouvir missa ao Mosteiro dos Capuchos, que
está um pedaço fora da Vila; acompanhou-o D. Fernando Álvares e o seu Estribeiro-
Mór. O Senhor D. Duarte ouviu missa na Misericórdia desta Vila, e até à tarde, que
houve touros, não houve coisa que pudesse escrever.
Aos quais touros andou El-Rei e o Senhor D. Duarte e D. Pedro Dinis e o Conde
da Vidigueira. E o Duque de Aveiro se escusou por estar mal tratado da garganta.
Andaram todos muito bem porque podiam seguramente fazer sortes, visto os touros
serem melhor para lavrar do que para correr. Um só houve que o tivesse feito; a este
fez El-Rei uma sorte já depois de andar mofino de o touro não entender nele, na qual
lhe chegou com os cornos, e lhe deu muito rijo.
[…]
Andaram os touros um pedaço no curro, e, recolhendo-se vieram os lavradores de
todo o Campo de Ourique, dar vista a El-Rei de todas as éguas que nele há, as quais
eram 400 e todas passaram em ordem ao longo das janelas de El-Rei que as estava
vendo.
[…]
Terça-feira, 13 de Janeiro – Ouviu El-Rei missa nos Capuchos, o Senhor D. Duarte
ouviu na Misericórdia da Vila, e à tarde foi El-Rei à caça das lebres e o Senhor D. Du-
arte com ele e o Duque e mais gente, mataram passante de 20 lebres; e a uma légua da
Vila num lugar a que chamam Panóias se foi El-Rei oferecer à cabeça de S. Romão.

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58 cadernos culturais de Ourique
Notas Históricas

A Aldeia da Conceição e os Barregões

A Aldeia da Conceição, chamava-se antigamente Aldeia de Barregões. Nos


documentos dos séculos XVII e XVIII não é conhecida por outro nome.
Não lhe sabemos a origem; lemos, porém, num manuscrito apócrifo, que
um grupo de guapas raparigas – sempre aqui as houve e ainda as há – desgostosas por
as alcunharem, uns de barregans, outros de barregôas e ainda alguns de barrigudas, req-
uereram ao Juiz, presidente do Senado [Câmara], para que à povoação se desse apenas o
nome do orago – Nossa Senhora da Conceição.
Foi deferida a pretensão; as meninas da aldeia deixaram de ser barrigudas e a freguesia
tomou simplesmente o nome de Conceição.
Esta freguesia pertenceu sempre ao termo de Messejana. Era curato da Ordem de
Santiago, apresentado pela Mesa de Consciência [e Ordens]. O Pároco tinha de côngrua
150 alqueires de trigo e 90 de cevada paga pelas herdades que constituíam a freguesia.
Barregão era apelido de uma família ilustre de Messejana.
Em 1500, vivia nesta vila Pedro Barregão que faleceu em 1576, instituindo por sua
morte a Confraria de N. S. do Rosário.

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Miguel Vaz Barregão, cavaleiro fidalgo da casa de S. M. El-Rei, foi Ouvidor e Conta-
dor dos Verdes e Montados da Comarca de Campo d’Ourique. Faleceu em 1648.
Também viveram nesta época Pero Vaz Barregão e Adão Fernandes Barregão, ho-
mens ricos e abonados.
Faz também parte da freguesia, a Aldeia de Alcarias, que lhe fica muito próxima. É
esta povoação habitada na sua maior parte por lavradores, sendo por esta causa relativa-
mente mais importante que a sede de freguesia.
Em 1715 vivia na Horta do Vale, herdade extramuros, tendo também residência em
Messejana, o Capitão Francisco Revez de Contreiras, Juiz Ordinário, e pessoa impor-
tante do concelho.
Muitos membros desta família ocupavam por vezes as cadeiras do Senado messejan-
ense.
Em 1808, 1827 e 1832 foi Vereador José de Contreiras Revez.
Actualmente é representante desta família o sr. José de Contreiras Revez, ali resi-
dente.
Entre Conceição e Alcarias tem havido quase sempre constante rivalidade. A mais
pequena cousa serve-lhes de pretexto para a luta. Agora andam eles todos acesos por
causa do gargalo de um poço.

(retirado do Jornal “O Campo d’Ourique” de 27 de Outubro de 1898)

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