Você está na página 1de 18

Santos, 2015, Primavera.

O final de tarde alaranjado parecia ser uma pintura ideal por ser vender por milhões.
As nuvens eram escassas e a luminosidade do céu naquele final de tarde o tornava
laranja na parte inferior. A brisa fraca soprava a leste. As folhas na grama da praça se
mexiam para todas as direções e aos poucos refletiam conforme o sol se aprofundava
nas montanhas ao fundo.
De certo, era mais um a tarde monótona para os cidadãos da cidade. Crianças e jovens
corriam alegres pela grama baixa e recém aparada da praça, a maioria se deleitando com
um picolé de frutas. Casais de idosos abraçados nos bancos tinham sacos de papel no
colo, jogavam incansavelmente migalhas de pão para os pombos cinzentos, que estavam
tão alaranjados como as nuvens acima. No centro da praça, embaixo da árvore maior,
estavam adolescentes. Vestidos de forma despojada e até desrespeitosa, com roupas
rasgadas e cabelos mal arrumados. Um menino tocava violão no meio de uma roda, era
uma melodia suave acompanhada por uma fumaça de cheiro suspeito, era cheiro de
bebidas e narguilé.
Ian apenas observava tudo aquilo. Estava em pé, com as costas apoiadas em tronco de
uma árvore qualquer, deixando um vento indiferente soprar suas roupas. Ao longe,
conseguiu avistar o que queria, ou melhor, quem queria. Ela vinha imponente, com o
rosto levantado, parecia poder sentir cada cheiro do local. Quase esbarrou com uma
pequena menina de cabelos cor de mel, que corria em sua direção segurando um
algodão doce cor-de-rosa em um palito grande. Seus cabelos cacheados se esvoaçaram
com o vento forte que bateu, seus olhos cor de âmbar brilhavam conforme se
aproximava.
Eram como duas lâmpadas acesas em uma noite escura.
Sem beijos ou abraços, muito menos apertos de mão, Tália foi direta como uma flecha:
— O que é tão importante que você não pôde falar por telefone? — indagou. Apesar de
parecer séria, era possível ver seu sorriso, surgindo na expressão de olhos fixos e
penetrantes.
— Tem um vampiro novo na cidade. — respondeu, sem muita coisa para explicar.
Os olhos de Tália se cerraram, o brilho âmbar cortado pela sombra projetada da testa
franzida.
— E? — seu tom não era de desprezo ou desdenho, e sim desinteresse puro. Revirou os
olhos logo em seguida que cruzou os braços na altura da barriga.
Ian colocou as mãos no bolso, tentava buscar uma forma de se esquentar depois que
uma brisa gelada lhe alvejou a face e seus braços nus. Ela não parecia estar com frio.
Observou lentamente as pessoas na praça se recolhendo depois de ouvirem um estrondo
de trovão ao fundo, por um minuto, Ian queria que o real problema fossem os trovões.
Lobisomens baderneiros que devoravam garotas de acordo com o ciclo menstrual e
carniçais maníacos por carne há tempos apodrecida, esses eram seus verdadeiros
problemas.
— Ele é diferente dos outros — tentou explicar, mas Tália parecia ainda mais
desfocada. — Matou dois vampiros ontem, rasgo-os ao meio. — Sentiu gosto amargo
na boca só de imaginar a cena, entranhas e sangue escuro voando para todos os lados. A
bile foi para a garganta, quente. — Eles tentaram apenas fazer contato. Ele não parece
querer algo com o clã de vampiros.
— Eles falaram que apenas tentaram contato — Tália o corrigiu. — Ian, você, mais do
que eu, sabe que os vampiros mentem, e muito bem, por sinal. — Ergueu as
sobrancelhas. — Posso adivinhar o resto? — perguntou, mas não deu tempo para Ian
dizer algo, nem um mínimo e rápido “Sim”. — Agora querem que você cace esse
vampiro.
— Sim, mas isso não o faz menos intrigante — explicou. — Veja, Tália, esse cara não
teria motivo de para matar dois vampiros sem nem ao menos dizer algo. Queria apenas
repercussão.
— E me parece que conseguiu — replicou, as palavras saíram certeiras e afiadas como
uma faca. — E, pelo o que me lembre, você está em pé de guerra com Mikael, não?
— Estou. — Anuiu com a cabeça. — Foi Solange que me contratou, não ele.
— E para a vampira de lábios vermelhos e delineador exagerado não se pode negar
nada, exato? — A ironia no tom de Tália não o tirava do sério, era o jeito dela de ser,
sempre levando as coisas com piadas e sacadas cômicas.
— Ela nos ajudou quando mais precisávamos — Ian a lembrou.
— Talvez esteja certo, talvez — disse com o olhar cerrado. — Mas então, o que eu
tenho a ver com tudo isso?
— Eu quero a sua ajuda para me ajudar a caçar esse vampiro, — Ian sorriu quando
disse, sorriso esse que Tália não retribuiu. — É um ancião. O tipo de vampiro mais
poderoso que existe.
— Pensei que fosse do tipo lobo solitário — brincou, o alfinetando. — Há tempos que
não nos pede ajuda. Além do mais, onde está Nina? Ela é a sua namorada.
Atrás de Tália, em um banco de pedra, uma menina escorregou de cima do encosto e
caiu no chão. Um risco vermelho ficou no local. Olhou para o horizonte, o sol já estava
quase desaparecendo por completo.
— Nina vai ficar até tarde trabalhando. — disse ele. — Sem falar que isso envolve o
submundo. Quanto mais afastadas as bruxas ficarem, melhor.
— Levi? Ele é seu irmão, sempre te apoia.
— Ele viajou — replicou, frustrado.
— Daniel? — Tentou mais uma vez.
— Ele não fala comigo desde que começou o treinamento para a polícia. — Ian se
perdia no mar de pessoas que se retiravam da praça, o sol já havia se posto e o céu
começava a desbotar em tons de azul, cores tão lindas que uma fotografia seria pouco
para registrar tal momento. — O tempo passou, estamos dispersos.
— E como — ela complementou, não muito contente. Ao lado de Tália, Daniel e Nina,
tinha vivido dia de glórias. Feito loucuras num passado nada distante, executado ações
que um adolescente ordinário não podia experimentar. Porém, o tempo chegou para os
quatro, e, o que eram aventuras causais envolvendo a profissão conspirações, acabou se
desfazendo em vidas adultas e unilaterais. Ian começava a desfrutar de uma nostalgia
estranha, um calor no peito que trazia as melhores memórias de seus dias com eles.
Fez-se um breve silêncio entre os dois, e Tália o quebrou com a pergunta que ainda
perpetuava por sua mente:
— Por que eu?
— Porque vampiros são vulneráveis a fogo, e você tem seus... dons — improvisou,
com risada na voz — é muito boa com ele, a melhor que eu conheço.
— Coincidentemente — falou. — Sou a única que conhece. — Riu.

A noite caiu fria, um vento forte acompanhado de uma chuva fina batia repetidamente
nas janelas fechadas da casa. As portas entreabertas no andar de cima batiam. Um vento
ricocheteou no vidro, sendo um uivo estridente.
Estava sentado no sofá, com armas espalhadas sobre as almofadas. Pistolas e revólveres
de vários calibres e tamanhos, facas e armas brancas enfeitiçadas. Um rifle de caça
estava repousando em um stand em cima da televisão, que exibia coisas que Ian nem ao
menos dava ouvidos. Dentre todas as armas que ali estavam, ele já havia escolhido
apenas duas. Colocou sua Beretta no coldre de couro escuro preso à cintura, e em uma
capa presa ao cinto enfiou uma adaga encrustada por magia. As runas esculpidas na
lâmina de tamanho médio brilhavam em um dourado intenso, seu fio era de um cinza
tom de pedra.
Um ronco estrondoso pôde ser ouvido, vinha do lado de fora, dava a impressão de fazer
não só o chão mexer, mas todas as janelas e vidros também. Era um sinal.
