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O final de tarde alaranjado parecia ser uma pintura ideal por ser vender por milhões.
As nuvens eram escassas e a luminosidade do céu naquele final de tarde o tornava
laranja na parte inferior. A brisa fraca soprava a leste. As folhas na grama da praça se
mexiam para todas as direções e aos poucos refletiam conforme o sol se aprofundava
nas montanhas ao fundo.
De certo, era mais um a tarde monótona para os cidadãos da cidade. Crianças e jovens
corriam alegres pela grama baixa e recém aparada da praça, a maioria se deleitando com
um picolé de frutas. Casais de idosos abraçados nos bancos tinham sacos de papel no
colo, jogavam incansavelmente migalhas de pão para os pombos cinzentos, que estavam
tão alaranjados como as nuvens acima. No centro da praça, embaixo da árvore maior,
estavam adolescentes. Vestidos de forma despojada e até desrespeitosa, com roupas
rasgadas e cabelos mal arrumados. Um menino tocava violão no meio de uma roda, era
uma melodia suave acompanhada por uma fumaça de cheiro suspeito, era cheiro de
bebidas e narguilé.
Ian apenas observava tudo aquilo. Estava em pé, com as costas apoiadas em tronco de
uma árvore qualquer, deixando um vento indiferente soprar suas roupas. Ao longe,
conseguiu avistar o que queria, ou melhor, quem queria. Ela vinha imponente, com o
rosto levantado, parecia poder sentir cada cheiro do local. Quase esbarrou com uma
pequena menina de cabelos cor de mel, que corria em sua direção segurando um
algodão doce cor-de-rosa em um palito grande. Seus cabelos cacheados se esvoaçaram
com o vento forte que bateu, seus olhos cor de âmbar brilhavam conforme se
aproximava.
Eram como duas lâmpadas acesas em uma noite escura.
Sem beijos ou abraços, muito menos apertos de mão, Tália foi direta como uma flecha:
— O que é tão importante que você não pôde falar por telefone? — indagou. Apesar de
parecer séria, era possível ver seu sorriso, surgindo na expressão de olhos fixos e
penetrantes.
— Tem um vampiro novo na cidade. — respondeu, sem muita coisa para explicar.
Os olhos de Tália se cerraram, o brilho âmbar cortado pela sombra projetada da testa
franzida.
— E? — seu tom não era de desprezo ou desdenho, e sim desinteresse puro. Revirou os
olhos logo em seguida que cruzou os braços na altura da barriga.
Ian colocou as mãos no bolso, tentava buscar uma forma de se esquentar depois que
uma brisa gelada lhe alvejou a face e seus braços nus. Ela não parecia estar com frio.
Observou lentamente as pessoas na praça se recolhendo depois de ouvirem um estrondo
de trovão ao fundo, por um minuto, Ian queria que o real problema fossem os trovões.
Lobisomens baderneiros que devoravam garotas de acordo com o ciclo menstrual e
carniçais maníacos por carne há tempos apodrecida, esses eram seus verdadeiros
problemas.
— Ele é diferente dos outros — tentou explicar, mas Tália parecia ainda mais
desfocada. — Matou dois vampiros ontem, rasgo-os ao meio. — Sentiu gosto amargo
na boca só de imaginar a cena, entranhas e sangue escuro voando para todos os lados. A
bile foi para a garganta, quente. — Eles tentaram apenas fazer contato. Ele não parece
querer algo com o clã de vampiros.
— Eles falaram que apenas tentaram contato — Tália o corrigiu. — Ian, você, mais do
que eu, sabe que os vampiros mentem, e muito bem, por sinal. — Ergueu as
sobrancelhas. — Posso adivinhar o resto? — perguntou, mas não deu tempo para Ian
dizer algo, nem um mínimo e rápido “Sim”. — Agora querem que você cace esse
vampiro.
— Sim, mas isso não o faz menos intrigante — explicou. — Veja, Tália, esse cara não
teria motivo de para matar dois vampiros sem nem ao menos dizer algo. Queria apenas
repercussão.
— E me parece que conseguiu — replicou, as palavras saíram certeiras e afiadas como
uma faca. — E, pelo o que me lembre, você está em pé de guerra com Mikael, não?
