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o s o s s o s

DO MUNDO

F L A V I O D E R . C A R V A L H O
«

Ie ne fay r i e n

s a n s

Gayeté
(Montaigne, D es livres)

E x L i b r i s

J o s é M i n d l i n
• #
* \ \ . ) ü í >

Os Ossos do Mundo

Creio que este livro é um dos mais

interessantes da nova g e r a ç ã o . *

Gilberto Freyre
F l a v i o d e R e z e n d e C a r v a l h o

ARIEL, EDITORA LTDA.


RIO DE JANEIRO
19 3 6
P R E F A C I O D O A U T O R

O QUE VOU M Z E B SOBRE AS POSSIBILIDADES DE UM MUNDO


MESCLADO E PEBDIDO NO TEMPO, SOBBE AS OBIGENS DA A B T E
POPULAB, E SOBBE A I N F L U E N C I A MÁGICA DA P I N T U B A , NA CON-
DUTA E NA FOBMAGÃO DO POVO I T A L I A N O , SÃO N A T U B A L M E N T E
SUSPEITAS INTELECTUAIS, ALGUMAS BEM FUNDAMENTADAS, E
QUE CABEM P E B F E I T A M E N T E NUM L I V B O DESSA NATUBEZA, QUE
A F I N A L DE CONTAS NADA MAIS É SENÃO U M CADEBNO DE NOTAS
PASSADO A L I M P O , CONTENDO IDÉAS QUE SÃO T E N T A T I V A S PABA
UM ESCLARECIMENTO.
COMQUANTO ESTEJA FOBTEMENTE INCLINADO A A C B E D I T A B
NAS CONCLUSÕES A QUE CHEGUEI, POB MOTIVOS OUTBOS QUE
NÃO CONVÉM DESENVOLVEB NESTE L I V B O , ACBEDITO QUE ESTAS
SUSPEITAS INTELECTUAIS SEBÃO SUFICIENTES PABA DESPEBTAB
T U R B U L Ê N C I A MENTAL E O CONSEQÜENTE MELHOB ESCLABECI-
MENTO DO ASSUNTO.
ESTE L I V B O , ENCOMENDADO POB UMA EDITOBA QUE MAIS
T A R D E RECUSOU-SE A PUBLICA-LO, F O I CONFECCIONADO A ESMO,
SEM P B E O C U P A Ç Ã O ESPECIAL, MAS SEMPBE O AUTOB DESEJANDO
P B O D U Z I B UM L I V B O DE VIAJENS.

O AUTOR.
P r e f a c i o d e G i l b e r t o F r e y r e

Este livro de Flavio de Carvalho nos col-


loca diante de uma das personalidades mais
ricas e mais cheias de surprezas que o Brasil
tem hoje.
Flavio de Carvalho é dos que pela idade e
pelas circunstancias — trinta e sete ou trinta
e oito annos e paulista educado na Europa —
poderia ter sido "modernista" em 23. Moder-
nista como qualquer dos dois Andrades, o mo-
reno e o louro. Mas não f o i . Sua geração in-
tellectual é outra. Elle é post-modernista legi-
timo: appareceu depois do "modernismo" e
com outra mensagem. Intensamente moderno,
mas despreoccupado do "modernismo" littera-
rio em que aquelles dois escriptores admirá-
veis se extremaram até quasi o ridículo
G PREFACIO OE GILBERTO FREYRE

Sua geração intellectual é a de hoje; seus


companheiros mais próximos de geração, Cí-
cero Dias e José Lins do Rêgo. Sua mensagem
uma mensagem mais humana que esthetica, em-
bora de modo nenhum doutrinaria ou política.
Como esses dois nortistas, Flavio de Car-
valho arregala olhos de menino e ás vezes de
doido para vêr o mundo .Por isso vê tanta coisa
que o adulto todo sophisticado não vê. Vê tan-
tas relações entre as coisas que os adultos cem
por cento e os completamente normaes deixam
de vêr. Do sentido dessas relações vem o ly-
rismo novo e profundo, cheio de grandes cora-
gens, que ha nas notas de viajante de Flavio
de Carvalho. Ás vezes nestas notas elle não tem
que vêr. Cícero Dias, no romance que o grande
pintor nortista escreveu ha tres annos e con-
serva virgem até hoje: J u n d i á . O romance mais
intensamente lyrico que já se escreveu no
Brasil.
Apenas o lyrismo em Flavio de Carvalho
, se concilia com a sua objetividade de architecto,
de engenheiro, de technico moderno. Com os
seus estudos sérios das sciencias chamadas exa-
ctas. Com as suas pesquizas de psychologia.
Mas só um homem com a pureza quasi de
menino que ha em Flavio de Carvalho — pu-
reza no modo de ver as coisas, pureza no modo
PREFACIO DE GILBERTO FREYRE 7

de se sentir e de se ver a si próprio — seria


capaz de escrever as paginas magnificamente
sinceras que elle já escreveu sobre o medo. A
sua coragem de ter medo — que hoje só os me-
ninos têm — de se analysar nas suas sensações
mais profundas de medo, é das que o adulto
convencional, deformado pelos preconceitos de
bravura á hespanhola, de "he-man" á ameri-
cana, de "modernismo" á brasileira ou á Graça
Aranha, no
ã
têm. Entretanto o medo é creador.
Dá novas visões ao homem. Não ha razão para
se fazer do medo um tabú.
Toda a gente sabe que Graça Aranha fez
do medo um tabú. Queria que não se tivesse
medo diante de nada. O homem perfeitamente
moderno seria o que não tivesse medo de coisa
nenhuma. Que não faliasse de medo, pelo menos.
E Ronald de Carvalho, este detestava os in-
divíduos que se confessavam incommodados
com os ruídos das machinas modernas. Uma vez
eu disse a Ronald que o ruído de certa ma-
china me incommodava. Ronald olhou-me com
um grande desdém e disse: "Só parece que você
não é moderno".
"Só parece que você não é moderno" diria
hoje Ronald a Flavio de Carvalho, e neste caso
com toda a razão. Porque Flavio de Carvalho
não é modernista, mas post-modernista. Elle
8 PREFACIO DE GILBERTO FREYRE

tem a coragem de ter medo e de descrever os


seus medos. E tem a coragem de detestar os
ruídos das machinas insubmissas que ainda nos
cercam e de confessar essa repugnância. Elle
já J2«o é da idade que Lewis Mumford chamou
de paleotechnica — e a que pertenceram ainda
os nossos "modernistas", principalmente os do
Rio — mas da neotechnica. Já não é da idade
do homem agachado diante das machinas gran-
diosas e com desgosto e até vergonha de ser
de carne e de nervos, e não de ferro e de aço
como as próprias machinas. É da idade do ho-
mem retomando o seu lugar de elemento mais
importante que a machina na payzagem do
mundo.
Ha no autor deste livro uma grande sensi-
bilidade ao lado do gosto de ser objectivo. Um
grande lyrismo, ao lado do senso scientifico.
A capacidade de abstracção e de analyse ao
lado de uma poderosa sensualidade de expres-
são. Não que elle seja um verbalista, muito me-
nos o que os francezes chamam com desprezo
um tropicaiista. Ao contrario: é sóbrio e pre-
ciso. Mas ha côr e sexo nas suas palavras ás
vezes meio soltas, sem nenhum controle rígido,
nem da grammatica, nem da pontuação conven-
cional, nem mesmo do que um critico nosso
conhecido chama "dignidade de linguagem".
PREFACIO DK GILEERTO FREYRE 9

Estamos diante de uma personalidade no


mais puro sentido da expressão. São Paulo não
tem hoje um artista, nem um intellectual, nem
um scientista, com tantos poderes juntos.

GILBERTO FREYRE.
V

V o a n d o sobre as Costas

Brasileiras e Notas sobre

a sensação do medo.

Perdi o meu navio no Rio. Informa-


ção errada do steward. Seguiu-se u m a sé-
rie de peripécias e sustos e 3 dias depois
embarcava e m avião, rumo ao norte, c o m
uma promessa do comandante de me es-
perar e m Recife e u m a promessa da cosi-
nheira da minha tia a Santa Teresinha.
12 Os Ossos DO M U N D O — F L A V I O DE R. CARVALHO

5 horas da madrugada. Caes Mauá.


Apresentam-me ao comandante, o co-
mandante Klueth — é a sua primeira via-
gem desde ha 3 anos. A m a l a postal entra
na lancha e rumamos para a pequena ilha
da Panair.
E s t a v a e s c u r o e, e m r e d o r , o s navios,
as b a r c a s e os d i q u e s p a r e c i a m fantasmas
flutuantes. A agua, e m canto matinal e
alegre tatarateava contra o bojo do na-
vio aéreo... Homens de m a c a c ã o como
bonecos brancos m e x i a m e m silêncio no
preparo da aeronáve... A s sombras des-
pertavam vagarosamente do sono pesado
d a n o i t e e as m o n t a n h a s adormecidas en-
grossavam o ar fresco da m a n h ã . A s nu-
vens m e x i a m , e e m baixo o t u b o de gazo-
lina grosso e comprido branco e rugoso
parecia o penis de u m deus estranho. Dois
homens em movimento c o m seringas gi-
gantes injetavam óleo nos motores... a
aeronáve dava impressão de beleza e era
acolhedora como u m séxo de mulher.
Na cabina da ilha o comandante pre-
parava papeis, mapas e cartas de vento,
e conversava c o m o mecânico. — O tempo
clareava, as grandes sombras desapare-
ciam e os objétos iluminados pouco a
VOANDO SOBRE AS COSTAS BRASILEIRAS 13

pouco assumiam a fôrma convencional —


o comandante i n f o r m a - m e que partiria-
mos " l o g o que clareasse u m pouco mais".
E r a o único passageiro; saí para exa-
minar a luz; no horizonte as primeiras
manchas vermelhas do sol escondido,
tudo mais ainda escuro e cinzento e pon-
tilhado pela luz branca, das embarcações
em torno.
Através da f u m a ç a de u m cigarro sa-
boreei os ú l t i m o s cuidados dispensados á
aeronáve; entre as azas do aparelho, bo-
necos brancos m a n i p u l a m seringas gigan-
tes e caminham, pisando com cautela e
com a agilidade de aranhas: era como o
preparo e o enfeite de uma deusa para
u m rito sagrado. O silencio das sombras
emprestava u m ar de altar e a deusa imó-
vel recebia as caricias e o contacto das
pequenas creaturas... U m a porção de
m ã o s pucham o tubo; as entranhas da
deusa r e t ê m ainda o grande sexo branco
e comprido... Mais u m esforço e o tubo
cede p i n g a n d o . . . da superfície escura da
agua s á e o hino alegre louvando o feito.
É hora do café na cabina de embar-
que, ótimo café. — " V a m o s " . . . disse o
capitão — e dois toques de sino, embar-

n
14 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

que da tripulação. A tripulação é: coman-


dante, radiotelegrafista, m e c â n i c o ao lado
do comandante na cabina de comando e
cabinboy para cuidar as bagagens e bem
estar dos passageiros. A aeronave é de
duplo comando e o mecânico, ao lado do
comandante, pôde assumir o controle do
aparelho, proporcionando ao capitão u m
descanso merecido. A nave tem capaci-
dade para 16 p a s s a g e i r o s e é u m mono-
plano acionado por dois possantes moto-
res capazes de proporcionar uma veloci-
dade de cruzeiro de cerca de 200 k i l . por
hora com o vento a favor — nas costas
brasileiras o vento sopra quasi sempre de
Sul para Norte, o que é de particular in-
teresse no meu caso.
U m toque de sino: é o embarque dos
passageiros. Piso solêne na passarele, pe-
netrando no bojo do avião. Sou o único
passageiro, mas comigo segue, a serviço
da companhia, u m outro radiotelegra-
fista, u m sr. O s v a l d o Aranha — o cabin-
boy solícito nos ajuda a penetrar no
avião. Dentro, recostado confortavel-
mente n u m sofá, recebo do cabinboy u m
envelope transparente com algodão em
rajna para os ouvidos (ruido dos moto-
VOANDO SOBRE AS COSTAS BRASILEIRAS 15

res) e chewing'gum perfumado para subs-


tituir o cigarro (é proibido fumar) dentro
ou perto da aeronáve. O sr. O s v a l d o Ara-
nha solicita do cabinboy algodão comum,
demonstrando, após uma longa explica-
ção, que o a l g o d ã o c o m u m era m e l h o r que
o especial fornecido pela companhia. O
que naturalmente conduziu a conversa
para os diferentes tipos de algodão. Fa-
lou-se e m algodão de Seridó, na alta dos
p r e ç o s e na i m p o r t â n c i a que o Brasil assu-
mia no mercado mundial de algodão.

Motores em movimento, primeiro


lentamente para aquecer, falham u m
pouco, logo depois mais rápido e mais rá-
pido: a aeronáve rasga poderosamente as
águas, pelas janelas só agua, játos de
agua esmurram com violência as vidra-
ças, tudo parece estar em baixo d'agua.
Os motores param, a aeronáve assume
nova posição — para decolar só contra
o vento.
E m alguns minutos estamos em v ô o :
a nave levanta-se macia, sem ninguém
perceber, subíamos lentamente, em baixo
os navios diminuíam de tamanho, as ca-

*
16 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

sas adquiriam uma perspectiva nova, o


sol no horizonte iluminava de lado a ci-
d a d e e a b a í a e os s ê r e s h u m a n o s m e x i a m
dentro das barcas e das ruas e dos quin-
taes c o m o f o r m i g a s ocupando os diferen-
tes compartimentos de u m formigueiro,
e se t o r n a v a m t ã o p e q u e n o s q u e pareciam
insignificantes e desprezíveis.
Tinha a impressão que teria u m ar-
queólogo que passando a sua vida na re-
construção de u m a civilisação, de u m mo-
mento para o outro encontra o seu traba-
lho pronto: todos os pedaços da cidade
e todos os detalhes eram visualisados ao
mesmo tempo.
O h o m e m em v ô o sente-se superior
porque encherga a cidade e o m u n d o das
cousas como se enchergasse através u m
organismo transparente. A o mesmo tem-
po que vejo u m personagem carregando
uma carroça de verduras, vejo u m outro
personagem que necessita e procura ver-
duras, mas ambos os personagens nada
sabem da existência u m do outro — es-
tão apenas concientes da predisposição
individual e por suposição sabem que
deve existir perto o personagem c o m dis-
posição contraria e p r o n t o a recebe-lo. A
VOANDO SOBRE AS COSTAS BRASILEIRAS 17

visão do homem em vôo adquire mais


uma dimensão sobre a visão do habi-
tante da superfície; ele é capaz de pre-
ver e calcular o destino do habitante da
superfície, o seu p o n t o de vista percorre
o presente, o passado e o futuro desse
personagem, porque ele encherga a pre-
disposição para receber e para entregar
de u m dado personagem. Naturalmente
que toda a o r i e n t a ç ã o do habitante da su-
perfície está baseada na sua predisposi-
ção para receber este ou aquele aconte-
cimento, e ele c a m i n h a para u m r u m o con-
forme a sua r e c e p t i v i d a d e , isto é, o seu
comportamento neste dado futuro só
pode ser alterado pela sua predisposição
ou capacidade de receber cousas. U m per-
sonagem seguindo u m caminho em linha
reta e munido de aparelhos capazes de
lhe fornecer uma visão perfeita do f i m do
c a m i n h o seria perfeitamente capaz de en-
chergar o seu f u t u r o a u m dado momento
c o n s t r u i n d o u m p a n o r a m a da sua conduta
no f i m do caminho. A visão em vôo dis-
pensa da condição " e m linha reta", con-
cede ao observador uma espécie de
"transparência" das cousas; no entanto,
o observador e m v ô o n ã o segue o mesmo
2
18 Os Ossos DO M U N D O — F L A V I O DE R. CARVALHO

destino que os habitantes da superfície;


êle encherga o destino dos seres da super-
fície enquanto que o seu conserva-se u m
tanto nublado. A sua superioridade esta
em compreender melhor e mais rapida-
mente os valores da vida; êle s á e de u m
buraco e eleva-se sobre a terra; êle sáe
de dentro da terra, crece sobre a superfí-
cie e a b a n d o n a esta.
A cultura e a sensibilidade de u m ho-
m e m em vôo n ã o pode ser n e m matriarcal
n e m patriarcal, pois que êle caminha para
alguma cousa que n ã o tem n e m concavi-
dade nem protuberancia, que n ã o per-
tence ao sistema vegetativo da terra, que
não t e m as r a í z e s m a t r i a r c a e s n e m a ale-
gria do broto fálico sobre a terra; o ho-
mem em vôo, além de ser extra-uterino é
t a m b é m extra-terrestre, isto é deu u m
passo além do matriarquismo e do pa-
triarquismo, adquire uma dimensão que
provavelmente a sua evolução n ã o pos-
suía.
O ponto-de-vista elevado permitia
contemplar, n u m s ó golpe, os afazeres de
diversos pequenos mundos cada u m des-
tes absolutamente ignorante da existên-
cia do outro. A visão aérea parecia mui-
VOANDO SOBRE AS COSTAS BRASILEIRAS 19
i

tiplicar enormemente a nossa sensibili-


dade, englobar o m u n d o dos homens n u m
pequeno esforço mental; com u m golpe
de vista faziamos u m levantamento geral
e simultâneo de todos os afazeres da ci-
dade, o que seria impossivel colocados
n u m dos compartimentos da cidade, onde
a nossa visão e sensibilidade seriam ape-
nas a do pequeno mundo oriundo desse
compartimento. A conquista do ar repre-
senta, para o homem, uma enorme am-
pliação na sua sensibilidade e na sua ca-
pacidade de perceber e raciocinar. U m
h o m e m sobre a terra é u m s ê r quasi cego
e metido n u m buraco, u m sêr ignorante
com uma geometria regional e com u m
p o n t o de vista restrito ao seu buraco.
Voando, sentia-me superior, pois via
e sentia o que os o u t r o s e m b a i x o n ã o p o -
diam enchergar e sentir — e que supe-
rioridade pode desejar o h o m e m senão
a da percepção maior? O h o m e m em vôo
possue u m sentido a mais que os outros;
êle adquire uma "transparência equiva-
lente" das cousas.
20 Os Ossos DO M U N D O — F L A V I O DE R. CARVALHO

Antes de decer em Vitória atravessa-


mos em todo o percurso u m vasto pano-
r a m a de planícies e brejos m a i s o u menos
coberto por u m véo de neblina e com
pouca morraria.
A aeronave afasta-se do m a r á s vezes
uns 10 k i l s . da costa, á s vezes mais, co-
brindo grandes estensões de brejo e terra
firme; a neblina obstruía a visibilidade,
voávamos baixo. Parecia-me pouco se-
guro para u m h i d r o p l a n o afastar-se tanto
do mar, e havia m o m e n t o s que espreitava
anciosamente a passagem rápida pelos
trechos de terra, aguardando o apareci-
mento do mar como u m alívio.
Vitória situada n u m vale e e m cima
de pequenos morros dava a impressão de
viver lentamente no século passado.
Entre Vitória e Caravelas a viagem
é monótona, dorme-se bem a bordo, uma
sucessão imensa de praias flanqueadas
pelo que parecem ser colinas baixas, e
longe, bem longe, parada e imóvel, sem-
pre a mesma eterna paisagem brilhando
no sol. O l h a n d o para baixo, o m a r perfei-
tamente calmo dava a impressão de falta
de movimento; o aparelho parecia para-
do, e no entanto viajávamos a cerca de

»
VOANDO SOBRE AS COSTAS BRASILEIRAS 21

200 kils. por hora, com o vento a favor.


Sobre o mar serpenteiam as corren-
tes, e e m fileiras amareladas uma grande
p r o c i s s ã o de ó v o s de peixe c ó b r e a super-
fície como uma renda. Á medida que
avançávamos para o norte o sol brilhava
mais, a aeronave impassível parecia imó-
vel porque' dominava, perfeitamente, a
sua róta, e sempre o ronco monótono do
motor e ao longe, na planície imensa,
uma ou outra fumaça subia, indicando
uma civilisação que se aproximava. A
agua e m baixo torna-se repentinamente
verde amarelada; as colunas de fumaça
aumentam e m numero, aproximamos da
terra lentamente... a planície se trans-
formára em bréjo com uma cousa que
dava a impressão de u m estuário compli-
cado e cheio de ramificações; era u m
igarapé. . . Parecia uma renda do Ceará.
A aeronave balançava e a planície aumen-
tava e se estendia a perder de vista. E m
baixo mato e mais mato. O avião oscila
e pula; fechando os olhos o mato dá a
impressão de u m rebanho de carneiros
visto de c i m a — voamos alto. A sensação
de insegurança aumenta á medida que
nos afastamos da praia, o piloto sóbe e
22 Os Ossos DO M U N D O — F L A V I O DE R. CARVALHO

em baixo uma porção de coqueiros e uma


choupana sórdida, me v e m á cabeça o
drama do avião que pegou u m coqueiro
matando o piloto e o radiotelegrafista,
mas que importa — o avião desce incli-
nando fortemente, parece que vae descer
sobre o bréjo... uma curva forte e apon-
tamos para a agua.
É Caravelas — uma igreja, uma ban-
deira de S. João, algumas casas e m ruí-
nas, uma rua na frente do porto, ca-
noas . . . Caravelas é s ó isso, ou pelo me-
nos parece ser.
São 11 h o r a s . O avião parou, retirei
o algodão dos ouvidos; vamos descer e
esticar as pernas. N a ilha flutuante no-
vos preparativos de reabastecimento e
lubrificação, sóbe o agente, formalidades
com o comandante, dois novos passagei-
ros e uma passageira, ingerimos o clás-
sico e saboroso café que se encontra em
todas as ilhas da companhia... dois to-
ques de sino e n o v a m e n t e e m vôo.
Volta a paisagem fixa e imóvel, o
a v i ã o v i a j a c o m o se e s t i v e s s e p a r a d o , gal-
gamos para a praia; nas margens u m
b r a ç o de m a r e u m a aldeia ao lado, n o ho-
rizonte o perfil truncado de u m pico que é
VOANDO SOBRJE AS GOSTAS BRASILEIRAS 23

como u m vulcão extinto, em baixo nas


estradas individuos minúsculos passam
indiferentes ao ronco da aeronave; pa-
rece que toda a vida o u v i r a m passar por
ali a mesma aeronave. A sensação é de
perfeita segurança, de tão grande segu-
rança e estabilidade q u e se t e m a impres-
são de que tudo está interrompido e que
o possante navio aéreo se acha apenas
suspenso no e s p a ç o por u m fio, e que imó-
vel contempla uma paisagem imóvel. O
brilho do sol faz c o m que tudo seja ainda
mais imóvel. O mundo em detalhe, e pa-
rado, em baixo, adiciona a sonolência da
cêna. Toda a sensação parece sumir do
mundo em escala minúscula; ao lado o
ronco repetido dos motores relembra o
zumbido do grilo no bréjo tropical, o
mundo perde os sentidos e os movimen-
tos e adormece no sono do meio d i a . . . as
imagens paradas brilham sem ressonân-
cia .. . era como uma morte iluminada
pelo sol. Dormia-se b e m a bordo...

Olho para baixo, e minha imaginação


trabalha de uma maneira imprópria. Co-
meço a r a c i o c i n a r e m e d i t a r s o b r e as pos-
24 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

sibilidades de u m desastre; os tirantes e


as barras compressoras do avião interca-
lam a paisagem parada... que sustenta-
culo para as asas, meu olhar examina
junta por junta para vêr se existe uma
racha ou uma porca solta, passo e m re-
vista os arames torcidos — n ã o haverá
u m fio partido? — começo a contar os
pequenos rebites nas juntas, são apenas
alguns mas s ã o de duraluminio, faço u m
esforço, procuro calcular aproximada-
mente o cizalhamento de cada e deduzir
o esforço bruto no tirante, chego á con-
clusão de que uma das peças principaes
trabalha a 2.000 kilos.
N e m por isso me sinto mais seguro,
os meus conhecimentos de engenharia
me perturbam e me permitem conceber
toda a espécie de desastres, tenho até
m ê d o de escrever a palavra desastre no
livro de notas.
O piloto aumenta consideravelmente
a altura do aparelho, a paizagem muda, o
mundo torna-se mais minúsculo e a be-
leza do mundo me distr^ie... n ã o me
lembro mais de desastres... no entanto
a idéa volta com maior insistência, quasi
que n ã o posso mais olhar para as juntas
VOANDO SOBRE AS COSTAS BRASILEIRAS 25

do aparelho, pensando sempre n u m pos-


sível defeito na manutenção do material
ou u m defeito de fundição, a todo o mo-
mento espero ver uma j u n t a abrir-se e
uma aza p a r t i r aos poucos... que faria o
piloto... pobre piloto!... se ha fatali-
dade sem d u v i d a isto seria fatalidade...
creio melhor pensar noutra cousa, olho
para a terra e para o mar, voamos alto...
que hesitação... N ã o devia ter escrito
nada sobre o assunto, sinto-me impressio-
nado. .. n ã o posso n e m olhar mais para
as partes do avião n e m para baixo nem
para os lados... só f e c h a n d o os olhos.
Sentia como que hipnotisado... pa-
recia que escrever sobre o assunto era u m
m e i o de p r e c i p i t a r os acontecimentos, até
mesmo mexer parecia perigoso porque
i n t e r r o m p e r i a o estado de equilíbrio inse-
g u r o m a n t i d o pelo z u m b i d o dos motores,
tinha a impressão de que perturbar esse
equilíbrio era o mesmo que precipitar o
desastre. O meu estado psicológico era
idêntico ao do sono, os f a t o r e s de perigo
que me colocavam em imobilidade sono-
lenta eram os mesmos fatores encontra-
dos no p e r í o d o do sono, a m i n h a imobili-
dade e o meu temor eram a imobilidade
2fi Os Ossos »O MUNDO — F L A V I O DK R. CARVALHO

e o temor do sono, os m e u s desejos eram


de suicídio, atravessava u m estado pré-
suicidio perfeitamente compatível com a
hipnose do sono. Esclarecer o mistério do
meu temor ou mesmo mexer u m pouco
significava desastre.
O esclarecimento do temor provoca-
ria uma realização do perigo, mas ima-
ginava então: existem outras pessoas a
bordo com animosidade possivelmente
contraria á minha, talvez mesmo contra-
balançando a minha. Semelhante raciocí-
nio, errado ou certo, m e repousava u m
pouco, sentia-me mais seguro, mas só por
u m momento. A tremenda s e n s a ç ã o de es-
tabilidade e segurança era quasi simultâ-
nea com a sensação de perigo, flutuavam
de u m p o l o ao outro, sentia-me seguro e
inseguro ao mesmo tempo ou quasi ao
mesmo tempo, esta estranha flutuação
prolongou-se por alguns minutos, estava
em pleno domínio do mêdo.
Estou ancioso para chegar a Ilhéos,
como se chegando a Ilhéos acabaria de
u m momento para o outro todo o perigo.
VOANDO SOBRE AS COSTAS BRASILEIRAS 2/

Voamos a uma grande altura, sinto


que n ã o devia ter escrito sobre o perigo,
prometo a m i m mesmo n ã o escrever mais.
A m i n h a m ã o e s t á suada, s ó a m ã o , tenho
certeza que estou pálido, certamente que
estou com muita fome, trouxe sanduíches
mas n ã o posso me mexer, tenho receio
de m e mexer (1).

Subimos a uma grande altura. Ape-


nas 1000 m e t r o s . Os passageiros medita-
tivos contemplavam a paisagem. Noto
que a passageira no compartimento ao
lado é interessante, olhos azues grandes,
cabelos castanhos atraentes, boca larga e
fortemente pintada, narinas sensuaes,
parecia r e u n i r os d e f e i t o s e as qualidades
de toda a raça americana em formação.
Era a imagem da America. Passei a
apreciar vivamente a imagem da Ame-
rica.
A sensação de m ê d o desaparece,
absorvido c o m o estava no m e u novo pen-
samento, mas mesmo assim aguardo an-
siosamente Ilhéos.

(1) Ver os sintomas do rnêdo e eytado de panicu


descritos em " E x p e r i ê n c i a n.° 2 " Flavio de Carvalho.
28 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

Estamos chegando a a l g u m logar.


Espio pela vidraça, e efetivamente, lá em
baixo, Ilhéos brilha. A aeronave entra
lentamente e m curva, o comandante pára
os motores a 150 m s . de altura, e desli-
samos gostosa e vagarosamente pelo es-
paço, e entrando e m curva macia o hidro-
plano aproxima-se do mar sem u m pulo
e sem u m balanço... é o contáto c o m a
agua, n e m o m e n o r solavanco... e sem o
jorro da agua c o n t r a as vidraças passaria
despercebido.
A amerissagem foi uma obra de arte,
melhor amerissagem de toda a viagem.
Saímos do bojo do avião; cumpri-
mentos ao comandante, café na ilha>
olhares sobre a bela americana.

Ilhéos é menor que Vitória. Panora-


ma : uma igreja gótica e u m grande navio
á vela de quatro mastros ancorado no
porto, daqueles q u e j á n ã o se v ê e m mais.
Vários passageiros embarcam e m
Ilhéos. Todos parecem apreensivos, e
t ê m a fisionomia indecisa dos que medi-
tam, contemplam a paisagem c o m u m a
certa duvida sobre o seu valor, parecem
VOANDO SOBRE AS COSTAS BRASILEIRAS 29

u m pouco enjoados, o contorno da boca


é sempre u m índice. Voamos rumo á Baía.
O panorama está todo manchado das
sombras negras das nuvens. Repetem-se
as sensações das outras etapas.
N o f u n d o de u m compartimento, co-
modamente recostada a u m sofá, está a
bela americana, cabelos ligeiramente de-
salinhados sobre a testa. A sua belesa
em abandono dizia cousas interessantes.
Estabeleci u m contato mental com a
passageira, uma espécie de magia pelo
pensamento. O cabinboy passa e promove
o aparecimento de u m "cock-tail"; passo
a degustar as oscilações do avião, do ál-
cool e da passageira.

Na Baía tive a sensação de que a po-


pulação escurecia á medida que caminhá-
vamos para norte. Durante horas percorri
ruelas estreitas com casas antiquissimas
coloridas pelo tempo; a vida se passava
ha 2 s é c u l o s atraz. Verdadeiros amontoa-
dos de cubos coloridos, a arquitetura co-
lonial de grande e extranha beleza, lisa
.10 Os Ossos DO M U N D O — F L A V I O DE R. CARVALHO

c o m o é, f a v o r e c e o q u a d r o . M a r g e a n d o os
amontoados encontra-se, de quando e m
quando, uma artéria grande que é o es-
forço da civilisação para guiar e conduzir
o sopro de vida da cidade. A civilisação
aparece no m o m e n t o de agonia da cidade
e v e m como conseqüência dessa agonia.
Donde e como v e m a civilisação? A
agonia certamente p r o v e m da sonolencia
e conduz á extinção completa; a cidade
atravancada entra aos poucos no sono da
imobilidade e a população hipnotizada
deseja e acalenta essa imobilidade. N o
caso da B a í a a civilisação surge como u m
fantasma estranho; os habitantes da ci-
dade paralizados entre as frestas dos
cubos cultivam o temor das cousas estra-
nhas, das cousas que podem perturbar o
sono secular, r o m p e r o f i o de u m a aranha
ou o z u m b i d o de uma mosca.
A fresta é t ã o c ô m o d a e t ã o compa-
tível c o m a falta de aventura e c o m a imo-
bilidade; tem o aconchego do utero, me-
xer da fresta seria o mesmo que sair do
utero e exercer u m grande esforço aven-
tureiro, u m esforço meloso, entrar e m
contacto com o mundo da luz, o m u n d o
do perigo e da novidade.
VOANDO SOKRE AS COSTAS BRASILEIRAS 31

O baiano, dentro das frestas da sua


cidade experimenta as doçuras da escuri-
dão intrauterina e cultiva pelo tacto o
gosto da poeira das sombras. A sua fobia,
aprendisagem essencialmente colonial,
rejeita os fantasmas da civilisação como
elementos perigosos a essa f ô r m a de es-
tabilidade, e capazes de precipitar catás-
trofe. Os sinos das 300 igrejas (1) esta-
lam no timpano do h o m e m adormecido,
o ruido do mundo se apresenta como
uma cousa longinqua feérica e inacessi-
vel, tocar o ruido do mundo seria pertur-
bar o delicioso suicidio furando a volúpia.
N ã o se esqueça que o ritmo do sino man-
t é m em conserva a sonolencia e isola o
heróe uterino do mundo do perigo...
repica sino. . . repica e repica... a popu-
lação anestesiada te abençoa, Kirie Elei-
son... o mundo em paz dorme!
Os objétos estranhos, os objétos da
claridade surgem do n ã o sei donde; é o
m o d o da civilisação. C o m o prismas trans-
parentes sem f i m penetram e rasgam as
frestas, n i n g u é m sabe donde surgiram,
como surgiram, nem para onde vão, o

(1) Consta que a B a í a possue 300 igrejas.