O vento forte o fez colocar o dobro de força para abrir a porta. As pequenas rosas já
cultivadas por sua falecida mãe e agora cuidadas pela namorada, estavam praticamente
sendo arrancadas pela natureza. As barras do portão de ferro rangiam mais do que o
comum, soavam irritantemente alto.
Tália o esperava na rua, embaixo de uma piscina de luz projetada por um poste. Estava
em cima de uma moto vermelha, com detalhes e desenhos brancos. O motor barulhento
e trêmulo era exposto. Seu olhar âmbar iluminado pelas gotas de água que refletiam a
lua estava em outro tom, algo entre dourado e prateado, Ian não soube distinguir. Ainda
continuavam a brilhar.
Tália afagou a jaqueta de couro.
— Estou atrasada? — perguntou. Seu sorriso alvo era um dos poucos brilhos
totalmente brancos naquela noite com postes de luzes amareladas.
— Dois minutos, na verdade. — respondeu Ian enquanto se aproximava.
— Já tem ideia para onde vamos?
— Quero passar primeiro no Estrela, recolher mais algumas informações.
— Tudo bem. — disse ela, seu tom era ameno. Sinalizou com o queixo para que Ian
subisse.
Andar de moto com Tália não era uma experiência deveras confortável. Ela não ligava
para qualquer lei ou limite de velocidade, pelo contrário, se divertia. Corria mais rápido
para despistar policiais. Era como um anjo em chamas, pulverizando toda a pista que
passava.
O trajeto ocorrera mais rápido que o esperado, em menos de cinco minutos as ruas
largas e tradicionais do bairro onde estavam, com casas de família e lares
aconchegantes, deram lugar para ruas estreitas de prédios e comércios ligeiros. A
motocicleta parecia deslizar no chão como um peixe no mar. O vento e a chuva eram
seus maiores adversários, porém, Tália os usava como aliados. Desembaralharam as
ruas quase inabitadas àquela hora da madruga para chegarem no Centro. Em alguma rua
que intercalava a João Pessoa, com a Amador Bueno, Tália desacelerou a moto.
Pararam em uma esquina escura, iluminada apenas com uma fraca lâmpada de gás em
uma marquise. Enquanto Tália desligava a motocicleta, Ian saltou, caindo no chão
molhado e levantando algumas gotas. A frente dele estava o letreiro de letras redondas,
grandes e chamativas para ordinários e infernais.
Estrela da Noite, Ian leu para si mesmo.
— Estamos no beco certo? — ela perguntou, tentou acalmar as madeixas, mas
pareciam tão ferozes como lobisomens em dia de lua cheia.
— Sim, estamos.
Entrar ali era receber olhares de desaprovação, sempre fora assim. Primeiro dos
seguranças parados perto à porta, que, apesar de tentaram não parecer seguranças,
estavam ali apenas para guardarem a entrada. Logo vinham os casais e amigos, que
conversavam em círculos fechados.
As luzes de cor violeta e verde alternavam suavemente conforme a música lenta do
local. O cheiro era de álcool e de drogas mágicas, que cintilavam na ponta dos dedos
dos usuários. As várias mesas redondas estavam espalhadas pela boate, mas todas as
cadeiras vazias. À primeira vista Ian se espantou, mas logo viu uma enorme
concentração de pessoas no fundo. Estavam todos amontoados, perto do balcão de
bebidas, observando o que de longe parecia ser uma briga.
Solange estava no meio da multidão, olhando envolta. Seu batom rubro brilhava com as
luzes, a fumaça artificial realçava o tom de seus longos cabelos castanhos. Ela avistou
Ian e Tália, parecia ser a única não entredita com o espetáculo que estava acontecendo
ali, acenou para os dois.
— Ontem, três dos meus foram achados mortos, vampiro! — gritou um homem no
meio. A voz era reconhecível. Theo, o líder dos lobisomens era alto, musculoso, e os
cabelos se espalhavam em cachos. — Três dos meus foram mortos por um dos seus!
Como vamos resolver isso?
Mikael parecia não se ofender com os gritos do licantropo, que além de berrar,
apontava freneticamente para todas as direções. O chefe do clã era sério, acima de tudo,
prezava autocontrole e elegância. Sua expressão sempre era de indiferença, olhos
gelados que penetravam qualquer um.
— Já falei. — disse. Seu tom suave e aveludado às vezes fazia Ian descrer que ele era
um vampiro. — Ele não é um dos meus. Podem matá-lo, se conseguirem, é claro. —
Riu.
— O que quer dizer com isso, vampiro? — Theo perguntou, olhando para cima. Mikael
sempre conseguia ser alguns centímetros maior que todos. — Está me taxando de
inferior? — O lobisomem mostrou as presas, rosnou baixo.
Os vampiros dali emitiram um ruído seco coletivo. Os olhos de todos ficaram
vermelhos, as unhas cresceram e os incisivos eram duas vezes maiores, presas alvas e
afiadas como facas.
— Não é preciso violência. — Mikael ainda não tinha perdido o controle, Ian admirou
ao fundo, qualquer outro vampiro já teria começado uma briga. — Pense duas vezes
antes de mostrar seus dentes podres para mim, lobisomem. — Franziu o cenho. A
expressão calma desapareceu de um instante para o outro, se fechou como nuvens
negras em um horizonte condenado a uma tempestade. As mãos do rosto projetavam
sombras escuras pela face toda do vampiro líder. — De qualquer forma, ainda quero
saber o que faz em meu território.
— Quero resolver esse problema. — respondeu. Seus olhos estavam escuros,
acanhados. — Se deixarmos esse maníaco a solta...
— Isso não é problema meu. — Mikael respondeu sem mesmo antes o Lycan terminar
de falar. — Lembra quando aquele Berserker apareceu? Será que consegue lembrar o
que me disse?
— Isso não é problema meu. — Theo não estava contente em citar as próprias palavras.
— Mas com esse é diferente, ouvi dizer que ele já vitimou carniçais também.
— Os carniçais vieram aqui mais cedo, disseram que declarariam guerra contra nós. Eu
mandei aquele mimado pastar.
Mimado era a palavra que Ian sempre procurou para descrever o líder dos canibals. Era
novo fisicamente, sua voz ainda oscilava de um agudo muito irritante para um agudo
pouco irritante.
— Bem, acho que não temos muito mais o que falar aqui. — disse Mikael. Sua cadeira
almofada parecia confortável demais para alguém conseguir levantar, mas ele
conseguiu. A marca de seu corpo que permaneceu lá, aos poucos foi preenchida com as
almofadas, que iam crescendo lentamente. Encarou fortemente o licantropo. — Já pode
sair de meu território, lobisomem.
Theo não se deu por vencido. Seus olhos se amarelaram e pelos cresceram pelas
costeletas. Rugiu, com a boca cheia de dentes pontudos. Os cabelos de Mikael se
balançaram para trás, algumas partículas de baba ficaram no rosto do vampiro.
Lentamente, com a ponta do indicador, ele limpou uma gota de saliva que escorria pela
bochecha.
— Você tem cinco segundos para sumir da minha vista, caso contrário, terei que usar a
força bruta, lobisomem. — Mikael já não parecia tão controlado, seus olhos estavam
vermelhos, assim como todos os vampiros ali.
Theo virou de costas e saiu rapidamente, não aparentava estar com medo, porém estava
clara a desvantagem. Os vampiros voltaram para suas mesas, voltando a serem frios,
mecânicos. Mikael se sentou novamente em sua cadeira almofada ao fundo de tudo, a
pouca luz fazia seus cabelos loiros ficarem escuros como ouro gasto.
Ian caminhou até o balcão, Solange estava lá, com um pano cinzento esfregando um
copo de vidro.
— Parece que esse cara está conseguindo a repercussão que queria — disse Tália. Se
apoiou no balcão de madeira escura.
— Vieram em um momento não muito bom — respondeu Solange. Seus lábios sem
vida pareciam tremer, Mikael os fitava de longe. — Todos estão tensos com isso, esse
cara vai acabar fodendo com tudo.