— Estou. — Anuiu com a cabeça. — Foi Solange que me contratou, não ele.
— E para a vampira de lábios vermelhos e delineador exagerado não se pode negar
nada, exato? — A ironia no tom de Tália não o tirava do sério, era o jeito dela de ser,
sempre levando as coisas com piadas e sacadas cômicas.
— Ela nos ajudou quando mais precisávamos — Ian a lembrou.
— Talvez esteja certo, talvez — disse com o olhar cerrado. — Mas então, o que eu
tenho a ver com tudo isso?
— Eu quero a sua ajuda para me ajudar a caçar esse vampiro, — Ian sorriu quando
disse, sorriso esse que Tália não retribuiu. — É um ancião. O tipo de vampiro mais
poderoso que existe.
— Pensei que fosse do tipo lobo solitário — brincou, o alfinetando. — Há tempos que
não nos pede ajuda. Além do mais, onde está Nina? Ela é a sua namorada.
Atrás de Tália, em um banco de pedra, uma menina escorregou de cima do encosto e
caiu no chão. Um risco vermelho ficou no local. Olhou para o horizonte, o sol já estava
quase desaparecendo por completo.
— Nina vai ficar até tarde trabalhando. — disse ele. — Sem falar que isso envolve o
submundo. Quanto mais afastadas as bruxas ficarem, melhor.
— Levi? Ele é seu irmão, sempre te apoia.
— Ele viajou — replicou, frustrado.
— Daniel? — Tentou mais uma vez.
— Ele não fala comigo desde que começou o treinamento para a polícia. — Ian se
perdia no mar de pessoas que se retiravam da praça, o sol já havia se posto e o céu
começava a desbotar em tons de azul, cores tão lindas que uma fotografia seria pouco
para registrar tal momento. — O tempo passou, estamos dispersos.
— E como — ela complementou, não muito contente. Ao lado de Tália, Daniel e Nina,
tinha vivido dia de glórias. Feito loucuras num passado nada distante, executado ações
que um adolescente ordinário não podia experimentar. Porém, o tempo chegou para os
quatro, e, o que eram aventuras causais envolvendo a profissão conspirações, acabou se
desfazendo em vidas adultas e unilaterais. Ian começava a desfrutar de uma nostalgia
estranha, um calor no peito que trazia as melhores memórias de seus dias com eles.
Fez-se um breve silêncio entre os dois, e Tália o quebrou com a pergunta que ainda
perpetuava por sua mente:
— Por que eu?
— Porque vampiros são vulneráveis a fogo, e você tem seus... dons — improvisou,
com risada na voz — é muito boa com ele, a melhor que eu conheço.
— Coincidentemente — falou. — Sou a única que conhece. — Riu.
A noite caiu fria, um vento forte acompanhado de uma chuva fina batia repetidamente
nas janelas fechadas da casa. As portas entreabertas no andar de cima batiam. Um vento
ricocheteou no vidro, sendo um uivo estridente.
Estava sentado no sofá, com armas espalhadas sobre as almofadas. Pistolas e revólveres
de vários calibres e tamanhos, facas e armas brancas enfeitiçadas. Um rifle de caça
estava repousando em um stand em cima da televisão, que exibia coisas que Ian nem ao
menos dava ouvidos. Dentre todas as armas que ali estavam, ele já havia escolhido
apenas duas. Colocou sua Beretta no coldre de couro escuro preso à cintura, e em uma
capa presa ao cinto enfiou uma adaga encrustada por magia. As runas esculpidas na
lâmina de tamanho médio brilhavam em um dourado intenso, seu fio era de um cinza
tom de pedra.
Um ronco estrondoso pôde ser ouvido, vinha do lado de fora, dava a impressão de fazer
não só o chão mexer, mas todas as janelas e vidros também. Era um sinal.
O vento forte o fez colocar o dobro de força para abrir a porta. As pequenas rosas já
cultivadas por sua falecida mãe e agora cuidadas pela namorada, estavam praticamente
sendo arrancadas pela natureza. As barras do portão de ferro rangiam mais do que o
comum, soavam irritantemente alto.