32 Os Ossos DO M U N D O — F L A V I O DE R. CARVALHO

negro em movimento interrompe o seu


gesto e imóvel semi agachado contempla
o prisma misterioso... a sua atitude per-
petúa-se e o seu p e n s a m e n t o se transfor-
ma em historia.
Baía jamais teve u m plano de urba-
nismo para o seu desenvolvimento (1). A
cidade abandonada ao capricho afoga-se
p o r si, c a m i n h a para o suicídio, entra em
sono,* o e s c o a m e n t o da sua vida ao ar l i -
vre inteiramente obliterado e tapado pe-
las ruelas é u m escoamento soporifico e
encolhe-se para o interior sujo e escuro
dos amontoados de cubos. Tem-se a i m -
pressão de que as artérias principaes de-
vem espantar a população entocada, e que
funcionam como u m mundo exterior in-
teiramente estranho á vida dos cubículos
e ruelas. É a cidade que mais necessita
da i n t e r v e n ç ã o séria e a u t ô n o m a do urba-
nista. L á se observa quanto realmente o
urbanista funciona como sério fator de
progresso na historia de u m povo.

Vi a igreja de São Francisco, o ro-


cocó mais dourado e mais estranho do

(1) Pelo menos n e n h u m plano e f i c i e n t e .


VOANDO SOBRE AS COSTAS BRASILEIRAS 83

mundo. S ã o Francisco, só ouro, brilha


com milhões de reflexos, f o i u m a grande
emoção, uma das duas grandes emoções
da minha viagem; o Mangue (1) no Rio
e S ã o Francisco, na Baía.
A entrada na igreja n ã o é uma pe-
netração vulgar n u m logar qualquer;
quem lá entra sente que ha qualquer
cousa de errado com S ã o Francisco, por-
que tudo é dourado, só n ã o é dourado*o
piso. A luz interior de S ã o Francisco n ã o
é a mesma das outras igrejas do mundo,
e é justamente aí que reside a diferença;
a atmosféra de São Francisco n ã o so-
mente é diferente mas antagônica com a
idéia mesmo de igreja. O interior de uma
igreja preenchendo uma função protetora
e maternal acalenta e nutre uma escuri-
dão intra-uterina; o interior da igreja
associa-se ao interior do utero e as som-
bras desse interior são sombras uteri-
nas (2). S ã o Francisco apresenta o aspe-
cto de u m sexo de m u l h e r excessivamente
enfeitado e perfumado. A profusão de

(1) A zona do baixo m e r e t r í c i o do B i o .


(2) Vêr as origens da potencialidade da igreja no
capitulo Madona e B a m b í u o .

S
34 Os Ossos DO M U N D O — F L A V I O DE R. CARVALHO

ouro entrecortada só pelo azul claro e o


branco das flores de papel d á a aparência
de u m eabaret de luxo de fins do sé-
culo X I X , a iluminação calida é extrema-
mente excitante e t e m algo do eldorado
e do aventureiro. Saindo das dobras do
barroco rococó estão alguns dos mais
belos exemplares da escultura e m ma-
deira do Brasil. S ã o f i g u r a s extasicas, de
olhar alucinado, coloridas e m cores leves
e visíveis s ó ao observador que procura o
detalhe, parecem nascer no engruvinha-
mento do barroco.
Mas porque esta profusão de ouro
que crêa t ã o estranha iluminação? Senti
que devia haver uma conexão entre a so-
nolência da população anestesiada e a
creação dourada do templo do mêdo. Pos-
sivelmente o templo oferecia á e m o ç ã o de
medo u m aconchego diverso, mais claro
mais calido que o aconchego da vida diá-
ria que se passava nas sombras das fres-
tas do a m o n t o a d o p l á s t i c o das habitações.
O beato procuraria no templo n ã o u m re-
fugio na sombra, u m recuo no escuro
como os beatos de todo o mundo, mas
sim uma aventura sexual para a frente,
VOANDO SOBRE AS COSTAS BRASILEIRAS 35

na semi-claridade, uma espécie de acon-


t e c i m e n t o d i f e r e n t e d o da sua v i d a diária.
O assunto me empolgava.

Saí da Baía pesaroso de n ã o ter v i -


sitado a multidão de igrejas que domina
a vida da cidade. Partimos ás 6 da ma-
drugada de u m cáes povoado com poli-
oficiais e o inter-
ventor do Estado o sr. J u r a c i Magalhães.
Achei este u m pouco g o r d o de mais, uma
gordura depreciadora. O Sr. interventor
distribue amavelmente abraços entre os
políticos, entramos no hidroavião e deco-
lamos rumo a Aracajú e Recife.

Aracaju*é uma cidade bonita e pro-


gressista, cheia de coqueiros. A paizagem
era interessante. N a Baía almocei bem e
cedo, e sentia-me em ótima fôrma e exce-
lente estado de espirito, a noção de pe-
rigo havia desaparecido; o estômago
cheio dava a sensação de bem estar que
era antagonista ao perigo, o alimento
funcionava como u m ponto de apoio, di-
minuindo consideravelmente todo pre-
36 Os Ossos DO M U N D O — F L A V I O DE R. CARVALHO

sentimento de perigo. A pessoa alimen-


tada era a t é m e s m o mais arrogante, pare-
cia desejar o perigo e m vez de rèceia-lo.
Havia momentos que, invadido por u m
sorriso diabólico olhava para o mar e de-
sejava ardentemente s e n t i r o a v i ã o se es-
patifar em baixo, a e m o ç ã o valia a pena,
não via nenhuma diferença entre uma
morte hoje ou daqui a 20 anos, parecia
que uma lei de compensação resolveria
mecanicamente qualquer diferença colo-
cando as emoções do desaparecimento
por desastre e m p é de igualdade com as
emoções dos mais 20 o u 30 a n o s de vida.
Otimista e b e m alimentado desejava sen-
sações de perigo. N o dia anterior nada t i -
nha comido antes da chegada á Baía, e
a s e n s a ç ã o d e m a i o r p e r i g o se m a n i f e s t o u
precisamente nos momentos de fome
aguda, porque o e s t ô m a g o vasio é incom-
patível com a sensação de segurança e é
u m grave erro n ã o comer nos momentos
de medo. A comida apazigua o medo, ou
o diminue consideravelmente
M e d o e comida n ã o v ã o juntos ao
mesmo organismo. O h o m e m que comeu
parece absorver na digestão a energia
que faria dele u m sêr mais sensível, mais
VOANDO SOBRE AS COSTAS BRASILEIRAS .17
I

emotivo, e portanto habilitado a ter medo.


M e d o é portanto uma superemotividade,
produto de imaginação e raciocinio, e
para a sua produção eficiente necessita
que a energia disponível no organismo
não esteja ocupada com outra cousa. O
medo é u m produto da civilisação; per-
tence ao m u n d o da luz e á aventura extra-
uterina, e é a primeira psiconevrose do
h o m e m corajoso e do aventureiro e a
grande ação reflexa do inteleto.
O medo pode ser p r o d u z i d o e m qual-
quer momento apenas pela excitação de
auto inferioridade; o organismo e m es-
tado de inferioridade tem u m destino fa-
talista a encarar, t e m o seu curso traçado,
e aponta para a catástrofe, e é a visão
desse destino conjuntamente com as re-
cordações do passado e das ideais do Eu,
que p r o v o c a m a angustia do medo. A an-
gustia de m e d o é portanto f u n ç ã o de u m
estado de inferioridade psíquica ou orgâ-
nica e a sensação de fome é u m estado
de inferioridade. O aparecimento do
Ideal no momento de perigo v e m como
uma saudade do não-realisado e neste
ponto a emoção de medo e a emoção de
arrojo se tocam, pois ambos necessitam
38 Os Ossos DO M U N D O — F L A V I O DE R. CARVALHO

da recordação dos ideais para se realisa-


rem. A emoção de m e d o r e c o r d a os ideais
com o intuito ainda vivo de realiza-los,
isto é v a l o r i z a os ideais, enquanto que a
emoção de a r r o j o coloca os ideais sob u m
plano burlesco c o m intuito de chiste, ela
deprecia os ideais transformando-os to-
dos e m cousas engraçadas e pequeninas,
em quantidades menospresíveis, e u m
sorriso cinico invade o arrojado, u m sor-
riso vingativo contra a natureza. E êle
procura a sua própria destruição e deseja
catástrofe.
O alimento produz cinismo e altera
a apreciação das recordações. A falta de
alimento n u m peiconevrótico amoroso
tende a conservar o seu estado de angus-
t i a , q u e se liga naturalmente ao m e d o ou
á saudade do não-realisado.

O cabinboy está meio enjoado; apro-


ximamo-nos do f i m da v i a g e m ; ao longo
da costa as arapucas de peixe esperavam
alinhadas, do outro lado o Conde Zep-
pelin voava baixo r u m o ao Sul, parecia
parado... como deve ser vagaroso viajar
no Conde Zeppelin...
VOANDO SOBHE AS COSTAS BRASILEIRAS 39

E m Recife baixamos em curva pas-


sando a uns 10 m e t r o s de uns armazéns,
amerissagem macia, o avião pousa gra-
ciosamente na enseada, saltei do avião
agradeci ao c o m a n d a n t e por ter acelerado
a marcha, e a passo de corrida alcancei
o meu navio do outro lado do caes, che-
gando a bordo 5 minutos antes da par-
tida.
Deus assignalado a b o r d o

A s viajens de bordo se parecem to-


das, s ã o todas mais ou menos cacetes, e
quando pisei a bordo entrei certo de que
nada encontraria de interessante. Era u m
navio como todos os outros, oficiais e
p a s s a g e i r o s se r e p e t e m , as m u l h e r e s sem-
pre são feias (no começo pelo menos),
no salão encontrei Hitler e Hindenburg
cobertos de crepe, se contemplando m u -
tuamente.
-VÀ Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

As horas fugiam, os passageiros se


entreolhavam para ver que proveito po-
deriam tirar u m do outro, as velhas fa-
ziam crochê e as m o ç a s se excitavam vi-
sualmente com o que havia de jovem a
bordo.
A população de bordo passava o dia
nua e no banho de sol ( n ú a m e n o s o sexo)
e as mulheres se tornavam mais bonitas
á medida que nos afastávamos da terra e
que o isolamento crescia. Havia mesmo
uma que era encantadora.
Certo dia foi observada a presença
de Deus; era d o m i n g o de m a n h ã , u m do-
mingo de sol b r a n d o e c é o azul. A passos
largos, e certamente c o m u m sorriso nos
lábios, Deus passeava pelos tombadilhos
com uma charanga á cata de fieis.
N ã o tive a oportunidade de defron-
tar-me com o divino gentleman, sono-
lento na m i n h a cabine o u v i apenas os ge-
midos da charanga que sumiam.
Os dias corriam e os passageiros já
relacionados se entretinham penosamen-
te. Á noite dansava-se, xadrez, bridge,
bar, e t c — Conhecia todo o mundo mas,
certa noite escura, v i apoiado no para-
peito do tombadilho u m h o m e m de esta-
DEUS ASSIGNALADO A BORDO 43

tura grande que olhava para longe, u m


tipo estranho. N ã o o tinha visto antes. O
seu o l h a r m e l a n c ó l i c o se d i r i g i a a o fundo
da escuridão e parecia querer penetrar no
desconhecido... aproximei-me e vi que
dos seus olhos corriam lagrimas. Lagri-
mas em alto mar... Surpreso perguntei
ao passageiro "quem é v o c ê . . . "
O h o m e m n ã o respondeu imediata-
mente, mas depois c o m o que arrependido
disse c o m peso e drama "sou a imagem
da tristeza". Extranhei a fraseologia
pouco comum, e intrigado esperei por
uma explicação mais ampla, mas o meu
novo amigo, continuando imóvel nada
mais disse. A p o n t e i para u m clarão no
horizonte, uma e s p é c i e de m a n c h a branca
que convidava o olhar, e expliquei " v i u
como o clarão é bonito!". O h o m e m triste,
olhos grandes divagando n u m outro
mundo, f i s i o n o m i a de sofredor, n ã o me-
xeu. O seu rosto tinha a frescura de u m
B u d a e a pele parecia macia.
Q u e m seria este t i p o que n ã o esconde
o seu sofrimento...
A o l a d o o b a r u l h o d o jazz e os gritos
de alegria, luz velada e sombra; mulhe-
res j á b o n i t a s o n d u l a v a m c o m os seus ma-
44 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

chos, pareciam minhocas sem f i m pou-


sadas verticalmente. A l u z m u d a v a as co-
res dos vestidos e o brilho da seda res-
soava c o m o s o m do álcool e a alegria das
frases curtas, e n i n g u é m sabia da existên-
cia do h o m e m triste.
Encantado c o m a m i n h a descoberta
dirigi-me novamente ao curioso especi-
men e interroguei-o e m silencio.
" N a d a m e interessa na v i d a " respon-
deu êle, "estou acima da v i d a " . . . e m se-
guida calou-se.

A neblina que tinha aumentado já


era intensa, o navio m u g i a c o m u m a voz
rouca e solitária, u m ou outro passageiro
mais nervoso marchava a passos curtos,
e ao lado álcool e mulheres zumbiam;
passando nos b r a ç o s de u m atléta valsava
uma mulher pálida e exótica. E r a loira,
u m tipo gerado e m Montparnasse, pin-
tora e a m i g a de Picasso, era a l e m ã e via-
java sem rumo e sem endereço. Tinha
entrado a bordo para curtir u m a emoção
amorosa, u m abandono creio, e descia e m
Lisboa no dia seguinte; tive oportuni-
DEUS ASSIGNALAOO A BORDO 45

dade de beija-la numa das partes es-


curas do convez, na noite anterior.
Olhei para a agua; a marcha do na-
vio diminuida pela quarta parte, pouco
faltava para p a r a r , q u a s i n ã o se v i a agua,
tão f o r t e era a cerração. O ronco da bu-
zina c o n t i n u a v a e ao longe roncos de ou-
tros navios que se afastavam o u se apro-
ximavam.
Pareciam vacas perdidas no ocea-
n o . . . U m a faixa branca de v a p o r de agua
contornava o transatlântico, e sob a es-
pessura da neblina projetava-se a sombra
enorme do passageiro triste.
N e m mesmo o perigo lhe agrada...
perguntei — a sombra do h o m e m triste
continuava imóvel e muda, em cima da
neblina.

Procurei novas descobertas a bordo


mas nada consegui; apenas soube que o
meu steward do vinho era contrabaixo
na charanga.
E m Lisboa cedo de m a n h ã subiu a
bordo uma procissão de mulheres gordas
vestidas s ó de preto e carregando flores;
pareciam túmulos enfeitados n u m dia de
46 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

chuva, a principio me imaginei uma se-


gunda visita de D e u s ao navio, m a s o co-
mandante, tão perplexo quanto eu, me
assegurou ser esta hipótese pouco pro-
vável, a atriz Mariane Hartnig (havia a
bordo uma companhia alemã) disse qual-
quer cousa de e n g r a ç a d o que n ã o m e lem-
bro mais.
Passei algumas horas da tarde na
atmosféra calma e sob a luz comovente
do mosteiro de S. J e r o n i m o , a o b r a notá-
vel que o arquiteto J o ã o de Castilho e B u -
taca iniciou nas redondezas do reinado de
D. M a n o e l , 1500 — havia lá uma V i r g e m
tocando órgão de Leonardo atribuido a
1400, e u m curioso órgão de 1700 q u e ha
muito n ã o andava, e n u m pateo inquieto
e super decorado e cheio de órfãos uni-
formisados estava plasmada a obra do
braço escravo, o crochê das m ã o s mus-
culosas e rudes do trabalhador domado;
uma grande parte do esforço de u m povo
passou pelo mosteiro, arcos rendados, ca-
piteis rendados, colunas rendadas, brilha-
v a m no sol e gritavam o drama dos sé-
culos... "você é a culpa do teu sofri-
mento . . . " diziam aos sêres uniformisa-
dos de c a b e ç a r a p a d a . . . "a vida é a f é . . .
DEUS ASSIGNALADO A BORDO 47

"vê como a vida é a f é " , repetia a voz


cristã vibrando no sol, e os órfãos me
olhavam medrosos, em grupos como ani-
maes, e eu, do centro do pateo, contem-
plava as decorações que se prolongavam
sobriamente cupola acima,
N o fundo do meu ouvido u m sopro
baixo e claro murmurava: " é a obra de
u m l o u c o . . . " , e o sangue da indignação
invadia o meu rosto... e na fisionomia de
u m padre que passava vi a resposta:
" n ã o . . . é a obra de u m piedoso".
Deve-se observar que a parte restau-
rada da fachada do mosteiro é n ã o so-
mente pretenciosa, mas p r i m a pela au-
sência de sentimento. É feita e m cimento
branco e n ã o faz parte da estrutura; o ar-
quiteto n ã o compreendeu o mosteiro e
fracassou.
N a T o r r e de B e l é m u m turista mani-
festou o desejo de mandar l i m p a r as pe-
dras enegrecidas pelo tempo. . . Nunca
tive muita simpatia por turistas, sempre
dizem exatamente aquilo que ninguém
quer ouvir, e a admiração turística de
costume n ã o vae além do "engraçadi-
nho" do " b o n i t i n h o " que, em circuns-
48 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

tancias apropriadas, geralmente se aplica


ao f i l h o de u m a Madona.

Aos meus olhos de sul americano a


I n g l a t e r r a se a p r e s e n t o u como romântica,
sentimental, poderosa, civilisada, eficien-
te e de p o n t o de vista estreito consideran-
do a sua p o t ê n c i a . São característicos que
brotam da sua condição de isolamento, o
clima em m u i t o concorre para a depres-
são animica do inglês, que isolado c o m o é,
procura sempre u m romance com o pas-
sado. Para êle o passado é n ã o somente
u m refugio, mas o grande p o n t o de apoio,
o d e s c a n ç o no m o m e n t o da incerteza e do
perigo.
O seu ponto de vista estreito é ape-
nas conseqüência do isolamento da ilha,
não é depreciativo, todos os p o v o s que se
i s o l a m s o f r e m desse caracteristico e nada
tem que ver c o m a inteligência n e m com
a energia latente a "entropia" do ilhéo, o
h o m e m , de ponto de vista estreito, é ape-
nas aquele cujo tacto ficou circunscrito a
uma pequena região, e que por isso mes-
mo tem a fobia do contato com outros
mundos, uma fobia que é quasi u m nojo
DEUS ASSIGNALADO A BORDO 43

e que leva a uma continua super-estima-


ç ã o de si m e s m o até á hora do despertar.
O inglês me pareceu u m h o m e m
dado ao culto dos lugares comuns; por
exemplo, êle constróe uma religião em
torno de u m "hall" de hotel, de u m ca-
baré ou de u m clube de aristocratas, e
t e n d e a dar a esses locaes u m v a l o r de ca-
pela idêntico ao de Westminster Abbey.
Paris procura copiar o inglês nisso mas
n ã o consegue. A ética esportiva do inglês
é apenas u m a crença local que ê l e se es-
queceu de revogar. O resto do mundo ha
muito n ã o acredita mais nessa ética.

Para o inglês isolado na ilha, o mun-


do é todo "selvagem"; o seu isolamento
e x i g e esse a s p é t o do m u n d o . . . e quando
a v e n t u r e i r o ê l e a b a n d o n a a sua ilha é para
explorar esse m u n d o selvagem. Êle tem
o instinto do menino aventureiro que pe-
netra no bosque para conhecer os misté-
rios do bosque, o seu sentimento de l i -
berdade é f u n ç ã o desse desejo i n f a n t i l de
aventura, o mundo é todo u m bosque sel-
vagem para o inglês isolado. Êle ama o
selvagem pela novidade que contem; no-
4
50 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

vidade confunde-se de certo m o d o e asso-


cia-se c o m liberdade.
O p o n t o de vista do i n g l ê s é t o d o êle
conseqüência dêsse efeito de ilha. Êle é
u m turista e u m descobridor e constróe
as suas idéas sobre o mundo da mesma
maneira que o menino aventureiro o faz
n o seu a m b i e n t e s e l v a g e m , aos poucos êle
torna-se u m idolatra e pratica magia c o m
fervor, descobre imagens, símbolos per-
didos, reconstróe civilisações, e como
o menino, quer se t o r n a r o d o n o das suas
descobertas e dominar o mundo "selva-
gem". O seu " h o m e " demais pequeno e
contornado de agua faz c o m que as suas
saídas sejam sempre em terras longín-
quas de onde êle volta vitorioso domina-
dor ou morre, êle n ã o tem espaço para
ser v i t o r i o s o e d o m i n a d o r e m sua própria
casa, a sua situação é uma de angustia,
êle parece sofrer de claustrofobia, o ta-
m a n h o da sua i n d i v i d u a l i d a d e e s t á f ó r a de
proporção com a pequena superfície da
sua ilha e com o efeito isolante da agua
em redor; êle necessita de espaço para
andar e para sentir o mundo.
Dentro da sua ilha êle é extrema-
mente bem comportado mesmo como é o
ÜBUS ASSIGNALADO A BORDO 51

menino educado dentro de casa, f ó r a da


ilha êle é selvagem e dissipador e dá lar-
gas ao secular recalque creado pelo efeito
de ilha, êle é violento, conquistador e do-
minador, o mundo selvagem é o ponto de
apoio o fetiche próprio á sublimação de
todo o sonho de liberdade acalentado e
reprimido na sua ilha-reformatorio. O in-
glês "abroad" nem sempre gosta de vol-
tar para o centro civilisado e bem compor-
tado que é a sua i l h a - r e f o r m a t o r i o — para
êle o ú n i c o p a d r ã o de civilisação respeitá-
vel do mundo. Essa respeitabilidade é
praticamente inexprimivel em palavras,
pertence á o r d e m das "leis que n ã o f o r a m
escritas , , ,
e ao que parece é cousa de na-
tureza matriarcal, e tem muito do " n ã o
f a ç a i s s o " da d o n a de casa. É u m a respei-
tabilidade domesticada e "sessile", oriun-
da da i n t i m i d a d e restrita do lar.

O inglês constróe u m altar para a


mulher em qualquer circunstância. D o
comunista ao fascista, do bêbado de ta-
verna ao purista, do artista em franga-
Ihos e alucinado ao artista circunspecto,
pintor de cavalo de corrida, todos acari-
52 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

ciam no subconciente o culto da Virgem,


e do irrealisavel amoroso. O maior saudo-
sismo britânico é ainda h o j e o peso de
Henrique oitavo e o rompimento com o
papa. O próprio vigoroso e saudável mo-
vimento anticatólico só encontra éco no
mecanismo ético inconciente da gente
britânica, mecanismo que consiste em
crear u m a v i r g e m vaporosa incrivelmente
loira e capaz, pela sua inocência e "swee-
tness", de redimir os pecados mais re-
motos, mais "naughty" e mais esporá-
dicos da raça. A voz da Virgem rege o
"concerto" entre os sentidos, e a ilha
toda é u m assento para a sua dignidade e
pureza feminil, tanto Westminster Abbey
como qualquer "pub" em Limehouse ou
Chelsea fornece u m motivo de entrona-
mento e de e l e v a ç ã o rigorosa á categoria
de V i r g e m "non plus ultra".
Qualquer mulher pode se t o r n a r Vir-
g e m c o m o simples passe m á g i c o do " n ã o
deixar fazer aquilo que n ã o deve". D a
mais descabelada decadente que saltea
jazz nos "nigth clubs" de "gangsters", á
mais sedosa e convencional sangue azul
amante dos prazeres exóticos e das "boi-
tes" homosexuaes, todas são candidatas
DEPS ASSIGNALADO A BORDO

i n v o l u n t á r i a s ao f e c h a m e n t o e s p i r i t u a l do
corpo.
A mais astuciosa das prostitutas
m a n t é m sempre e m conserva o direito ao
véo, e a sua inocência só pôde ser supe-
rada pela brancura de uma certa catego-
ria de anjos, m e s m o por que o seu c é o do
genus galinaceo n ã o vae alem do pé di-
reito do quarto.
A Virgem do inglês associa-se facil-
mente com a nação m a t r i a r c a l de forta-
leza e de santa Madre Igreja, e é natu-
ralmente u m residuo que ficou, deixado
por u m mundo perdido no tempo. É o
mesmo tipo de residuo m a t r i a r c a l que en-
contrámos nos outros povos, mas no caso
do inglês deu-se uma entronização n u m
plano mais alto. A fortaleza tornou-se
inexpugnável; o fechamento do corpo
creou uma virgindade impenetrável e com
u m poder terapêutico tão grande que u m
méro contato mental com a luminosidade
da imagem translúcida é refugio sufi-
ciente para receber e proteger a insegu-
rança (1).

(1) Ver estudos .do autor sobre " O Mecanismo da


E m o ç ã o A m o r o s a " apresentado no V I I I ongresso Inter-
nacional dc P s i c o t é c n i c a em Praga (1934).
54 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DF. R. CARVALHO

Está claro que o isolamento e m ilha


amplia e fortalece a associação entre
"fortaleza" e Virgem protetora; a bran-
cura da Virgem aproxima-se mais ao
90 % branco e o sentimento de "intocá-
vel" é mais desenvolvido.
A sua s i t u a ç ã o de poderosa é t a m b é m
u m reflexo desse isolamento, é m a i s uma
fictícia poderosa creada pela sugestibili-
dade e m redor; a impenetrabilidade cons-
tróe u m encantamento e m torno, u m
c a m p o de forças que d i s p õ e e ordena, ali-
nhando os e l e m e n t o s encantados, mesmo
como faz u m campo magnético com a
poeira do ferro. Os elementos perturba-
dores volutuosos e carregados se curvam
quando e m c o n t a t o c o m os primeiros en-
cantos da deusa. M a s a carga e a volúpia
indestrutíveis subsistem, acentuando as-
sim a pureza da ilha, a dialética e m "cre-
c e n d o " adquire o aspeto de i n c h a ç ã o pre-
m a t u r a , se t r a n s f o r m a e m c â n t i c o e a ilha
m a n t é m o seu poder de altar. O s que con-
tornam a ilha cantam a ladainha da hora
da benção.
A eficiência e a conseqüente civilisa-
ção s ã o claramente produtos do isola-
mento.
DEUS ASSIGNALADO A BOROO

N o inglês a elaboração ética é u m


processus interno, produto do coordenar
melódico dos seus sentidos. Ê l e n ã o ne-
cessita de nenhum regulamento para a
sua conduta, o dedo da V i r g e m já organi-
sou essa conduta n o seu inconciente. É
provável que o não-ético subsista numa
camada mais profunda do seu inconscien-
te, m a s certamente n ã o resona, n ã o é o u
quasi n ã o é alcançado pelo. dedo da Vir-
gem. Emquanto que o alemão necessita
de u m regulamento para ser ético, o in-
glês é ético melodicamente, naturalmen-
te. A ética do alemão pertence ao domí-
n i o d a h a r m o n i a d o arranjado, e é p o r isso
que os inglêses a c h a m os a l e m ã e s engra-
çados.
O mesmo n ã o acontece c o m a m u -
lher; a inglêsa n ã o participa do mundo
religioso do seu companheiro, mulher e
h o m e m nunca se comportam da mesma
maneira a u m dado momento da histo-
ria ( 1 ) . E l a é não-ética, e nesse p o n t o se
parece c o m os a l e m ã e s . A sua missão é
de fornecer a contraparte ao seu compa-

(1) Ver o j á citado trabalho do autor na C o n f e r ê n -


cia de Praga.
56 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

n h e i r o , i s t o é, f o r n e c e r o m a t e r i a l p a r a a
construção da i m a g e m idealistica, e para
a manutenção e a conservação dessa ima-
gem. O que ela fornece t e m de ser u m
contraste, pois que a idéa de u n i ã o exige
esse contraste.
Compreendemos agora porque o fe-
minismo é vitorioso na Inglaterra; o culto
da Virgem que é a grande angustia in-
consciente do inglês, é, e m si, u m resi-
duo matriarcal.
O que existe do culto da V i r g e m no
continente n ã o passa de u m a pequena
parte mitica, antiga, extremamente re-
calcada, e que, ao que parece, n ã o chegou
a tomar raizes no inconsciente. Faltou
isolamento para que êle se plasmasse
n u m plano t ã o virginal, t ã o de corpo fe-
chado quanto o do inglês.
As revoluções de H i t l e r e de Musso-
lini s ã o revoluções c o m bases patriarcaes,
e que s ó aceitam a M a d o n a quando acom-
panhada d e u m b a m b i n o , e, m e s m o assim,
como paliativo, capaz de operar pela ma-
gia do contato visual, uma repetição da
grande façanha pictorica util á raça
A T a v e r n a F i t z r o y

A i m e n s i d ã o de L o n d r e s é opressiva,
raramente se v ê d u a s v e z e s a m e s m a cara.
Por toda a parte e em todas as horas
massas de gente enchem as ruas e é i m -
pressionante vêr com que velocidade, e
sem v í t i m a s , os ônibus c o r t a m de lado a
lado a metrópole.
O m o v i m e n t o de Londres é grande
a ponto de abafar e sobrepor completa-
mente a arquitetura; o observador que
08 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

atravessa as massas de gente, autos e


"buses" (1) é fascinado pela torrente de
expressões c o m as quaes cruza; as luzes,
os cartazes, os anúncios, a torrente hu-
mana que se escoa em t o d a s as direções,
a tudo se sobrepõe. O elemento "vida"
de Londres é opressivo e a arquitetura é
apenas u m acessório insignificante; as
manifestações da alma e os desejos do
povo dominam o ambiente, pelos jor-
naes, pelos teatros e pelo fluxo humano.
Á s 9 da noite, saí da a g l o m e r a ç ã o festiva
de Picadilly e n u m a ruela atraz de u m tea-
tro jantei, u m excelente jantar de 4 pra-
tos, p o r 2 shilings. N a noite anterior t i -
nha c o m i d o u m jantar de 2 pratos, admi-
ravelmente preparado com ótimo mate-
r i a l p o r 10 p e n c e . i

Perambulava por Trafalgar Square,


a arquitetura sombria e clássica enchia o
azul da noite. N o "Theatre L a n d " cru-
zava gente de todas as atividades, ho-
mens de casaca, m u l h e r e s de calção, ele-
gantíssimos vestidos de baile, tipos es-

(1) Ônibus.
A TAVERNA FITZROY 59

portivos concentrados e alheios ao mun-


do, borboletas em espectativa, e, melan-
cólica escoava a grande multidão uni-
forme que passa despercebida.
N ã o m u i t o longe u m a massa de povo
rodeava u m orador sem gravata; era u m
"meeting" anti-fascista. O orador falava
b e m e c o m clareza, procurava demonstrar
que os paizes necessitavam uns dos ou-
tros; que a companhia e a convivência
eram propostas econômicas, e pregava
uma democracia liberal. Informei-me;
tratava-se da organisação Green Band,
n ã o s e c t á r i a anti-fascista e ao que m e dis-
seram ligada á juventude anti-guerreira.
A massa humana escutava silenciosa,
observando o mais profundo respeito,
mesmo nos momentos mais jocosos,
quando muito, via-se u m sorriso sardo-
nico ou u m olhar mais acentuado. O ora-
dor certamente falava para ser escutado
e meditado. Somente u m policia guardava
a multidão.
Sem r u m o preciso desci Picaddilly a
pé, passei pelo Ritz, me lembrei de
Afonso X I I I , e seguindo por Park Lane
tomei u m ônibus rumo a Chelsea.
60 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

Chelsea n ã o é mais o que era antes


da guerra; a a g l o m e r a ç ã o de artistas u m
tanto dispersada subdividiu-se para a sua
nova rival St. John's W o o d , mas mesmo
assim conserva Chelsea ainda a predomi-
nância. Os artistas gostam do rio, o rio
encanta e atráe, n ã o só artistas mas ou-
tros também.
Os alugueis subiram de 25 % . E r a m
m u i t o s os que q u e r i a m ser artistas ou se
misturar com artistas, e é c o m u m vêr
"atudio-parties" c o m h o m e n s de casaca e
mulheres elegantes; conseqüência: os ar-
tistas menos dotados financeiramente
abandonaram o l o c a l . C o n t u d o , as proxi-
midades da escola de Belas Artes de
Chelsea e do Chelsea Arts Club, concor-
rem para fazer de Chelsea u m centro in-
teletual de interesse.
Os artistas passeiam pelos caes, são
vistos nos bars, cafés, pequenos restau-
rantes e naturalmente nos seus studios,
e á s vezes a t é m e s m o nas escolas de Be-
las Artes. S ã o individuos curiosos para
quem o mundo exterior t e m u m a finali-
dade mais decorativa que utilitária; pe-
rambulam c o m as suas a m i g a s , a m b o s os
sexos sem chapéo — confiam a estas os
A TAVERNA FITZROY fil

seus planos mais Íntimos os seus ideais,


geralmente assuntos de trabalho. E elas
são quasi sempre encantadoras, jovens,
muitas vezes alunas do mesmo oficio,
quasi todas com o olhar sonhador e ro-
mântico, altamente acentuado, que é o
característico mais forte da mulher in-
glêsa. O inglês é indiscutivelmente o
povo mais romântico e mais sentimental
do m u n d o , o que é m e s m o u m a exigência
das suas c o n d i ç õ e s geográficas.
Percorri alguns antros principais, os
bars de G o o d Intent, o K i m s , o Six Bells,
"pubs" como são chamados aqui, e es-
tive t a m b é m numa espécie de estabulo,
local de pouca luz, c o m m u l h e r e s de ca-
belos compridos até o hombro, pálidas e
de lábios vermelhos. Demorei-me no
Lombard restaurant, u m antro minúsculo
com mesas ao ar livre, perto de u m a ponte
pencil que reflete sobre o r i o ; as mesas
estavam cheias, creaturas loiras e esque-
sitas e sempre sonhadoras, ingeriam café
com leite e outras bebidas, umas falavam
sobre pintura e outras comentavam o au-
mento no preço do último artigo. N o fun-
do as s o m b r a s do rio chamavam o pensa-
mento e o olhar da gente. ..
62 Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

C a m i n h a v a pelo caes deserto s e m sa-


ber onde ia, a noite estava perfumada e
a g r a d á v e l , as m a s s a s s o m b r i a s empresta-
vam u m ar de sonolencia e de tranqüili-
dade perfeitamente estática, Londres pa-
recia u m a escultura negra fabricada pelo
tacto, e sem as conseqüências da luz so-
lar. Precisava corrigir o meu roteiro,
aproximei-me de u m grupo de moças e
rapazes que f u m a v a m alegremente — em
L o n d r e s as m u l h e r e s f u m a m e b e i j a m na
rua a todas as horas do dia.

