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Resenhas 163

escola e a família, ‘eivada de todo um poten- Eduardo Sá. Más Maneiras de Sermos Bons
cial conjunto de efeitos perversos’ (p.347). Pais: As Crianças, o Pensamento e a Famí-
As ‘armadilhas’ de que fala Pedro Silva po- lia. 6a edição. 2003. Fim de Século-Edições,
dem ser encontradas, igualmente, noutros 117 pp. ISBN: 972-754-200-X
tipos de relação em que as questões de po-
der são determinantes. Pretende o autor dar O livro de Eduardo Sá chama logo a atenção,
conta e alertar para os seus efeitos e, tanto pelo título, constituído por uma colectânea
quanto possível, dar o seu contributo para de 16 textos acerca da criança e da família,
‘desarmadilhar a prática’. Destaco ainda o tendo sido alguns deles publicados, em for-
facto de esta relação ter subjacente, nas soci- ma de crónica, na revista Pais.
edades contemporâneas, uma relação entre No texto ‘Bons Meninos Maus ... As Cri-
culturas, por isso o interesse do autor na anças e a Família’, o autor começa por referir
reflexão de conceitos como multiculturalismo que se nasce antes de nascer, pois, do seu
ou interculturalidade. ponto de vista, um filho nasce primeiro na
Ao integrar o enquadramento teórico-con- imaginação e no sonho dos pais, isto é, nas-
ceptual, exposto na primeira parte, com o ce primeiro num plano emocional. Em se-
conhecimento produzido através do traba- guida, Eduardo Sá fala acerca da importância
lho etnográfico, exposto na segunda parte, o da família, quer do ponto de vista dos filhos,
autor explica – no sexto e último capítulo, quer do ponto de vista dos pais, afirmando
‘Escola- família, uma Relação Multifacetada’ que ‘os filhos são quem mais nos faz sermos
– o seu pensamento e (re)cria uma conceptu- nós. Fazem-nos sentir menos sós; enterne-
alização da relação escola-família, ensaiando cem-nos, assustam-nos, desesperam-nos,
a abertura de novas direcções. Em particular, permitem que nos reencontremos e, de cada
o autor parte da existência ‘de duas díades: a vez que os sentimos parecidos connosco ao
das duas vertentes – escola e lar – e a das olhá-los, contemplamos a nossa eternidade’
duas dimensões de actuação – individual e (pp.15-16). O autor chama a atenção para a
colectiva’ (p.349). Pedro Silva, defensor de importância das crianças ‘brincarem aos pais
um estreitamento de relações entre escolas e e aos filhos’, permitindo, assim, que estas
famílias, por razões ideológicas – uma vez dramatizem o comportamento dos pais e,
que acredita no potencial democratizador perante si próprias, ao viverem o lugar do
dessa relação – e por razões pragmáticas – outro, o possam pensar. Este texto termina
porque acredita que se aprende a colaborar, referindo que, quando os pais silenciam os
colaborando – discute, criticamente, ‘a rela- afectos, as crianças tornam-se medrosas, in-
ção escola-família, num trabalho que acaba seguras, indisponíveis para amar, pouco cu-
por revelar um percurso algo circular, macro- riosas e tristes, o que traduz a importância
micro-macro’ (p.347). dos afectos da parte dos pais para com os
Recomendo, vivamente, a leitura deste li- filhos.
vro – em particular, o sexto capítulo e as Em ‘O Pensamento dos Bebés: Realidade
direcções apresentadas – a quem ‘mescla [...], e Fantasia na Relação Precoce’, o autor co-
assumidamente, uma postura de cientista meça por relatar uma história acerca de uma
com a de cidadão, ou, se se preferir, aponta senhora grávida que foi a uma consulta e o
para uma postura de cientista-cidadão ou de obstetra lhe fez uma ecografia de rotina, a
cidadão-cientista’, uma caracterização que, que o outro filho de 4 anos assistiu. Esta
na verdade, se aplica hoje a todos aqueles criança, depois de lhe terem explicado o que
que, de um ponto de vista profissional, fami- estava a ver no ecrã pergunta se, da próxima
liar, crítico ou teórico se encontram confron- vez, pode trazer o seu pai, porque este arran-
tados com a encruzilhada sociocultural e ja televisões. Na verdade, neste momento do
política entre a família e a escola. livro, Eduardo Sá dirige a atenção para o pen-
samento dos bebés, referindo-se a sensações,
Dulce Simões a movimentos de habituação sensorial e a
Instituto Superior Miguel Torga emoções, concluindo que um ‘feto emocio-
na-se, reage e comunica’ (p.25).
