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Texto parte do Material de Apoio ao Professor do Jogo “As Viagens do Tambor” (2018). Este
texto foi elaborado por Daniele Machado Vieira, a partir da pesquisa de mestrado da autora, cujo
tema são os antigos territórios negros constituídos em Porto Alegre entre as últimas décadas do
século XIX e as primeiras do século XX.
pessoas se percebem culturalmente em relação aos signos presentes. Nesta
perspectiva, a demarcação dos limites físicos do território está diretamente
relacionada à delimitação simbólica: das representações que se deseja para
aquele espaço.
A noção de territórios negros aqui utilizada provém de um pensamento da
Profª. Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, que, não por acaso, também é
uma das personagens do jogo. Ela elabora uma noção de “mundo africano”
(2010, p.12) como espaço físico e simbólico, habitado e significado por mulheres
e homens negros. A chave para a concepção de território negro provém dessa
articulação entre espaço físico e simbólico, cuja construção de significados
estejam relacionados à efetiva presença de mulheres e homens negros e suas
práticas culturais, ou seja, suas territorialidades.
Assim, nossos territórios negros são espaços físicos e simbólicos. São
espaços físicos – de moradia, trabalho, lazer ou religiosidade – que se
caracterizam pela grande concentração de pessoas negras. E são espaços
simbólicos, repletos de sentidos e significados relacionados às práticas ali
existentes, que remetem a uma ancestralidade negra, a uma memória negra, a
um modo de ser e estar negro.
As mulheres e os homens negros que habitam esses espaços imprimem
neles práticas e relações e, sobre eles, constroem laços entre si, laços de pertença
com o espaço, com as instituições ali presentes – terreiros, sociedades negras,
escolas, salões de baile, clubes de futebol, blocos e entidades carnavalescas – e
com as práticas nelas desenvolvidas. O simbolismo está relacionado aos
significados e sentidos que homens e mulheres negras constroem sobre estes
espaços.
Assim, território negro será aqui concebido enquanto espaço físico e
simbólico, configurado a partir da funcionalidade (habitação, trabalho, lazer,
congregação) e/ou da prática cultural (batuque, carnaval, religiosidade, capoeira)
exercida por mulheres e homens negros, cuja significação é construída a partir
da presença negra e/ou das atividades desenvolvidas por estes. Esse espaço é
referenciado como expressão e extensão do grupo, concretizando-se um
território negro.
Para ilustrar a diferença entre os conceitos até aqui abordados: espaço,
território (e território negro) e territorialidade (e territorialidade negra), trazemos
o exemplo da Esquina Democrática, localizada no Centro da cidade de Porto
Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Essa esquina existe a partir do encontro de
duas importantes vias: a Rua dos Andradas (popularmente ainda chamada de
Rua da Praia, seu primeiro nome) e a Av. Borges de Medeiros (uma descida,
neste trecho). A Av. Borges de Medeiros foi palco de antigos carnavais,
conhecidos como “Descida da Borges”, até a remoção dos carnavais do Centro.
Há alguns anos, essa prática cultural – os carnavais na área central – vem sendo
retomada. As famosas “Descidas da Borges” são pré-carnavais que ocorrem nas
sextas-feiras dos meses que antecedem a festa oficial. No cotidiano, a Esquina
Democrática tem múltiplas funções: lugar de passagem, ponto de encontro, palco
de artistas de rua, manifestações políticas, entre outras. Nesse caso, ela é um
espaço. A partir do momento em que o povo carnavalesco (das Escolas de
Samba) e o público (que pode atingir 30 mil pessoas) começam a chegar (no
final da tarde), aquele espaço geográfico é apropriado física (em sua
materialidade) e simbolicamente (tem seus sentidos e significados alterados),
tornando-se um território. Sendo a manifestação carnavalesca uma prática
cultural associada à população negra, ela transfere para aquele território parte
de seu simbolismo. Assim, esse território se configura como um território negro
pela presença majoritária de pessoas negras e pela territorialidade carnavalesca
e negra que transfere a ele seus significados.
Embora aparentemente consolidados, os territórios correspondem a um
jogo de forças entre múltiplos sujeitos (por ex., os carnavalescos, o poder
público, a vizinhança do bairro) e seus respectivos interesses, que, por vezes, se
chocam a ponto de fazer desaparecer territórios. Isso ocorreu com muitos dos
territórios que compõem o jogo, os quais passaram por um processo de
desterritorialização.
No caso do carnaval, exemplo até aqui abordado, o controle do território
está relacionado à tentativa de inibir uma prática, um tipo de uso: a festividade
carnavalesca. A rejeição a essa prática cultural, que é também espacial, extrapola
a questão material da ocupação do espaço nos dias de festa, estando sua
restrição também relacionada às representações simbólicas que essa festa
confere ao espaço. No Brasil, o carnaval está relacionado à cultura negra, à
população periférica, a um ritmo musical específico (o samba), ao caráter
espontâneo e popular da festa e, infelizmente, à erotização do corpo feminino.
Tais representações, por vezes, são concebidas como negativas, havendo um
julgamento moral da festa e de seus signos.
A conflitualidade entre esses usos, ou seja, entre as múltiplas
territorialidades (HAESBAERT, 2008), pode resultar na desterritorialização de
uma ou mais práticas. Para além do processo de segregação urbana, de perda
de território físico, a desterritorialização é entendida como um processo
decorrente da perda de vínculos simbólicos com o espaço. Seus efeitos podem
levar ao enfraquecimento de laços de pertencimento e à consequente perda de
referenciais espaciais e culturais por parte dos grupos desterritorializados. A
inibição de uma territorialidade, mesmo que não haja deslocamento do grupo
para fora da área restringida, poderá resultar, no decorrer de algumas gerações,
no esquecimento da prática cultural vinculada àquele espaço. Acarreta, desta
forma, prejuízo à memória coletiva do grupo e do local.
O que estamos concebendo como territórios negros nem sempre são
espaços exclusivamente negros, mas nos quais a presença negra é uma questão
central. No contexto urbano, os espaços concebidos como territórios negros não
foram exclusivamente de negros, pois desde os tempos da escravidão eram
habitados também pelos pobres e excluídos da sociedade (ROLNIK, 2009, p. 10).
A urbanista Raquel Rolnik, no entanto, destaca que “isso não quer dizer que
historicamente não tenham existido, nessas cidades, comunidades afro-
brasileiras fortemente estruturadas e circunscritas a territórios particulares”
(idem). É nesta perspectiva que insistimos na existência de uma comunidade
negra que, inserida num determinado espaço, acaba por conformar um território
negro.
Por isso, Leite considera importante pensar as formas de ocupação e as
diferentes estratégias de constituição e manutenção destes territórios, visto que
a noção genérica de territórios negros não esclarece a complexidade das formas
de apropriação do espaço por esses grupos (1991, p. 40). A autora sinaliza o
território negro como elemento de visibilidade a ser retomado, destacando que
as múltiplas estratégias utilizadas pelos negros na construção e manutenção de
seus espaços físicos e simbólicos não podem mais ser desconsideradas (LEITE,
1996, p. 50).
Tanto teórica quanto metodologicamente, o território negro será
concebido, aqui, pelo viés do agenciamento, como um espaço de construção de
singularidades e elaboração de um repertório comum, buscando romper com a
noção de território negro como uma história de exclusão (ROLNIK, 2009, p. 2).
REFERÊNCIAS