Passava então por u m logar esque-


sito; n u m a vitrina recuada brilhavam hu-
mildemente 2 velas; pela primeira vez
via velas acesas e m Londres.
Aproximei-me cautelosamente, com
o instinto do curioso; eram duas da ma-
drugada, velas a esta hora, certamente
que interessava — dentro de uma sala
baixa outras velas iluminavam umas ca-
ras curiosas e discretas, pequenas mesas
de p á o , e n o f u n d o u m a outra sala igual-
mente baixa. Entrei hesitante encami-
n h a n d o - m e para a sala do f u n d o c o m o u m
a n i m a l e x t r a n h o ; as v e l a s e n c h i a m as sa-
A TAVERNA FITZROY e.-

las de u m ar de capela; a sala estava va-


sia e sentada a uma mesa recuada no
canto uma senhora j á de certa edade e de
chapéo na cabeça manejava uns níqueis;
era uma casa de chá — pedi u m chá e
afastei o castiçal para o extremo oposto
da mesa. Tratava-se do Blue Cockatoo
notório em certos meios.
Atravez da porta uma jovem de ca-
belos vermelhos contemplava qualquer
coisa de não-existente; a luz da vela fa-
zia o seu olhar ainda m a i s s o m b r i o e m i s -
terioso. Imóvel, ela n ã o falava e parecia
alheia ao murmúrio baixo e ininterrupto
do seu companheiro. A atmosféra era de
igreja. C o m cuidado e sem fazer barulho
cruzei as pernas e mudei levemente de
posição. O chá apareceu n ã o sei como;
foi colocado sobre a mesa, sem o menor
ruido. A voz da criada surgindo de n ã o
sei d o n d e e quasi a p a g a d a e e m suspensão
me pergunta se d e s e j o a l g u n s b o l o s e que
eram excelentes e feitos em casa. N a
semi-escuridão ouve-se apenas o m u r m ú -
rio do jovem apaixonado da sala visinha.
A criada aparece e desaparece á maneira
dos fantasmas. V i apenas que era uma
velha.
64 Os Ossos no M U N D O — FLAVIO DE R. CARVALHO

Entra u m personagem de capa de


borracha e óculos e senta-se á minha
frente no f u n d o da sala.

2 horas da manhã, o homem de capa


de borracha ocupava u m cargo inteletual
em u m dos museus, a nossa conversa ver-
sava sobre cinema, arte, bailado, psicolo-
gia do povo inglês, etc.... A dona da
casa, que a principio tomára parte ativa
na conversa, espantada com algumas das
idéas aventadas, me olhava com descon-
fiança e ao meu novo amigo doava toda
a sua exprobação mental.
Saímos juntos, o "river-side" deserto
era acolhedor e dava a v o n t a d e de dansar
u m passo selvagem á luz da lua — mar-
chamos e m silencio e no apartamento do
meu amigo tomei u m álcool e despedi-me.

O Fitzroy Tavern é perto de Char-


lotte Street, e é neste momento u m dos
"pubs" mais freqüentados. É moda ir ao
Fitzroy Tavern sobretudo entre os escri-
tores e artistas jovens, e naturalmente a
sala é pequena para conter a massa que
A TAVERNA FITZROY 65

se c o m p r i m e e se a c o t o v e l a l á d e n t r o , en-
tre 6 e 10 da noite — a Inglaterra sem
duvida temendo alguma epidemia de al-
coolismo ainda conserva os regulamentos
da guerra de 14, e 10 h o r a s é a h o r a em
que teoricamente o povo deixa de beber.
Ir ao Fitzroy Tavern n ã o é uma
função social nem u m á t o de elegância.
L á e s t ã o t o d a s as c l a s s e s : o scroc, o gan-
gster, o poeta dissipador, o p i n t o r que n ã o
reproduz a natureza, a mulher do pintor,
o "tough-guy" os modêlos de artista, a
inteletual de óculos e a inteletual sem
óculos de cabelos compridos e romântica,
o critico de arte, os grandes jornalistas,
a ultima sensação literária, pianistas,
compositores, acrobatas, prostitutas ca-
maradas, aristocratas em busca de sen-
sação, o O x f o r d blue, a m u l h e r decorativa
que se compõe exoticamente e que n ã o
fala, a ocidental vestida á chineza e a
chineza á européa, todos se acotovelam
na fumarada espessa e e n t r e l a ç a d o s pelo
álcool despem as suas almas do pecado
inútil da civilisação.
N o fundo u m piano mecânico distri-
bue ao espaço notas de musica, as mes-
mas que costumam sair do piano meca-
6<i Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

nico de rua deserta. N i n g u é m escuta o


piano: o v o l u m e de vozes enche inteira-
mente os ouvidos, e o dono do estabele-
cimento que t e m cara de sírio e fala com
um acento pronunciadamente cokney
sorri amavelmente para uma porção de
pessoas que n ã o se ocupam do seu sor-
riso. Os garçons, atraz de u m vasto bal-
cão entregam bebidas com rapidez incrí-
vel, e no forro uma porção de laços de
papel de seda pregados a e s m o i n t r i g a m a
i m a g i n a ç ã o do forasteiro; parecia u m a de-
coração surrealista. M a i s tarde me infor-
m a m que eram donativos para o dia das
crianças pobres.

O mobiliário da taverna percebido


com dificuldade era de m e t a l n i q u e l a d o e
laca v e r m e l h o e contrastava com o aspeto
Victorian do resto.
Quando entrei havia u m " H o l y
Ghost (1) party" no extremo do balcão.
O escritor Feddern e x e r c i a as funções de
Deus todo poderoso, u m jovem poeta em-
briagado e sem colarinho e cujo nome me

(1) Espirito Santo.


A TAVERNA FITZROY

escapa respondia ao titulo de São M a -


teus. Empurrado naquela região, fui
imediatamente elevado á categoria de
anjo Gabriel, e exercia funções prepon-
derantes junto a Betty, a V i r g e m Maria,
que tinha cabelos castanhos e grandes
olhos azues e boca larga e sorridente.
A u m dado momento grandes notas
sonoras dominavam o ambiente, u m pia-
nista celebre sentado ao piano enchia a
sala com qualquer cousa de Strawinsky;
o vozeiro parou; Maria Madalena de-
pendurada n o p e s c o ç o de S ã o M a t e u s me
aperta o b r a ç o -— e r a uma jovem de uns
19 anos com cabelos soltos e para traz
até o h o m b r o e fita cor de rosa atada na
testa. Extremamente pintada usava uma
saia de seda á m e i a perna, u m a jaqueta de
skiy e calçava botas, era a imagem mes-
m o da inocência — acariciei o rosto arre-
dondado de M a r i a Madalena, Jesus Cris-
to erguendo o copo e a garrafa sau-
dou o mundo. . . "escuta... como é bo-
nito" me disse e l a . . . e os últimos acor-
des desapareceram no voseiro e nas pal-
mas.
As rodadas sacudiam rezas poéticas,
Deus todo poderoso explicava a Betty (a
68 Os Ossos no MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

Virgem Maria) de c o m o devia realisar-se


a concepção. C o m o intuito de conhecer
outros tipos, abandonei a terra santa e
dirigi-me, empurrando a custo, para o ou-
tro lado da sala.

Sentado á minha direita u m "tough-


guy", tipo que oscila entre o "pick-
pocket" e o pugilista profissional, me ex-
plicava e m d e t a l h e s as suas m a g u a s pro-
fissionais. Á minha esquerda, Anabela,
pintora de animais, rígida e translúcida
como uma e s t a t u a e g í p c i a , n ã o se ocupa-
va n e m comigo nem c o m o resto da sala.
A fumaceira tapava a v i s i b i l i d a d e ; as no-
tas do piano novamente mecânico se de-
sencontravam, o vozeiro entorpecia os
sentidos e na frente u m desenhador pro-
fissional aceitava a minha recusa de u m
dos seus tipos de retrato.
Anabela vestia u m paletó siamez
colado ao corpo e todo bordado de ouro,
os seus d e d o s e r a m brancos e compridos
e terminavam em unhas esmaltadas de
preto, tinha olhos castanhos reforçados
c o m b a t o n verde e branco, os cabelos for-
mavam uma franja em caracol grudada
A TAVERNA FITZROY 69

em fios sobre a testa, os seios saltavam


fóra da blusa de seda e os seus lábios
eram grossos e vermelhos.
" N ã o gosto de "tough-guys" diz-me
Anabela. ( O " t o u g h - g u y " submisso com-
primentou e afastou-se). Os gangsters
na Inglaterra são gentlemen perfeitos, e
em lugares c o m o o que estou descrevendo
se comportam da melhor maneira possi-
vel e n ã o exercem absolutamente a pro-
fissão. M e s m o o "tough-guy", tipo cok-
ney segue rigorosamente a ética matriar-
cal do macho inglês, e é incapaz de pro-
vocar o m e n o r desalinho na sua pessoa ou
no ambiente quando em presença de se-
nhoras. N a s o c a s i õ e s festivas de u m modo
geral o "tough-guy" é mais gentlemen
que o aristocrata e o seu comportamento
se assemelha ao comportamento que se-
ria observado n u m baile, na Cúria, ou
numa recepção em palácio. Os "tough-
guys" mesmo c o m o f a z e m os lacaios e os
d i p l o m a t a s se curvam perante a superio-
ridade psicológica e em boa parte dife-
rem dos diplomatas e dos lacaios no uni-
forme e no físico atlético, e freqüente-
mente na linguagem, bem entendido. O
trenamento e a educação do diplomata e
7(1 Os Ossos no M U N D O ~ F L A V I O DE W. CARVALHO

do lacaio, muitos pontos de contato tem


com a aprendisagem do "tough-guy";
ambos se desgastam em neurastenia so-
b r e as pequeninas miudezas inherentes á
p r o f i s s ã o , ambos de certo m o d o s u a m com
o peso da m a n i a de perseguição.

"Então você gosta de Ben Nichol-


son" diz Anabela.
"Ben Nicholson é u m grande ar-
tista . . . absolutamente sincero... nenhu-
ma sofisticação... basta conhecer o seu
trabalho primitivo" retruquei.
"Prefiro M o o r e . . . conhece H e n r y
Moore... oh que h o m e m Moore, gosto
muito mais da sua escultura que a de
Hepworth".
" N ã o conheço Moore, mas tenho
uma grande admiração por Barbara Hep-
worth, somente ha u m engano na classi-
ficação de Hepworth, ela é muito mais
surrealista que abstracionista, a sua pro-
dução palpita com vida e é imensamente
humana e n ã o é raciocinada... você com-
preende . . . " Anabela me interrompe e
a p o n t a n d o c o m os dedos "olha que tipo...
parece u m avestruz".
A TAVERNA FITZROY 71

Já era hora de fechar. Dois policias


no local concitavam a horda alegre e ba-
rulhenta a sair, o dono do estabeleci-.
mento gritava inutilmente no ouvido de
cada u m que era hora de fechar, ninguém
saía n e m escutava o que dizia o dono, mas
os barmen já n ã o serviam mais, alguns
mais iluminados pediam apressadamente
a ultima bebida ou adquiriam garrafas
para levar para o apartamento, o H o l y
Ghost party muniu-se de u m stock res-
peitável. N a porta entupida empurrava-se
amigavelmente. Deus todo poderoso pro-
curava por toda a parte o seu guarda-
chuva.
Bebemos de u m trago o resto do
uísque "vamos continuar a nossa con-
versa lá fora" e pegando Anabela pelo
braço grudamos na massa que entupia a
porta.
Fazia frio mas ninguém sentia frio,
as despedidas eram comoventes e bur-
lescas, na r u a escura chuviscava; esbarrei
com o escultor Frank Dobson "Hello
Dobson"... " H e l o o o . . . v i m dar u m a es-
piada, detesto esse lugar... só bebo l i -
monada hoje... Hello Anabela" e Do-
72 Os Ossos DO M u s n ò — F L A V I O DE R. CARVALHO

bson s u m i u de m ã o s nos bolsos e chapéo


enterrado na cabeça.
"Você sabe" me diz Anabela "acon-
teceu o mesmo com Lawrence que acon-
teceu com você (1), Lawrence além de
escritor... era pintor, fato pouco conhe-
cido no extrangeiro... a policia que n ã o
entende de arte, n u m impulso estranho
de p u d o r apreendeu quadros com o monte
de Venus capilar, mas naturalmente nin-
g u é m ligou para a policia e Lawrence
continua sendo o maior escritor da Ingla-
terra . . . D e p o i s da sua m o r t e apareceram
umas edições falsificadas, dava a impres-
são que Lawrence tinha renegado o seu
trabalho — nada disso aconteceu, antes
de morrer Lawrence, prevendo, frizou
expressamente que n ã o queria a publica-
ç ã o de outras edições".
" B o m , vamos embora" ordenou Ana-
bela. N u m a pequena p o r t a na fachada da
taverna acumulava gente; era o mictório,
os m i c t ó r i o s são freqüentemente do lado
de fóra, u m policia zeloso dissolvia, gru-
pos barulhentos a m e a ç a n d o alguns c o m a

(1) Referia-se ao fechamento da m i n h a e x p o s i ç ã o


dc p i n t u r a pela policia de S. Paulo.
A TAVERNA FITZROY

" c a n a " ( l ) ; piadas pornográficas sur-


g i a m a q u i e a l i e os i m p a c i e n t e s d o mictó-
rio i n c o m m o d a d o s c o m a espera iam ope-
rar e m outros locaes.
São Mateus me pegando o braço nos
arrastou rumo seu caminho. Entramos
em F i t z r o y square, " s a b e " disse S ã o M a -
teus "nunca me utilisei do mictório, a
nossa arquitetura que c o m e ç a a ser habi-
tada no subsolo, possue aberturas no ni-
vel d o c h ã o para a l u z e o ar que s ã o pre-
c i s a m e n t e as a b e r t u r a s a p r o p r i a d a s a uma
saída de bar, h a dez anos que mijo diré-
tamente e m baixo do nivel do chão e sem
abandonar o rez do chão". Ligando o
gesto ao pensamento, Deus todo pode-
roso, S ã o M a t e u s e eu recuamos n u m re-
cesso da acolhedora arquitetura.
A n a b e l a r e s i g n a d a e l i g e i r a m e n t e en-
vergonhada esperava na esquina.

Era tarde; Anabela não queria acom-


panhar o Holy Ghost party, depois de
uma troca de pensamentos vasios nos
afastamos. Maria M a d a l e n a passava nos

(1) Cadeia.
Ti Os Ossos no M U N D O — F L A V I O I>K R. CARVALHO

braços de u m anjo, Anabela impaciente


m e arrastava, "Adeus, Madalena, adeus...
nunca mais nos veremos, nunca m a i s . . . "
"Nunca mais" repetiu Maria Mada-
lena, enviando u m beijo com a ponta do
dedo, e Deus todo poderoso cambaleando
em pêndulo dirigiu-me a saudação fas-
cista.
A s Ruínas d o M u n d o

"A historia fará as re-


velações que você merece**.
— Nietzsche.

Museus, galerias, coleções, castelos,


são cousas interessantes perfeitamente
capazes de reviver o sopro das civilisa-
ç õ e s perdidas e esquecidas, e erguer a es-
perança do homem, e possuem a vanta-
gem de oferecer ao observador distan-
7C» Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO OE R. CARVALHO

ciado, no tempo, u m a visão maior e mais


compreensível, que a visão de u m obser-
vador colocado dentro da civilisação e do
tempo em que ela aconteceu.
O observador, no museu, t e m a clari-
dade e a "transparência" do h o m e m e m
vôo; n ã o somente em algumas horas êle
penetra em todas as fases que uma civi-
lisação levou séculos a desenvolver, mas
pode, á vontade, aproximar-se o u distan-
ciar-se dessa civilisação, focalisando os
detalhes com uma luminosidade super-
realista, ou apagando-os numa nebulose
impressionista, e quasi abstrata.
O h o m e m dentro de uma civilisação
tem os seus sentidos impregnados e afo-
gados, ê l e quasi que s ó emana e recebe do
que existe i m e d i a t a m e n t e e m redor, ê l e é
u m sêr isolado pelos fatos que o rodeiam,
u m s ê r s e m p o n t o de vista; n ã o h a julga^
mento porque n ã o ha contraste, e ele é,
como o peixe dentro do mar, quasi inca-
paz de apreciar os a c o n t e c i m e n t o s de uma
vida vizinha, principalmente quando é si-
multânea.
Para enchergar e apreciar, êle pre-
cisa afastar-se dos acontecimentos, adqui-
rir u m ponto de vista. O acontecimento
As RUÍNAS DO MUNDO 77

remoto é mais visivel e apreciável ao


observador que os acontecimentos que o
afogam. A idéa mesmo de a p r e c i a ç ã o en-
volve viver fóra do local, dos apreciado-
res de u m certo local, j á que aqueles que
enchergam n ã o são nunca os habitantes
do local, pois que estes acostumados á vi-
são diária do ambiente d e i x a m de perce-
b e r as m u t a ç õ e s do ambiente e o que êle
possue de sugestivo. O h o m e m , dentro do
ambiente, t e m visão muito limitada e en-
cherga u m ou outro acontecimento a u m
tempo, enquanto que o h o m e m afastado,
o h o m e m em vôo, encherga simultanea-
mente toda a vida de u m mundo. O ar-
q u e ó l o g o que examina u m a época remota
tem a visibilidade do h o m e m em vôo; é
capaz de julgar porque encherga ao mes-
mo tempo u m grande numero de aconte-
cimentos.
Pode parecer estranho, mas a "visi-
bilidade" aumenta com a decalagem,
quanto maior é a simultaneidade menor é
a percepção reciproca dos acontecimen-
tos, m a s sendo o acontecimento bastante
afastado o observador, em busca de uma
visão, encontrará talvez no acaso das
cousas os resíduos que iluminará o seu
7S Os Ossos 00 MUNDO — FLAVIO OE R. CARVALHO

pensamento. O peixe dentro do mar nada


sabe do vôo nupcial da abelha, n e m das
idéas de u m comandante de navio, mas
poderá u m dia entrar e m contato com os
ossos de u m homo-sapiens e ponderar
sobre os ossos.
U m a coleção de ossos é portanto
mais importante a u m observador que os
ossos do p r ó p r i o observador. A luz sobre
o passado é o único tipo de luz capaz de
iluminar o presente, e de ajudar a derre-
ter o v é o da cegueira; o passado colecio-
nado em museu apresenta mais sugesti-
bilidade que o tumulto de uma geração,
e é eminentemente capaz de concorrer ao
desabrochar do indivíduo.
Destruir o passado é o mesmo que
destruir a própria alma do indivíduo. N ã o
que o passado na é p o c a em que ele acon-
teceu, tenha tido u m valor particular-
mente importante, pois u m a dada época
só adquire valor apreciável, visível, de-
p o i s d e se t o r n a r p a s s a d a , d e p o i s d e figu-
rar como coleção de museu. O valor da
época n ã o é perceptível dentro da época
porque n ã o ha ponto de vista, n ã o ha
contraste, falta comparação, e sem con-
traste n ã o p ô d e haver julgamento.
As RUÍNAS DO MUNDO 79

U m h o m e m sem passado é u m ho-


m e m "impossível" porque n ã o existe
ponto de apoio. Veja-se que a destruição
a n á r q u i c a de si mesmo, c o m o o dadaismo,
necessita, para ponto de apoio, u m pas-
sado.
A sensibilidade do homem são, pre-
cisamente, os ossos do mundo organiza-
d o s e m c o l e ç ã o ; s ó as c o l e ç õ e s p o d e m for-
necer comparação e dialética, e conse-
quentemente sugestibilidade. O homem
vive no seu mundo mas raramente se dá
ao trabalho de e x a m i n a r o m u n d o e m que
vive. U m exame dos objétos do mundo
e das cousas encontradas no correr da
vida, n ã o somente desperta uma nova
sensibilidade no indivíduo, r
e que antes
se achava adormecida, mas t a m b é m es-
tabelece uma ligação animica maior entre
o indivíduo e o objéto examinado; o obje-
to adquire para o indivíduo u m valor e
uma sugestibilidade que êle dantes não
possuía; o objéto torna-se uma fonte de
recordação das duvidas e do drama da
vida... o objéto vive tanto quanto o pró-
prio indivíduo. De uma cousa jogada no
a c a s o d o m u n d o , ê l e se transforma numa
cousa transbordando de sugestibilidade,
80 Os Ossos r>o MUNDO — FLAVIO I>F R. CARVALHO

êle adquire "atmosfera". Semelhantes


sensações n ã o são mensuráveis pela f i -
sica m o d e r n a ( 1 ) , que fracassa completa-
mente, quando a noção de t e m p o perde o
seu sentido vulgar do cronometro.
A atmosféra de u m objéto são "as
recordações" que o objéto oferece ao
observador; estabelece-se uma ligação
entre as camadas profundas do incons-
ciente; essas c a m a d a s p r o f u n d a s ressoam
ao aspéto do objecto do observador, e o
aspéto do objecto e surge na tona do
consciente, n ã o propriamente uma ima-
gem mas a sugestibilidade de u m a recor-
dação longínqua.
Sem duvida, por uma ironia natural,
as recordações da h i s t o r i a se congregam
nos resíduos abandonados pelo h o m e m e
não destruídos, e as recordações cósmi-
cas, as g r a n d e s f e r i d a s d o m u n d o se con-
gregam em toda a produção do h o m e m e
em tudo que aparece ao h o m e m . M a s es-
tas r e c o r d a ç õ e s s ó s ã o percebidas quando
se dá uma espécie de ressonância ou co-
municação entre a camada do incons-

(1) A de h o j e em todo o caso.


As RUIXAS DO MUNDO 81

c i e n t e q u e se r e f e r e a o p e r í o d o recordado
e o objéto.
Porque se c o n g r e g a m as recordações
da historia nos resíduos sobreviventes?
P o r q u e as pesquisas d o h o m e m procuram
sempre reconstruir o passado, reconstruir
a o r i g e m , saber de onde s a í m o s , para cal-
cular para onde vamos... e os resíduos
sobreviventes são os únicos pontos de
apoio capazes de a g ü e n t a r c o m suficiente
segurança a animosidade pesquisadora
do homem. Á medida que diminue a se-
gurança, o residuo torna-se menos " so-
brevivente ", mais morto, mais remoto e
mais impalpavel. O objéto irreconhecível,
de tão remoto que é, possue talvez a
maior carga de sugestibilidade, mas re-
quer a simpatia de u m a camada mais pro-
funda, mais antiga do inconsciente, e a
sua beleza é menos accessivel á aprecia-
ção geral.
As forças cósmicas e as forças trau-
máticas, os grandes quadros de feridas
r e q u e r e m t a l v e z " m a i s " que as p r o f u n d e -
zas do inconsciente para o seu reconheci-
mento. .. requerem a intuição poética do
"começo das cousas".
6
82 Os Ossos no MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

Toda a fôrça que orienta a pesquisa


do h o m e m surge da grande sugestibili-
dade dos residuos do mundo. A medita-
ç ã o d o homo-sapiens é já u m apêlo dessa
sugestibilidade, u m a duvida.
De m a n e i r a que, a e x p r e s s ã o "atmos-
f é r a " de u m o b j é t o qualquer, é a soma al-
gébrica de todas as sugestibilidades per-
ceptíveis no objéto.

A pintura não-naturalista, e parti-


cularmente as pinturas expressionistas,
super-realistas e abstracionistas, são
exemplos berrantes da existência de uma
"atmosféra" n ã o mensurável pela fí-
sica m o d e r n a . E s s a s p i n t u r a s p o s s u e m as
recordações mais dramáticas da alma do
homem; estão completamente fóra da
i d é a c r o n o l ó g i c a de t e m p o , as f ô r m a s pin-
tadas s ã o animistas, e possuem t ã o gran-
de carga de sugestibilidade, que vivem e
pensam como tudo mais. S ã o fôrmas que
pertencem á morfologia dos residuos
mais remotos do m u n d o (1), dos residuos

(1) V ê r no " O mecanismo da E m o ç ã o A m o r o s a " ,


o cap. "Notas para a r e c o n s t r u ç ã o de u m m u n d o per-
d i d o " — apresentado e m 1934 na C o n f e r ê n c i a I n t e r n a -
cional de P s i c o t é c n i c a em Praga.
As RUÍNAS DO MUNDO 83

de mundos perdidos, daqueles que só o


fundo da alma e uma intensa elaboração
poética podem recordar. A profundeza
do pensamento da pintura moderna pro-
vem da sua natureza cosmogonica, e se
caracteriza pela essência de "verdade"
que possue. A primeira confirmação do
observador da pintura moderna (1) é o
"isso é v e r d a d e " que salta aos o l h o s e ás
vezes confunde, choca e mesmo desa-
grada o observador, que quasi sempre n ã o
gosta e repele a verdade. A verdade n ã o
é uma condição lógica nem raciocinada
ou raciocinavel, é muito mais profunda
que a dialética regional de u m a lógica. A
verdade surge da "atmosféra" do qua-
dro e s ó pode parecer verdade para aque-
les que c o m p r e e n d e m a "atmosféra".
A verdade, quando aceita como tal,
é sempre terapêutica; oferece apoio e se-
gurança ao tumulto interno do homem.
O amador da pintura moderna compreen-
de isso p e r f e i t a m e n t e e é por isso que ê l e
a ama, porque êle sente a força terapêu-
tica emanada da "verdade", êle sente u m

(1) Existe m u i t a p i n t u r a falsa que passa por mo-


derna, esta e s t á excluida do argumento.
84 Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

repouso que se achava perdido atraz da


historia, u m balsamo para uma ferida
aberta.
É fácil de compreender o poder tera-
pêutico popular da pintura " M a d o n a e
bambino", pois que esta pintura contem
verdades que estão mais ou menos ao al-
cance de todos. A falsa i n o c ê n c i a e o "en-
graçadinho" do bambino e a sexualidade
ou a esterilidade da madona, são cousas
que apelam e pertencem á superficie do
mundo da sensação.
Todo o mundo objetivo e e m parti-
cular os ossos d o m u n d o , os residuos an-
cestrais, funcionam como condutores de
"verdade" e consequentemente oferecem
u m poder terapêutico pouco compreen-
dido h o j e d e v i d o ao infeliz e tacanho es-
pirito cientifico do século. S ó as civilisa-
ções africanas e asiáticas compreenderam
bem o valor terapêutico oriundo da su-
gestibilidade do objéto, s ó elas souberam
colocar a seqüência dos acontecimentos
fóra da idéa de tempo.
O mundo objetivo t e m o aspéto de
u m vasto cemitério onde cada objéto fun-
ciona como u m fetiche capaz de agüentar
As RUÍNAS bo MUNDO 85

um processo de magia (1). O amor á su-


gestibilidade do mundo objetivo conduz
reflexamente á pratica da magia. A sen-
sação de belesa e de encanto provocada
por essa sugestibilidade fica e é acalen-
tada na alma do h o m e m como u m refugio
maravilhoso nos seus m o m e n t o s de tris-
teza. U m contato qualquer com o objéto-
fetiche traz á tona a emoção de encanto
e reaviva toda a gloriosa voluptuosidade
da belesa, a m a g i a é então u m culto ne-
cessário, u m culto cuja pratica satisfaz e
repousa, é a grande pratica terapêutica.
Q u a n d o u m o b j é t o e n t r a para os d o m i n i o s
curativos da magia êle é reconhecido
como sagrado, i s t o é, capaz de encantar
com a sua belesa u m numero apreciável
d e f i e i s . B e l e s a e m a g i a se a s s o c i a m como
condições complementares. A magia é o
processo para a r e a l i s a ç ã o de certos dese-
jos voluptuosos. O á t o sexual é u m á t o de
magia, como t a m b é m é u m á t o de magia
o m é r o tocar com o dedo no vestido da
santa. A magia é a sublimação da belesa,
a satisfação dos desejos creados pelo en-

(1) Vêr o desenvolvimento teórico da idéa de fe-


tiche no l i v r o ao autor " E x p e r i ê n c i a n . 2 " .4
86 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

canto do objéto-fetiche, é a consumação


de u m culto. A idéa de consumar u m
culto, de entrar em contato com o en-
canto e com a belesa, e n v o l v e a destrui-
ção ou a perturbação da belesa. Os pro-
cessos da magia imitativa e homeopá-
tica (1) s ã o já conseqüências de uma in-
timidade maior entre sujeito e objéto-
fetiche, e representa o periodo e m que
o encantamento e o amor do sujeito, pela
belesa do objéto-fetiche, torna-se t ã o in-
tenso que o s u j e i t o se imagina que con-
trolando o objéto-fetiche êle controlará o
mundo. E o objéto-fetiche é então usado
como ator, para representar os dramas
da vida com a benevolência e a malevo-
lencia oriundas do sujeito.
Todo o mundo objetivo funciona
como fetiche, quando percebido pelo
h o m e m (2). Todos nós, mesmo contra a
nossa vontade, praticamos magia.