— É por isso que estou aqui — Ian interveio, com palavras não muito seguras. — Por
isso me contratou, não foi?
— Exato. — Ela anuiu com a cabeça. — Por que está aqui? Era para estar na rua,
correndo atrás desse desgraçado.
— Eu não posso apenas rondar a cidade sem nada em mente — rebateu. — Precisamos
de informações concretas.
— Todos os ataques foram muito longe daqui. — A vampira pegou uma garrafa de
uísque atrás de si, colocou uma quantidade generosa no copo em sua mão e tomou todo
liquido marrom sem hesitar. Jogou um pequeno pedaço de papel branco, uma tira com
algo anotado ao centro. — Um prédio um pouco afastado, abandonado e interditado há
anos.

O ronco seco do motor parecia estar mais forte do que nunca.


A moto deslizava pelas ruas finas e lustradas, que transcenderam em segundos para as
ruas largas e becos escuros perto do morro, nos subúrbios da cidade. As casas não
tinham padrões e as ruas disformes eram como um mapa molhado e pouco visível.
Curvas onde deveriam existir retas e becos sem saídas com placas apontando para
seguir. Tudo ali cheirava a enxofre, bebida alcoólica, cigarros e drogas. As luzes dos
postes ficaram fracas a partir de certo ponto que Ian não soube distinguir, tremulavam
em um intervalo de poucos segundos. Os prédios baixos passavam rápidos, raros ali.
Estacionaram em uma esquina suja e decorada com sacos de lixo, a de luz embaixo do
poste era fraca, quase um feixe e a fiação, exposta.
O prédio abandonado que a vampira os disse poderia ser considerado um elogio perto
do que Ian e Tália vislumbravam. De certo, era um prédio pequeno, apesar de faltarem
janelas e paredes com revestimento ainda era um edifício. A tintura estava podre, listras
escuras escorriam pela pastilha que um dia já fora branca. Acima do edifício
abandonado, a lua pairava como um enorme pingo em um I. Se entreolharam, Ian estava
com os punhos cerrados, as palmas suavam e o cenho tremia. Tália sorriu para ele.
— Quer fazer as honras? — perguntou a ela.
Os olhos de Tália se acenderam com um fulgor incrível.
O baque da porta soou seco, as dobradiças estouraram depois do chute. Entram pela
porta de incêndio nos fundos. Se situavam em uma antessala pequena, as paredes
fediam exalando um cheiro que queimava. Com certeza, se adentrassem mais, não iriam
enxergar muita coisa.
— Para onde acha de devemos ir? — ela perguntou. Apontava para o corredor à frente
deles e para a escada de incêndio, ambos estavam um breu completo.
Ian hesitou em responder, apalpou o bolso e percebeu a falta de sua lanterna. Tália
pareceu se divertir com a frustração do amigo, e com um estalar de dedos criou uma
pequena centelha na palma da mão. O fogo era pequeno, porém intenso, Ian sabia que
ela poderia expandir aquilo, poderia botar fogo no prédio em poucos instantes, caso
desejasse.
A luz avermelhada bastava os dar norte da situação. Viram ossos de animais de rua por
todos os lados, secos, com suas peles coladas aos ossos. Um, especial, o chamou
atenção. Era muito grande para ser de um cachorro doméstico. Era um lobisomem,
deduziu, com nojo. O corredor largo não tinha nada, apenas riscos e arranhões nas
paredes.
— Olhe isso — Tália sussurrou. Estava com o corpo parcialmente inclinado na porta
das escadas. Não parecia estar contente. — Quem quer que esteja aqui, acho que está
naqueles dias.
Ian chegou-se ao lado dela, e ficou boquiaberto com o que viu. Um rasto de sangue
ainda fresco escorria degrau por degrau, ficaram admirando até que o sangue chegasse
aos seus pés. O cheiro de podridão invadiu as narinas dele, algo mais estava no ar,
enxofre?
— Como pode fazer piadas em uma situação dessas? — indagou, pouco nervoso.
Tália não respondeu, continuou andando. Seus passos nas poças de sangue, apesar de
serem cautelosos, inevitavelmente faziam barulho. Ian a seguiu, tentava igualmente não
fazer barulho, mas seus pés estacavam como vidro quebrando em um mosteiro.
Discretamente, pegou a pistola no coldre, deixou arma em riste.
Subiram por três andares seguindo o sangue deixado pela vítima. Agora, o sangue
estava mais fresco do que nunca, fazendo até que Ian e Tália sentissem o cheiro.
Pegadas se misturavam em uma trilha de sangue pisado, um sapado largo e grande, uma
botina de couro rasgado repousava no canto do corredor, virada ao contrário e com o
cano desgrenhado. Tália elevou a chama acima da cabeça e reforçou o fogo, para ter
mais noção do que iluminar.
Um gemido ao fundo do corredor ressoou alto. Aproximaram-se lentamente com
passos cautelosos. Os gemidos e gruídos eram masculinos, fortes e deveras afinados, era
uma criança, disse a si mesmo. Praguejou em sua mente.
— Agora? — perguntou, mas Tália não disse nada.
Ela respondeu com um chute na porta. Era um cômodo quadrado, mal iluminado, de
luzes que entravam apenas pela janela. O cheiro de podridão era maior ali, obrigando
ambos a trancarem a respiração. Não havia sofás ou tapetes, mesas de centro ou moveis,
apenas correntes de ferro que saiam das paredes, enroladas nos braços e corpo de um
jovem. O menino estava de cabeça abaixada, encarando o chão e com os cabelos
castanhos o cobrindo o rosto. A pele pálida, que parecia a muito tempo não ver o sol,
estava marcada por unhadas e cicatrizes feitas pelas correntes grossas. Estava sem
camisa, deixando o físico esguio aparecer, os músculos eram fracos e passavam a
impressão que quebrariam a qualquer instante.
Ele soltou um gemido seco, sua garganta deixou a impressão de não funcionar mais.
— Ele é o vampiro? — Tália perguntou. A chama na sua mão oscilou.
— Pouco provável. — respondeu, em tom seco e áspero, sua boca havia secado depois
de ver aquela situação deprimente em que o menino se encontrava. — O vampiro deve
ter sequestrado ele.
— Por que um vampiro superpoderoso raptaria um humano? — ela lançou outra
pergunta.
Ian coçou o queixo;
— Talvez ele não seja um simples humano. — Cauteloso, foi se aproximando do
garoto. Se abaixou para ver os olhos dele. Eram escuros como carvão, e encaravam o
nada, estavam perdidos e sem esperança.
— Ele pode ser o que? Não me parece com um lobisomem, e está muito corado para
um carniçal. — Tália começou a andar em círculos enquanto Ian examinava o menino.
Avistou algo suspeito perto de uma mesa quebrada ao meio.
Andou até o que era uma pilha de papeis e fotos jogadas no canto do cômodo. O fogo
em suas palmas a ajudou decifrar as imagens que estavam difundidas no escuro.
Revistas sobre empresários, adolescentes subcelebridades e fotos, todas do menino
acorrentado.
Apanhou lentamente uma foto, o rosto do menino estava circulado com algo escuro e
rubro ao mesmo tempo. Sangue coagulado.
— Frederico Batista Neto. — disse em voz alta, Ian se virou atônito para ouvi-la. —
Filho de Frederico Batista Filho e neto de Frederico Batista. Herdeiro de um banco
multimilionário que financia inúmeras instituições carentes. Diz aqui que é quente e
sagitariano, adora loiras, mas prefere mulheres adultas e maduras em geral, sua última
namorada foi sua antiga personal trainer....
— Do que está falando? — Ian perguntou depois de a calar com um chiado.
— É tudo que diz aqui na Capricho. — Riu. Jogou a revista no canto junto com as
outras. — Acho que acabei passando um pouco do ponto.
Ian esticou o pescoço e avistou as revistas atrás dela.
— Por que acha que o vampiro teria tantas revistas desse garoto?