Tália o esperava na rua, embaixo de uma piscina de luz projetada por um poste. Estava
em cima de uma moto vermelha, com detalhes e desenhos brancos. O motor barulhento
e trêmulo era exposto. Seu olhar âmbar iluminado pelas gotas de água que refletiam a
lua estava em outro tom, algo entre dourado e prateado, Ian não soube distinguir. Ainda
continuavam a brilhar.
Tália afagou a jaqueta de couro.
— Estou atrasada? — perguntou. Seu sorriso alvo era um dos poucos brilhos
totalmente brancos naquela noite com postes de luzes amareladas.
— Dois minutos, na verdade. — respondeu Ian enquanto se aproximava.
— Já tem ideia para onde vamos?
— Quero passar primeiro no Estrela, recolher mais algumas informações.
— Tudo bem. — disse ela, seu tom era ameno. Sinalizou com o queixo para que Ian
subisse.
Andar de moto com Tália não era uma experiência deveras confortável. Ela não ligava
para qualquer lei ou limite de velocidade, pelo contrário, se divertia. Corria mais rápido
para despistar policiais. Era como um anjo em chamas, pulverizando toda a pista que
passava.
O trajeto ocorrera mais rápido que o esperado, em menos de cinco minutos as ruas
largas e tradicionais do bairro onde estavam, com casas de família e lares
aconchegantes, deram lugar para ruas estreitas de prédios e comércios ligeiros. A
motocicleta parecia deslizar no chão como um peixe no mar. O vento e a chuva eram
seus maiores adversários, porém, Tália os usava como aliados. Desembaralharam as
ruas quase inabitadas àquela hora da madruga para chegarem no Centro. Em alguma rua
que intercalava a João Pessoa, com a Amador Bueno, Tália desacelerou a moto.
Pararam em uma esquina escura, iluminada apenas com uma fraca lâmpada de gás em
uma marquise. Enquanto Tália desligava a motocicleta, Ian saltou, caindo no chão
molhado e levantando algumas gotas. A frente dele estava o letreiro de letras redondas,
grandes e chamativas para ordinários e infernais.
Estrela da Noite, Ian leu para si mesmo.
— Estamos no beco certo? — ela perguntou, tentou acalmar as madeixas, mas
pareciam tão ferozes como lobisomens em dia de lua cheia.
— Sim, estamos.
Entrar ali era receber olhares de desaprovação, sempre fora assim. Primeiro dos
seguranças parados perto à porta, que, apesar de tentaram não parecer seguranças,
estavam ali apenas para guardarem a entrada. Logo vinham os casais e amigos, que
conversavam em círculos fechados.
As luzes de cor violeta e verde alternavam suavemente conforme a música lenta do
local. O cheiro era de álcool e de drogas mágicas, que cintilavam na ponta dos dedos
dos usuários. As várias mesas redondas estavam espalhadas pela boate, mas todas as
cadeiras vazias. À primeira vista Ian se espantou, mas logo viu uma enorme
concentração de pessoas no fundo. Estavam todos amontoados, perto do balcão de
bebidas, observando o que de longe parecia ser uma briga.
Solange estava no meio da multidão, olhando envolta. Seu batom rubro brilhava com as
luzes, a fumaça artificial realçava o tom de seus longos cabelos castanhos. Ela avistou
Ian e Tália, parecia ser a única não entredita com o espetáculo que estava acontecendo
ali, acenou para os dois.
— Ontem, três dos meus foram achados mortos, vampiro! — gritou um homem no
meio. A voz era reconhecível. Theo, o líder dos lobisomens era alto, musculoso, e os
cabelos se espalhavam em cachos. — Três dos meus foram mortos por um dos seus!
Como vamos resolver isso?
Mikael parecia não se ofender com os gritos do licantropo, que além de berrar,
apontava freneticamente para todas as direções. O chefe do clã era sério, acima de tudo,
prezava autocontrole e elegância. Sua expressão sempre era de indiferença, olhos
gelados que penetravam qualquer um.
— Já falei. — disse. Seu tom suave e aveludado às vezes fazia Ian descrer que ele era
um vampiro. — Ele não é um dos meus. Podem matá-lo, se conseguirem, é claro. —
Riu.
— O que quer dizer com isso, vampiro? — Theo perguntou, olhando para cima. Mikael
sempre conseguia ser alguns centímetros maior que todos. — Está me taxando de
inferior? — O lobisomem mostrou as presas, rosnou baixo.