O d r a m a d e u m r e s i d u o se caracterisa
por quatro fases distintas. A primeira

(1) Para uma descrição desses tipos dc magia vêr


"O Ramo de O u r o " de Sir James Frazer.
(2) Vêr " E x p e r i ê n c i a n . ° 2 " do a u t o r .
As RUÍNAS DO MUNDO 87

quando é usado animisticamente pelo ho-


m e m na época da sua f o r m a ç ã o ; é a fase
amorosa, a fase da realisação estética,
época e m que o h o m e m constróe a sua
f a n t a s i a e a p l i c a o s e u a m o r e as suas ca-
ricias nas suas c o n s t r u ç õ e s , o m u n d o obje-
tivo se integra animisticamente na vida
do h o m e m e recebe o odio e o amor do
inteleto, e é tratado como u m igual — é
o periodo de magia e democracia, o gran-
de periodo de fervor religioso. O s resi-
duos da construção da fantazia natural-
mente se c o m p õ e m de residuos de outra
categoria encontrados e valorizados por
uma escolha ligada ao desejo de valori-
zação estética. Esta escolha, q u e se b a -
seia na sugestibilidade objetiva, e e m
grande parte movimentada pela força
ética inconsciente do individuo, e que
quasi sempre dorme o "sono da ino-
cência".
Na segunda fase d o drama, o aban-
dono d o m i n a as e m o ç õ e s , o espetáculo é
de hipocrisia e de alegria: a fantasia cons-
truída deixa de ser u m a fantazia, o ho-
m e m cançado larga de lado a sua obra
p l á s t i c a e d e i x a p l a s m a d a s e m r i g i d e z es-
tática as fôrmas dos seus desejos, e os
8S Os Ossos DO MUNDO — KI.AVIO DE R. CARVALHO

últimos toques dos seus dedos trêmulos


não são mais que uma condescendência
para com a sua escultura, n ã o aspiram
mais a uma méta, é u m f i m de volúpia.
O residuo abandonado carrega atra-
vés os tempos toda a simpatia de uma
época, até o momento e m que o descobri-
dor-arqueologo c o m a sua perspicácia de
policia secreta, desdobra e expõe u m por
u m os desejos milenares e o tumulto co-
locado pelo homem, nas camadas plásti-
cas. O descobrimento é a terceira fase do
drama, êle é sempre imperfeito porque o
arqueólogo raramente consegue penetrar
muito além da s u p e r f i c i e ; os arqueólogos
t ê m medo da intuição poética e preferem
ser cientistas — naturalmente o b o m
comportamento do arqueólogo n ã o visa
outra cousa que u m logar seguro no céo
— mas o descobrimento n ã o é u m mono-
pólio oficial, e todo aquele que sofre a fe-
licidade de n ã o ser u m arqueólogo bem
comportado pôde sem perigo para a sua
reputação penetrar além da superficie. O
arqueólogo bem comportado se parece
u m tanto com o psicólogo bem compor-
tado. Mecanisados por u m catecismo
cientifico êles t ê m medo do mundo e do
As RUÍNAS DO MUNDO 8Í)

pecado e só enchergam a linha traçada


pelo catecismo — são equilibristas que
pisam resolutamente sobre u m f i o sus-
penso no escuro e poucas vezes se lem-
bram que psicologia e arqueologia n ã o
s ã o á t o s de equilíbrio mas s i m cousas que
surgem da grande sugestibilidade do
mundo, cousas catastróficas que se sen-
tem e cuja emoção e sensibilidade são
apenasmente ampliadas pelo raciocínio.
U m a introspeção arqueológica privada de
sentimento, isto é da força penetrante da
elaboração poética, nunca pôde ressoar
á plástica do residuo e restabelecer o tu-
multo animico colocado pelo homem na
época examinada, mesmo porque o H o -
m e m que creou o residuo n ã o era arqueó-
logo. Para desvendar os acontecimentos
representados por u m residuo é necessá-
rio sentir a sugestibilidade do residuo,
sentir a força psicológica acumulada, e
emanada do residuo, e com o auxilio do
raciocínio compreender a emoção sen-
tida.
O arqueólogo tem de penetrar nas
sucessivas fases que plasmaram o resi-
duo, tem de ser intensamente humano e
sentir o palpitar da alma do h o m e m e da
90 Os Ossos uo MONDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

civilisação que confecionou o residuo;


além de humano, e de sentir todas as
emoções do artista e da civilisação que
construiu e fez, ê l e t e m t a m b é m de ser
psicólogo, isto é, compreender os moti-
vos dessa c o n s t r u ç ã o e dessas f o r m a s .
O processo de compreensão arqueo-
lógica é mais ou menos o mesmo que o
processo da c o m p r e e n s ã o na arte. O sen-
timento emotivo, o sentimento capaz de
alcançar as profundezas da espécie, é
condição primordial sem a qual nenhuma
compreensão é aconselhável. Para que a
carga de vida de animosidade acumulada
por u m r e s i d u o n ã o se conserve e m mis-
tério, é necessário que o arqueólogo seja
mais que humano, é necessário que êle
apreenda a a ç ã o coletiva de t o d o u m povo,
de toda uma raça e de toda uma histo-
ria, porque o residuo n ã o recebeu o con-
tato de u m s ó h o m e m isolado a u m dado
momento, mas sim o de uma historia, e
onde uma grande seqüência ancestral re-
cebeu as oscilações do amor e do odio.
Para apreender essas oscilações, o ar-
q u e ó l o g o precisa passar p o r elas, v i v e r na
sensibilidade da sua fantasia a vida da
época, e reproduzir, êle mesmo, as reali-
As RUÍNAS DO MUNDO 91

sações estéticas ligando-as, n ã o á sua


ética, mas á ética da época examinada. A
sua ética serve apenas de j u l g a m e n t o ou,
melhor, de elemento de comparação.
O arqueólogo mal comportado tem
muito mais probabilidades de compreen-
der o não-tempo, de viver igualmente á
v o n t a d e e m t o d a s as é p o c a s q u e examina,
desabrochando todas as c a m a d a s , mesmo
as mais profundas da sua sensibilidade,
e que estão naturalmente alheias e bem
afastadas do catecismo cientifico do seu
mundo. A noção de tempo como a com-
preendemos parece nada significar numa
sensibilissima introspeção arqueológica,
e o poder de sentir o passado e a espécie
parece indicar a capacidade que t e m o ho-
m e m de viver fóra do tempo.
"Sentir o passado e a espécie" está
ligado á idéa de sugestibilidade. U m a
cousa é sugestiva quando ela carrega em
si u m g r a n d e n u m e r o de e m o ç õ e s capazes
de repercutir no observador e sugerir ao
observador a v i s ã o e a v o l ú p i a de t o d o u m
mundo. Esta grande acumulação de força
animica no objéto-residuo, faz com que
êle seja o ú n i c o óculo pelo qual o h o m e m
pôde u m dia enchergar o passado e a es-
92 Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DB R. CARVALHO

pecie. A visão oferecida é a sublimação


da sugestibilidade.
O mistério que encobre o detalhe, o
véo que apaga e afasta e seduz, desman-
chando a cronologia do tempo, são a méta
do homem, porque oferecem novidade e
juventude eterna. S ã o forças que falam
e que possuem uma seqüência animica
tão vigorosa quanto a do próprio homem.
A aparência estática do residuo pertence
mais á idéa cronológica de tempo, do
tempo em que o percebemos, pois que o
residuo tem uma animosidade freqüente-
mente muito mais forte e muito mais
movimentada que a do observador.
A sugestibilidade de todo o "aban-
donado" pela historia e pelo h o m e m tem
a volúpia que t e m u m vulto atraz de uma
cortina, atraz de uma grade ou dentro
das sombras de uma folhagem... excita
a imaginação poética do observador... e
o arqueólogo e o etnografo precisam en-
contrar no residuo uma fonte de excita-
ção poética e de sugestibilidade, preci-
sam ver no residuo a magia e a sedução
que pertencem a uma mulher oculta. A
parte sugestiva e o encanto do objéto v i -
sado, m e s m o como pôde acontecer c o m a
As RUÍNAS DO MUNDO 93

mulher visada ao acaso, aumentam com


as dificuldades que se opõem a u m con-
tato intimo entre observador e objéto.
Porque o detalhe está apagado, é en-
tão que o h o m e m t e m vontade de conhe-
cer o detalhe. O v é o que encobre o deta-
lhe fornece a grande atração, é o engodo
mais volutuoso que atráe leigos e espe-
cialistas.
A ultima fase do drama de u m resi-
duo é o seu arranjo em museu. U m ho-
m e m coleciona calças de mulher pelo
cheiro ou perfume que ainda contem e
pelas recordações que rememora. Nas
coleções sentimentais o cheiro ocupa lu-
gar preponderante porque reaviva o fogo
e o gosto do contato sexual, talvez mais
ainda que a visibilidade. O cheiro cara-
cterístico do corpo é u m grande afrodi-
siaco.
Outros colecionam caixas de fósfo-
ros. Os judeus colecionam prepucios. A
c o l e ç ã o d o j u d e u é, n a realidade, u m a o f e -
renda sexual á Igreja, u m sacrifício de jo-
vens viris á sanha sexual de uma deusa.
E é u m á t o s i m b ó l i c o , p o r q u e se trata do
primeiro contato sexual do jovem que,
penetrando pela porta da igreja, penetra
!U Os Ossos 00 MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

dentro de uma grande vagina, pois que a


porta da igreja é uma representação da
vagina e a igreja em si u m a figuração da
mulher (1).
Conheci u m tipo asqueroso que cole-
cionava cascas de feridas e fazia grandes
dissertações aos amigos sobre a vida e a
evolução das suas feridas.
U m curioso exemplo de coleciona-
dor, está no maniaco do castelo de K o -
nopiste (2), o arquiduque Franz Ferdi-
nand d'Este, que colecionava imagens de
S. Jorge, para fazer concorrência ao rei
da Inglaterra, possuidor de importante
coleção.
Quasi todo o castelo de K o n o p i s t e se
acha ocupado com S ã o Jorges e o respe-
tivo dragão, santos e d r a g õ e s de todos os
t a m a n h o s , de t o d a s as cores e c o m todas
as fisionomias, e quem atravessa as nu-
merosas salas e halls entulhados do mais
variado e expressivo amontoado de san-
tos ferozes e reptís humildes e sangren-
tos no mundo, n ã o pôde deixar de pon-
derar porque o cristianismo n ã o apre-

(1) Vêr a obra do autor "O Mecanismo da Emoção


Amorosa".
(2) Na Checoslovaquia.
As RUÍNAS DO MUNDO 95

sentou a cruz ao d r a g ã o e m vez da espada


d e S ã o J o r g e , d e s d e q u e se t r a t a v a d e con-
quistar o paganismo simbolizado no dra-
gão. Evidentemente a historia do dragão
e da espada do santo nada tem que vêr
com a conquista do paganismo. A s expli-
cações cristãs para os v e l h o s s i m b o l o s da
historia, quando feitas conscientemente,
sempre d e i x a m a desejar, e a m a i o r parte
das vezes são completamente imbecis.
Acontece porém que quando estas são
feitas por pura intuição religiosa, expri-
m i n d o apenas o sentimento, elas possuem
incalculável valor psicoanalitico e simbó-
lico, e que, e s t á claro, é desconhecido da-
quele que as profére.
Porque Franz Ferdinand d'Este esco-
lheu o dragão e S. J o r g e para fazer con-
corrência ao rei da Inglaterra, e porque
n ã o u m a outra modalidade da vida do m o -
narca inglês?...
O espirito que move u m coleciona-
dor a agrupar objétos pôde ser o da sim-
ples recordação da vida do individuo ou
da raça, o u de u m a i d é a de p o t ê n c i a como
pôde t a m b é m ser o desejo de determinar
a intensidade de u m característico.
98 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

Durante a minha viagem fiz uma ra-


zoável coleção de papel higiênico dos
paises atravessados.
A idéa de discutir êste assunto pôde
parecer deslocada n u m simples livro de
viagens, mas este livro n ã o é u m simples
l i v r o de viagens, e s i m u m l i v r o de medi-
tações livres sobre viagens, u m resumo
de idéas e sensações colecionadas sem
preocupação de ordem ou de estética e
não visa nem destruir, nem construir, e
nem quer ser é t i c o , n ã o é u m l i v r o p a r a o
grande jardim da infância constituído pe-
las massas; quando muito pôde atuar
como u m estimulante para o cérebro se-
guindo apenas o tumulto dos aconteci-
mentos pessoaes do autor.
Observei nas minhas peregrinações
que os h á b i t o s e os apetrechos higiênico*
dos povos v a r i a m consideravelmente; n ã o
são função exclusiva de uma condição
econômica, pois que freqüentemente são
vistos agrupamentos abastados n ã o usa-
rem u m apetrecho ou habito reconheci-
damente civilisado. Certos povos só cui-
dam e limpam as p a r t e s do corpo expos-
tas á vistoria do passante. Procurei asso-
ciar estas o b s e r v a ç õ e s com o sentimento
As RUÍNAS DO MUNDO 97

de superioridade que sempre possue o


h o m e m limpo, e marcadamente o homem
" b e m " vestido. M e pareceu que a higiene
do corpo dava ao individuo u m novo di-
r e i t o s o b r e as cousas, u m "direito de su-
perioridade". Esta higiêne possivelmente
ajuda a recompor o equilíbrio de u m per-
sonagem enfrentando o mundo.
Como cuidam os povos dos seus
anus... e de como esse cuidado varia
c o m as classes s o c i a e s . . . é, creio, u m a i n -
d i c a ç ã o , entre m u i t a s , do nivel de v i d a do
povo e do individuo. O requinte no papel
higiênico representa naturalmente a va-
lorisação de u m dos locaes mais despre-
sados do corpo humano, mais destruído
pelo chiste da palavra e do gesto — pos-
sivelmente o mais despresado de todos
— e para m i m , u m indice que indicava o
valor do local mais despresado do corpo
era t a m b é m u m dos Índices da civilisação
de u m p o v o e do desejo de e l e v a ç ã o do i n -
divíduo. Cuidando higienicamente de u m
dos locaes mais despresados e mais ex-
postos ao chiste, o homem eleva o seu
sentimento de superioridade. O desprêso
pelo anus é desconhecido da criança de
hoje e do "selvagem" atraz da historia.
7
98 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

O psicoanalista observa e sabe c o m o a


criança dá grande importância n ã o so-
mente ao anus mas ao produto do anus,
ambos são fontes de orgulho para o ju-
venil possuidor, o despreso pelo anus e
o pudor que o rodeia é comparativamente
recente; em épocas perdidas no tempo,
épocas t a l v e z p r e m i t o l o g i c a s , as socieda-
des n ã o usavam o pudor do anus e o seu
produto ,era tido em alta considera-
ção (1). U m a coleção de tipos de papel
higiênico é em alguma fôrma uma mostra
do valor e do cuidado que cada povo con-
fere á parte mais descuidada e mais chis-
tosa do corpo é, portanto, uma mostra,
creio que bastante boa, da elevação do
individuo em cada povo. O medico que
deseja combater a moléstia de u m doente
procura o mal na parte mais depreciada
pela moléstia, na parte que menos resis-
tência ofereceu á moléstia; o sociólogo
que organisa as suas forças de combate
deve procurar localiza-las nas partes mais
enfraquecidas, mais depreciadas; o jorna-
lista que busca escândalo e força para o

(1) V ê r " O Mecanismo da E m o ç S o A m o r o s a " , do


autor.
As RUÍNAS DO MUNDO r>9

seu jornal, procura sempre as r e g i õ e s en-


fraquecidas e depreciadas pelo organismo
social, u m higienista e urbanista que
examina o plano de desenvolvimento de
uma cidade sem águas e esgotos, tem
como primeiro cuidado tratar dessa infe-
rioridade anal da cidade, cuidar da parte
mais enfraquecida e mais sujeita ao en-
fraquecimento e que oferece m e n o r resis-
tência á moléstia.
Portanto o papel higiênico é u m ín-
dice de elevação do individuo e u m ele-
mento de estudo para o sociólogo. O pu-
dor dos povos ainda paira em torno dos
órgãos sexuaes e do anus, e quando es-
tes são mencionados e m publico, o chiste
invade os corações e os risos se desdo-
bram nas fisionomias, são regiões apro-
priadas para acomodar o ridiculo. São lo-
caes fracos, que a s p i r a m á grande força, e
paradoxalmente são símbolos de potên-
cia como vemos na expressão popular
francesa " i l a du culot" e a expressão po-
pular brasileira conhecida de todos (1) e
que indicam audácia. S ã o locaes que se
tornaram sagrados na seleção dos se-

(1) " Ê l e tem c ú " .


lf>0 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DK R. CARVALHO

culos, e de c u j a santidade ainda encontra-


mos residuos nas crenças religiosas de
hoje (1).
A p s i c o l o g i a m o d e r n a , isto é, a parte
que pertence ao psicólogo mal compor-
tado, concentrou u m a porção importante
do seu interesse em pesquisas sobre es-
tas regiões porque encontrava lá a base
de operações de grande parte da morbi-
dez animica do h o m e m de hoje.
Dos paizes que visitei: Inglaterra,
França, Bélgica, Itália, Checoslovaquia,
Polônia, Hungria, Áustria, o papel higiê-
nico inglês era indiscutivelmente e por
muito o mais apurado, e talvez porque o
inglês é entre esses povos o que mais
cuida, dentro de certas linhas, de elevar
o seu nivel de vida, coletivo e individual.
Observa-se nos paises novos, onde
perduram todos os estados de civilisação
do m a i s atrasado ao m a i s requintado, que
o uso do papel higiênico diminue, e de-
cresce em qualidade, á medida que nos
afastamos do mais civilisado e nos apro-
ximamos do mais atrasado, chega-se a

(1) V ê r " O Mecanismo da E m o ç ã o A m o r o s a " , do


autor.
As KUINÁS i>o MUNDO 101

u m ponto onde o papel que já é jornal


desaparece completamente e é ás vezes
substituído pelo sabugo de m i l h o . N ã o é
a dificuldade de obter papel e nem o
p r e ç o que d e t e r m i n a m o uso do papel h i -
giênico, mas sim u m instinto de cuidado
pessoal e de respeito m u t u o , respeito pe-
los direitos do alheio que n ã o existe no
sêr isolado e que pertence mais aos nú-
cleos civilisados e povoados. T a l v e z seja
esta a grande superioridade do h o m e m
limpo e social.

O arranjo das coleções em museu


concede ao a r q u e ó l o g o e ao p s i c ó l o g o n ã o
somente u m a recordação da vida da espé-
cie, m a s t a m b é m u m m e i o de estudar cer-
tos traços m ó r b i d o s da vida e u m meio de
compreender os m o t i v o s que geraram a
realisação estética de todos os tempos.
Pelo estudo das coleções e da morbidez
g r a v a d a n o residuo e das f l u t u a ç õ e s dessa
morbidez é até mesmo possivel recons-
truir as realisações estéticas que nunca
foram encontradas, por pertencerem a
épocas demais remotas.
O valor das coleções é inestimável e
ainda m a l compreendido hoje.
102 Os Ossos DO MUNDO — FUAVIO DK R. CARVALHO

A revolta contra os ossos do mundo


pertence ás atividades do iconoclasta;
paradoxal como pôde parecer é uma re-
volta benéfica; o iconoclasta n ã o conse-
gue conciliar o seu entusiasmo pelo mun-
do da luz c o m o estilo rocócó da rugosi-
dade vaginal representada pelo acumulo
do passado. Ê l e necessita de espaço para
se m e x e r , êle empurra o seu mundo para
se fazer u m caminho. O acumulo o inco-
m o d a , a r u g o s i d a d e r o c ó c ó a m e a ç a se tor-
nar u m claustro, e êle t e m m e d o do claus-
tro porque o claustro significa a escuri-
dão intrauterina. Como reação do seu
medo, o ú n i c o gesto de s e g u r a n ç a , o único
m e i o de vencer o medo é a destruição do
claustro. Êle rompe o claustro em peda-
ços para que u m pouco de luz ilumine os
átos da sua vida.
Quando dentro do passado claustral,
temeroso e timido êle contorna e acaricia
as rugosidades com toda a fobia tatil ao
colecionador profissional, e mal percebe
o crescimento da f o r m a ç ã o r o c ó c ó que dia
a dia incha e d i m i n u e o seu raio de ação;
êle torna-se tão convencionalisado e m
respeito e idolatria, tão impregnado de
magia e democracia, que o seu contato e
As RUÍNAS DO MUNDO 103

a sua caricia sobre a superficie das cousas


não possue mais u m poder penetrador. O
medo do mundo fez dele u m psiconevro-
tico que s ó se sente b e m e em segurança
enclaustrado.
Êle perde o poder de comparação e
de j u l g a m e n t o , o seu raciocinio paralisa-
se e m n i r v a n a e s e n t e - s e s a t i s f e i t o d e per-
m a n e c e r sob a c o u r a ç a protetora da semi-
escuridão vaginal; o aconchego rocócó
da vagina tem a pompa e a sugestibili-
dade de aconchego do túmulo, o dourado
das f r u t a s e o sorriso das conchas acumu-
l a m tudo quanto poderia ter dito a grande
ferida matriarcal. Para ê l e se mexer tor-
na-se u m perigo e uma ousadia incrível,
uma ofensa á reverencia do seu grande
numero de idolos. E enchergar é u m pe-
cado de calibre sexual. O seu olhar con-
funde-se com a potência do seu penis e
u m m á o olhado poderia perturbar o gran-
dioso intercâmbio sentimental do seu
imundo mundo rocócó. Êle é engaiolado
na fobia do paralitico e ama a sua fobia,
a sua f o b i a c a sua mania, dominado pelo
m e d o e pela v o l ú p i a do m e d o ê l e estica-se
sobre o seu leito de m o r t e e faz da sua in-
f e r i o r i d a d e e do seu isolamento u m gran-
104 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

de c é o , onde o brilho tépido do decor tor-


nou-se calado, o passado apaga-se, é o
fim.
N e m sempre a aurora de u m n o v o dia
é capaz de revive-lo.

Num contato amoroso e sentimental


com o passado, o arqueólogo muitas ve-
zes esquece-se de que o passado n ã o foi
colecionado para fazer milagres, e o seu
amor tem uma tendência idolatra e pende
para a pratica da magia. O iconoclasta
poderia ser chamado de arqueólogo raté,
alguém que assassina a arqueologia, tal-
vez porque n ã o conseguiu compreende-la,
mas creio que é mais conveniente consi-
dera-lo como alguém cujo impeto de pe-
netração é forte demais para o estilo rocó-
có que a a c u m u l a ç ã o arqueológica tende a
apresentar, a l g u é m que abandonou a ma-
gia e que destróe o idolo porque este n ã o
mais oferece segurança e d e i x o u de ope-
r a r m i l a g r e s e de ser poderoso. A alegria
e o entusiasmo do iconoclasta está justa-
mente em destruir o o b j é t o que antes lhe
metia medo, que o transformava n u m sêr
inferior e agachado. Pelo contato guer-
As RUÍNAS DO MUNDO 105

reiro êle recupera em batalha e em san-


gue e compensa grande parte da humi-
lhação sofrida; muitas vezes êle desen-
volve todo u m ritual preparatório á des-
truição ; pelo chiste da palavra e do gesto,
pela mimica, pela dansa, pelo canto, êle
arrelia o idolo... e preparando-se para a
grande t r a g é d i a recebe c cacarejo da ima-
gem sonolenta. A destruição do idolo
pelo iconoclasta é como u m ultimo áto
de magia, e o seu p r i m e i r o gesto viril, an-
tes de penetrar no m u n d o da luz e da no-
vidade. Ê l e n ã o é mais o mono encolhido;
eréto êle domina — o deus ou as forças
do passado que o i n c o m o d a v a m n ã o mais
o incomodarão, pois que destruindo o re-
ceptaculo dessas forças ê l e se imagina
q u e as p r ó p r i a s f o r ç a s e a sugestibilidade
acumulada foram destruidas.
Ê l e é o materialista e n ã o acredita na
vingança da alma do castigado. O seu
gesto destruidor tem a violência e os de-
sejos de u m ultimo gesto de animismo;
êle matou a alma do castigado com u m
"liquido m á g i c o " mesmo como faz o ne-
gro feiticeiro com a "sacrificada de Na-
mugongo".
1 Of> Os Ossos no MUNDO — FI.AVIO DE R. CARVALHO

De pé, no mundo da luz e no meio


das ruinas, o ex-democrata e piedoso i m -
põe a nova lei da palavra; êle n ã o neces-
sita mais do próximo e se d i r i g e a o mun-
do coletivamente... " V ó s " . . . diz êle.
A fase iconoclasta da revolta contra
os ossos do mundo apresenta-se sempre
corno contraria ao periodo de m a g i a e de-
mocracia, parece que o periodo de magia
e democracia pertence a uma fôrma de
vida intra-uterina no mundo da meia luz
ou da escuridão completa, enquanto que
a revolta iconoclasta é do mundo extra-
uterino da luz e dos dominios da reação.
As trevas são sempre niveladoras.
Dois Congressos Sofisticados

Em Praga, assisti á sofisticação de


dois congressos ao acompanhamento de
"algazarra nazista" (1) (a única ciência
admissível como superior, é, s e g u n d o as
bocas amarelas de bonecos rosados, a
ciência nazista) (2). "Os povos do mun-
do" declarou u m delegado dessa £é " s ã o

(1) Nazismo: seita politica á l e m ã m u i t o em voga


nas v i s i n h a n ç a s dê 1934.
(2) V I I I Congresso Internacional de Psicotécnica em
Praga, 1934.
108 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

demais inferiores para compreender o


ponto de vista superior da nação ale-
m ã " . .. e os povos do mundo, todos ali
representados, se contorceram em dores,
espremendo em voz e suór o espirito ador-
m e c i d o de suas raças.
"Os métodos americanos fracassa-
ram na Alemanha porque a raça alemã é
por d e m a i s s u p e r i o r e n ã o p ô d e se subme-
ter a ser maquinisada"... continuava a
esfinge e m t o m incestuoso...
Lahis o secretario geral do congres-
so, f r a n c ê s m e r i d i o n a l de sangue quente,
furioso e e m nome. da ciência e arruman-
do u m soco sobre a mesa protesta contra
o abuso da liberdade da palavra para fins
politicos. O humor alemão caía como go-
tas de c h u m b o derretido sobre a fina pele
da sensibilidade estrangeira. Por toda a
parte havia palavras ásperas; as delega-
ções estrangeiras a m e a ç a m abandonar o
Congresso; os italianos m a l contêm a
sua indignação... e certamente sem os
subterfúgios da inteligência, a luta seria
livre. Finalmente, a diplomacia entra no
m e i o e os a l e m ã e s procuram passar como
vítimas e tudo se acomoda com a muito
conhecida e melancólica "satisfação ge-
Dois CONGRESSOS SOFISTICADOS 109

ral", conservando sempre os deliciosos e


asmaticos sentimentos recalcados.
N o c o m e ç o , já, os a l e m ã e s recusavam
tomar parte no Congresso porque este
se r e a l i s a v a s o b os a u s p í c i o s da L i g a das
Nações, e entre os incidentes pitorescos
destacou-se o dos drs. L i p m a n e Stern que
se demitiram do Comitê Internacional
alegando que e r a m não-arianos. A assem-
b l é a n ã o a c e i t o u as d e m i s s õ e s e informou
aos não-arianos que "foram eleitos n ã o
pelos representantes alemães mas sim
por uma assembléa de psicotecnicistas de
todo o m u n d o . . . e que nunca será to-
mada e m conta a nação á qual pertence
u m sábio mas s i m o que êle vale para a
psicotécnica".
Os alemães n ã o queriam que o Con-
gresso se realizasse em Praga porque o
governo checo t e m sempre acolhido'com
consideração os emigrados do 3.° Reich
— a propaganda hitlerista no Congresso
se destacava pela desobediência aos re-
gulamentos.
O Congresso Internacional de Filo-
sofia que antecedeu ao de psicotécnica
muito se assemelhou a êste em inciden-
tes. U m entusiasta nazista alegando que
UO Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

o alemão- era a língua filosófica por ex-


celência p r o p o z que t o d o s os i d i o m a s , i n -
clusive o idioma local o checo, fossem su-
primidos do congresso conservando ape-
nas o a l e m ã o . H o u v e algazarra. U m dele
gado observa que a lingua checa era usa-
da no século X I V e X V como lingua di-
plomática em quasi todas as cortes da
E u r o p a , e que os d o c u m e n t o s oficiais, t r a -
tados, etc, eram escritos e m checo. A
proposta n ã o é aceita e, n o f i m , d e raiva,
o delegado alemão rasga em publico o
convite da filha do presidente Masarik
para a recepção em palácio. O áto impío
do filosofo entusiasmado n ã o era apro-
priado a uma assembléa circumpecta de
Congressistas, e muitos foram os que se
deixaram levar pela indignação patrió-
tica ou pela i n d i g n a ç ã o internacionalista.
Os filósofos eram mais velhos e mais
barbudos, m a s os psicotecnicistas c o m i a m
mais e eram mais barulhentos e as m u -
lheres psicotecnicistas e r a m mais belas e
mais folionas. Pareciam falsas psicotecni-
cistas; quasi n ã o compareciam á s sessões
do congresso.
Os dois grandes c o n g r e s s o s se reuni-
ram em Praga que é u m centro inteletual
Dois CONGRESSOS SOFISTICADOS 111

a rnais de 600 anos, e a " q u e r i d a " politica


da E u r o p a de hoje. U m a s 700 sumidades
mundiais trouxeram para o campo da dis-
cussão os assuntos mais palpitantes e
mais comoventes do pensamento huma-
no. Proliferos em incidentes, ambos os
congressos se escoaram com diplomacia
alegre entre flores, moveis antigos, qua-
dros românticos, uniformes e toiletes bri-
lhantes. Praga m o n u m e n t a l da idade m é -
dia e Praga moderna com fontes lumino-
sas e coloridas, enquadrava o cenário das
discussões e das recepções luxuosas de
Benés e da dra. Alice Masarik, filha do
presidente, e entre flores e o riso alegre
das m u l h e r e s louras o apetite n o t á v e l dos
filósofos devorava meticulosamente to-
dos os " b u f f e t s " apresentados com rara
perícia. Semelhante apetite era mais pró-
prio ao apetite secular dos fantasmas que
ainda p o v o a m a velha Praga nas sombras
da noite; á s vezes eu i m a g i n a v a que n ã é
eram realmente filósofos mas s i m os pró-
prios fantasmas que ali estavam.
Falavam-se todas as linguas e todas
mal, mas principalmente o francês. Os
lances dramáticos e agitados se suce-
diam, e a atualidade politica monopoli-
112 Os Ossos DO MUNDÚ — FLAVIO DE R. CARVALHO

zava as atenções. A "crise da democra-


cia" foi o que mais empolgou, e muito
filosofo esqueceu a sua filosofia no calor
da discussão. A delegação francesa una-
nime bradou com convicção dramática os
principios da sua grande revolução, e a
delegação italiana, seguindo a orientação
facista, insistiu demasiadamente em de-
monstrar o contrario, e os alemães tam-
b é m . K o s a k o filosofo checo, elemento de
esquerda, (como todos os filósofos che-
cos, s e g u n d o as m á s l i n g u a s ) , apresentou
interessante e imparcial comunicação so-
bre o assunto.
E r a m consideradas como particular-
mente b r i l h a n t e s as discussões sobre ló-
gica e logistica, e Schiller, de Oxford,
aplicou uma ducha gelada em toda a lo-
gistica, classificando esta de "brinquedo
inteletuál incapaz a t é m e s m o de afinar o
inteleto", e terminou dizendo que a única
vantagem que via na logistica era a de
conservar os logicistas afastados de ou-
tros perigos. Benedetto Croce, cujo nome
estava no programa para falar sobre a
missão da filosofia, n ã o compareceu. D i -
zem as mesmas m á s linguas que tanto
Croce como Gentille, que t a m b é m n ã o
Dois CoNonEssos SOFISTICADOS 113

veiu, n ã o se dão bem com Mussolini;


consta que ambos são antifacistas.
Entre as declarações interessantes e
pitorescas apanhadas ao acaso na massa
espessa de pensamento que escoava pe-
las salas da universidade, destaca-se por
exemplo esta do filosofo francês Bache-
lard, ex-funcionario dos correios: "Os
conceitos importantes n ã o saíram da
observação, mas sim do cérebro humano
para contradizer a observação". O dele-
gado italiano fez t a m b é m curiosa decla-
ração informando que na Itália existe
absoluta liberdade de pensamento filo-
sófico (sem duvida pensava na "crise da
democracia"), e uma das declarações
mais elucidativas foi feita pelo filosofo
francês Brunschwig no encerramento do
Congresso e que reza: " é espantoso vêr
filósofos discutirem sem nenhum méto-
do ; uns dizem u m a cousa e outros respon-
dem outra, e se comportam como verda-
deiras crianças. A grande maioria dos f i -
lósofos repetem as suas téses favoritas,
sem se p r e o c u p a r c o m o que os o u t r o s d i -
zem".
8
114 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

O sr. Brunschwig foi certamente


mais que u m filosofo, f o i u m observador
humano.
D e u m m o d o geral u m a onda de idea-
lismo pairava sobre o congresso, uma
onda que teimava e m fazer da filosofia a
"coroa de tudo". Das entrevistas que
colhi, onde abordei sobretudo o tema da
produção inconsciente e da produção ra-
ciocinada, observei uma tendência geral
e m quasi t o d o s os f i l ó s o f o s p a r a u m certo
"patriotismo cientifico", tendo como pá-
tria a ciência raciocinada.