— Deve ser um fã louco. Ouvi dizer que os hábitos dos infernais estão ficando cada vez
mais próximos com os dos humanos. — Gargalhou bem baixo.
Ian enrugou a testa, insatisfeito com as piadas de Tália.
— Estou falando sério! — elevou o tom de voz em uma oitava. — O que acha que o
vampiro quer com esse garoto?
— Você não deve perguntar isso para mim, pergunte para o garoto. — Tália jogou as
mãos para cima, fagulhas saíram das pontas dos dedos.
Ian se virou para as corretes, elas pareciam muito firmes. Os lugares onde estavam
presas nas paredes tinham rachaduras, aquele prédio por completo passava a impressão
que poderia ceder a qualquer segundo. Tália chegou mais perto, estalando os dedos e
criando chamas que se apagavam em segundos. Ela pegou no metal da corrente, parecia
muito sólido e bom para se derreter em instantes.
— Eu posso derretê-la. — disse, breve e disposta. — Mas vai demorar alguns instantes.
Com os dedos a poucos centímetros do metal, ela suspirou. Uma chispa fina e precisa
saiu da ponta de seu dedo. A chama parecia não falhar, e o metal foi amolecendo,
vermelho a cada segundo mais.
Ela acenou para ele, que com a faca de caça cortou o ferro aquecido como manteiga.
Repetiram o mesmo procedimento diversas vezes, até que todas as corretes se
despartissem. O menino, sem equilíbrio e firmeza nos pés, caiu. Ian o segurou pelos
ombros o sacudiu, o rosto começou a corar novamente, as bochechas foram ficando
vermelhas e os olhos recobraram a cor marrom escura que tinham.
— Alma, ele vai vir... — murmurou o garoto, nos braços de Ian. Palavras fracas,
sumindo no ar. Era impossível não se intrigar. Em todos seus anos como caçador de
recompensas, já tinha ido a lugares piores do que aquele, mas ali trazia-lhe um
desconforto. Era um ordinário amarrado e feito de refém, não um lobisomem robusto ou
um carniçal que mal sentia dor. — Saiam.
— O quê? — Ian perguntou, confuso.
— Entendeu alguma coisa? — Tália se virou, intrigada.
— Ele não parece estar nada bem — disse. Colocou-o de pé, apesar de sentir o corpo
mole. Era um moleque de dezesseis anos, magro e leve como uma pena. — Ei, garoto
— o chamou, mexendo nos ombros. — Consegue ficar de pé?
Ele fez que sim com a cabeça, não passando nenhuma reposta concreta. Na imensidão
de seu olhar, via-se alguém traumatizado, torturado e nada saudável. Ian sentiu nojo
quando olhou nos pulsos do jovem. Abertos, em carne viva, com pequenas fachas
tampando.
— Escuta aqui — continuou. — Preciso que diga alguma coisa. Quem é ele?
— Esse garoto está como um vegetal — Tália se intrometeu. — Não vai dizer nada.
— Talvez não aqui — Ian argumentou, o pegando pelo pulso e levando para perto da
porta. — Precisamos sair daqui, esse lugar é traumatizante.
— E fede — Tália complementou. — Fede muito. Você não acha, guri? — Deu um
leve tapa em Frederico, que quase caiu para o lado. Ian chiou, nada contente. —
Desculpa.
— Tem mais alguma coisa útil escrita naquelas revistas? — Apontou, vendo o monte
que parecia estar maior.
— Tem uma sobre negócios, dizem que ele não é o sucessor ideal.
— Isso é sério, Tália — advertiu. Era humano, diferente dela. Pensar como Frederico
era a coisa mais normal que poderia estar fazendo. Qualquer vampiro seria capaz de o
sequestrar, não era nada comparado aos profanos da noite.
— Vamos tirá-lo daqui logo — respondeu, com ar sério. — Lá fora podemos pensar
melhor.
Frederico não caminhava muito bem, além de ter jogado um de seus braços por cima
dos ombros de Ian. Caminhavam em passos curtos e nada rápidos para a saída, o que
poderia somar-se um problema. Vampiros tinham pouco tempo numa noite, e não
gostavam de desperdiçar. Logo ele estaria de volta.
Ian olhou por cima do ombro e viu Tália, parada contra a sombra da madrugada, com
chamas saindo pelos dedos, envolvendo a palma e dourando o olhar.
E uma face pálida atrás dela.
Com a pistola, atirou, sem pensar, apenas tentando manter a mira longe dela. Os tiros
não foram precisos, mas suficientes para fazer o vampiro recuar. Como um morcego
acuado, ele se escondeu nas sombras de um canto, com os olhos ardendo em vermelho.
Tália evocou seu fogo, e o jogou em labaredas fortes contra a parede. Não viu ao certo
o momento que o vampiro correu para o lado.
— Nephilim — disse a voz seca do vampiro de cabelos escuros e olhos vermelhos.
Suas presas eram grandes e quebradas. — Deixe-o. Ele não a pertence.
— Nem pertence a você — respondeu, ríspida. — O que quer com ele?
O sujeito pálido virou o rosto, tentando esconder o semblante.
Avançou contra Tália, todavia, não foi rápido o bastante para anteceder o arco de fogo
criado pelas mãos ágeis dela. A fumaça subiu grossa e fedorenta, junto com o sangue
que respingou. A queimadura de um vampiro não era agradável de se ver, nem de se
ouvir. Chiava baixo. Principalmente quando feita com fogo do paraíso.
O vampiro gritou, agonizando. Voltou a atacar, nada satisfeito, com fúria no olhar. Saiu
rolando com Tália em seus braços, tentando enfiar as garras em sua garganta. Com a
arma apontada, Ian apenas esperava um segundo oportuno para atirar. No entanto, eram
mais rápido do que pudesse mirar.
Tália explodiu em chamas, e o vampiro foi arremessado para cima, batendo no teto,
porém aterrissando no chão com leveza. Ian o cravejou de balas, antes que pudesse
voltar a pensar, os disparos explodindo em seus ouvidos, causando choques pelo corpo.
Cada tiro era um passo, e, em poucos segundos, ele já estava perto da janela. Rosnou,
com raiva.
Ian tentou atirar novamente, mas a pistola só emitiu um clique baixo. Suspirou,
desesperado.
Tália surgiu, rápida, dando um chute contra o vampiro, que voou janela abaixo. O vidro
velho se quebrou, com um estalo gelado e alto. O barulho dos cacos caindo na rua junto
com o corpo, foram abafados pela distância.
— Temos que sair daqui — Tália falou, arfando. Seu olhar cansado não a dava por
vencida, nem seus cabelos desarrumados. Ela conseguia sorrir ainda, mesmo com
sangue saindo por seu nariz. Verificou à janela, e voltou, rápida. — Vamos logo. O
corpo não está lá embaixo.

O armazém velho não cheirava bem.


Essa era a única impressão que Ian conseguia ter. O local também não era muito
agradável. Ainda assim, se parecia um grande espaço de tortura e abandono. De fato,
depois da partida de seu irmão mais novo, aquele lugar estava abandonado. Levi
costumava passar seu tempo ali, lendo livros e aprendendo mais sobre magia.
Assim como na antiga casa onde morava, ergueu barreiras mágicas para evitar a
passagem de qualquer infernal e demônio. Com o tempo, moldou o feitiço para habilitar
a entrada de Ian e os outros.
Apesar de úmido e nada convidativo, ali era o único lugar que o vampiro não conseguia
os alcançar. Depois de terem descido as escadarias, procuraram pelo corpo, mas o rastro
de sangue levava até uma parede, e sumia em seguida. Em um senso comum, Tália os
levou para aquele lugar, e ainda estava por lá, apenas por garantia.
Levi nunca foi um modista, e muito menos ligava para estética. Como feiticeiro, ele
poderia acender todas as velas dali com apenas um estalo de dedos. Mas, nos últimos
meses, eles ajudaram a deixar o lugar habitável. Tinha um sofá numa sala pequena,
junto de uma estante sem livros, apenas com frascos. As lâmpadas não funcionavam
direito, e piscavam em um intervalo de poucos minutos.