No texto ‘O Pai Natal’, considera-se que
‘o Natal chega quando nos chegamos para
junto de quem nos faz sentir ao pé da nossa
liberdade’ (p.35). Seguidamente, é enfatizada
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a importância das prendas que se oferecem resmunguem de manhã, lembrando aos pais
no Natal, pois são estas que nos levam a que estes lhes exigem ritmos acelerados. 7) É
pensar que não estamos sós e que quem nos bom que as crianças desmanchem as coisas
oferece um presente, para além de uma lem- para as arrumarem a seguir, uma vez que
brança, o faz em função do que conhece de viver é montar e desmanchar ideias para as
nós. montar de seguida. 8) É bom que as crianças
Na narrativa seguinte, ‘Os Grandes Ami- sonhem acordadas. 9) É bom que as crian-
gos dos Pequenos’, faz-se a comparação en- ças brinquem mais do que estudam e, sobre-
tre ‘o brincar da criança com os brinquedos’ tudo, que brinquem com os pais. 10) É bom
e o ‘brincar dos adultos com o trabalho’, que as crianças tenham más maneiras para
acrescentando que é essencial brincar e jo- os pais, já que ao dizer-lhes ‘não’ é ter espa-
gar. No entanto, o autor mostra preocupação ço para dizer ‘sim’ ao que sentem. 11) É bom
relativamente à forma compulsiva como al- quando as crianças não dormem de noite,
gumas crianças brincam, bloqueando-lhes o uma vez que ter medo de adormecer é dizer
pensamento. aos pais que se tem medo do que se vê quan-
‘O Príncipe com Orelhas de Burro’ recor- do se fecham os olhos, pedindo-lhes que fa-
re ao elefante Dumbo, referindo que ‘se nas- çam de ‘anjo-da-guarda’ do sono. 12) Mau é
ce muitas vezes depois de nascer, pois nas- quando as crianças desistam de falar. Em
ce-se para alguém, para projectos, para so- resumo, ‘talvez sejamos todos bons pais a
nhos, para ilusões, como se nasce para a quem, às vezes, faltam más maneiras de aju-
vida’ (p.45), tal como acontece com Dumbo. dar os filhos a pensar sempre que pensamos
E, em ‘Lucky Luke e a Sombra’, servindo-se por eles’ (p.58).
de desenhos animados bem conhecidos, O texto ‘A Idade dos Porquês’ fala acerca
Eduardo Sá lembra que ‘o medo da imagem do ‘não’, do ‘talvez’, do ‘porquê’ e do ‘cres-
do corpo esconde o medo do corpo e do que cer’. E, na sequência deste texto, temos ‘A
ele guarda e somos, de manhã, as primeiras Idade da Razão’, no qual é dada especial ên-
pessoas com quem ‘damos de caras’, ora nos fase ao aniversário e ao facto de não poder-
sentimos mais bonitos ora mais feios’ (p.49). mos nunca crescer sozinhos. Em ‘Histórias,
Em particular, é chamada a atenção para o Para Que Vos Quero!’, diz-se que, quando as
modo confuso como um bebé se confronta crianças brincam, é a sério, quando lêem, tal
com a imagem da mãe no espelho, como as como sonham, também é a sério: ‘talvez as
crianças se confrontam com o telefone ou pessoas se assemelhem a histórias por abrir
com as fotografias. Neste sentido, desde o e, pior, não partimos para a sua leitura com
início da vida do bebé, lhe damos as condi- uma disponibilidade essencial com que nos
ções para fazer a distinção entre imagens e entregamos às histórias’ (p.69).
identidade, considerando que, no fundo e a Segue-se ‘A Morte dos Heróis’, notician-
título de conclusão, ‘é a luz que dá a vida às do a notícia da morte do Super-Homem, afir-
sombras’ (p.50). mando que, para nós, terá sido uma desilu-
Seguidamente, em ‘Más Maneiras de Ser- são, pois, afinal, não era ‘super’. O propósi-
mos Bons Pais’, Eduardo Sá enumera-nos, to de ‘Silêncios’, o texto seguinte, é retratar
provocativamente, algumas formas para este Snoopy como um ‘cão metido consigo’, sali-
objectivo. 1) Nem sempre os pais são bem entando que, tal como o Snoopy, as crianças
educados na relação com os filhos, uma vez só se calam quando têm alguma coisa para
que fazem asneiras, têm birras, amuam, são dizer ou, pensar através do silêncio, é ter-
teimosos, mentem, mas porque ‘pai é pai’ mos a coragem de nos vermos por dentro,
são sempre ‘desculpados’ pelos filhos. 2) permitindo-nos crescer.