E m Praga agitam-se os movimentos


mais modernos do pensamento, e m poe-
sia, e m filosofia, e m teatro, e m pintura;
tudo quanto o c é r e b r o produz de interes-
sante e curioso é visto e apreciado. Praga
sempre recebeu influencia cultural da
Alemanha e da Itália e hoje muito pro-
nunciadamente da França e da Rússia, e
o pouco de influencia asiática provenien-
te do sul caracterisa-se mais de maneira
racial entre a pequena parte morena da
população. A influencia politica e cultu-
ral proveniente de Paris e M o s c o u é agora
Dois CONGRESSOS SOFISTICADOS 115

excepcionalmente forte. Benés, que é u m


verdadeiro otimista, na recepção dos f i -
lósofos, no sóbrio e belo palácio Cerny,
declarou que n ã o acreditava na iminên-
cia de uma guerra e que confiava ainda
na diplomacia (1). Benes acredita na
Liga das Nações e a sua grande influen-
cia diplomática na Europa de hoje re-
lembra em muita coisa a exercida por
Stressman anos atraz. N o momento em
que escrevo, a E u r o p a agita-se e os acon-
tecimentos n ã o parecem querer demons-
trar as crenças oficiais de Benés. A s
crenças oficiais são quasi sempre feitas
para a convivência do momento, para
uma proteção qualquer á politica que
passa, e as crenças oficiais expostas em
congressos de filosofia possuem ainda
menor valor que as outras, porque va-
gueiam pelo terreno de u m certo idealis-
m o que n ã o é observado na realidade da
vida e que faz parte do mundo fantasma-
górico do h o m e m . . . do m e d o que êle t e m
da vida.
Contudo, os filósofos gostaram da
pilula de Benés, e cheios de harmonia e

(1) Setembro de 1934.


I1fi Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

a u t o - c o n t e n t a m e n t o e l e v a r a m as s u a s d i s -
cussões aos oito cantos do pensamento e
apalparam as doçuras da " m o ç a subtil".
A deusa r a z ã o tinha ainda o engodo e os
atrativos do specimen da revolução fran-
cesa — espectral e provocadora arinhava
os desejos pantagruelicos da sua entou-
rage.
O M a p a da Sa u d a d e , o primeiro

Mapa do Mundo (D

"Da natureza intrínseca


da matéria... a ciência nada
sabe. . . tanto quanto s a f e -
mos a matéria pôde até mes-
mo ser mental". (De u m dis-
curso de Eddington, em
Cambridge, 1931).

Na Slovaquia o canto é a grande fôr-


ma de manifestação de alegria. Todo o

(1) O autor pretende colocar num outro livro as


suas prsquizas s ô b r e o assunto: "Origens da Arte Po-
pular".
116 Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DB R. CARVALHO

mundo canta: nos cafés, nos campos, em


toda a parte, moços, moças, velhos e ve-
lhas, e n t o a m canções de uma melancolia
prolongada, quasi sempre lubrificadas
pelo vinho suave da Morávia. A alegria
do canto pertence a todas as classes, e é
comum vêr-se nos cafés mesas povoadas
pelos mais diversos personagens, e que
entoam o m e s m o canto ao m e s m o tempo:
t o d a s as e t i q u e t a s de classe desaparecem
na melancolia do canto e na suavidade do
vinho. Cantar na Slovaquia é quasi tão
necessário quanto comer. O canto fun-
ciona de u m a m a n e i r a n i v e l a d o r a e agre-
gadora. Nivela pelo seu caracteristico de
festim e orgia, pois a idéa m e s m o de orgia
é uma idéa niveladora — é a comemora-
ç ã o de u m a vitória, e por força deve imi-
tar o rebaixamento de u m inimigo e de
u m poderoso: todos t ê m os m e s m o s direi-
tos ao júbilo e á alegria, t o d o s d e v e m par-
ticipar do contato, por mais vaporoso que
seja, do poder do vencido, todos devem
provar da fôrma de alegria e de luxuria
gosada pelo vencido. O canto amoroso e
sexual é freqüentemente uma anciã para
a vitória.
O MAPA DA SAUDADE 1 1:1

Quanto á parte "agregar", já duran-


te a m i n h a e x p e r i ê n c i a sobre u m a procis-
são de Corpus Cristi (1) e m 1931, havia
eu observado esse f e n ô m e n o : o povo en-
furecido e aos gritos de "péga", "lin-
cha", e agitando velas, crucifixos, tocos
de lenha, etc.... corria ao m e u encalço.
U m a hora depois, refugiado numa leite-
ria e protegido por u m pelotão de guar-
das civis armados, ouvia os cânticos que
recomeçavam ao l o n g e . . . e f u i informa-
do por u m guarda civil que o poder do
cântico havia de novo congregado os
crentes ( 2 ) .
O camponez slovaco se utiliza do
canto c o m o acessório das suas tradições;
em todas as ceremonias religiosas que
marcam a vida do h o m e m do utero ao t ú -
mulo, o canto toma parte; s ã o muitas ve-
zes canções pornográficas como após a
ceremonia de batismo e durante a cere-
monia de iniciação da noiva. E freqüen-
temente essas c a n ç õ e s p o r n o g r á f i c a s pos-
suem u m espirito profundo e de alto

(1) V ê r obra do a u t o r : E x p e r i ê n c i a n . ° 2 .
(2) V ê r a m i n h a c o n f e r ê n c i a realizada no I n s t i t u t o
de Engenharia e i n t i t u l a d a " A p i n t u r a do som e a m u -
sica do espaço**.
120 Os Ossos DO MUNDVJ — F L A V I O DE R. CARVALHO

cunho poético, são higiênicas porque in-


variavelmente provocam o chiste e a ale-

gria.
Quem perambula pelos cafés e pelos
cabarés terá ocasião de observar o gran-
de valor da musica na conquista da mu-
lher. A m u l h e r slovaca, e sobretudo a m u -
lher húngara, desfalece de goso ao ouvir
rente ao o u v i d o a m u s i c a l a n g o r o s a de um
violino cigano. O seu olhar torna-se nu-
blado e passa rapidamente do sonhador
ao desmaio voluptuoso e quasi vesgo.
Para ela a m u s i c a é u m a f r o d i s i a c o pode-
roso e ela t u d o concede ao m a c h o que lhe
proporcionar o prazer de u m violino ci-
gano rente ao o u v i d o ; o m u n d o da reali-
dade como u m sorvete funde-se e desa-
parece no contato do seu calor, e o seu
mundo é só o m u n d o do sonho, local onde
ela encontra u m a f e l i c i d a d e i n e x p r i m i v e l .
M u i t o s se u t i l i z a m d e s s e f r a c o p a r a obter
da m u l h e r desejada o consentimento para
uma intimidade maior, e muitos colocam
o som excitante da musica ao lado mes-
m o do leitQ ou do s o f á do sacrificio, para
q u e a m u l h e r p o s s a se e n t r e g a r c o m mais
calór ou com menor resistência.
O MAPA DA SAUDADE 121

U m residuo da volutuosidade dos


povos da Europa central está na epide-
mia de violino que por lá ainda perdura.
Todos tocam: meninos, moços, velhos, e
o que é mais curioso ainda, velhas desca-
beladas e e m trapos, empunham heroica-
mente o violino para apaziguar a sua
fome.
O cigano do café e do cabaré, que é
sempre u m senhor m o r e n o de olhos gran-
des, vestindo impecável casaca ou smo-
king, quando toca procura fixar os ou-
v i n t e s c o m os o l h o s ; parece que êle quer
t r a n s m i t i r a sua e m o ç ã o ao ouvinte, o seu
modo de a g i r i n c o m o d a ao ouvinte, é de-
sagradabilissimo, tem-se a impressão que
os desejos do cigano musico n ã o são o
que êles deveriam ser. O olhar eviden-
temente ocupa uma parte importante na
mimica musical e no andar do cigano to-
cador, e, q u a n d o observava esses ciganos
as suas musicas langorosas e de olhar
lustroso e grande, n ã o pude evitar recor-
dar-me da ligação simbólica que existe
entre o olhar e o próprio á t o sexual, como
por exemplo o olhar estranho de Bel
Marduk, antes de entrar e m batalha com
K i n g e Tiamat, e o olhar prolongado dos
l'2'l Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DK R. CARVALHO

deuses sobre o guerreiro Bel, antes da


sua partida, e a frase de Cristo ligando o
olhar ao sexo do h o m e m — certamente
que o olhar do musico cigano é u m olhar
falico.
Os húngaros são mais sensíveis a
esse p o d e r falico e afrodisiaco da musica
que os checos. Talvez o que me disse,
certa vez, uma filosofa checa, explique
isto:
" O húngaro tem o temperamento
fantástico e romântico; gosta de cons-
truir castelos com fôrmas agradáveis"
disse ela.

Era tarde, Roger Caillois e eu des-


pedimo-nos de Karel Krejci. H a v í a m o s
conversado longas horas com o especia-
lista de literatura slava, descemos Sele-
tna e paramos numa "vieha", conhecida
pelos vinhos gregos que importava.
Tinha encontrado Roger Caillois va-
gando pelas planícies da Rússia Subcar-
patica e da Slovaquia, era u m h o m e m es-
tranho, magro, alto, jovem, pálido e an-
guloso, e era demonologo. Excessiva-
mente inteletual e nervoso, tipicamente
O MAVA DA SAUDADE 123

francês, Caillois quando falava, falava


com todo o corpo e até mesmo com a
ponta dos dedos.
O v i n h o de S a m o s era generoso. Be-
bemos diversos copos, e a conversa que
se havia iniciado sobre o tema popular
"mulheres" j á se achava nos versos que
se supunham do século X I I ,f a l s i f i c a d o s
no século X V I I (1). Os famosos versos
falsificados enganando especialistas e en-
tendidos h a v i a m sido traduzidos para u m
grande numero de linguas. O próprio
L o u i s Leger, grande cientista francês, au-
tor da t r a d u ç ã o francesa, a c h o u os versos
inimitáveis e extremamente caracterís-
ticos da poesia popular medieval. A be-
lesa medieval dos versos falsos impres-
sionava tanto e a autenticidade era tão
segura e garantida pelos entendidos, que
houve diversas traduções importantes
para o alemão, e até mesmo Goethe che-
gou a achá-los incomparaveis como poe-
sia antiga. Naturalmente a palavra de

(1) Alguns jovens entusiastas quizeram dar á p á -


tria alguma coisa de semelhante a grande poesia medie-
val e f a b r i c a r a m versos escritos em velho checo sôbre
um papel velho, os quaes passavam como a u t ê n t i c o s ver-
sos do s é c u l o X I I e mesmo do século X .
124 Os Ossos no MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

Goethe sobre o assunto era c o m o a ultima


sancção, n i n g u é m mais ousou duvidar da
autenticidade dos versos, a t é o f i m do sé-
culo X I X , quando u m grupo de sábios
chefiados por Massarik mostrou a falsi-
ficação, e o erro de Goethe foi posto de
lado e esquecido e apagado pelo seu valor
e pela sua grande personalidade.
Abandonando o vinho de Samos e
outros, despedi-me de Caillois e segui só-
sinho r u m o ao M u s e u do R e i n o da Bohe-
mia: Caillois me havia i n f o r m a d o que o
museu alojava importantíssima coleção
de conchas.
Praga é uma dessas cidades que en-
cantam porque, a l é m da modernidade e da
eficiência que se costuma encontrar nas
grandes cidades de hoje, retém t a m b é m
as fôrmas de u m passado longínquo agi-
tado e romântico; quasi que só barroco,
essas fôrmas se contorcem nas sombras
das ruelas, n u m a atmosféra de calma se-
cular situada do outro lado do rio, onde
o ruido do mundo n ã o penetra os jardins
encantados dos palácios, e a c a l m a de ce-
mitério das pequenas praças publicas, de
vegetação verde, miúda e delicada, pare-
O MAPA DA SAUDADE 125

cendo isolar ainda mais as grandes con-


torções barroco, da luz do século atual.
Deixei o museu para depois do al-
m o ç o , atravessei a p o n t e C h a r l e s , os san-
tos da ponte m e o l h a v a m c o m o olhar pa-
tinado da pedra, pareciam atrapalhados
com as dobras inúteis e volumosas do
vestuário, n ã o sabiam bem como segurar
as dobras em posição e ao m e s m o tempo
manter a pose exigida pelo escultor e
certos tinham medo de cair do pedestal,
a l g u n s a n j o s se a b r a ç a v a m e angustiados
viam moças e homens que passavam em
baixo, outros segurando angelicamente,
i s t o é, p e l o p o d e r das asas, o peso de uma
cruz, leves, serenos e c o m bochechas in-
chadas, voltejavam grudados deselegan-
temente na estrutura do salvador do
m u n d o , pois que o monticulo de terra em
baixo é f u n d a ç ã o insuficientepara a gran-
de massa pesada.
Santa L u i t g a r d a e m êxtase, boca en-
treaberta, ligeiramente agachada, recebia
o balsamo v o l u p t u o s o de Cristo; as do-
bras do pano que a envolviam pareciam
querer escorregar e entreabriam-se no
momento mesmo que Cristo descia da
cruz, e tinha-se a impressão que a nudez
126 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

de Cristo ia ficar m e r g u l h a d a n o pano fe-


minino, e que ao descer ê l e seria inteira-
mente envolvido e desapareceria entre as
dobras, mesmo como aconteceu com Po-
ronominare, o Salvador do m u n d o (indio)
do vale do Amazonas, com esta diferen-
ç a ; q u e P o r o n o m i n a r e se e n c o n t r a v a imó-
vel e m baixo e o elemento f e m i n i n o des-
cia envolvendo-o.
N ã o sei qual a i n t e n ç ã o o u a inspira-
ç ã o de B r a u n quando esculpiu êsse curio-
so g r u p o , m a s o que é certo é que toda a
alma e todo o simbolismo sexual da es-
cultura barroco estava presente, e como
estes são fatores inconscientes, perten-
ciam á essência mesmo da voluptuosidade
religiosa.
A escultura barroco n e m sempre con-
tem os s i m b o l o s c l a r o s e c o n c i s o s que lo-
calisam psicologicamente êsse estilo na
arquitetura, mas a rugosidade e a expres-
são quasi sempre alucinante e extasica
dada ao tema revelam as emoções da
alma barroco. Praga está cheia do t o m
dominante barroco da escultura de Braun,
e ás vezes indivíduos como eu chegam
até mesmo a achar Braun agradável, so-
bretudo algumas das suas obras que ex-
O MAPA DA SAUDADE 127

postas ao tempo adquirem u m aspecto


curioso, u m patinado nivelador, u m véo
de mistério.... e se t o r n a m q u a s i interes-
santes quando vistas de u m a certa distan-
cia. A única que realmente me agradou
foi a Madalena deitada, esculpida ao ar
livre no meio de u m bosque em Kuks
onde se encontra. Pertence á velhice de
B r a u n , é p o c a e m q u e B r a u n se t o r n a mais
p r i m i t i v o e m a i s sintético, é o seu periodo
mais belo... o desgaste do tempo poeti-
sou essa obra de Braun (1).
De toda a escultura deixada no pas-
sado da Checoslovaquia, uma única des-
taca-se pela sua bizarria e pela sua ge-
nialidade, é a obra de Vaclav Levy (2)
(1830), a parte que pertence ao seu pe-
riodo romântico. Quando jovem, Levy
esculpia nas rochas das florestas e dos
campos. Esta parte da obra de Levy re-
lembra u m pouco as enormes cabeças
enigmáticas da Ilha da Páscoa.

(1) Uma f o t o g r a f i a dessa escultura encontra-se no


meu l i v r o : " A inquietude do Ocidente".
(2) V ê r f o t o g r a f i a s no l i v r o do autor: " A inquie-
tude do Ocidente*.
127? Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

M u i t o s s ã o os que n e g a m aos checos,


e mesmo aos slavos, u m valor plástico.
C e r t a vez, e m conversa com a pintora Es-
ter Fridriková, esta pintora, abordando o
problema, disse achar que "os slavos n ã o
eram plásticos e que tinham uma produ-
ção eminentemente decorativa, e esta
não passava de u m aborto do desejo ao
plasticismo".
Possivelmente Fridriková tenha ra-
zão; tanto na Polônia como na Checoslo-
vaquia e na H u n g r i a achei, de u m modo
geral, a arte que a historia deixou, m u i t o
impessoal, caracteristicamente arte "so-
brevivência"; pertencente aos dominios
do copismo — n ã o incluindo, bem enten-
dido, a arte popular, pois que esta per-
tenceria a uma fôrma de sobrevivência
inconsciente, automática. N o entanto en-
contrei na Checoslovaquia uma arte mo-
derna que faz e x c e p ç ã o : n o m e i o de toda
essa grande influencia proveniente de
Paris, ficou a sinceridade emocional, que
tomou raiz e que presentemente atúa
como diretriz ideológica de todo o grande
artista. A destruição dos valores, encon-
trou em toda a parte, a sua maior oposi-
ção entre os copistas, os fabricantes da
O MAPA DA SAUDADE 129

"sobrevivência'' da arte, pois que estes


privados dos seus clássicos modelos se
sentiram abobados e incapazes de pro-
duzir. A c r e d i t o ser p o s s i v e l que a emoção,
a vitalidade e o sentimento da arte mo-
derna venham atuar como uma cura da
mania decorativa dos povos slavos. Se-
melhante terapêutica n ã o destruirá ne-
nhum dos valores regionais e topográfi-
cos da a r t e c o m o p o d e parecer á primeira
vista, pois que estes valores já fazem
parte do inconsciente ancestral de onde
provem toda a "vivacidade" da arte mo-
derna. O sentimento de revolta é apenas
uma manifestação antitética, proveniente
de u m profundo sentimento religioso,
manifestação esta, que v e m á t o n a a cha-
mado da sugestibilidade da "sobreviven-

cia .
A t é certo ponto a mania decorativa
dos slavos está ligada ao grande desen-
volvimento entre êles do barroco e do ro-
cócó. Estes estilos representam uma in-
tensa fase de enfeite e de decoração da
humanidade, e a grande diferença entre
a arte decorativa praticada entre os^ s l a -
vos e os estilos barroco e r o c ó c ó está em
que o barroco e o rocócó caracterisam a
9
130 Os Ossos DO MUNDO — FI.AVIO DE R. CARVALHO

idéa de sexos enfeitados, o r n a m e n t a d o s e


perfumados, enquanto que a arte decora-
tiva dos slavos, apezar de n ã o se achar
i n t e i r a m e n t e l i v r e d e s s a i d é a , se preocupa
mais com o valor da unidade "enfeite".

Viajando pelas vastas extensões de


terras cultivadas da Europa Central, no-
tei que o campo cultivado, visto de uma
certa distancia, oferece u m panorama
cujo detalhe enfileirado e arranjado asso-
cia-se f a c i l m e n t e a u m "pattern" decora-
tivo. Observei que á medida que aumen-
tava a distancia entre o observador e o
campo, o " p a t t e r n " se caracterisava e se
formava — e imaginei, então, que u m in-
dividuo preso á terra e acostumado a aca-
riciar diariamente o produto da terra,
quando colocado a uma longa distancia
do seu aféto sentiria por força u m a emo-
ção de angustia. Interrompidos os pon-
tos de contato e de escoamento da sua
afetividade s ó lhe restava para o acalento
da sua angustia, a visão longinqua do
"pattern". O "pattern" do campo culti-
vado torna-se então uma fôrma de idea-
lismo saudosista do seu Eu, uma visão
O MAPA DA SAUDADE

inspiradora e sugestiva; a visão do ho-


m e m na montanha.

Quem observa a aparência rugosa,


seca e vermelha ou amarela do campo-
nez e a v e s t i m e n t a que ê l e usa, sente que
êle pertence á terra que o seu aspeto e a
sua m e n t a l i d a d e s ã o p r o d u t o da terra, e o
gosto que êle t e m pela terra é milenar e
é alguma coisa de importante no correr
da historia, sente que o valor da terra é
grande e que esta possue u m a população
caracteristicamente p r ê s a a ela e diferen-
te das outras, e que u m estudo da vida e
do m o v i m e n t o dessa p o p u l a ç ã o elucidaria
algumas das duvidas que ora tempera o
espirito do homem.
Tem-se a impressão de que, ou o
caniponez faz parte do jogo fecundo da
terra ou a terra faz parte dos objétos ín-
timos do camponez e que êle cuida da
terra com o carinho com o qual êle cuida
da sua própria vestimenta.
Cruzando pela Slovaquia notei que
os o r n a m e n t o s slovacos se p a r e c i a m com
os c a m p o s ornamentados pela cultura —
e i m a g i n o que sem dúvida os ornamen-
132 Os Ossos uo MUNDO — F L A V I O OE R. CARVALHO

tos de outros camponezes t a m b é m se pa-


r e c e m c o m os seus c a m p o s cultivados.
Êsse sentimento artistico está na
alma do camponez: a repetição do mo-
tivo n ã o é outra coisa senão a repetição
do elemento vegetal no campo em cul-
tura, e a maneira de dispor o ornamento
ás vezes segue o alinhamento desses
campos, e o "pattern" geral é sempre o
"pattern" das culturas, até mesmo na
u n i f o r m i d a d e da cor, pois que a repetição
da côr no " p a t t e r n " decorativo é uma co-
pia do que acontece com o agrupamento
do elemento vegetal da m e s m a côr, numa
certa zona.
Os motivos decorativos que orna-
mentam as cosinhas slovacas, as paredes
d e c e r t a s s a l a s e as r o u p a s das campone-
zas, p r o v ê m ao m e u v ê r de u m movimento
migratório entre o campo e as monta-
nhas.
A pintura e a arte decorativa do cam-
ponez se dividem em duas partes: o ele-
mento decorativo que compõe o con-
junto e a orientação geral, o "pattern"
do conjunto.
Examinando a morfologia do ele-
mento decorativo, observa-se que de u m
O MAPA DA SAUDADE

m o d o g e r a l e l a se a s s o c i a a o s d e t a l h e s do
panorama do campo cultivado visto de
perto, e está claro, que esta morfologia
só é compativel com a vida do camponez
na planicie, o camponez contemplando o
vegetal de perto é ligado a este pelas ca-
deias que aplica c o m seu tato e os seus
cuidados.
Mas para que o camponez sinta o de-
sejo de produzir a sua maravilhosa arte
agrícola, para que êle tenha saudade do
campo, êle precisa afastar-se do campo e
contemplá-lo de alto e de longe. A as-
cenção ás montanhas é uma condição sem
a qual a arte camponeza n ã o pôde exis-
tir. . . E isto explica p o r que, certas civi-
lisações de camponezes, vivendo afasta-
das das montanhas, n ã o adquirem u m
ponto de vista de c i m a e de longe, e n ã o
possuem uma arte d e c o r a t i v a c o m os ca-
racterísticos da que estamos discutindo.
Para formar uma arte decorativa
camponeza é necessária uma vida "ses-
sile", parada e prêsa dirétamente á terra
durante muitas centenas de anos. O s nô-
madas n ã o possuem semelhante arte de-
corativa.
I

134 Os Ossos no MUNDO — FLAVIO BÉ R. CARVALHO

Á medida que o camponez se afasta


da planicie e emigra para as montanhas,
êle perde de vista o detalhe e o b t é m uma
visão de conjunto que é precisamente a
visão que caracterisa o " p a t t e r n " , que ca-
racterisa a orientação geral observada
nos bordados e pinturas de cosinha.
A perda do detalhe é a perda da ex-
pressão e da fisionomia do objéto queri-
do. U m v é o de mistério, o véo-distancia,
sepára o camponez do seu culto milenar,
êle d e i x a de ser t á c t i l p a r a c o m ê s s e mun-
do e conserva apenas uma visão idealis-
tica dos seus r e p o l h o s e dos seus nabos...
êle é o sonhador na montanha e longe da
planicie êle guarda o calor das suas ca-
ricias e retém em conserva o seu desejo
— a sua alma saudosa encontra u m es-
coamento na pratica de uma magia, êle
constróe uma imagem homeopática do
seu campo cultivado, êle desenha o seu
primeiro mapa, é o primeiro panorama
aéreo do seu mundo, é o seu primeiro
modêlo filosófico, a sua alegria é grande,
êle descobriu u m efeito melódico, o es-
coamento de u m a coisa colocada atraz da
outra, o seu mapa é uma representação
gráfica ou e m relevo que recorda as suas
O M A P A DA SAUDADE 135

grandes emoções e o seu contato de agri-


cultor e é, p o r t a n t o , u m fetiche maravi-
lhoso, perfeitamente capaz de receber a
magia estructural da sua alma, e êle
aplica sobre essa i m a g e m as efusões e o
ritual do seu amor. A s s i m fazendo êle se
inicia nos primeiros passos da sua arte.
A visão de perto e a visão de longe
formam os dois traumas (1) que orien-
tam intuitivamente o camponez na sua
arte, e o movimento migratório das pla-
nícies para as montanhas alimenta êsses
traumas através os séculos, e é o saudo-
sismo do h o m e m da planicie isolado na
montanha e defrontando u m panorama
do seu m u n d o de h o n t e m , que era o m u n -
do civilisado e organisado, que faz com
que êle construa uma imagem dêsse
mundo.
Os primeiros mapas do mundo são
representações da vida "sessile", presa á
terra, são cênas de u m mundo pequeno,
cênas de quintal; os servos tocando os

(1) O autor acha que a p r i m e i r a i m p r e s s ã o das


duas visões, escolhendo uma dada v i t i m a , f o r a m s u f i -
cientemente fortes para marcar com a f e r i d a do saudo-
sismo a v i t i m a que mais tarde c o n s t r u i r á ura m o d ê l o
em pequena escala do o b j é t o afetivo para dar salda ao
seu saudosismo.
136 Os Ossos uo MUNDO — F L A V I O DE H. CARVALHO

ganços d o g a l i n h e i r o , ü m t a n q u e de agua
rodeado por plantações de repolhos,
etc.... como encontramos freqüentemen-
te na pintura egipcia, u m a pintura quasi
esquematica e que nada mais é s e n ã o al-
guns dos primeiros mapas do mundo.
N ã o só o arranjo dos vegetais nos
campos era fonte de inspiração para o
isolado da montanha, mas também os
grandes rebanhos de animais que vaga-
vam pela planicie inspiravam o caçador
saudoso e amoroso da sua caça — e os
primeiros mapas das caçadas e da visão
desses rebanhos se encontram, ainda
hoje, nos desenhos sobre rochas e nas
paredes de cavernas. S ã o êsses, alguns
dos primeiros altares do t u m u l t o animico
do p r i m i t i v o . D u r a n t e o m e u v ô o sobre as
costas brasileiras notei c o m o j á f o i dito,
que certos panoramas i n v a d i d o s p o r bra-
ços de mar, igarapés, se pareciam com
rendas, c o m as r e n d a s do Ceará. Porque?
T e r i a m os cearenses s u b i d o a u m a grande
altura e m época remota?... e saudosos
teriam eles construído a sua renda ba-
seada na visão geográfica? O u simples-
mente teriam êles desenvolvido o senti-
mento da visão dessas alturas?
O MAPA DA SAUDADE 137

Anatole Jakovski, n u m artigo na re-


vista do Kunstmuseum de Lucerna, de-
clara que a paisagem aparece na pintura
ocidental logo depois das grandes desco-
bertas g e o g r á f i c a s (1). A c r e d i t o que Ja-
kovski tenha razão, pois as minhas pes-
quizas sobre o assunto, durante a viagem,
me levaram a crêr que toda a arte deco-
rativa é o r i u n d a de u m a v i s ã o o u de uma
emoção geográfica, mesmo que esta per-
tença a u m mundo insignificante e res-
trito.
Observei que na parte da Europa
Central: Moravia, Bohemia, Slovaquia,
etc, o camponez considera o montanhez
como inferior e selvagem, e uma mulher
camponeza quasi nunca se liga em casa-
mento com u m montanhez, pois que ela
deseja e procura u m h o m e m que seja su-
perior á sua classe o u pelo m e n o s igual a
esta d i z ela. C o n t u d o , o m a c h o camponez
freqüentemente une-se á mulher das
montanhas. Para m i m isto é uma indi-
c a ç ã o u m t a n t o clara de que os m a p a s , as
pinturas da vida agraria, executadas a

(1) Vêr o numero de 21 de fevereiro e 31 de m a r ç o


de 1935, pagina 1 1 .
138 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O I>K H. CARVALHO

principio nas montanhas, eram produtos


só da m ã o do h o m e m , daquele que aban-
donou o campo rumo á noiva na monta-
nha, e que saudoso do que deixou para
traz constróe u m mapa da sua visão apa-
gada, u m monumento ao seu passado e
sobre êste êle executa homenagens e r i -
tos de magia — é a mesma magia dos
homens de h o j e sobre as praças publicas,
nas estatuas, nos altares, etc. ( 1 ) , e sobre
outros m a p a s da sua vida diária e do seu
passado.
A arte decorativa é uma arte macho
e £emea> tem sexo definido e contrasta
com certa arte " m o d e r n a " adiantada, que
parece ser mais hermafrodita porque é
capaz de u m a emoção múltipla, enquanto
que a arte decorativa f o r t e m e n t e dividida
e sexuada pertence a u m periodo ou mui-
to posterior ou muito anterior ao herma-
froditismo inteletual das artes acima do
expressionismo. É possivel que a arte de- '
corativa apareça periodicamente como
u m renovamento ou uma r e p e t i ç ã o de u m
ciclo, como t a m b é m é possivel que ela