A imagem de Fred — apelido colocado por Tália — deitado no sofá, com os pulos
ensanguentados e rosto pálido, era moribunda. Ele estava mal, quente, com uma febre
súbita. O máximo que Ian podia fazer era sentar e assistir a lenta morte do garoto, junto
de Tália, que apenas estalava os dedos, para se se distrair.
— Ela está demorando — disse a ela, com a mão na perna que subia e descia,
descontrolada.
Tália concordou, observando o menino por cima do ombro.
Ambos se assustaram com o som rouco da porta de metal sendo arrastada para o lado.
Saíram juntos da saleta aos fundos, e no espaço sem nada, viram a silhueta de Nina
entrando, apressada. Vestido, botas e meias altas, cabelos curtos de pontas espetadas e
olhos verdes, essa era Nina. Ela parecia estar mais cansada, com olheiras fundas
debaixo dos olhos.
Ian a beijou. Aproveitou os breves segundos de intimidade e carinho que poderia ter
com a namorada. Nina tinha a incrível capacidade de o agarrar de uma maneira forte,
que o fazia nunca mais querer soltá-la.
— Que lindo! Mal parece que temos um garoto morrendo — Tália disse, tossindo
baixo. Nina se separou de Ian como um gato escaldado.
— Como? — indagou, assustada. Dos anos que se conheciam, Nina era de certo a mais
humana entre todos. Não levava nada na brincadeira como Tália, e muito menos era sem
escrúpulos, como Daniel. Exalava sinceridade pelos olhos, e honestidade no jeito de
andar.
— O achamos num esconderijo de um vampiro — Ian anunciou, não muito
convencido. Nina, em particular, tinha assuntos mal resolvidos com os vampiros,
excepcionalmente Mikael. Ela o reprendeu com os olhos, ferozes. — Ele está muito
mal.
— Morrendo mesmo — Tália completou. — Pulsos cortados e sangue escorrendo pela
boca.
Nina os perguntou onde o garoto estava, e ambos apontaram para a saleta ao fundo. Ela
foi correndo verificar a situação. Frederico estava com a cabeça caída para o lado, um
fio vermelho descendo aos poucos.
Magia e bruxaria nunca estavam a acesso para ordinários, e, por esse e outros motivos,
Ian não entendia muito bem. Tudo que via era faíscas, ondulações e fumaça. Nina, em
especial, não podia fazer como qualquer outra bruxa, era uma difundida. Mas isso não a
impedia de fuçar nos baús de Levi, e retirar de lá ervas e soluções viscosas. As misturou
em frascos, esquentou com a ajuda de Tália. De fato, Tália entendia mais daquilo do que
ele, porém, não era como soubesse muito do que estava fazendo.
Poderia ter ido até Beth, na Santa Casa. Frederico seria tratado como qualquer outro
paciente, e tradado por médicos especializados e a melhor maga que conhecia. Todavia,
com o passar dos anos, apesar de Beth sempre estar presente, foram se afastando. Se
viam com menos frequência, tornando as ocasiões quase raras. Nina era a única opção
que estava à tiracolo, apesar de alguns bairros de distância.
Não demorou muito tempo para elas acabarem, e os três finalmente descansarem. Tália
sentou-se numa cadeira, Ian permaneceu no chão e Nina se apoiou na parede, com os
braços cruzados acima do peito.
— Ele estava muito ruim — falou, com intensidade. Para se distrair, encarava a
pequena adaga de sacrifício, a lâmina refletia luz falha com a cor de lua. — Onde
estavam?
— No covil de um vampiro — Ian a respondeu, não muito certo.
— Fedia, o local fedia, por inteiro — Tália completou. — Era quase como o inferno —
falou, sorrindo à Nina.
A bruxa captou a ironia, mas ficou séria.
— Por que o vampiro o capturou, ao invés de comer? — inquiriu, observando o garoto
magricela.
— É uma das muitas perguntas que estamos fazendo, que, diga-se de passagem, não
temos resposta nenhuma — Tália replicou. — Ele tentou dizer coisas, mas depois de
escaparmos do prédio ele tornou a desmaiar.
— É algo que não faz sentido algum — Ian admitiu, sem muitas palavras. —
Aparentemente, esse vampiro veio aqui, fez uma grande algazarra e quer levar esse
garoto como suvenir.
— Isso é incomum, mas deve haver um significado — Nina retrucou, pensativa.
Deixava o olhar vagar por tudo, analisando cada componente. Ian a viu encarando suas
botas sujas de sangue seco. — O que o garoto disse?
— Algo sobre alma... — jogou as palavras a esmo, sem fé.
Nina cerrou o olhar, e ergueu uma das sobrancelhas.
— Não vamos levar em conta o que Fred disse — Tália interveio, antes de Nina
expressar seu pensamento. — Ele não está nos em seus melhores dias.
— Esperem, — Nina anunciou em voz alta. — talvez ele não esteja louco. Mas
precisamos de mais provas.
— Quanto tempo essa poção demora para fazer efeito? — Ian perguntou, ansioso. Seus
olhos escaparam pela janela, e contemplou os prédios ao fundo da cidade zero-hora,
simples, escuros e cheios de infernais. — Não é como se tivéssemos muito tempo.
— Algumas horas, talvez um dia — Nina respondeu. — Eu não tinha muitos recursos,
e estou esgotada demais para fazer um pacto que restaure a vitalidade dele por
completo.
— Definitivamente não temos esse tempo — Tália falou, soltando as palavras com
pesar. — Esse cara está a solta, e louco. Quem sabe o que ele pode causar.
— É, precisamos descobrir o que ele quer, e logo — Ian decretou, sem muitas opções.
Assistiu calado, Tália indo na direção de Fred e o chacoalhando. Nina a reprendeu, mas
Tália continuou o fazendo, sem dar ouvidos. O garoto foi acordando gradativamente, até
que ela o soltou e caiu contra o sofá, com os olhos arregalados, estáticos nos olhos
brilhantes dela.
Fred gaguejava para si mesmo.
— Bom dia — Tália o cumprimentou.
— Quem são vocês? — ele indagou, empurrando ainda mais as costas contra o sofá, e
recolhendo as pernas.
— Uma nephilim, um caçador de monstros e uma bruxa — Tália resumiu, irônica. —
Talvez agora as coisas fiquem melhor para seu entendimento, ou não.
Fred tossiu tentando gritar por socorro.
Ian chegou mais perto, sentando no sofá. O garoto, que ainda tremia de medo, o
analisou, e ficou parado quando seus olhos encontraram a pistola em sua cintura.
— O que vocês querem? — perguntou, assustado. Seus olhos passavam um brilho
fraco e frágil.
— Respostas — Ian respondeu, antes de Tália dizer outras de suas ironias. Nina sentou-
se ao seu lado, colocando levemente a mão nos joelhos de Fred. Ela era a mais demônio
entre eles, porém a única que passava ar maternal e acolhedor.
— O que aconteceu com você, garoto? — Nina indagou, com as palavras soando como
um sussurro confortante.
Fred se encolheu dentro dos ombros caídos.
— Aquele vampiro. — Virou-se de lado, e deixou as lágrimas rolarem pelo rosto. —
Ele matou todo mundo... — Ele não estava triste pela perda, não aparentava. Estava
confuso, com a cabeça turbulenta ao pensar no mundo dos infernais. Ian reconheceu
aquela expressão, era exatamente a sua, anos atrás.
— Sabe por que ele está atrás de você? — Ian foi quem perguntou, apesar de ver a
inquietação no rosto de Nina.
— Ele é um maníaco — Fred deixou as palavras saírem, pesadas, carregadas de
sentimento. Seus ombros estavam tensos, e os olhos cerrados, ainda úmidos. — Me
sequestrou e me manteve em cativeiro.
— Que ele é louco nós já sabemos — Tália retrucou. — O que ele quer com você?