Um filho pode permitir o conhecimento en- O autor pergunta, em ‘O Nariz do
tre os pais. 3) É bom que as crianças min- Pinóquio’, se ‘mentir é não dizer a verdade
tam, uma vez que mentir é poder guardar os escondê-la...?’, salientando que o impor-
segredo. 4) É bom que as crianças roubem tante talvez não seja que se minta, mas a ver-
aos pais, sobretudo que lhes roubem a aten- dade que se deixa de dar conta, quando se
ção que estes não estão disponíveis para dar. mente, salientando, ainda, que as crianças
5) É bom que as crianças resistam à sopa, não mentem muito umas às outras com a
não porque a sopa não seja boa, mas por- consciência disso, mas fazem-no, sobretu-
que, assim, utilizam a sopa para conversa- do, às pessoas crescidas, esquecendo-nos
rem com a família. 6) É bom que as crianças nós, adultos, que ‘quando mentimos faze-
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mos sempre a realidade andar à velocidade Arthur T. Costigan, Margaret Smith Crocco,
da imaginação’ (p.83). Finalmente, pergunta Karen Kepler Zumwalt. 2004. Learning to
‘é importante para uma criança poder men- T e a c h i n t h e A g e o f A c c o u n t a b i l i t y.
tir?’, respondendo que, para além de impor- Mahwah, New Jersey: Lawrence Erlbaum
tante, é fundamental, preocupando-lhe ape- Associates. 288 pp. ISBN: 0805847081.
nas as crianças que mentem muito e as que
não podem mentir, porque não poder mentir Este é um livro diferente. É um livro diferen-
é não ser capaz de confiar e, ao contrário, te, pelas temáticas abordadas, os métodos
mentir é ser capaz de guardar um segredo. de investigação utilizados e as conclusões
‘Eternos para Sempre: As Crianças e a que produz. Incluído, desde o seu lança-
Morte discute a persuasão de que ‘somos mento, na bibliografia obrigatória de vários
eternos, porque perduramos dentro de quem cursos de formação de professores nos Esta-
nos dá o seu espaço interior e que morrer é dos Unidos e escrito por profissionais e aca-
desistir de pensar’, acrescentando que ‘emo- démicos com larga experiência nessa área,
cionalmente, não se nasce nem nunca se este estudo tem uma relevância que não se
morre sozinho, mas sim para alguém’ (p.87). reduz, porém, ao ambiente americano.
Seguidamente, em ‘Branca de Neve e a Bela A questão organizante do livro é a noção
Adormecida’, o autor fala do amor, referindo de profissionalidade docente, no contexto das
que ‘beleza, amor e verdade equivalem-se [...], escolas urbanas nova-iorquinas e numa épo-
pelo que amar não adormece, antes desper- ca de crescente ‘accountability’, recorrendo a
ta, e não há forma de se ser amado e perma- entrevistas extensivas com jovens professo-
necer adormecido’ (p.93). Finalmente, em ‘A res dos diferentes níveis de ensino. O objec-
Dor’, Eduardo Sá fala do seu trabalho, sali- tivo é analisar, no terreno, os processos de
entando que este se faz com ‘pessoas que me crescimento da identidade profissional do
procuram em função [...] da dor dos seus professor, em escolas, frequentemente, com
desencontros interiores e, comigo, se ten- ‘salas de aula sobrelotadas e com poucos
tam encontrar perante [...] a dor da consciên- recursos, alunos imigrantes que falam pou-
cia de si próprias’ (p.95). O autor aborda co inglês, desafios agudos, em termos de
várias perspectivas da dor, como, por exem- literacia, administradores e professores em
plo, a criança que brinca com a sua própria situação de burn-out, operações caóticas e,
dor, a dor do crescimento, a dor do parto em alguns casos, violência’ (p. ix, do Prefá-
para os bebés, a dor da separação: ‘A vulne- cio). A este cenário, há que adicionar uma
rabilidade à dor terá muito de interior e pes- política educativa baseada na testagem dos
soal, e estará em ligação com o vivido relaci- conhecimentos dos alunos, busca de resul-
onal’ (p.98). tados elevados (high-stakes) e na responsa-
O autor termina este livro, bilização do docente pelos resultados dos
provocativamente, poético, lustral e, para seus alunos (accountability). O livro não é,
muitos, sem dúvida, um livro ‘alternativo’, porém, maniqueísta, não divide as coisas em
com um apêndice sobre ‘O Pensamento e a boas e más. As análises e entrevistas ressal-
Ética na Relação Pedagógica’, a que se se- tam situações de resiliência – na presença de
guem as referências bibliográficas. um inúmero conjunto de factores associa-
dos com o insucesso, os professores conse-
Susana Ramos guiram impor a sua competência e obter bons
Faculdade de Ciências do Desporto da resultados – e, de igual modo, apresenta tam-
Universidade de Coimbra / Instituto bém situações de absurdo e turbulento
Superior Miguel Torga insucesso.
O livro é dividido em cinco partes. A pri-
meira e a última partes são dedicadas a apre-
sentar um conjunto de ideias centrais acerca
da investigação sobre o ensino, sendo o últi-
mo capítulo da autoria da professora Karen
Kepler Zumwalt, ex-directora do Teachers
College da City University de Nova Iorque.
Desta forma, no final do livro, aquela autora
procede a uma releitura de alguns dos aspec-
tos apresentados no capítulo inicial, agora

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