(1) Para urna d i s c u s s ã o mais ampla dessa teoria


v ê r na obra do autor " E x p e r i ê n c i a n . ° 2 " , os c a p í t u -
los: O p a r â m e t r o da astucia e A t r i l o g i a .
O MAPA DA SAUDADE 139

seja a c o n s e q ü ê n c i a de u m periodo ante-


rior, periodo hermafrodita e sem arte e
que serve de espelho para as divagações
do hermafroditismo mental da arte de
agora.
Hoje, sinto-me inclinado a acreditar
que a arte puramente decorativa é ante-
rior á arte das grandes emoções, anterior
á arte quasi filosófica e n ã o naturalista, e
que o periodo "arte decorativa" associa-
se a u m periodo de cognição superficial
do mundo imediato, periodo onde o ho-
m e m toma conhecimento do valor do
objéto mas n ã o liga u m objéto ao outro,
não tem uma v i s ã o g l o b a l das coisas.
Mesmo hoje a nossa visão global das
coisas é irrisória.
A M e m ó r i a d o N ã o - A c a b a d o

O encantamento e a sugestibilidade
da p r o d u ç ã o artistica nos l e v a m a encarar
u m certo numero de problemas que po-
dem ser chamados problemas básicos,
porque reside nêles a explicação de al-
guns dos fenômenos mais estranhos e
mais importantes da nossa vida diária.
Porque apreciamos, por exemplo, a
estatuaria e a arquitetura mutilada pelo
tempo? Porque compreendemos toda a
Ii2 Os Ossos uo MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

e m o ç ã o e t o d a a s i g n i f i c a ç ã o de u m dese-
nho feito de traços interrompidos? Por-
que n ã o desejamos concertar a coluna
partida ou continuar o traço interrompido
do desenho?
Que faz u m h o m e m interromper uma
obra 4
achando que inacabada ela é me-
lhor?
Porque encontramos na vida com
objétos e coisas aparentemente insignifi-
cantes que ficam na nossa memória apa-
recendo de quando em quando nos mo-
mentos de sonho e de enfado?
Porque enfim, a m e m ó r i a angustiosa
retém somente as passagens inacabadas
da vida jogando sobre o campo dos mor-
tos os e p i s ó d i o s v e n c i d o s , c o n q u i s t a d o s e
dominados? Porque, nos momentos do
sonho e da vigia melancólica vemos no
caleidoscópio que passa objétos e sêres
que nunca apalpámos e cujas existências
só foram sentidas n u m relance longín-
quo; uma vela, u m a mulher c o m vestido
de gala, u m a flor, u m a saia atraz de uma
grade, uma cortina que abre, e tanto
mais que passa e desaparece e deixa no
meditador a sensação de que êle real-
A MEMÓRIA DO NÃO-ACABADO

mente perdeu alguma coisa e que esta


coisa jámais cruzará o seu caminho.
Porque esta e m o ç ã o de desastre e de
tragédia: "jamais cruzarei com tudo
aquilo que encantado certa vez cubicei...
e o cinismo heróico do riso e da fumaça
que envolve e que diz "outras coisas pas-
sarão rente ao meu t á t o . . . e eu n ã o to-
carei . . . "

A palavra censura n ã o pôde ser


usada como resposta porque é uma pala-
vra grande de mais abrangendo todo o
mundo objetivo e praticamente vasia de
sentido.
T u d o quanto é u m degráo para o po-
der e para uma manifestação de potência
e de sexualismo deixa u m traço angus-
tioso na memória do homem.
Todos os desejos parecem figuras
que dansam ou passam na nossa mente;
são feridas escolhidas pela angustia e
pela insaciabilidade e que n ã o foram to-
cadas, escolhidas ninguém sabe como...
porque s ã o elas sugestivas a u m dado mo-
mento?. .. n i n g u é m sabe... elas surgem
não sei donde e espantam o observador
144 Os Ossos DQ MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

com o romance e o poetismo que contêm,


com a v i s ã o de g ô s o a c u m u l a d a n u m a fôr-
ma que apenas passa; cada uma apontan-
do a uma direção definida contem suges-
tibilidade que convida a lamento e pesar.
Temos na imagem dramática do sa-
dismo e na imagem masoquista do " n ã o
f a ç a i s s o " , as duas grandes visões da an-
gustia do mundo, as duas grandes afli-
ções da m e m ó r i a da espécie e da memória
do individuo; coisas que ficam e que es-
pontaneamente aparecem na recordação
que passa.
Os acontecimentos que mais ficam
na nossa m e m ó r i a e mais nos perseguem
durante o periodo viril da nossa vida são
os acontecimentos que e m certas épocas
do passado quizemos satisfazer mas n ã o
conseguimos. O nosso pezar, a nossa sau-
dade é sempre pelas coisas que n ã o fize-
mos, pelas oportunidades perdidas e
abandonadas, e nunca por aquilo que f o i
feito e realizado. T u d o quanto f o i perce-
bido pelo h o m e m e que ao m e s m o tempo
provocou nele u m t r e m o r de desejo e que
por m o t i v o s c o m o o de comportamento e
de dever foi abandonado ao acaso que
passa e desaparece, conserva-se latente
A MEMÓRIA DO NÃO-ACABADO 145

nos d o m í n i o s da m e m ó r i a e de quando em
quando reanima-se e surge como u m pe-
zar, uma saudade. É a memória do n ã o -
acabado.
Êste tremor é a primeira manifesta-
ção de angustia oriunda da imagem do
acontecimento não-acabado, e provem do
desejo sadista, sempre vivo dentro de
n ó s , d e d e s t r u i r as b a r r e i r a s d o " n ã o f a ç a
isso", de conquistar o mistério de uma
coisa escondida; uma novidade.
Parece haver sempre uma luta entre
o desejo sadista de d e s t r u i r as barreiras
do " n ã o faça isso", promovendo contáto
com o objéto desejado e a angustia ma-
soquista e behaviourista que é u m senti-
m e n t o que pertence ao intocável das coi-
sas, e que tende a conservar as c o i s a s i n -
teiras, e que alimenta e conserva o medo.
A i m a g e m que fica na memória depende
do resultado dessa luta. Quando as bar-
reiras s ã o destruidas e o desejo sadista
é satisfeito, a m e m ó r i a n ã o conserva uma
imagem do feito, o feito f o i como aniqui-
lado e vencido e entra para o r o l das coi-
sas esquecidas e pouco a pouco os deta-
lhes desaparecem e a evocação torna-se
quasi impossível. Quando o desejo n ã o é
146 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

satisfeito, é recalcado pelo "não faça


isso", a memória conserva uma imagem
do não-acabado, imagem esta que apa-
rece e reaparece nos momentos da vigia
melancólica e com a saudade e a angus-
tia do não-realizado.
O masoquismo é uma conseqüência
do behaviourismo e é a causa do medo.
Observa-se este f e n ô m e n o claramente na
formação das imagens que constituem a
memória do não-acabado. Primeiro, a
causa m ó r da retenção da imagem do
feito não-acabado é o comportamento e o
sentimento de dever que d o m i n a m a pes-
soa, e interrompem a realisação de u m
desejo e sem os quaes n ã o é possivel o
primeiro tremor de angustia e os primei-
ros prazeres do sofrimento. O sentimento
do dever recalca para as camadas mais
intimas do individualismo aquilo que
emocionou o individuo. O sentimento de
dever torna-se assim uma fonte de ero-
tismo masoquista de grande potenciali-
dade e importância, pois que as imagens
que se formam como conseqüência desse
sentimento são as que mais freqüente-
mente aparecem na nossa m e m ó r i a du-
rante o periodo de virilidade.
A MEMÓRIA DO NAO-ACABADO 147

O sentimento do dever n ã o somente


evita que o individuo participe auspicio-
samente da alegria e da sugestibilidade
do mundo, mas t a m b é m é creador de sis-
temas de pensamento e de enfado; sis-
temas que d e s c o n h e c e n d o os Í m p e t o s de-
molidores p e r m i t e m ao individuo prevêr
o desenvolvimento de uma obra e o re-
sultado final. A interrupção espontânea
de u m a obra é freqüentemente provocada
por essa previsão do dever. E m pintura
observa-se que o enfado do pintor o leva
freqüentemente a deixar o seu trabalho
inacabado. O motivo desse abandono é
que o p i n t o r j á sabe o que vae acontecer,
j á sabe aquilo que o dever dita e que será
o resultado final do seu quadro e o en-
f a d o se apodera do artista que abandona
a sua obra. Mesmo as interrupções du-
rante a e x e c u ç ã o de u m a obra, que costu-
m a m ser atribuídas á necessidade de re-
pouso, s ã o quasi que exclusivamente pro-
vocadas pelo tédio do conhecimento pré-
vio do que vai acontecer. O pintor verda-
deiramente inteligente jamais termina a
sua obra, e a g r a n d e beleza da p i n t u r a au-
tomática, super-realista, está no ineditis-
mo sempre novo que apresenta.
148 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

A interrupção pelo suicídio é tam-


b é m uma manifestação de masoquismo
oriunda do sentimento do dever, tanto
na sua f ô r m a de e n f a d o p e l o m u n d o c o m o
na sua fôrma de apreciação pessoal. O
suicida quer sempre exhibir a maldade do
m u n d o e pensa que assim fazendo êle va-
lorisa o seu sistêma pessoal de dever. O
suicídio é u m a necessidade que o h o m e m
tem de dormir, e o sono u m a e x i b i ç ã o diá-
ria da maldade do m u n d o .
Admitindo a priori que certos traços
animicos como sadismo e masoquismo
pertencem á morfologia que caracterisa
os sexos, e ao modo de f u n c i o n a m e n t o
destes, t e m o s o s a d i s m o c o m o sendo uma
coisa essencialmente fálica, que destróe
e machuca, e pertencendo a noção geral
de sexo masculino, enquanto que o maso-
quismo pelo seu c a r á t e r de capacidade de
resistência e de organização, de defesa,
de astucia, é uma coisa pertencente ao
sexo feminino.
A memória do não-acabado torna-se
então em ambos os sexos u m caracterís-
tico por excelência feminino, enquanto
que a falta d e m e m ó r i a , ,os a c o n t e c i m e n -
tos facilmente esquecidos e dificilmente
A MEMÓRIA, DO NÃO-ACABADO 149

relembrados pertencem ao í m p e t o da ere-


cção do penis. E m suma, o sexo da mu-
lher associa-se á preservação e ao cui-
dado das coisas, enquanto que o sexo do
h o m e m exemplifica o contrario, a des-
truição e o esquecimento. A mulher apa-
rece c o m o o envolucro protector, a forta-
leza-utero e o homem como o destruidor
desse envolucro.

N o momento sinto-me inclinado a


colocar a mulher matriarcal como uma
mulher masoquista, principalmente de-
vido ás indicações encontradas em certas
velhas lendas da humanidade que repre-
sentam a grande m ã e no "começo das
coisas" (Tiamât, Omoroca, Wagadu,
etc...) funcionando com os caracterís-
ticos de uma fortaleza. Aparece então a
mulher como u m protótipo da fortaleza,
e cujo utero funciona como u m abrigo
para os homens no momento do perigo
e do medo. A fortaleza torna-se n ã o so-
mente uma representação da mulher ma-
triarcal mas t a m b é m uma comemoração
da grande m ã e e u m monumento ao seu
poder capaz de repetir os feitos tumul-
150 Os Ossos i>o MUNDO — F L A V I O DE R. CAÍWALHÜ

tuosos. A fortaleza tem uma função ex-


terior masoquista, como a mulher, está
sempre disposta e pronta a receber as fe-
ridas e a resistir ao ataque, as suas fôr-
mas largas, abastadas e protetoras, são o
contrario da ponta perfurante do falus e
associa-se ao utero. É o local sombrio e
apropriado ao m e d o , o mesmo medo e os
mesmos tremores do guerreiro K i n g u re-
fugiado dentro de T i a m â t (1) e sem du-
vida nenhuma o mesmo medo ainda hoje
reproduzido pelo feto nos primeiros es-
tremecimentos.
Para m i m o medo é uma condição das
sombras intra-uterinas, e a cacofonia his-
térica do medo, o riso e a gargalhada, são
manifestações do heroismo e da bravura
do masoquista.
Os primeiros indicios de m e d o apare-
cem após certa gestação das imagens do
não-acabado e são em fôrma de calafrios
e pequenos estremecimentos.
Nesta historia toda, a mulher é n ã o
somente uma fortaleza masoquista, sofre-
dora, mas t a m b é m é a creadora da fal-

e i ) Vêr Historia da C r e a ç ã o B a b i l ô n i c a , Museu Bri-


t â n i c o , (cilindros de barro cosido).
A MEMÓRIA DO NÃO-ACABADO 151

sidade e portanto o centro e a origem da


idéa mesmo de bondade (1) ; ela forta-
lece e distribue religião e dogma que se
t o r n a m , sob os a s p é t o s da sua imposição,
quasi t ã o necessários ao h o m e m q u a n t o a
própria comida.
O sadismo é uma revolta contra essa
sua protecção astuciosa (2). Sadismo é
uma fase posterior ou anterior ao maso-
quismo, e quando anterior, é preparató-
ria ao m a s o q u i s m o e causa do dogma do
medo " n ã o faça isso", que é u m dogma
masoquista.
A mutilação do sadismo transforma
uma f i g u r a que antes era inteira e m uma
figura cheia de feridas e por conseguinte
"digna de compaixão", própria a provo-
car o " n ã o faça isso" e o sentimento de
dor, a crear o dogma do comportamento
e consequentemente uma imagem que
tem alguma semelhança com o não-aca-
bado, u m produto do " n ã o perturbe isso".
O próprio marquês de Sade, depois de
fustigar com u m chicote uma mulher

(1) Vêr o Mecanismo da Emoção Amorosa, do


autor.
(2) Vêr cap. " 0 p a r â m e t r o da astucia", na Expe-
riência n . ° 2, do autor.
152 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

núa, puxava do bolso uma caixa de po-


mada e untava as feridas do corpo da
mulher visando assim restituir a aparên-
cia inteira e fechada do corpo nú. A po-
mada do marquês concertava uma forta-
leza sofredora. A aparência fechada e
inteira é uma aparência creada pelo arre-
pendimento, pelo " n ã o faça isso", e con-
funde-se com a própria aparência "her-
meticamente fechada" e inteira da forta-
leza boa e t a m b é m confunde-se com o
"hermetismo" da virgem.
Vemos então que a depredação do
sadismo contra o " n ã o faça isso", contra
aquilo que mantinha a aparência inteira,
é logo seguida do balsâmo do arrependi-
m e n t o e do desejo de restabelecer o " n ã o
f a ç a isso" e de t o r n a r o o b j é t o depredado
"intocável". Êste fenômeno de "volta" e
retrocesso é o mesmo observado após to-
das as revoluções.
A imagem dramática do sadismo
aponta para o arqueólogo c o m o sendo êle
u m sonhador do sadismo, a mutilação do
t e m p o torna-se uma grande fonte de pra-
zer na arte e na apreciação; as ruinas do
mundo encantam pelo seu pujante con-
teúdo que sáe pelas feridas, e t a m b é m
A 'MEMÓRIA DO NAO-ACABADO 153

pela própria eloqüência do inacabado que


sugerem, e o desejo de matar talvez seja
u m desejo vindo do não-acabado, incom-
pleto, e que pertença possivelmente a
uma recordação da espécie, talvez uma
recordação angustiosa que ficou e que
precisa ser completada. A depredação do
sadismo é uma revolta, uma erupção de
forças dissonantes e o seu produto de-
predado associa-se ao p r o d u t o da mutila-
ção do tempo; o produto misterioso atraz
do v é o de poeira que tanto faz sonhar ao
arqueólogo e ás vezes até mesmo aféta
de longe a alma estatística e superficial
do sociólogo.
As imagens delapidadas pelo sadis-
mo surgem das sombras do inconsciente
do individuo mesmo como surgem do
sombrio inconsciente da historia a escul-
tura e a arquitetura mutiladas pelo tem-
po. Estas imagens decepadas pela an-
gustia e pelo recalque do tempo e do in-
d i v i d u o se m i s t u r a m e se c o n f u n d e m c o m
as imagens paradas dos acontecimentos
não-acabados e aparecem na m e m ó r i a nos
momentos do sonho e da vigilia melancó-
lica.
154 Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DK H. CARVALHO

O acontecimento é um sêr vivo, que


nunca morre porque ha sempre homens
no mundo que não conseguiram com-
preendê-lo. O acontecimento é a sobrevi-
vência para uns e a novidade para outros.
De u m modo geral a recordação pa-
rece ser sempre daquilo que constituiu
dramaticamente u m i m p e d i m e n t o ao pra-
zer.
O Berço da Força Poética

E m certa pintura moderna como em


impressionismo, fauvismo, cubismo, ex-
pressionismo, dadaismo, surrealismo e
abstracionismo e na pintura puramente
automática, observa-se que o objéto n ã o
possue u m valor próprio e isolado e des-
ligado do resto. Ê l e n ã o está ali para ser
comido ou subtraído pelo incauto que
passa ou pelo critico de arte sofisticado.
Êle n ã o preenche nenhuma função deco-
lõfi Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DE H. CARVALHO

rativa, pantagruelica ou sexual, n ã o re-


lembra as fôrmas mais cruas e superfi-
ciais do apetite, n ã o é n e n h u m ornamento
de cabeceira nem a lâmpada que ilumina
o ornamento, n ã o pôde ser arrancado do
panorama e nada tem do "bonitinho"
primitivo, que faz do objéto, na arte de-
corativa uma entidade isolavel.
O advento do impressionismo já é o
primeiro v é o de m i s t é r i o que c á e sobre o
panorama torturado pela magia: o objéto
patinado pelo táto do h o m e m exausto do
castigo das caricias sadistas e da pomada
do masoquista, some atraz d o v é o , os la-
ços amorosos da magia, seccionados, aos
poucos d e i x a m de atuar, e a grande carga
animica colocada pelo h o m e m no objéto
durante o seu periodo de paixão passa a
atuar e influenciar o m u n d o atraz do véo.
O impressionismo é a primeira sinfonia,
a primeira conversa entre os objétos, os
objétos se entendem entre si, e é a pri-
meira vez que o h o m e m afastado dos seus
idolos f ô r m a u m a concepção filosófica so-
bre o mundo.
N o periodo de magia decorativa,
cada objéto possuía u m certo d o m iso-
lado do outro. T o d a a idolatria era uma
O BERÇO DA FORÇA POÉTICA 157

conseqüência imediata das necessidades


urgentes dos sentidos, cada objéto era
uma coisa altamente especialisada com
u m a g r a ç a isolada, e o culto de u m objéto
era coisa s ó possivel de pouca distancia,
pois que n ã o existindo nenhuma relação -
entre u m objéto e outro, u m afastamento
era o inicio de uma cegueira e n ã o o de
uma visão maior. Contudo, o primeiro
afastamento nupcial do macho camponez
pôde ser classificado de periodo pre-filo-
sofico, m o m e n t o em que o saudosismo e
a a c ç ã o r e f l e x a das necessidades urgentes
dos sentidos exercem o primeiro esforço
grotesco para construir u m aglomerado
curioso, u m ajuntamento de objétos que
evidentemente n ã o apresentam ligação
um com outro porque são todos idolos
egocêntricos mas que, pelo fáto dé esta-
rem juntos u m ao lado do outro, d ã o a i m -
pressão, evidentemente fraudulenta, de
uma gase niveladora. É o primeiro mapa
do mundo.
Para o observador desprevenido, este
mapa rústico do amoroso isolado na mon-
tanha pôde ser confundido com o véo do
m i s t é r i o e c o m o espirito que pondera. O
observador desprevenido n ã o sabe que o
158 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

amoroso da montanha é um produto me-


lódico, u m méro colecionador capaz so-
mente de colocar u m a coisa atraz da ou-
tra e que a sua arte decorativa nada mais
é senão u m museu do seu sensualismo —
êle está ainda longe de ser u m pensador
e u m impressionista.
A conversa entre os objétos é mais
intima e a visão introspectiva e global do
homem sobre as coisas é m a i o r , á medida
que atravessamos sucessivamente as eta-
pas do expressionismo, do dadaismo e
do surrealismo: os véos aumentam em
numero e e m espessura, o mistério cresce
e cresce a vida e a i n t i m i d a d e atraz do
véo; dois mundos se deparam e se con-
frontam; o mundo a n i m i c o dos objétos è
o novo mundo do homem, o mundo do
pensamento e da ponderação. Colocado
no escuro, superexcitado, o h o m e m de-
senvolve a sua sensibilidade, adquire uma
nova vista — a volta á escuridão é sem-
pre como u m desejo e uma mania da es-
pécie ... é a volta ao utero para poder
nascer de novo — êle encherga através
do v é o : u m a visão diferente aparece. Êle
não sabia que o mundo pensava e falava
e estava certo que só êle era capaz de
O BERÇO DA FORÇA POÉTICA 159

tanto. O golpe de vista impressionista é


uma revelação. O mundo se apresenta
como ligado; tudo parece ser feito da
mesma matéria: a luz, a arvore, a roupa
no cabide, a terra, a mulher, a garrafa de
vinho, tudo e todos se igualam atraz do
véo, s ã o feitos da mesma substancia, por-
que todos convergem para o mesmo ru-
mo, convergem para a escuridão, uma
única "unidade" compõe a essência de
tudo e faz c o m que cada objéto possa se
e n t e n d e r c o m o o u t r o e n ã o se apresente
isolado, especialisadamente, como na
arte decorativa.
Fechando levemente os olhos, o ho-
m e m vê u m concerto sinestesico entre os
objétos e a vida do mundo; os objétos
igualados na penumbra se confundem
u n s c o m os o u t r o s . A v i s ã o impressionista
é a visão da democratisação do mundo, é
o grande festim dos elementos dissiden-
tes . . . e que festim!
Êle creou u m novo drama, o drama
das sombras, a vida que palpita nas som-
bras apalpa-se com maior freqüência,
uma coisa entra em maior contato com
a outra, a mascara de alegria dos indiví-
duos estoura em gritos de v i n g a n ç a , nin-
IfiO Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

guem sabe de quem é o grito, a visão de-


mocrática o confunde, é o grito da mas-
sa... A morfologia das coisas se iguala
e se aproxima, o h o m e m afastado em vi-
são filosófica perde o detalhe e apanha
só os caracteres de ligação entre as coi-
sas do mundo. O afastamento da luz so-
lar n ã o somente implica a perda do deta-
lhe mas mostra c o m o u m a visão filosófica
pôde levar o h o m e m a u m começo, a uma
situação de e s c u r i d ã o intra-uterina.
Êle penetrou nas sombras da melan-
colia e f i r m o u a sua v i s ã o f i l o s ó f i c a egua-
l i t a r i a . Ê l e se i n i c i a n o c a m i n h o d o chiste
e da chalaça das coisas, que é a sua méta.
O chiste é trágico e introspectivo, e essa
introspecção o agrada.
Êste primeiro "entendimento" entre
os objétos, é o começo de uma nova éra
e de uma nova sensibilidade. O h o m e m
descobrirá que outros sentidos podem en-
quadrar o mundo da emoção. Ê l e desco-
brirá que o naturalismo é u m a percepção
superficial que nem mesmo chega a pe-
netrar a crosta, e que é uma conseqüên-
cia da arte decorativa apesar de e m nada
se p a r e c e r c o m ela. Q u e o naturalismo se
manifesta como produto do espirito de
O BERÇO DA FORÇA POÉTICA. 161

museu e de melodia na montanha; tendo


o h o m e m colocado decorativamente u m a
coisa depois da outra, de volta na plani-
cie, ê l e perde a sua v i s ã o r o m â n t i c a e exa-
mina minuciosamente o objéto dos seus
cuidados, comparando a sua obra da m o n -
tanha c o m o original da planicie, e labo-
rando e m espirito cientifico, procura re-
produzir exatamente a natureza, pensan-
do que é capaz de crear a ilusão óptica de
uma segunda natureza. O seu m é t o d o é
r i d i c u l o e se p a r e c e u m t a n t o c o m o pri-
meiro m é t o d o do arqueólogo, e n ã o podia
d e i x a r d e se p a r e c e r , p o i s q u e esta f a s e d a
vida do h o m e m , fase naturalista, é aquela
em que êle apura o espirito de coleciona
dor, c o m p á r a a c o l e ç ã o da m o n t a n h a c o m
o original e m baixo, e descobre que o
trabalho das suas emoções, a magia do
sonhador das montanhas, e m n a d a se p a -
rece c o m o original. D a s suas correções
surge a arte naturalista.
A volta á planicie retirou todo o ini-
cio de sonho e fantasia q u e se esboçava
n o e m i g r a d o ; ê l e se t o r n a grotescamente
sexual, naturalista e pornográfico; o seu
canto é u m hino á crosta do sexo e a sua
arte é "oleogravura barata", é panta-
gruelica e "mange m o i " , as suas quali-
11
162 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

dades culinárias, e portanto sexuaes (1),


não vão além do primeiro apetite do ho-
mem, quando m u i t o encontramos a "con-
f e i t a r i a " de carne, e n f e i t a d a e perfumada.
O véo do impressionismo é uma ma-
nifestação de p e n s a m e n t o e de superiori-
dade; o h o m e m fecha parcialmente os
olhos para m e l h o r sonhar, e assim fazen-
do êle vê cousas que antes n ã o tinha vis-
to; êle encherga u m pouco da essência
das coisas; a semi-escuridão mostra-lhe
a vida de u m outro mundo; o seu golpe
de vista é afastado do panorama, e neste
ponto t e m certa semelhança com o golpe
de vista do refugiado da montanha.
Cubismo é uma analise objetiva da
visão impressionista (2), sem no entanto
destruir a "essência unitiva", a ligação e
a intimidade dêsse mundo. Cubismo é
um passo a mais na nova curiosidadt,

(1) O autor é de o p i n i ã o que apetite sexual e ape-


tite c u l i n á r i o se confundem no i n i c i o das coisas ou de
u m ciclo v ê r " O Mecanismo da E m o ç ã o A m o r o s a " , do
autor, apresentado pela p r i m e i r a vez em setembro de
1934, em Praga.
(2) Comquanto o cubismo tenha se manifestado so-
bretudo a p ó s os primeiros Í m p e t o s de expressionismo,
post-impressionismo, o autor acredita que a fase cubista
pela sua essência é anterior á grande m a n i f e s t a ç ã o ex-
pressionista.
O BERÇO DA FORÇA POÉTICA 163

uma introspecção mais p r o f u n d a e, em


baixo da superficie do objéto, o homem
manifesta-se levemente iconoclasta, rom-
pe u m véo mas coloca u m outro mais
espesso. C o m o impressionismo f o i des-
coberta a identidade da substancia em to-
dos os objétos... e o cubismo, êste pro-
cura saber alguma coisa da expressão
pertencente a natureza mais intima de
cada objéto, é uma sondagem analitica
<3o individuo que compõe o panoram>,
mas n ã o é ainda uma sondagem psicoló-
gica. C o m o cubismo o h o m e m descobriu
o esqueleto, a estrutura e o mecanismo do
objéto mas nada sabe ainda das forças
que m o v i m e n t a m êsse objéto. O cubismo
é a primeira manifestação dos desejos ao
expressionismo, a primeira busca r u m o á
expressão, sem no entanto alcançar esta,
os p r i m e i r o s passos que indicam a gran-
de inquietude do pensamento, e que leva-
r ã o e m l i n h a r é t a aos d o m í n i o s da analise
psicológica e das profundezas da a l m a dc
homem.
No expressionismo, a fôrma solta o
conteúdo e é encoberta pelo conteúdo,
pelo que está dentro, o esqueleto é preo-
cupação secundaria e o próprio mecanis-
1(U Os Os*os no MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

mo dos objétos pouco interessa ao ho-


mem; este c o m e ç a a se preocupar com o
movimento e com o não-movimento, com
aquilo que produz a expressão e a fisio-
nomia das coisas, com as forças ocultas
e existentes longe da superficie. O esque-
leto encontra-se mesmo, ás vezes, intei-
ramente destruido, e o h o m e m imagina
que p ô d e prescindir do esqueleto, e que a
expressão interior trazida á superficie é
suficiente para acalmar os seus desejos.
O panorama expressionista n ã o pos-
sue q u a l i d a d e s tactis, i s t o é, n ã o p ô d e ser
tocado porque não t e m superficie, tudo
quanto este panorama oferece á vista,
pertence á grande emoção que v e m de
dentro, e esta e m o ç ã o inunda e entumece
a superficie a tal ponto que toda a idéa
táctil é repugnante; a emoção objetiva é
ás vezes t ã o grande que invade e satura
o ambiente e domina destruindo toda
tensão de superficie, grande parte da-
quilo que pôde separar u m objéto do ou-
tro, invadindo e abolindo a fôrma.
O conteúdo é mestre da situação.
Esta estranha e bela osmósis emo-
cionai t e m como cume e epopéa o fau-
vismo.
O BERÇO DA FORÇA POÉTICA

Vê-se no fauvismo u m grande desejo


plástico, m á s n ã o é a plástica da fôrma,
é a plástica de u m mundo interior, a
plástica do conteúdo que aparece, s ã o as
feridas e n s a n g ü e n t a d a s do o b j é t o que são
modeladas e isoladas dos outros objétos,
e é êste desejo ao plasticismo que opera
esta m o d e l a g e m , êste isolamento do resto
do m u n d o objetivo. N o expressionismo 0
mundo interior de cada objéto estava l i -
gado com o mundo interior dos outros
objétos, enquanto que no fauvismo a an-
ciã ao p l a s t i c i s m o d e s l i g o u t o d o s os objé-
tos, cada fôrma tem as suas feridas en-
sangüentadas q u e a o c u l t a m e* q u e n ã o se
entrelaçam com as das outras. N o fau-
vismo quasi toda a "carne" interior foi
exposta á luz solar, o homem n ã o tem
mais vergonha de se enchergar como êle
realmente é, e de c o n t e m p l a r os pequenos
" p r ó s " e "contras" da censura do seu
m u n d o objetivo. A censura é lavada como
perfume inútil e já deteriorado; êle é
mais resoluto, acha-se a n i m i c a m e n t e dis-
posto ao combate e á batalha, e á contem-
plação das coisas da sua vida.
O fauvismo é o cume de u m movi-
mento, e, portanto, é t a m b é m o f i m de
166 Os Ossos 00 MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

uma luta, e m que parece se t e r esvasiado


todo o conteúdo, no exterior da fôrma.
Ora, repudiando o esqueleto e o valor da
fôrma, nada mais resta ao fauvismo. Êle
está pronto para ser destruido.
O pensamento m o d e r n o necessita de
movimento. Viver rapidamente é a con-
dição mesma da vida; a destruição é tão
necessária quanto o próprio movimento e
tem de vir quando uma coisa alcança o
f i m de u m ciclo.
Criticismo é vida, é uma afirmação
viril do h o m e m que pensa. Pelo criticis-
m o conhecem-se a generosidade e as infe-
rioridades do critico, m e s m o porque o cri-
ticismo quasi sempre mostra mais a per-
sonalidade do critico que o assunto criti-
cado. A evolução e a m o r t e dos ciclos de
pensamento estão muito adiante da
apreensão das massas e freqüentemente
os ciclos, após o abandono pelos pionei-
r o s , se repetem em grupos ou em indiví-
duos que só abandonam estes depois de
esgotá-los, depois de alcançar e com-
preender a t é a u l t i m a etapa. E m u i t o s s ã o
aqueles que ainda hoje revivem os fios
de pensamento deixados na historia e
que s ã o incapazes de esgotá-los, e mor-
O BERÇO DA FORÇA POÉTICA 167

rem s e m m e s m o a l c a n ç a r os p r i m e i r o s en
tusiasmos da geração em que vivem.
Toda destruição é conseqüência de
u m f i m de ciclo, da aproximação de uma
m o r t e , de u m e s g o t a m e n t o . O p r ó p r i o Ím-
peto do anarquista é u m produto da ve-
lhice e da decomposição do nosso século
que é o inicio de u m f i m de ciclo. A des-
truição é coincidente com o chiste da
vida. O homem ri porque atingiu u m
ponto de saturação, a sua compreensão
dominou, e êle é u m mestre do assunto.
O a s s u n t o d e i x o u de ser s u g e s t i v o e o r i s o
vem como uma dispersão cacofonica das
emoções e associa-se aos estilhaços de
uma bomba. O chiste é a ultima mani-
festação filosófica do pensamento, e a
mais profunda, a que provoca a maior fe-
rida e a que mais marca a direção dos pas-
sos do futuro. A ultima risada do homem
é extremamente importante para a civili-
sação e para a cultura.
O f a u v i s m o a l c a n ç o u a u m f i m de ci-
clo a uma morte, mas na sua grande " f i -
nale" n ã o destruiu a força vital que o
creou; continua a noção psicológica de
exibir a pontencialidade do conteúdo e de
explorar a profundeza dessa potenciali-
168 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DR R. CARVALHO

d a d e ; as i d é a s d e e x p r e s s i o n i s m o influen-
ciam vigorosamente a pintura, a escul-
tura e a literatura.