— Eu sou rico — Fred não tinha rodeios para dizer aquelas palavras. Era, de fato, bem
abastecido. Não era incomum infernais se envolverem com ordinários ricos, para
roubarem sua fortuna, mas aquele era de longe o caso daquele vampiro. — Ele deve
estar querendo meu dinheiro, todos querem.
— Não — Ian negou, imparcial — Ele não quer dinheiro. Você falou algo sobre alma,
quando estava inconsciente.
Fred ficou mais pálido do que já estava. Mordeu o lábio e foi o deixando vermelho aos
poucos.
— Octávio, o vampiro, levou um sujeito para me ver. Tinha pele vermelha, muito
vermelha mesmo. E chifres de carneiro.
— Um bruxo — Tália disse a Ian e Nina. — Reconhece pela descrição?
— Silas, é o que parece — Nina respondeu, séria. — É um cretino que aceita fazer de
tudo.
— E por que estariam trabalhando juntos? — Ian perguntou, mais para si mesmo.
— O bruxo disse ao vampiro que colocaria sua alma novamente no corpo.
— Mas é claro! — Nina irrompeu, contente com a descoberta. — O vampiro pensa que
você é o posterior dele.
— Eles falaram esse nome — Fred completou, temendo.
— O que é isso? — Ian a olhou, e viu o fulgor no olhar de Nina.
— Quando um vampiro é transformado, ele morre por alguns segundos. Tempo
suficiente para sua alma sair do corpo. — Nina apontou para o rapaz magro, ao seu
lado. — Fred é a reencarnação da alma do vampiro, depois de algumas vidas.
— E por que o vampiro iria querer sua alma? — Tália foi quem inquiriu, com as mãos
na cintura.
— Para voltar a ser humano — Nina replicou. — Apenas isso. É um ritual complicado
de ser fazer, requer muito esforço, magia, e a alma. É o único ritual de regressão
conhecido por vampiros.
Fez-se um silêncio entre eles. Ian se perdeu, fitando os pulsos finos e com sangue
pisados, encolhidos contra o corpo fino de Fred. Os infernais haviam acabado com mais
uma vida, arrancando aquele menino inocente da realidade, e o trazendo a força para o
mundo de sangue.
Vampiros sempre excediam os limites com suas ambições, era uma lei universal.
Um barulho alto ressoou fora do galpão.
Ian olhou ao seu redor. Tália e Nina não estavam muito preocupadas, ao contrário de
Fred, que tremia como as paredes. Olhava para todas as direções, com as vistas rápidas.
— É ele! — exclamou, assustado. — Ele nos achou!
Ian se levantou no momento do segundo abalo. Soou alto igual o primeiro. O barulho
era estridente, parecia-se com um arrombamento.
— Não pode ser — disse, direto. — Esse lugar é revestido com um feitiço de proteção.
Nenhum infernal pode entrar.
— Mas e elas? — Fred apontou para Nina e Tália. Ambas o olhavam, frustradas. —
Uma é uma bruxa que atira fogo, a outra...
— Na verdade, eu não sou uma bruxa — Tália respondeu, veloz.
Nina se afastou deles, com os olhos longe, pensativa
— O que é essa droga de barulho, então? — o tom de Fred passava uma sensação de
desolação total. Transmitia o vazio do medo, a hesitação nas palavras e a falha dos
músculos da boca.
O terceiro barulho estalou.
— Esperem — Nina os interrompeu. — Ele não precisa entrar aqui para pegar o garoto,
precisa?
Ian pegou a ideia dela no ar, numa troca de olhares que apenas os dois podiam efetuar.
Anos de convivência e intimidade, que deixa Tália ansiosa para saber o que era.
— Não, não precisa. Não ele diretamente.
Tudo o que se decorreu foi muito rápido. Tália suspirou, finalmente raciocinando no
que podia estar causando aqueles barulhos. Foi nesse segundo que ouviram o baque
final, com a grande porta de metal cinzento caindo no chão, levantando uma cortina de
poeira.
A multidão entrava frenética, correndo como bois num rebanho. Vampiros
compartilhavam a incrível habilidade de hipnotizar ordinários. Os transformando em
condenados. Uma vez no transe, os humanos serviam ao vampiro sem questionar. Essa
habilidade crescia através dos anos.
Ian já tinha se encontrado com vampiros velhos, antigos o suficiente para condenar dez
pessoas de uma vez só. Mas nunca viu aquele exército de pessoas. Eram mais de vinte,
ou trinta. Todos corriam em sua direção, alguns portavam armas improvisadas como
ferramentas, outros tinham apenas pedaços de ferro e madeira.
Os zumbis de olhos vermelhos eram rápidos e viciados, mas não racionais.
Teve poucos segundos para ficar boquiaberto. Logo atirou, se arrependendo no mesmo
instante. A mulher gritou, estridente e real. Ela saiu do transe quando a bala se alojou
em sua coxa, e caiu no chão, sangrando. Eram ordinários, ainda que armados e
influenciados a o matar.
Não tinha muito tempo para pensar. Por um triz, outro condenado, não muito longe,
errou a pequena machadinha que jogou. Ian não podia se dar ao luxo de relutar, não ali,
cercado.
Avançou junto a Tália.
Estavam longe de ter simetria em embates, muito mesmo. Tália e seu namorado
lutavam contra demônios nas horas vagas, e eram um só. Se complementavam, em cada
soco, em toda rajada de fogo. Ian era solitário. Contava sempre consigo, sua pistola e
uma faca de caça.
A cabeça quase foi ao chão, quando foi acertado por um soco fraco. Viu Nina, numa
fração de segundo, ao fundo, junto a Fred. Ela não lutava, não precisava o fazer. Tinha
seus demônios de estimação que faziam todo o trabalho sujo.
Voltou ao seu mundo quando se ergueu, e não deu para trás ao atirar num homem que
vinha contra si, em uma velocidade descomunal. Seria atingido novamente, se não fosse
por Tália, rápida. Os desarmava e nocauteava-os sem receio, com sua agilidade e força
sobre-humana, além do fogo, que casualmente usava para os espantar.
Nina gritou o nome de Fred, quando os condenados o levaram à força. O garoto gritou
para todos os santos e deuses, mas nenhum o ouviu. Ian tentava chegar até ele, mas o
pente da pistola havia esvaziado, e Tália, além de longe, estava ocupada demais. Os
condenados levaram o garoto para fora, com a força de um mar atormentado.
Os esforços dos três foram em vão. Nina não conseguiu sair do canto em que a
prenderam. Tália tinha ainda uma multidão de pessoa à sua frente, e, pelo sangue que
escorria pelo canto da boca, já estava bem fadigada. Até que recarregasse sua pistola,
Ian não podia fazer muita coisa, senão empurrar e dar socos não muito sólidos.
Fred deu seu último grito. Sua boca foi tampada abruptamente.
Octávio estava na porta, uma sombra única e vazia, de olhos vermelhos. Apertava
fortemente Fred contra seu corpo pálido e antigo.
— Não entrem em meu caminho mais uma vez — sua voz era tão rouca como Ian
lembrava. Apesar do jogo de sombras, era visível a queimadura em sua bochecha
magra.
Foi num piscar que Octavio desapareceu, pulando e se misturando ao céu escuro, se
fundindo as sombras, levando Fred junto.
Os condenados foram caindo, um a um, como máquinas. O homem corpulento que dar-
lhe-ia um soco foi ao chão, em segundos, mole igual gelatina. Viu Nina, ainda no
mesmo canto, com uma maré de pessoas nos calcanhares. Se entreolharam, sem
entender. Nina, certamente, teria uma resposta para aquilo.
Contudo, Tália apareceu na frente do galpão, com sua moto roncando e faróis altos.
Acenou com a cabeça para sentar-se. Nina acenou com a cabeça, dizendo que poderia
dar conta daquelas pessoas estiradas e inconscientes.
Ian pulou na moto, se segurando em Tália, e ambos seguiram rumo à noite sem fim.