Os vampiros dali emitiram um ruído seco coletivo. Os olhos de todos ficaram
vermelhos, as unhas cresceram e os incisivos eram duas vezes maiores, presas alvas e
afiadas como facas.
— Não é preciso violência. — Mikael ainda não tinha perdido o controle, Ian admirou
ao fundo, qualquer outro vampiro já teria começado uma briga. — Pense duas vezes
antes de mostrar seus dentes podres para mim, lobisomem. — Franziu o cenho. A
expressão calma desapareceu de um instante para o outro, se fechou como nuvens
negras em um horizonte condenado a uma tempestade. As mãos do rosto projetavam
sombras escuras pela face toda do vampiro líder. — De qualquer forma, ainda quero
saber o que faz em meu território.
— Quero resolver esse problema. — respondeu. Seus olhos estavam escuros,
acanhados. — Se deixarmos esse maníaco a solta...
— Isso não é problema meu. — Mikael respondeu sem mesmo antes o Lycan terminar
de falar. — Lembra quando aquele Berserker apareceu? Será que consegue lembrar o
que me disse?
— Isso não é problema meu. — Theo não estava contente em citar as próprias palavras.
— Mas com esse é diferente, ouvi dizer que ele já vitimou carniçais também.
— Os carniçais vieram aqui mais cedo, disseram que declarariam guerra contra nós. Eu
mandei aquele mimado pastar.
Mimado era a palavra que Ian sempre procurou para descrever o líder dos canibals. Era
novo fisicamente, sua voz ainda oscilava de um agudo muito irritante para um agudo
pouco irritante.
— Bem, acho que não temos muito mais o que falar aqui. — disse Mikael. Sua cadeira
almofada parecia confortável demais para alguém conseguir levantar, mas ele
conseguiu. A marca de seu corpo que permaneceu lá, aos poucos foi preenchida com as
almofadas, que iam crescendo lentamente. Encarou fortemente o licantropo. — Já pode
sair de meu território, lobisomem.
Theo não se deu por vencido. Seus olhos se amarelaram e pelos cresceram pelas
costeletas. Rugiu, com a boca cheia de dentes pontudos. Os cabelos de Mikael se
balançaram para trás, algumas partículas de baba ficaram no rosto do vampiro.
Lentamente, com a ponta do indicador, ele limpou uma gota de saliva que escorria pela
bochecha.
— Você tem cinco segundos para sumir da minha vista, caso contrário, terei que usar a
força bruta, lobisomem. — Mikael já não parecia tão controlado, seus olhos estavam
vermelhos, assim como todos os vampiros ali.
Theo virou de costas e saiu rapidamente, não aparentava estar com medo, porém estava
clara a desvantagem. Os vampiros voltaram para suas mesas, voltando a serem frios,
mecânicos. Mikael se sentou novamente em sua cadeira almofada ao fundo de tudo, a
pouca luz fazia seus cabelos loiros ficarem escuros como ouro gasto.
Ian caminhou até o balcão, Solange estava lá, com um pano cinzento esfregando um
copo de vidro.
— Parece que esse cara está conseguindo a repercussão que queria — disse Tália. Se
apoiou no balcão de madeira escura.
— Vieram em um momento não muito bom — respondeu Solange. Seus lábios sem
vida pareciam tremer, Mikael os fitava de longe. — Todos estão tensos com isso, esse
cara vai acabar fodendo com tudo.
— É por isso que estou aqui — Ian interveio, com palavras não muito seguras. — Por
isso me contratou, não foi?
— Exato. — Ela anuiu com a cabeça. — Por que está aqui? Era para estar na rua,
correndo atrás desse desgraçado.
— Eu não posso apenas rondar a cidade sem nada em mente — rebateu. — Precisamos
de informações concretas.
— Todos os ataques foram muito longe daqui. — A vampira pegou uma garrafa de
uísque atrás de si, colocou uma quantidade generosa no copo em sua mão e tomou todo
liquido marrom sem hesitar. Jogou um pequeno pedaço de papel branco, uma tira com
algo anotado ao centro. — Um prédio um pouco afastado, abandonado e interditado há
anos.