O advento do dadaismo foi uma de-


m o n s t r a ç ã o do climax alcançado pela arte
e pela poesia da recusa de aceitar a so-
b r e v i v ê n c i a de valores que j á provocavam
o bocejo dos organismos inadaptaveis á
repetição contínua, e da c o m p r e e n s ã o das
possibilidades que oferecia u m a outra or-
dem, u m ajustamento diferente dos valo-
res, e t a m b é m do grande poder emotivo
dêsse novo ajustamento.
O "acaso" da expressão poética da-
daista possuía u m encanto que o mundo
ainda n ã o tinha visto, pois que as pala-
vras eram tiradas do espaço mesmo como
eram encontradas e a seqüência dependia
apenas da "vivacidade" do receptor. O
resultado era extranho e belo, tão belo
q u e os p r ó p r i o s d a d a i s t a s se chocaram...
estavam defronte de uma nova e muito
vigorosa poesia, que n e m mesmo o des-
troçamento e o desaparecimento do da
daismo conseguiu aniquilar. A sugestibi
lidade dessa poesia era grande demais e
*-* mu

O BERÇO tu FORÇA POÉTICA 169

dificilmente esgotavel, e ela continua


germinando e crescendo dentro do super-
realismo, e como poesia destruidora da
lógica, que é, ela n ã o p ô d e deixar de ter
u m grande e viril futuro.
Como "ultima risada", o dadaismo
realisa todas as finalidades anarquistas
até mesmo a de destruir a si próprio, —
o que é uma expressão pura de anarquis-
mo, — alto-destruição como f i m rapidís-
s i m o de u m ciclo, a c o m p r e e n s ã o da nossa
insignificancia, a cura pelo suicídio, pois
nem o suicídio temporário do sono é ca-
paz de curar. Tais poetas s ã o i m b e c i s . . .
dizem, e o imbecilismo aparece como con-
seqüência de excesso de pensamento, é o
super-estado de pensamento, a idade de
ouro do filosofo.
Os estilhaços da ultima rizada da-
daista s e r v i r a m de m i r a g e m para o super-
realismo que se ergueu sobre êsses des-
troços ; foi literário e com uma linguagem
composta de frases tiradas da porta do
sono, visava alcançar o problema da ex-
pressão humana pelo pensamento auto-
mático, sem o controle do raciocínio e
sem preocupação de estética e de moral.
Cada e s t i l h a ç o d o d a d a i s m o era u m ponto
170 Os Ossos no MtTNno — FLAVIO DE R. CARVALHO

de partida maravilhoso para uma série


de associações de idéas; as incursões
poéticas dos dadaistas e dos superrealis-
taís foram verdadeiras sondagens n u m
m u n d o desconhecido, nas profundezas de
um mundo interior.
Da poesia passaram á pintura e vi-
mos e n t ã o as coisas mais surpreendentes
que o cérebro humano jamais produziu;
a p i n t u r a se prestava mais a uma visão
maior dêsse mundo estranho, pois que a
pintura prescinde da sucessão cronoló-
gica e da idéa de tempo que tanto cara-
cterisam a literatura. Vimos as visões
mais fortes e mais emotivas e cousas de
que nunca dantes tinhamos suspeitado a
existência; o problema da sugestibilidade
assume proporções enormes e apavora, o
conteúdo parece n ã o ter f i m e a existên-
cia conspicua da fôrma parece em nada
atrapalhar a exibição do conteúdo. Esta-
mos em face de u m novo problema de
uma nova proposta filosófica. O mundo
inorgânico fala e sente c o m o o orgânico,
o animal e o humano t e m a rigidez do
mundo inanimado, dá-se uma trasmuta-
çao de valores, tudo se torna animico e
igual", qualquer coisa pôde, querendo,
*

O BERÇO DA FORÇA POÉTICA 171

manifestar os característicos de todas as


outras coisas. Grande numero de feridas
sem sangue s ã o expostas á luz solar. Fôr-
ma e conteúdo são u m único problema;
ambos se exibem ás divagações do pen-
samento; o vasio da fôrma é tão impor-
tante quanto a pujança e a virilidade do
conteúdo, a exibição dos característicos
de ambos n ã o d e s t r ó e n e m o v a l o r de u m
nem o do outro. U m a base filosófica en-
quadra o todo. A pintura super-realista
não é só pintura, mas t a m b é m u m instru-
mento de pesquiza, ela revela ao mundo
uma nova sensibilidade e ajuda a desà-
brochar a sensibilidade do mundo.
Amontoados nas profundezas e ilu-
minadas por uma luz doce e agradável,
estão todas as grandes forças da huma-
nidade, símbolos magníficos e quasi in-
compreensíveis. É uma encenação da gê-
nesis do pensamento. A s grandes emo-
ções se encontram englobadas no ovo
original... é o berço da grande força
poética que germina e incha, e de onde
sáe o h o m e m que grita ao universo as
chagas da sua alucinação, e que acredita
nas forças ocultas do universo... É a pu-
reza . . .
17'2 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

E quem consegue enchergar a magia


e a pujança sugestiva dêsse mundo inte-
rior, quando volta ao c o n t á t o da briza de-
sencantada do consciente, experimenta
repulsa e choque pelo espetáculo depau-
perado .. . É engraçado.

Com os abstracionistas as coisas se


passam de outra maneira; s ã o individuos
que acreditam na força do pensamento e
acham que a f ô r m a e o pensamento con-
vergem para o mesmo ponto na obra de
arte; acham que o pensamento é a base
e que os homens precisam de fáto saber
o que querem. Ê l e s n ã o c a m i n h a m r u m o a
um mundo, mas querem saber aonde ir.
Na realidade, o abstracionista acha
que as fontes da vida s ã o forças, s ã o ve-
ctores, e que a base da matéria é pensa-
mento; uma vez que êle encontrou a es-
trutura, a teoria para enquadrar a sua pin-
tura, êle procura humanisar os elementos
que c o m p õ e m essa teoria.
A pintura é composta de símbolo»
de equilíbrio, que por u m processo de su-
gestibilidade adquirem uma vida e tor-
nam-se uma espécie de fisionomia hu-
O BERÇO DA FORÇA POÉTICA 173

mana, de u m c o n j u n t o de forças. É o in-


verso do super-realismo. A inspiração, a
sugestibilidade n ã o v ê m de dentro, do
conteúdo, mas sim parecem surgir de u m
pensamento refinado, acabado, e cami-
nhar para dentro. A busca do abstracio-
nista é pelas "pontas" (1) das coisas;
não se sabe b e m se h u m a n i s a n d o fôrmas
geométricas e pensamentos matemáticos,
êle marcha de u m f i m para u m comêço
(marcha ré), ou de u m comêço para u m
estado mais adiantado (avanço), pois
que tanto na base (forças de inicio), da
matéria, como no cume "raciocínio", ou
pensamento de u m estado evoluído, se
encontram as fôrmas geométricas e as
idéas matemáticas. Portanto, a humani-
sação é o animismo dessa geometria de
comêço e de fim, é u m processo que ca-
m i n h a r u m o a u m centro, r u m o a u m ego,
e abandonando as "pontas", o comêço e
o f i m do ciclo, abandona também, gra-
dualmente que seja, os d o m í n i o s do pen-
samento. E provavelmente êste ego, êste
centro, é u m sexo.

(1) V ê r conversa com Jean Helion no meu l i v r o " A


inquietude do Ocidente".
174 Os Ossos no MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

Psicanalisando, acho que o contato


entre o pintor abstracionista e as fôrmas
da sua p i n t u r a é u m c o n t a t o sexual, a ex-
clamação: "deitei-me sobre as curvas,
d e s e n v o l v i os v e r m e l h o s e os a m a r e l o s do
sopro do m e u entusiasmo" (1) mostra: o
fluxo do calor das cores, o sopro de en-
tusiasmo como sendo u m a representação
d o d e s e j o v i r i l , e as c u r v a s c o m o s e n d o as
protuberancias e as concavidades que
marcam a mulher sobretudo a concavida-
de uterina. A exclamação é proveniente
de uma descoberta do pintor. O pintor
descobre u m refúgio que se associa, ao
mesmo tempo, com o á t o sexual e com a
cavidade uterina. É u m a verdadeira forta-
leza e p o n t o de segurança para a sua in-
quietude talvez em perigo, e o espasmo
e o escoamento do seu lirismo é claro
quando logo em seguida êle procura jus-
tificar a existência dêsse lirismo, dizendo
que em certo momento lirismo e racio-
c í n i o s ã o i d ê n t i c o s e se t o r n a m u m a única
potência.

(1) E x c l a m a ç ã o de Hei i o n durante nossa conversa.


;
O BKRÇO DA FORÇA POÉTICA 175

Os abstracionistas se queixam do
efeito (golpe de martelo) da pintura su-
per-realista, e se esquecem da utilidade
de s e m e l h a n t e s golpes; o choque do "gol-
pe de martelo" reaviva a memória do
h o m e m e até mesmo a memória da espé-
cie. A c o r d a , á s vezes, o que ha de ador-
mecido em nós.
A idéa de que no comêço havia u m
ovo e que a sua contradição fundamental
é o pássaro, n ã o somente e x p l i c a os fun
damentos, mesmo de u m a evolução, o ho-
mem abandonando o seu ninho da terra
para uma locomoção mais eficiente in-
vadindo o ar, assegurando-se uma posi-
ção de destaque e de superioridade com
u m golpe de vista maior, uma nova cla-
ridade sobre as coisas, m a s t a m b é m mos-
tra uma fôrma do desabrochar do indiví-
duo. A natureza parece ser u m m a p a , u m
guia de u m a conduta perdida e esquecida,
u m modêlo que indica o que houve e o
que ainda vai haver, o v ô o do p á s s a r o as-
sociando-se á mais adiantada etapa do
pensamento, uma espécie de f i m de ciclo
com os c a r a c t e r í s t i c o s da e m o ç ã o pictori-
ca abstracionista e que n i n g u é m sabe bem
se é u m c o m ê ç o o u u m f i m , s i é u m a infra-
17fi Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

estrutura do m u n d o do ovo, ou se é sim-


plesmente uma nova estrutura que saiu
do ovo. O mundo do ovo é intensamente
dramático e emotivo, mas o abandono
desse m u n d o e o estado de pássaro e de
vôo significa o seccionamento completo
dos l a ç o s afetivos c o m o o v o ; h a v e r á tal-
vez u m periodo em que a grande emoção
interior, da qual começamos a perceber
hoje os primeiros vestígios pela sonda-
gem automática super-realista, e que per-
tence ao mundo do ovo, n ã o mais será
percebida ou apreciada pelo h o m e m em
pleno vôo.
A procura de

um monarca cigano

As coleções de retratos de presiden-


tes, de ditadores, soberanos, etc, são
sempre o que ha de mais "impossível"
em matéria de arte. T o d a a mediocridade
do artista parece se concentrar no pre-
paro de u m retrato oficial.
E n t r e as c o l e ç õ e s m e d i o c r e s d o mun-
do, destaca-se a coleção de retratos e es-
culturas de P i l s u d s k y , e m K r a k o w . O de-
sejo de bajular o fogoso marechal é tão
12
178 Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DF. R. CARVALHO

grande que, ás vezes, até mesmo os ape-


trechos d a v i d a d i á r i a , se encolhem ou se
apagam com o medo da sua figura dra-
mática.
V i curiosissimas representações de
Masarik, onde a sua pessoa, colocada ao
lado de u m p o v o que o aclamava, é r a segu-
ramente 10 vezes maior que os elemen-
tos da massa. Esta fôrma de gigantismo
é bastante comum na h i s t o r i a das artes,
e visa naturalmente mostrar por quanto o
chefe é superior aos subjugados. A s re-
presentações de Mussolini, Stalin, Leni-
ne, Pilsudsky, exibem o mesmo fenôme-
no: mostrar ao povo, pelo gigantismo, a
superioridade do chefe; impressionar o
povo com o tamanho d o c h e f e , e as repre-
sentações minúsculas do próprio povo.
Tudo isso é uma maneira inconsciente
mas bem clara do desejo que freqüente-
mente tem o poderoso e a sua entourage
demonstrar a pequenez e a insignifican-
cia d o povo.
A s grandes c a b e ç a s de L e n i n e e Mus-
solini visam o mesmo f i m , inconsciente-
mente que seja; mostrar ao povo peque-
no lá e m baixo quanto á capacidade men-
tal desses dois chefes é superior a do in-
UM MONARCA CIGANO 179

dividuo na massa. O olhar feroz e a boca


larga e dura das representações gigan-
tescas de Mussolini, Pilsudsky e Hitler,
visam amedrontar as massas e estabele-
cer u m culto das massas para com o
chefe, são imagens que relembram a fe-
rocidade de certos ídolos antigos, Deus,
por exemplo, e que c a m i n h a m para a idéa
de espantalho com todos os característi-
cos e toda a atração do dramático e do
horrível. O povo que desfila pelas imedia-
ções dessas imagens, traz sempre no
olhar o espanto e o medo das massas re-
ligiosas, e passa pelo idolo em posição
encolhida, com medo uterino, como u m
rebanho de escravos, ou b e m é feminil e
encantado e alegre como o comporta-
mento de uma mulher excitada; contudo
o elemento oficial, o elemento mais pró-
ximo ao chefe reafirmando a sua ambi-
ção burocrática procura sempre imitar a
atitude do chefe, e á s vezes vae além,
porque considera a massa inferior e des-
prezível (1).

(1) Vêr t a m b é m observações feitas na m i n h a ex-


p e r i ê n c i a sôbre uma p r o c i s s ã o de Corpus Cristi, no meu
livro "Experiência u . ° 2 " .
180 Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DE R. CABVALH»

Um túmulo de Lenine, por exemplo,


é evidentemente calculado para impor
respeito á s massas, p r o l o n g a n d o por mais
tempo i n t a t a s as idéas do mestre, e fun-
ciona de uma maneira idêntica á de u m
túmulo de Cristo; faz desfilar perante a
imagem do proféta, Cristo, Lenine ou u m
outro, a massa submissa e apavorada, ou
saciada.

Quem viaja e deseja observar, n ã o


deve permanecer muito tempo no mesmo
local, pois arrisca a se ambientar; e o
observador ambientado é u m m á o obser-
vador: n ã o encherga porque é incapaz de
fornecer contraste. Visitei u m museu de
botões, em Praga, uma instituição verda-
deiramente curiosa: toda a historia do bo-
tão, das amarras do h o m e m da caverna
até á variedade de hoje.
Tomei u m trem sem rumo definido.
T i n h a u m passe livre, e í a m o s para o sul.
É u m dia de sol. N o w a g o n restaurante
comia-se bem e comer n ã o éra u m feito
heróico, u m contraste com certos paizes
onde os carros restaurantes transitam
com a tabela de cabarets de luxo. Trans-
UM MONARCA CIGANO 181

porte rápido e "internacionalismo" vão


juntos; a intensidade de "internaciona-
lismo" aumenta com a facilidade e a ve-
locidade do comboio que transporta. Nos
trens em geral e mormente nos inter-
continentaes, a comida internacionalisa-
se, a v i s ã o e o p a l a d a r da velocidade não
são arribientaveis. Para a felicidade do t u -
rista e o u t r o s i n d i v i d u o s , os p r a t o s nacio-
nais se encontravam ausentes. Pratos
nacionais são sempre coisas que só po-
dem ser comidas por nacionais ou pes-
soas ambientadas. Almocei sem naciona-
lismo, e sentia-me bem; os pratos servi-
dos já tinham ha m u i t o recebido a com-
p l a c ê n c i a do que ha de c o m u m n o paladar
dos povos. A c o m i d a internacional m e pa-
receu de fácil digestão, leve e capaz de
conservar o devorador em razoável es-
tado de f o m e , u m contraste c o m o peso e
a brutalidade que costumam caracterizar
os pratos nacionais. Parece que quanto
mais regional é o paladar do individuo,
mais prêso está êle ao r a n ç o patriótico e
ao culto do boneco barbado. A localiza-
ção e o regionalismo do culto do boneco
barbado é t ã o grande que êste exige que
a sua própria carne seja comida pelos
182 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

fieis e o seu próprio sangue degustado.


Esta antropofagia em familia, infeliz-
mente cultivada ainda por certas reli-
giões e o cristianismo, tende a desapare-
cer com o desaparecimento das frontei-
ras, c o m o a u m e n t o da eficiência e da ve-
locidade da vida e com u m intercâmbio
maior entre os povos. A carne do Deus.
conquanto tenha sido a "obrigação" dos
povos mais diversos da terra, e que como
habito é por toda a parte espalhado, não
é u m prato internacional porque a carne
do Deus éra uma comida essencialmente
ligada á idéa r e g i o n a l e m u i t o local de fa-
milia, em inicio era a carne mesmo do
chefe m o r t o que é r a degustada, e o inter-
nacionalismo é destruidor da n o ç ã o regio-
nal de familia. N ã o d e v e m o s esquecer que
internacionalismo n ã o significa caracte-
rísticos comuns dos povos, mas sim co-
municação rápida e e f i c i e n t e e n t r e os po-
vos, aproximação dos povos pelo inter-
câmbio. Pouco importa a q u i se o interna-
cionalismo será recebido com as graças
e o consentimento do homem, hoje ou
amanhã, se será ou n ã o u m "sucesso";
êste assunto pertence m a i s ao m o v i m e n t o
psicológico da cultura. O fáto observável
l*M MONARCA CIGANO

é u m só: o h o m e m compreendeu que v i -


vendo velozmente êle vive mais; o seu
contáto com o mundo é maior — alarga-
se o s e u p o n t o d e v i s t a — e êsse contáto
veloz traz u m a vida intima com o mundo
todo e n ã o s ó c o m a familia como é r a an-
tes. O h o m e m a m p l i a o c a m p o de a ç ã o da
sua animosidade, do seu odio e do seu
amor; da luta e m familia ê l e passa para a
luta no grupo, na nação, e e m seguida en-
tre as nações. Rapidez de movimento e
conquista das grandes distancias, signi-
ficam e m primeiro logar, u m aumento no
raio de a ç ã o da afetividade do homem, e
não necessariamente paz e concórdia,
mesmo porque paz e concórdia nada mais
s ã o do que u m a fase, na f l u t u a ç ã o da ani-
mosidade do homem; uma manifestação
de t e m p e r a m e n t o e u m a coisa que s ó pôde
ser i n s t á v e l , q u e v e m m a s t e m de passar,
o desejo de paz e concórdia precisa sem-
pre dar l o g a r ao desejo de batalha e de
odio, é u m a exigência do movimento das
coisas. Vida e contraste estão intima-
mente e irremediavelmente ligados. A
carne do Deus, depois de passar para a
circunscrição do terreno nacional, entra
no panteon do politeismo internacional,
18-t Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DK R. CARVALHO

não mais como coisa sagrada e daninha,


c o m o coisa a ser i n t e r d i t a e t a b ú o u a ser
engulida para o bem da a l m a , pois que o
"Deus e a sua carne" tornou-se apenas
u m colega de panteon, u m igual aos ou-
tros, n ã o é mais o chefe de familia ou de
grupo, porque cada unidade no panteon
é u m sêr isolado e sem grupo, n ã o existe
comunhão e n ã o existem óstia e a carne
nacionalista; a c o m u n h ã o acanhada da fa-
milia deve ser abandonada e substituída
por u m outro alimento mais ao paladar
de todos, ou de u m paladar mais avan-
çado, mais divino, u m vegetarianismo
por exemplo. N ã o pôde haver duvida
que a evolução e a via crucis de u m Deus
envolvem pastar no capim verde e gos-
toso, e c o m e r ervas c o m os a n i m a i s , mes-
mo porque a grande Inocência do animal
se c o n f u n d e e se iguala com a beatifica-
ção e o espanto do poderoso.
Observamos, aqui, que o pavor que
tem o vegetariano de comer o animal
associa-se plenamente c o m o pavor que
tinha o Deus dos seus companheiros de
pasto, e a conseqüente traição do
Deus (1). A s exibições de solidariedade e
igualdade da origem animal de Deus se
UAI MONARCA CIGANO 185

identificam c o m os laços afectivos dos


habitantes do panteon divino. Os caracte-
rísticos de u m começo de ciclo confun-
dem-se c o m os de u m f i m de ciclo. Estri-
ctamente falando, uma intensificação
prolongada de internacionalismo condu-
ziria o h o m e m a u m estado de j e j u m con-
templativo, sem duvida uma fôrma de
N i r v a n a que seria o antipoda da antropo-
fagia; mas, felizmente, na realidade, nun-
ca falamos "estrictamente".

E assim pensava, olhando e mental-


mente vagando pela paisagem, correndo
* n o sol e n o escuro das grutas; saltos enor-
mes c o m o se e u f o s s e a p r ó p r i a b r i z a que
varria o vale — tinha vontade de ir a
Zlina vêr a famosa fabrica de sapatos,
mas hesitava entre Zlina e o monarca dos
ciganos; me h a v i a m dito que u m t a l M i -
chael K w i e k éra o pretendente ao trôno

(1) Lèr mais adiante o capitulo " O t a b ú da vege-


t a r i a n a " , e cousultar a obra d r a m á t i c a do autor " O bai-
lado do Deus m o r t o " representada no teatro da Expe-
r i ê n c i a em 1933, e que sugere de uma maneira l í r i c a e
s i m b ó l i c a a origem a n i m a l do Deus. Esta obra provocou
o fechamento do teatro da E x p e r i ê n c i a pela policia de
S. Paulo.
IKfí Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

dos ciganos com o titulo l u x u o s o de Ro-


dolpho I I .N i n g u é m sabia bem onde an
dava Michael Kwiek, uns diziam que t i -
nha sido expulso pelo governo da Che-
coslovaquia e que se achava na Polônia,
outras informações mencionavam a Ru-
mania e a Russia-Subcarpatica, e eram
poucos os que compreendiam o interesse
que poderia ter o rei dos ciganos para
um jornalista brasileiro. " É u m rei sem
reinado"... exclamavam, "os ciganos
são gatunos... n i n g u é m liga ás suas
pretenções", muitos me achavam maluco
ou ignorante e n e m de l o n g e a d v i n h a v a m
o meu interesse.
Tinha tomado uma decisão: iria vêr
o rei dos c i g a n o s . . . — e com o café que
o garçon insistiu e m trazer, sentou-se a
m i n h a m e s a u m a s e n h o r a de seus 30 anos.
Interroguei-a sobre o rei dos ciganos.
" O rei dos ciganos está em Uzorod"
diz ela, " . . . o que êle quer é dinheiro
para manter uma corte e viver e m luxo,
quer cobrar i m p o s t o s aos ciganos... mas
os ciganos n ã o v ã o nisso, onde j á se v i u
cigano pagar i m p o s t o . . . "
A senhora e m questão era u m espe-
cimen interessante; c o m a cara larga e
UM MONARCA CIGANO 187

sensual, cabelos ondulados castanhos e


amontoados de u m lado da cabeça, era
grande, corpulenta e voluptuosa e de
olhos amendoados... Todas as v e z e s que
olhava para ela, eu me sentia como u m
abridor de lata.

Quasi n ã o existe aristocracia na Che-


coslovaquia. Todos se sentem estricta-
mente iguais; n ã o ha restrição e reser-
vas de classes: o chauffeur, o maquinista,
o camponez, o presidente, se p a r e c e m to-
dos e se diferenciam apenas pelo unifor-
me. Quando penetrei no haíl do hotel,
o creado que me recebeu, certamente
mostrava potencialidade igual á minha.
Nenhuma da submissão do tipo clássico
do creadò. Via-se em seu olhar que êle
sentia e respirava a vida com os mes-
mos direitos e a mesma alegria e com-
preensão que os outros; parece que em
toda a Checoslovaquia é mais ou menos
a mesma coisa; os creados n ã o s ã o os
mesmos dos outros paizes.
Bratislava é pequena como cidade,
mas alegre de noite, sobretudo nas taver-
nas e nos cabarets luxuosos. Encontrei-
188 Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

me com velhas amizades, a pintora Ester


Fridriková, Zuzka Zguriska, uma fogosa
slovaca, e outros. Á noite passeei com
F r i d r i k o v á nas margens do Danúbio e ela
m e disse que eu c a m i n h a v a c o m a rigidez
e o balanço de u m negro. Sentia-me or-
gulhoso de uma raça que n ã o era minha
e selvagem e superior. O Danúbio estava
bonito e a lua brilhava no escuro em cima
da ponte. F r i d r i k o v á me aconselha a n ã c
procurar o rei dos ciganos por ser difí-
cil encontrá-lo, pois que o pretendente ao
trono, i g u a l aos o u t r o s ciganos, a n d a sem-
pre em movimento e correndo atraz dos
seus subditos espalhados e pouco sub-
missos. Mas tinha uma pergunta a fazer
ao monarca, uma pergunta que ardia e
excitava a minha curiosidade; que espé-
cie de t r o n o seria o s e u . . . u m trono por-
tátil leve, u m t r o n o desmontavel, o u bem
u m trono pesado mas movei, montado
em carro. E r a uma pergunta importante
pois que envolvia a própria estabilidade
do nomadismo cigano, e o assunto foca-
lisado e impresso em entrevista poderia
até mesmo despertar do torpor tradicio-
nal algum marceneiro com mentalidade
patente, ou algum ambicioso inventor de
UM MONARCA CIGANO 189

auto-giros. Fridriková a f i r m o u que eu es-


tava louco, mas resolvi partir no dia se-
guinte.

Uzorod, a cidade das 5 raças, esque-


sita, é j á o Oriente: cargueiros e fiacres
se c r u z a m pelas ruas. M u l h e r e s de cabe-
los vermelhos e olhos grandes, morenas
gordas e languidas, judeus de cachos e
com o paletó preto e còmprido até aos
pés, s ã o como os empregados de empre-
zas funerárias ianqués, dêsses que apare-
cem no cinema, e que nunca abandonam
o habito.
Os judeus dessa parte do mundo
usam o traje carateristico como disciplina
para o orgulho, mesmo como fazem os
judeus da Algeria com o chapéo quadra-
do que anos atraz era uma imposição
árabe e hoje é usado como distinção vo-
luntária e solicitada. N a Polônia, o judeu
não se assimila ao polonez. Falam o
yiddish, e conquanto tolerados pelo go-
verno, s ã o quasi sempre despresados pelo
povo. U s a m o traje característico, barba,
cachos, paletó comprido e chapéo espe-
cial. N o interior das casas comerciais
190 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

vê-se freqüentemente u m crucifixo pen


durado, ou u m nicho com a imagem da
Virgem, para mostrar que o dono n ã o é
judeu. M e s m o quando o dono é ateu, o
crucifixo se encontra.

N i n g u é m sabia do monarca cigano.


Interroguei as pessoas mais diversas, no
hotel, na rua, n o café, muitos se espan-
tavam com a minha pergunta e alguns
nunca tinham ouvido falar no monarca.
Encontrei-me com uma dama australiana
que nada sabia do paradeiro do monarca
mas me informou que estava estudando
as c o n d i ç õ e s e o t r a t a m e n t o d a s minorias
na Russia-Subcarpatica (1), era profes-
s o r a e m S i d n e y , e d u r a n t e as f é r i a s se de-

(1) A p r o v í n c i a da Russia-Subcarpatica pertence á


Checoslovaquia é a u t ô n o m a e t e m u m presidente admi-
n i s t r a t i v o . Os habitantes s ã o : 6 3 % de russos, ukrania-
nos e pequenos russos, 16 % de h ú n g a r o s , 12 % de j u -
deus, 5 % de checoslovacos, 2 % de a l e m ã e s , 1.8% de
rumaicos e 0.2 % de ciganos. E m 1930 a p o p u l a ç ã o era
de 700.300. Antes da guerra a R ú s s i a Subcarpatica era
uma d e p e n d ê n c i a da H u n g r i a .
No momento em que escrevo (1935) a R ú s s i a Sub-
carpatica t e m 9 membros no parlamento e m Praga, do«
quaes 2 s ã o comunistas, 3 a g r á r i o s , 1 autonomista, 1 so-
cial democrata, 1 j u d e u , 1 nacional social democrata
(partido de Benos).
UM MONARCA CIGANO 191

dicava altruisticamente á s minorias — no


momento viajava pela Checoslovaquia
auxiliada pelos checos e quando podia,
em automóveis da missão medica dos
Carpatos, interrogava russos magiárs,
judeus, e toda a grande legião de descon-
tentes politicos — tinha visitado na vés-
pera u m a escola s ó de crianças ciganas, e
contou-me que o tal pretendente ao tro-
no estivera e m visita á escola e procurára
exigir do professor que ensinasse ás
c r i a n ç a s as d o u t r i n a s c i g a n a s , declarando
que o professor devia obedecer a êle,
ú n i c o m o n a r c a da sua raça, e n ã o á R e p u -
blica checa, e que as crianças em pé de-
veriam saudá-lo na sua qualidade de
chefe supremo.
U m j u d e u h ú n g a r o , q u e se a c h a v a ao
lado da senhora australiana, m e contou
coisas interessantes sobre a região que
óra atravessava:
" A população é paupérrima, uma
parte que vive nas montanhas (antes da
g u e r r a de 1914) e m i g r a v a para a Hungria
onde trabalhava durante 2 mezes, o que
era suficiente para viver o ano todo. De-
pois da guerra, a Hungria, por meio de
uma taxa alta nos passaportes, tornou
192 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DK R. CARVALHO

essas incursões improdutivas. Por sua


vez, a Checoslovaquia dificulta o mais
possivel o comercio entre a Rússia Sub-
carpatica e H u n g r i a . A Rússia Subcarpa-
tica tem muita madeira e pouca comida
e a Hungria n ã o tem madeira e tem co-
mida, mas as duas regiões visinhas n ã o
podem comerciar. A comida principal da
população é milho e n ã o existe milho su-
ficiente para toda a população.
" O que ha é u m grande egoismo na-
cional", declarou o judeu, "a Checoslo-
vaquia compra muita madeira da Slova-
quia e muito pouco da Rússia Subcarpa-
tica, e por sua vez a Hungria obtém a
sua madeira da Polônia, atravessando a
Rússia Subcarpatica".
E depois de uma pausa o judeu adi-
cionou: " U m a grande parte da população
emigrou para os Estados Unidos, Cana-
dá, Argentina, Brasil, mas muitos voltam
porque t ê m saudade do rincão onde nas-
ceram. . . "
Esta região da Checoslovaquia é a
mais atrasada da republica e onde o co-
m u n i s m o é mais ativo, m e l e m b r e i de u m
episódio que m e f o i relatado por u m advo-
gado comunista em Bratislava, o dr. Cie-
UM MONARCA CIGANO 193

mentis: o partido comunista desejando


m e l h o r c i m e n t a r os l a ç o s que o u n i a m á s
suas ovelhas, certa vez fez larga distri-
buição de bandeiras vermelhas entre os
agrupamentos. E m uma das aldeias, os
camponezes achando a idéa excelente re-
solveram comemorar com uma assembléa
solene, onde o padre local benzeria o
simbolo revolucionário, e f o i preciso a
intervenção enérgica do deputado comu-
nista da região, para evitar que se con-
sumasse o á t o p r o f a n o , pois os campone-
zes n ã o c o m p r e e n d i a m q u e u m a bandeira
fosse jamais utilizada sem previamente
ser b e n z i d a por u m padre, e também foi
necessário substituir a cerimonia cristã
por uma outra cerimonia, onde o deputa-
do, s e m d u v i d a o r a n d o s o b r e os atributos
da bandeira, c o n c e d i a a esta, sob u m a ou-
tra f ô r m a , os poderes milagrosos capazes
de l e v a n t a r o a n i m o depreciado.
Uma das m a i s sérias causas dos dis-
túrbios e da agitação reinante nessa par-
te do m u n d o de h o j e , f o i a a p l i c a ç ã o dos

(1) As nações devem viver e governar por si — d i -


zia W i l s o n .
13
194 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DB R. CARVALHO

princípios do grande apóstolo da paz, o


presidente Wilson.
Crearam, por exemplo, a Yugosla-
via c o m os seguintes p o v o s : servios, croa-
tas, slovenos ( n ã o confundir com slova-
cos), herzegonianos, macedonianos, bos-
nianos e c o m as seguintes religiões: pro-
voslavos, católicos romanos e mahometa-
nos (1).
Wilson foi usado como engodo para
e n c o b r i r os m a i s pantagruélicos e alguns
dos mais baixos desejos das nações em
guerra. Jamais a França ou a Inglaterra
se lembraram de aplicar aos seus impé-
rios coloniais os principies de*Wilson.
Todos conhecem e sentem a farça do
"homerule", e os ingleses mais do que
os outros.