A madrugada já tinha dado todo seu potencial.


Noites estranhas eram comuns, até certo ponto. Lobisomens, carniçais, fadas eram
apenas pessoas a qual compartilhavam as ruas. Porém, um vampiro que desejava voltar
a ser humano, era uma novidade.
Vampiros gostavam da eternidade, de não se preocupar com o tempo e com a velhice.
Se exibiam por isso, se tornavam mais fortes e experientes com isso. Octávio era uma
raridade e tanto.
Os borrões de luz passavam rápidos, deixando-o tonto. Tália dirigia com precisão, não
errando uma esquina. Cosia os carros sem errar, e seguia respirando lentamente. O
ronco da moto era apenas num detalhe na paisagem. O dia já estava chegando, e
madrugada indo embora. Não tinham muita noção para onde ir, depois que saíram do
depósito, porém, não demorou muito par o céu se agitar em um certo ponto da cidade.
Por sorte, os ventos sopravam para um lugar nada distante.
Outro prédio velho no centro, esse era o cenário deles pela segunda vez. Esse, diferente
do outro, não parecia ser tão abandonado. Era bem cuidado, mas não escapava do efeito
do tempo. Alguns homens condenados rondavam térreo, com barras de metal em mãos.
Saltaram para fora da moto. O concreto gelado os recebeu, fixo contra os ventos
agitados que cercavam o edifício. Independente de como fosse, o ritual já havia
começado. Sem perderem tempo, correram para as escadas, atropelando e deixando no
chão todos em seu caminho. Os condenados tentavam, mas Tália conseguia os desarmar
e derrubar antes da segunda reação.
Chegaram ao penúltimo andar, e foram recebidos a tiros. Se abaixaram atrás de uma
mureta sem utilidade, enquanto outros condenados de olhos vermelhos atiravam com
armas.
— Eles podem fazer isso? — Tália indagou, irônica. — Pensei que só babavam.
Ian a puxou mais para perto, e se apertaram num espaço quando uma nova rajada
ressoou.
— Eles podem fazer tudo que o vampiro mandar — respondia com palavras lentas,
pensando no que fazer. — Tália, você precisa subir.
— Nós precisamos — ela completou, corrigindo-o.
— Na verdade, não. Por enquanto, suba sozinha, vou logo atrás.
Não deu tempo para ela contestar. Botou meio corpo para fora da coberta e atirou tudo
que tinha, fazendo os condenados se esconderem atrás de paredes e portas. Tália subiu
escada acima, sem olhar para trás.
Ian voltou a se abaixar e recarregar a arma. Depois do clique gelado, veio a saraivada
de tiros afundando contra a parede.
Atirar e não errar era complicado, principalmente quando não possuía uma outra opção.
Tinha que acertar todos os disparos, Tália estava no próximo andar, com o vampiro, no
terraço. Tinha que ir a ajudar, não podia ficar parado como uma estátua, com medo. Se
levantou, e atirou sem ver muita coisa.
O mundo se abafou, e seu perfume se tornou o cheiro da pólvora sendo queimada.
Disparava conforme as batidas do coração, rápidas e sem errar. Os arcos de sangue
foram se levantando, um após o outro. A sinfonia das cápsulas caindo no chão o
aliviaram o coração.
Seus olhos já não capitavam nenhum condenado.
Subiu as escadas, aliviado.
E viu apenas fogo. Um vermelho alaranjado intenso, ardendo em todos os lados, até
mesmo subindo aos céus. Tália e Octávio eram luzes no escuro. Velozes e sem erro, iam
de um lado para o outro, entre socos, chutes e arremesso de fogo. O vampiro conseguia
desviar das chamas, mas não dos chutes que se sucediam. No chão, além de Fred que se
rastejava para longe, havia um pentagrama com entalhes em dourado, apagando aos
poucos.
Ian mirou para atirar no vampiro, mas sua arma voou para longe, de súbito. O bruxo
vermelho com chifres estava ao seu lado, jogado no chão, com uma perna sangrando um
líquido azul. Envolvendo as mãos para perto do corpo, o infernal preparou outra magia,
essa concentrada e mais elaborada. Ian se jogou para a lado, e as chamas azuis atingiram
apenas o ar.
Sem pensar duas vezes, correu na direção de Silas e o chutou, na cabeça, fazendo seu
crânio quicar no chão.
Voltou toda sua atenção ao confronto.
Tália tinha sangue escorrendo por um pequeno corte na bochecha, e não parecia estar
tão bem. Em contrapartida, Octávio também não estava em seus melhores dias. Ambos
estavam desgastados, e o confronto já estava lento, com movimentos improvisados e
mal executados.
Fred correu em sua direção, com as pernas falhas.
— Eles vão acabar se matando — sibilou, fraco. Seus olhos estavam fundos, e os
pulsos amarrados com cordas fortes. — Você tem que fazer alguma coisa!
Entrar no combate não era uma opção viável. Na verdade, tudo que poderia fazer era
assistir. Porém, uma ideia estranha brotou nas brumas de seus pensamentos
instantâneos. O vampiro lutava com Tália não por a odiar, ele ansiava a alma de Fred, e
os mataria se ficassem no caminho.
Mas, se Fred não estivesse mais entre eles, não haveria pelo que lutar.
Ian puxou o garoto pelo pulso e o envolveu com os braços, apontando a pistola para
seus miolos.
Octávio parou onde estava, e caiu para o lado quando o soco de Tália o atingiu.
— Não! — gritou, em um tom que poderia dar pena. Seus olhos cansados estavam
arregalados, e as presas quase caindo, de tão expostas. Apesar de uma carapaça sem
alma, Octávio ainda tinha um pouco de humanidade. Seus atos foram, em parte,
humanos, calorosos, nada comparado com os outros vampiros. — Não ouse!
Fred gritou de susto, e começou a tremer nos braços de Ian. O caçador não estava muito
forte ainda, seus músculos pediam por descanso já. Os empurrões do garoto, para se
libertar, eram irritantes.
— Você não faria isso, caçador, não se soubesse como é essa maldição — Octávio
contava em tons baixos. Os olhos escarlates foram aos poucos se apagando, e as presas
se recolhendo. — Sou fadado a viver para sempre, e morrer quando alguém resolver me
matar. Não vou para o paraíso ou inferno, apenas sumo. Essa consciência apaga, sem
mais ou menos. Eu quero apenas voltar a ser humano.
Sem estar histérico, Octávio tinha um bom semblante. Olhos grandes, porte físico alto e
rijo, além de não se vestir de trapos. Ele definitivamente era diferente. Não nas roupas,
não no jeito, mas apenas na maneira de se portar. Tinha humanidade nas palavras, ainda
mantinha calor no peito.
Ian foi pego mais uma vez por seus dilemas existenciais. De um lado, Fred, um
ordinário normal e fútil que pagaria rios de dinheiro para continuar vivendo sua vida
vazia e oca, e do outro lado, Octávio, o vampiro com séculos de existência, que,
aparentemente, se arrependia de tudo que já tinha feito. .
Fred bateu com o cotovelo em sua barriga, e Ian pensou seriamente em o jogar para
Octávio. O vampiro era, em partes, inocente. Queria apenas o que era seu, nada mais.
Certamente sumiria quando voltasse a ser humano. Já Fred, não cansaria de ser capa de
revistas idiotas e sem conteúdo real.
A balança pesava mais para o jovem ordinário, de certo, mas o dinheiro a invertia,
virava o jogo. O dinheiro fazia de Ian um cretino, em vez de um justiceiro. Não cabia a
ele fazer as regras da noite.
Com remorso, atirou no peito de Octávio, num instante rápido. As balas furaram o
vampiro como papel, e ele cambaleou para trás. Sem perder tempo, Tália o empurrou
com fogo, o fazendo incendiar como um pavio molhado de álcool. Antes de cair do
prédio, Octavio já era apenas um amontoado de cinzas.
O grito rouco desapareceu com a queda.
Ficaram segundos se entreolhando, pensando no que tinham feito com tamanha
coordenação
— Formamos uma boa dupla — Tália disse. — Tinha até me esquecido. — Se
aproximou deles, limpando a testa que escorria suor.
Ian soltou Fred, não vendo mais necessidade de ter o menino suado colado ao seu
corpo.
Suspirou.
— Acabou — decretou. Fechou os olhos por um segundo, e deixou os ombros se
relaxarem. A noite tinha sido turbulenta, mais do que isso, insana. Lutas, salvações e
perseguições em menos de cinco horas. Não desejaria isso tão cedo novamente. —
Finalmente.
Fred se encolheu em um canto, com o olhar apertado, e em seguida explodiu, levando
os pulsos à cima da cabeça.
— Vocês são incríveis! — exclamou. — Vocês acabaram com aqueles caras!
Tália o deu um tapinha nas costas dele.
— Não pense que acabou. — Apontou com o queixo para a poça de sangue de cor
estranha, onde Silas deveria estar.
— Mas... — Fred se virou a Ian, gaguejando. — Você o chutou, na cabeça...
— Bruxos conseguem ser pior do que o próprio diabo em si — respondeu, forçando
descontração. — Mas não vamos ter problema com ele, muito menos você, Fred.
— Sério? — Fred duvidou, não crendo nas palavras calmas de Ian.
— Sim — tornou a afirmar. — Ele vai correndo para a barra da saia de Eliza, e por lá
vai ficar durante um bom tempo.
— E agora? — Fred indagou, curioso como uma criança — O que fazemos?
Ian olhou para Tália. Ela retribuiu, sorrindo com o canto da boca.

Fred não tinha medo em dar seu dinheiro.


Pagara Ian sem nem ao menos pensar duas vezes, dobrando o que Ian propôs. Depois
de saírem de seu apartamento, Ian o pediu para o levar a um lugar especial.
As perguntas do garoto não cessavam durante o caminho, mas o som do rádio do carro
era o suficiente para fazer Ian se deleitar em seus devaneios, ignorando Fred e o mundo.
Mais uma vez tinha feito o certo? Sua vida era um caminho fino, sem certo ou errado.
Não podia dar-se ao luxo de escolher entre moral ou ética. Era Ian, o inescrupuloso que
trabalhava por dinheiro. O jovem que andava pelas ruas estranhas da noite, com uma
pistola em mãos, coragem no peito e dilemas na cabeça.
Podia contar com Nina o quanto quisesse, ou até mesmo com Tália, mas elas não
sabiam um terço do que sofria ao apertar a droga do gatilho. Mil possibilidades enchiam
seus pensamentos frios, os transformando em estrelas quentes, eclodindo, uma após a
outra.
Quando dobrou uma esquina, viu Octávio. Não, era impossível ser o vampiro. Era
apenas um senhor velho, de cabelos brancos e feições parecidas. Pensou em infinitas
hipóteses. Poderia ter dado Fred a Octávio, e seguiria sua vida sem remorso, seguiria?
Ou ficaria se remoendo, como estava?
Talvez se não tivesse ajudado Fred no prédio velho, nenhuma daquelas dúvidas
passariam pela sua cabeça. Octavio voltaria a ser um humano, um senhor, e morreria,
sem envolvimento com os infernais. Desaparecia em alguns dias, sem deixar vestígios.
Ian não era obrigado a o matar.
Parou o carro na porta da Santa Casa.
— Quem viemos ver? — Fred perguntou, incessante. Ele tinha um tom alegre, que
fazia qualquer um duvidar se ele era de fato o jovem acorrentado, sem vida. — Aquela
bruxa dos cachorros vermelhos?
— Nina não trabalha aqui — respondeu, sem rodeios. — Além do mais, não eram
cachorros vermelhos, eram demônios.
Saíram do carro juntos. Tinha a impressão que Fred não gostava de ficar sozinho, não
mais. Todo passo que dava, o garoto repetia, como um mico imitador. O local cheirava
a álcool e produtos. Ian não se importava, nunca se importou de fato com a imensidão
branca e pessoas passando de um lado para o outro.
— É uma curandeira? — Fred quase esbarrou numa médica, que os driblou, rápida.
— Não — negou. — É uma velha amiga. Apenas.
Fred assentiu, como se estivesse aprovando.
Entraram num corredor com macas nas paredes, e aparelhos anexados. Beth estava
parada, sentada numa das camas móveis, com o celular em mãos. Levantou o olhar
quando os viu.
Era toda olhos preocupados e cabelos cinzentos, apesar de não ter a idade para os ter,
de fato.
— Ela é velha mesmo — Fred murmurou para Ian.
Beth não se importou em responder.
— Isso é uma maldição, na verdade, eu tenho só trinta anos.
E, mesmo com palavras ásperas feitas para vetar, Beth soava doce. A maga tinha anéis
cravejados nos dedos, e joias pelos pescoço, ouro e prata que contrastavam fatalmente
com o uniforme branco de enfermeira chefe.
Fred levou uma mão à boca.
— Por que trouxe esse garoto aqui? — perguntou a Ian, não gostando muito da ideia.
— Preciso que faça um favor, um daqueles bem drásticos — engasgou, para não
revelar a Fred o que realmente tinha em mente. — Ele foi sequestrado por um vampiro,
precisa de cuidados.
Ser inserido no mundo dos infernais da maneira que Fred fora, não era nada agradável.
Ian sabia disso, tinha vivido experiências piores, e tinha total conhecimento que a
sanidade de um ordinário era uma linha tênue e pronta para ser rompida.
— Eu estou bem — Fred disse, batendo no peito.
— Isso pode demorar um pouco, vou estar lá fora. Nos encontramos quando você
terminar, Beth.
Antes de Fred começar com objeções, Ian foi embora, sem ousar olhar por cima do
ombro. Beth cuidaria do rapaz, tinha certeza. Cuidou dele quando precisou, quando foi
exposto a tudo aquilo. Depois do sumiço dos pais, Beth serviu como um pilar de
sustentação, onde Ian podia sempre contar e apoiar-se. Era como uma tia distante e
muito apegada.
Não soube ao certo quando chegou ao salão de espera, e sentou-se com uma revista em
mãos. Seus calçados ainda tinham manchas de sangue, e a arma escondida embaixo do
casaco o fazia ficar preocupado, mesmo que revestida por feitiços que a disfarçavam
para ordinários. As linhas das matérias o faziam se desconcentrar, com frases longas e
sem sentido. Emagrecimento, dietas, maquiagens, signos, tudo isso se embaralhava em
sua mente com vampiros assassinos e um mero garoto como ele.
Ficou num transe temporal, sem prestar atenção nas pessoas que passavam aqui e ali,
como vultos tenebrosos. Pegou outra revista, essa o chamou mais sua atenção. Na capa,
um jovem empreendedor estampava. Frederico.
De súbito, levantou as vistas e viu Beth passando ao fundo, com os cabelos cor de aço.
Fred saiu, como todo bom esnobe, olhando as pessoas que se atreviam a esbarrar em sua
blusa de grife. Ian teve o impulso de o seguir, se esgueirando entre as pessoas que
passavam em sua frente.
Passaram pela porta juntos, e Fred o olhou, com o cenho franzido. O olhar desceu para
a revista, e depois para os coturnos cheios de sangue seco. Saiu andando para o outro
lado da calçada, sem pensar duas vezes.
Ian sorriu para si mesmo.
Lá fora, os primeiros raios de sol começavam a dar as caras, e o vento fresco da
primavera trazia calma. As folhas farfalhavam ao longe, nas copas das árvores verdes, e
nos pequenos jardins nas ruas. Os ordinários começavam a sair de suas casas, calmos e
tranquilos, preenchendo a cidade com a vida que a noite não podia trazer, enchendo
aqueles corredores de concreto de humanos. Sem lobisomens, carniçais ou bruxas.
Apenas humanos.
Pegou o telefone no bolso, quando o aparelho começou a tocar.

Você também pode gostar