Cheguei em Chust ás 2 horas da ma-


drugada. O hotel era longe da estação,

(1) Os servios, macedonianos e dalmacianos são


provoslavos, os croatas e os slovenos s ã o católicos roma-
nos, e os bosnianos s ã o mahometanos.
A Croácia e a Slovenia ( h o j e da Yugoslavia) perten-
ciam á H u n g r i a antes da guerra, e a Dalmacia, a Bosnia
e a Herzegovina (partes da Yugoslavia de h o j e ) perten-
ciam á Á u s t r i a antes da guerra.
UM MONARCA CIGANO 195

1 hora de v i a g e m . Fazia frio e a noite es-


tava clara. E m caminho tinha-me encon-
trado c o m o redator de u m jornal magiár
que era judeu e só falava latim além da
sua lingua; os meus conhecimentos de
l a t i m e r a m o que p ô d e haver de m a i s frá-
gil, mas assim mesmo arranhávamos; o
meu n o v o a m i g o , depois de u m argumen-
to penoso, me havia convencido de que
Chust era o logar para m i m . Chegamos
ás 3 no hotel, u m logar pequeno e esque-
sito. N a sala da frente damas langorosas
e b o n i t a s se e m b a l a v a m a o s o m fantástico
e romântico de uma orquestra magiár,
Chust é uma aldeia que começa a ser ci-
dade. Só tem 10.000 habitantes e se pa-
r e c e u m p o u c o c o m as nossas cidades do
interior. Custei a compreender, pelo meu
amigo que só falava latim, que o hotel
n ã o era u m cabaret mas sim o hotel mais
respeitável da cidade.
N o dia seguinte, era d o m i n g o , segui-
mos para Iza pomposamente instalados
num fiacre. Fazia frio e o sol quasi n ã o
aquecia. Passamos pela única coisa que
havia em Chust: as ruinas do que tinha
sido o castelo dos condes da Transilvaí *
19fi Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DF, R. CARVALHO

nia; Iza era uma aldeia que se vestia aos


domingos.
Entramos em Iza triunfalmente. A
p o p u l a ç ã o saía da igreja e enchia as ruas,
as mulheres vestiam roupas claras labo-
riosamente bordadas, c o m cores vivas; os
homens trajavam com simplicidade até
mesmo desagradável. Toda a atenção da
a l d e i a se d i r i g i a p a r a n ó s , e q u a n d o o fia-
cre parou, u m grande grupo de homens
juntou em redor. A s mulheres se conser-
vavam afastadas, e m pequenos grupos, e
nos examinavam atônitas e curiosas, o
meu amigo judeu que falava latim infor-
ma a u m personagem diferente dos ou-
tros, e que certamente era o graduado da
a l d e i a , q u e se t r a t a v a da visita de u m jor-
nalista brasileiro. "Brasileiro...!", ex-
clamam com surpresa... muitos n ã o es-
t a v a m b e m c e r t o s se " b r a s i l e i r o " e r a uma
planta m e d i c i n a l o u se era simplesmente
uma musica... depois de certa hesitação
alguém se lembra que mezes atraz havia
visto n u m circo que passava u m "boa
constrictor" (1) que era t a m b é m brasi-

(1) Giboia.
UM MONARCA CIGANO 197

ieiro... e naturalmente todos se imagi-


n a v a m que no Brasil s ó havia "boa cons-
trictors" e que a espécie jornalistica ja-
m a i s p o d e r i a ser acusada de " b r a s i l e i r o " .
Passeamos a passos largos pela al-
deia, seguidos de u m grande séquito que
examinava e discutia e m voz alta a nossa
morfologia. Quando parávamos, o séquito
estacionava respeitosamente á distancia,
ao nosso menor movimento o séquito
t a m b é m se mexia.
Dirigi-me para u m g r u p o de campo-
nezas e estudei os seus vestidos decora-
dos e bordados, peguei no pano e expe-
rimentei e acariciei com a palma das
mãos os bordados coloridos. A campo-
neza solicita oferecia outras partes do
bordado para o meu tato, outras campo-
nezas se aproximaram e orgulhosas do
seu produto mostravam e ofereciam ao
tato as partes do corpo mais em eviden-
cia, todas queriam que eu pegasse no
b o r d a d o e se s e n t i a m a g r a d e c i d a s quando
com a ponta do dedo eu roçava de leve
a superficie sedosa. O séquito atencioso
e cortês apreciava e comentava a minú-
cia d ó m e u exame.
19S Os Ossos no MUNDO — F L A V I O OF. R. GAHVALHO

Iza é uma aldeia típica da Rússia


Subcarpatica. Todas as outras são iguais
e t o d a s as o u t r a s c a m p o n e z a s se parecem,
e t a m b é m s ã o i g u a i s as v i d a s d e s s a s cam-
ponezas.
Giramos pela aldeia toda, visitamos
alguns interiores decorados e 2 ou 3 igre-
jas de madeira cobertas de sapê, que
eram pequenas mas altas, pobres inter-
namente e com algumas pinturas sobre
madeira, mas nada de interessante, nada
que se aproximasse, mesmo de longe, da
maravilhosa arte do traje da camponeza.
E m Iza todos são provoslavos e mui-
to intolerantes. Antigamente, o papa dos
provoslavos era o tzar da Rússia, mas
c o m o a R ú s s i a n ã o t e m tzar eles agora es-
tão sem papa. Antes da guerra (1) a po-
licia húngara tentou forçar a população
a freqüentar a Igreja Unida, mas o povo
se r e c u s a v a e p r e f e r i a a c a d e i a . A Igreja
Unida é uma espécie de filho natural do
tzar c o m o papa; conserva o ritual orien-
tal prosvolavo mas é unida a Roma obe-

(1) 1914.
ÜM MONARCA CIGANO 199

decendo ao papa. A Igreja Católica, na


a n c i ã de f o r ç a r o seu c r e d o n o m u n d o está
sempre disposta á acrobacia das conces-
sões, conquanto que estas c o n c e s s õ e s se-
j a m aceitas sem escândalo pelo aderente.

Além do "boa constrictor" de Iza, a


única outra coisa de nacionalidade brasi-
leira que interferiu com a minha sensa-
ç ã o de calma e paz, e perturbou a minha
digestão matinal, foi o café brasileiro.
mas desta vez e m Mukacevo, u m logarejo
sob todos os aspetos intragável, desses
l o g a r e s o n d e s ó se v a i p o r engano.
O café brasileiro em toda a Europa
Central adquire a nacionalidade de turco;
defeito de propaganda, sem duvida. V i
em Mukacevo, numa v i t r i n e de café, duas
fotografias de fazendas brasileiras que
diziam, apenas, fazenda Chanaan e Boa
V i s t a . C h a n a a n d á a i m p r e s s ã o de ser al-
g u m logar no Oriente, e para certos es-
pirites desprevenidos pôde até mesmo ser
localisado no polo norte. Boa Vista pa-
rece a l g u m logar espanhol ou italiano. A
200 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

propaganda brasileira desacorçôa. Tive a


impressão perfeita do inútil (1). Larguei
a vitrine e f u i t o m a r u m café polaco, uma
espécie de agua suja n u m copo pequeno:
homens e mulheres liam os jornais e se
deliciavam c o m a bebida infecta... e M u -
kacevo é considerado como oriental. Pela
grande vidraça o sol entrava, e lá fóra u m
fiacre arcaico rodava para a estação al-
gum passageiro como eu.

(1) N u m consulado, n ã o me lembro mais onde, v i


u m outro especimen de propaganda b r a s i l e i r a ; era u m
panfleto sôbre o Rio, parecia desses a n ú n c i o s baratos de
casa de turco e contrastava tristemente com a composi-
ção luxuosa e moderna dos panfletos de outras cidades
que se achavam ao l a d o . Quem visse o panfleto brasi-
leiro escolheria qualquer logar menos o R i o .

i
O T a b ú da Vegetariana

T e m muito turista vegetariano. ..


estão em toda a parte, nos trens, nos na-
vios, nos cabarets, e á s vezes nas igrejas,
O turista vegetariano se diferencia
do turista carnivoro pela benevolência
com a qual contempla o mundo. Êles são
benevolos e brandos, e a resignação do
vegetariano se manifesta pelo olhar e
pela boca. O olhar, sobretudo, tem qual-
quer coisa do estático. O vegetariano apa-
202 Os Ossos DO Ml'NDO Fl.AVIO DE R. CAHVAI.IJO

rece para compensar uma inferioridade


quasi sempre de natureza sexual. A gran-
de l e g i ã o de descontentes, os que n ã o en-
contram pontos de apoio para o descon-
tentamento, freqüentemente se dedicam
a atividades que visam u m chamado pla-
no superior, pois acham que devem se
sentir superiores aos demais, e esta sensa-
ç ã o de superioridade os alivia e compen-
sa a incapacidade em que estão de obter
satisfação de outra maneira. D o andari-
lho religioso de toda a parte, damas edo-
sas, peregrinos, etc, ao andarilho herbí-
voro da Alemanha, que se agacha no
mato para apanhar com a boca a herva
que cresce pelo c h ã o , do c a r n i v o r o viril e
catastrófico que s á e pelo m u n d o , para sa-
borear o pecado da carne, ao guerreiro
antropófago que adiciona ao seu valor o
valor da vitima, todos t ê m e m c o m u m u m
desejo, o desejo de saciar u m recalque.
Comer a carne está ligado á alegria, á
violência e á tristeza rápida e catastrófica
de u m comêço de coisas; a antropofagia
é uma bela e cativante manifestação da
Inocência do homem.
Tanto antropofagia como carnivoris-
m o são mostras da grande amizade que
O Txnt DA VEGETARIANA 203

uma vez existiu entre homem e animal,


da encantadora promiscuidade que fazia
do homem o companheiro de peito do
a n i m a l . A c a ç a ao a n i m a l e ao h o m e m era
uma expressão dessa amizade, uma gene-
r o s a b r i n c a d e i r a , n a q u a l se e x a l t a v a todo
o coração e todo o amor do h o m e m . . .
apenas uma erupção da grande Inocên-
cia, a Inocência do a n i m a l se identifica
.com a Inocência de u m comêço do ho-
mem, comer o animal e o homem era o
mesmo que provar da amizade e do amor
dêsses dois companheiros.
Comer a carne identifica-se c o m o
áto de provar o pecado; n ã o provar a
carne e o pecado é u m processo de purifi-
cação, u m a f ô r m a de masoquismo, e asso-
cia-se ao vegetarianismo das religiões
hindús e o pregado por Platão e Plu-
tarco.
O fabuloso Preste João quando en-
trava em campanha se fazia acompanhar
por guerreiros antropófagos que se nu-
triam da carne do inimigo para obter a
remissão dos seus pecados ( 1 ) .

(1) Vêr pagina 227 de "Lendas C h r i s t ã s " de Theo-


philo Braga publicado no Porto em 1892.
204 Os Ossos oo MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

Naturaimente o gesto dos guerreiros


a n t r o p ó f a g o s d o P r e s t e J o ã o se identifica
com os dos fieis na hora da comunhão
com Cristo, pois comer a carne de Cristo
traz t a m b é m a remissão dos pecados. O
s e x u a l i s m o c a r n a l d o c r i s t i a n i s m o se con-
f u n d e e se identifica com a gastronomia
antropofagica, o que faz do cristianismo
uma religião com caracteristicos de vo-
racidade nubil, com os Ímpetos fogosos
da j u v e n t u d e . . . e a redempção dos peca-
dos n ã o é o descanso senil e filosófico de
um blasé mas sim u m processo de carga
e descarga do organismo de u m pecador
arrogante e diabólico, que precisa ter a
sua virilidade rebaixada, precisa ser cas-
tigado. O penitente em estado impuro,
pelo contáto com a carne descarrega a
sua impureza e adquire as qualidades do
devorado.
O vegetarianismo parece trazer con-
sigo a melancolia e a suavidade de u m
fim, é u m processo de r e s i g n a ç ã o , parece
que leva a u m a e s p é c i e de a n e m i a do sen-
tido e a u m a anestesia do que o sexual tem
de mais belo, m a i s v i o l e n t o e m a i s a n i m a l .
As crenças animisticas de toda a
^ parte mostram que u m h o m e m que mas-
O TABÚ DA VEGETARIANA 205

tiga a carne de u m outro ou de u m ani-


mal, adquire os característicos dêsse ou-
tro ou dêsse animal; a proibição vegeta-
riana visa, portanto, mesmo como disse
Krishnamurti, u m profeta do século X X ,
evitar que comendo carne o homem ve-
nha a absorver as qualidades do animal
c o m i d o ; visa a anestesia de certos instin-
tos chamados animais; visa a uma bem-
aventurança utópica e religiosa, envol-
vendo as complicações da revolta social,
como no caso do autor vegetariano Gus-
tave von Struve (1), que associava o ve-
getarianismo ao socialismo.
Fiz diversas experiências com vege-
tarianas, que m e l e v a r a m a crêr que o ve-
getarianismo está intimamente ligado ao
velho culto de animais. As minhas expe-
riências s ã o apenas observações de pas -
sagem, gente que encontrei n o m e u cami-
nho e que escolhi ao acaso, sem outra
preocupação que a experimental, gente
que passa e que desaparece mas cuja
passagem é suficientemente sugestiva,
para deixar no observador a centelha que
êle sente ser valorosa e aplicável e que

(1) 1805-1870. 2 « l i v r o ainda i n é d i t o .


206 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

o guiará no caminho da^ conclusão. A es-


colha do sexo oposto visa acender a ima-
ginação, é u m estado mais apropriado
para apalpar e sentir o que se p a s s a pelo
mundo do sujeito experimentado. Con-
quanto tenha repetido as experiências
com diversas vegetarianas encontrando
resultados idênticos, o que segue n ã o
deve ser tomado como estatística, o que
seria u m absurdo, mas simplesmente
como uma sondagem habilmente ope-
rada em uma camada do inconsciente
que o autor acredita ser uma camada
comum, e que contem certas recordações
e desejos inacabados pertencentes á pro
pria historia da espécie. O autor acredita
que a h i s t o r i a da e s p é c i e e s t á i n t i m a m e n•
te ligada ao que é encontrado pela psica-
nálise nas profundezas do inconsciente e
que os próprios residuos deixados pelo
homem nas lendas, nas cerimonias, e
apanhados pela arqueologia, pela etnolo-
gia, m o s t r a m n ã o s o m e n t e que o conteúdo
do individuo é uma repetição da historia
da espécie, mas t a m b é m que existe uma
perfeita identificação entre êste conteú-
do e o que aconteceu na vida da espécie.
Nesse sentido fez o autor uma demons-
O TABÚ DA VEGETARIANA 207

tração no seu iivro " O mecanismo da


emoção amorosa" (1).
A estatística é apenas u m a expressão
numérica de u m acontecimento, que nada
indica qualitativamente, mas pôde regis-
tar uma intensidade, i s t o é, u m a medida
numérica da m a n i a de u m acontecimento,
e portanto nenhum valor tem no mundo
da descoberta. O fáto de uma coisa n ã o
ter sido descoberta e classificada numéri-
camente, significa apenas que o homem
ainda n ã o teve a oportunidade de obser-
var a manifestação dessa coisa, e o apa-
recimento de u m sintoma animico n u m
individuo e n ã o n u m outro; mostra ape-
nas que existe uma decalagem na sensi-
bilidade dos individuos, e consequente-
mente na correspondência entre o indivi-
duo e a historia, e que nem todos os in-
dividuos s ã o despertaveis da m e s m a ma-
neira, m e s m o porque n e m todos possuem
a mesma memória da espécie, a mesma
sucessão angustiosa do não-acabado.

(1) L i v r o ainda inédito.


20S Oe Oasos DO MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

O vegetarianismo é uma manifesta-


ção psiconevrotica da espécie.
A vegetariana gosta de animais, o
que é suficiente para mostrar que existe
u m gráo de relação intima entre a ani-
mosidade da vegetariana e o mundo ani-
mal. Êste gosto v e m do fundo do incons-
ciente e está ligado á própria morfologia
do animal. Ela n ã o pôde suportar a des-
truição de u m animal conquanto ature
com mais frieza e a destruição de u m ho-
mem. Êste amor aos animais relembra
para ela uma intimidade no passado re-
moto, e ela sente apenas a angustia dessa
intimidade e n ã o compreende, está claro,
a ligação que pôde haver com u m passa-
do. Para ela, o a n i m a l a ser degustado é
certamente alguém que já recebeu a sua
caricia, o seu amor e o seu odio, alguém
a q u e m n u m passado r e m o t o ela fez pro-
messas e e n t r e g o u a sua dedicação, e, ao
meu vêr, com quem ela viveu e amou,
numa promiscuidade que no f i m era pos-
sivelmente estéril, e de q u e m ela recebeu
as primeiras leis de conduta e de tabú.
O f i n a l de q u a l q u e r coisa é s e m p r e estéril.
Para a sensibilidade vegetariana, comer
u m animal, no fundo, é u m á t o de antro-
O TAIUI DA VEGETARIANA 209

pofagia, a Inocência de u m comêço do


homem confunde-se c o m a Inocência do
animal, e os laços afetivos que parecem
ter existido entre homens e animais nesse
periodo elementar e que surgem hoje
como residuos na tona da consciência,
m o s t r a m o h o m e m como sendo o igual do
animal, o companheiro de pasto e de lei-
to do animal.
O homem de h o j e r e n e g a os seus v e -
lhos companheiros de pasto e t e m horror
e repugnância a qualquer relação afetiva
com o m u n d o a n i m a l que ê l e classifica de
inferior. Freqüentemente, quando êle
quer diminuir u m inimigo na sua digni-
dade, ê l e o associa a u m a n i m a l ( 1 ) . Esta
atitude de d e s p r ê s o consciente do homem
para c o m os animais, é u m a manifestação
de censura, do t a b ú do m u n d o , é u m a an-
títese da tése que está dentro, e como tal
mostra que aquilo que está no fundo do
inconsciente é exatamente o oposto da-
q u i l o q u e a c e n s u r a e as m a l h a s do mundo
consciente apresentam. Á medida que
mergulhamos nas profundezas do incons-

(1) V ê r d i s s e r t a ç ã o s ô b r e o assunto no meu l i v r o


"Experiência n . ° 2 " .
14
210 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DK R. CARVALHO

ciente, o consciente diverge mais e mais


do inconsciente e o mundo do h o m e m e
do animal convergem para u m terreno
comum, u m pasto único; pouco a pouco
os hábitos dos homens e dos animais se
confundem na escuridão, tornam-se indis-
tinguiveis uns dos outros, pouco a pouco
as espécies parecem mesclar e m promis-
cuidade, atravessamos pela visão de um
mundo perdido e esquecido onde os se-
res se a f i g u r a m aos nossos olhos de sé-
culo X X como sêres monstruosos e mito-
lógicos, são u m tanto como os monstros
paridos por engano ainda hoje, u m a nova
luz ilumina o cenário, possivelmente os
restos de uma luz intra-uterina... é a
grande camaradagem e imensidão de u m
periodo pre-mitológico (1).
Êste complexo "antropofagico" fo-
bia-mania que o h o m e m de hoje nutre
pelo animal, faz parte do par antitético
amor-odio que se encontra no "comêço
das coisas", e está ligado á noção meca
nicista elementar de idéa e contraste e de
méta e p o n t o de apoio, que h a anos atraz

(1) Provavelmente o começo de tal periodo, vêr


"O mecanismo da e m o ç ã o amorosa", do autor, ultimo
capitulo.
O TABÚ DA VEGETARIANA 211

desenvolvi no meu trabalho "Experiên-


cia n . ° 2 " , onde expuz o m e u conceito fe-
tichista do mundo.
M e afirmaram algumas vegetarianas
que quando por- descuido comiam a carne
do porco, tinham a 'impressão de estar
r o m p e n d o u m pacto que h a v i a m feito com
o porco (1).
O porco naquele m o m e n t o torna-se o
seu predileto e substitui a sua idéa de
homem; ela come o porco como ela ma-
triarcalmente comeria u m homem absor-
vendo-© sexo e tudo pela sua vagina a
dentro, mesmo como fazia a deusa Tia-
m a t c o m o seu f i l h o e heroe Kingu, o áto
sexual confunde-se com o próprio áto da
nutrição.
Mesmo hoje ainda encontramos al-
guns vestigios curiosos dessa extranha e
bela ligação entre a m u l h e r e os animais
viris, que e m certas é p o c a s a apavoravam.
Nas festas dos bardos húngaros, em me-
mória ao deus-Sol, celebrada na entrada
do inverno (25 de Dezembro), festas es-
tas que ainda se conservam, apesar da

(1) Na região onde andei a carne de porco era a


mais f r e q ü e n t e m e n t e consumida.
212 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

perseguição sistemática do clero cristão.


"Os bardos se vestiam como animais e
representavam o papel de touros, cabri-
tos, veados, porcos, gatos, e t c — " A
parte do touro mostra vestígios dos tem-
pos mais antigos. O ator t e m de mugir e
comportar-se de u m m o d o revoltado. E m
c e r t o s l o g a r e s , se a m o ç a da casa lhe traz
u m presente, o h o m e m touro a espanca
sem piedade" (1). O espansamento era
uma preliminar do próprio áto sexual e
esclarece a l g u m a coisa da i n t i m i d a d e que
parece ter existido entre mulher e ani-
mal. Naturalmente, as cerimonias de
iniciação entre os p o v o s primitivos e que
estão ligadas a esta s ã o outros vestígios.
O culto do animal parece compen-
sar, em muitos casos, u m insucesso com
os homens e substitui u m desejo idalis-
t i c o q u e p r e c i s a se m a n i f e s t a r , e t a l v e z se
confunda até com u m culto ao poderio
viril do antepassado, na f ô r m a de u m ani-
mal totem.
A vegetariana tem aversão pronun-
ciada para certos animais, e a ladainha

. «. , y
( ê r
» » M s Camponeses h ú n g a r o s " , de Ká-
, < C o s t ,

r o l y V i s k i , p . 25, ed. inglesa.


O TABÚ DA VEGETARIANA 213

" n ã o comer o animal t o t e m " é para a ve-


getariana o super-idealismo do amor, e
contrasta superiormente c o m o canibalis-
mo cristão de comer o corpo de Cristo e m
comunhão.
Observei em diversas ocasiões que
quando a vegetariana sente-se valorizada
e apreciada (por u m macho por exem-
plo), ela c o m u n g a perfeitamente c o m to-
dos os a n i m a i s ; c o m o p o r c o , o b o i , a le-
bre, o peixe, etc.... e abandona-se em
orgia culinária rompendo o pacto e devo-
rando esses animais que cessam de ser .
sagrados. E l a s e s e n t e s u p e r i o r e, a o que
parece, a i g u a l dos seus anti-totens vege-
tarianos; assim, o a n i m a l sagrado, é de-
vorado com gosto; é como se ela cum-
prisse u m pacto revolucionário recalcado
anos atraz. Se, logo em seguida, a vege-
tariana sente-se depreciada, diminuída
na sua personalidade, ofendida na sua
ilusão e na sua fantasia (por exemplo
quando abandonada por u m macho), ela
r e c á e sobre os a n i m a i s sagrados, restabe-
lecendo de novo o tabú; eles v o l t a m , ao
que parece, a funcionar como os pontos
de apoio, o r e f u g i o e o fetiche para a sua
animosidade depreciada. Fiz grande nu-
214 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CAIWALHO

mero de experiências nesse sentido, e


observei que em muitos casos a vegeta-
riana, que horas antes, na refeição da
manhã, havia comido carne n u m mo-
m e n t o de e l e v a ç ã o do seu E u , n a refeição
da noite, quando depreciada sexualmen-
te, dizemos, passava n o v a m e n t e a ser ve-
getariana, sem duvida para compensar o
forte abalo sofrido na depreciação do seu
Eu. Observei t a m b é m que, quando êste
abalo é m u i t o f o r t e , e se opéíra com uma
certa rapidez, os órgãos intestinais do
sujeito e m experiência são afetados; so-
brevem a dor de barriga, que parece se
c o n f u n d i r c o m os carateristicos da d ô r do
parto. É bom lembrar aqui que a dôr de
barriga, como conseqüência de u m cho-
que, n ã o é privativa das vegetarianas,
mas acontece freqüentemente com todo
o individuo macho e fêmea.

Concluindo: a mulher come o animal


quando e l a se sente superior e virilmente
apreciada, quando ela sente palpitar em
si as e m o ç õ e s jovens e violentas; e deixa
de comer o animal quando ela se sente
depreciada e procura refugio numa espé-
cie de idealismo.
1

O TABÚ DA VEGETARIANA 215

A dôr de barriga é uma mimica da


vida sexual catastrófica, do h o m e m no
comêço.
De u m modo geral, a vegetariana é
uma mulher extremamente sexuada que,
quando d e s p r e s a d a , se utilisa do vegeta-
r i a n i s m o para p u r i f i c a ç ã o de u m passado,
não abandonando nunca o desejo de co-
m u n g a r n o v a m e n t e c o m a carne que tanto
assombrava a sua indole e t a n t o a encan-
tava. A vegetariana, no f u n d o do seu i n -
consciente e da sua dôr é uma antropó-
faga, e n u m m o m e n t o de descuido devo-
raria com prazer todos os homens.

Os vegetarianos são homens terrí-


v e i s e f e r o z e s , q u e se u t i l i z a m do vegeta-
rianismo para encobrir a negrura da alma,
mesmo como acontece c o m os puritanos
e os religiosos de ambos os sexos: sen-
tem-se sujos e automaticamente vem a
necessidade de purificação do mundo.
M a d o n a e Bambino

Todo o turista devia ser forçado a


penetrar a Itália por Veneza. A quem sáe
das sombras frias da Europa Central e do
trem segue de gondola para o hotel, Ve-
neza se apresenta como qualquer coisa
saindo de u m sonho. É t ã o diferente tudo,
que n ã o parece ser verdadeiro; a viagem
ao hotel é quasi sempre longa porque a
velocidade da gondola é pequena, mas o
viajante, confortavelmente instalado,
diante de u m mundo tão inacreditável,
218 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

não tem vontade de sair da gondola e


prefere continuar pelo labirinto de ca-
nais grandes e pequenos, contemplando
o desfile da arquitetura lacerada e sóbria
e o colorido diferente que faz de Veneza
uma verdadeira fronteira de raças. Ve-
neza, m e s m o nos dias h u m i d o s e frios, se
apresenta como uma cidade de sol.
Tem-se a impressão de penetrar no
século X I I I ; a vida muda repentinamen-
te de ritmo, os habitantes vivem com a
velocidade dos seus antepassados, e con-
servam a expressão, os gestos, o andar e
o porte da vida que j á passou. A s mulhe-
res freqüentemente usam cabelos com-
pridos, são belas e abrigadas, tristes e
voluptuosas como odaliscas e guardam o
geito e o r o m a n t i s m o das suas ascenden-
tes. Os habitantes se parecem com os
quadros nas galerias, e é fácil visualizar
frades mergulhando nos canais para sal-
var imagens perdidas. A a u s ê n c i a de ruas
faz de Veneza uma cidade reprimida, an-
gustiada e sonolenta.
N i n g u é m pôde passar por Veneza
sem se preocupar com S. M a r c o s . O exi-
bicionismo da famosa catedral é mais que
irritante. Por mais que se deteste e se
MADONA E BAMBINO 219

odeie a tagarelice futil e inutilmente com-


plicada da mediocridade arquitetônica,
a l g u m a coisa exala das rendas e dos bor-
dados de pedra e sugere ao passante in-
sólito, que por ali pairou u m desejo do
homem. N i n g u é m sabe bem que espécie
de desejo é : olha-se para a p a t r a n h a ren-
dada e tem-se a impressão de u m a escul-
tura de m i o l o de p ã o feita por louco (1).
S. M a r c o s d e s p e r t a o apetite, u m apetite
que á primeira vista confunde-se com c
apetite sexual, mas que n ã o o é, os deta-
lhes s ã o , á s vezes, de grande interesse e
de g r a n d e beleza, m a s o c o n j u n t o a c u m u l a
influencias de épocas diferentes. É, no
fundo, uma paranóia arquitetônica, e se
a p r o x i m a do bolo de noiva rendado aceso
e cantando alto, e tem o efeito desagra-
dável de excitar o apetite do observador,
antes mesmo de preocupar a sua inteli-
gência quasi sempre passiva e receptora,
mormente quando o observador pertence
á nobre e despreocupada classe dos tu-
ristas.

(1) V ê r esculturas de m i o l o de p ã o no museu do


Juquery, S. Paulo, exibidas pelo autor na exposição do
Més dos Loucos e das C r i a n ç a s , no Club dos Artistas Mo-
dernos .
220 Os Ossos 00 MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

Não podendo comer S. Marcos, o


observador senta-se n u m dos inúmeros
cafés espalhados ao ar livre pela praça, e
quentando sol em contemplação beata,
mastiga as sombras da catedral em fôr-
ma de bolos com café, enquanto nuvens
de pombos e x e c u t a m o m i l é s i m o v ô o diá-
rio. Sente-se que S. M a r c o s é u m a fôrma
de loucura, mas n ã o se sabe o que pode-
ria s u b s t i t u i - l a p a r a c o m p o r o c o n j u n t o de
uma das praças mais interessantes do
mundo. A ausência do barulho costumaz
das cidades dá á praça de S. M a r c o s u m
aspéto de intimidade; o observador sen-
te-se c o m o e m casa e n ã o n u m a praça pu-
blica. Parece o pateo de u m grande palá-
cio, u m local de e x i b i ç õ e s para a aprecia-
ção intima do doge e seus asseclas.
Muitos outros logares no mundo são
tão culinários quanto S. Marcos, mas S.
M a r c o s destaca-se a mais, p o r q u e é agres-
sivamente culinário; é inquieto, parece se
movimentar e se oferecer á dentada do
visitante, enquanto que o costumaz ro-
cócó encontrado na Europa Central é
passivamente culinário, isto é, espera que
o visitante venha morder, t e m aquela
quasi imobilidade forçada do polípo.
MADONA K BAMBINO 221

Na Itália, o fenômeno Madona e


Bambino é conspicuo por toda a parte;
parece que parir é a inquietação princi-
pal da peninsula. Parir e comer, u m sem
duvida como complemento do outro.
Tem-se a impressão de que os Italianos
comeriam de boa vontade até mesmo os
bambinos paridos pelas mulheres de
seios v o l u m o s o s , e a gente sente que os
próprios seios volumosos das mulheres
prencheram uma função racial de pri-
meira grandeza. P a r a m i m os seios suge-
riam, na sua morfologia, u m aspeto da
própria historia da Itália; a protuberan-
cia feminil era uma necessidade alimen-
tícia da raça, u m centro de p r o d u ç ã o que
se desenvolveu por ser uma coisa salva-
dora da raça, e n ã o pude deixar de asso-
ciar os seios das mulheres que via pas-
sando com os seios das madonas pinta-
das pelos mestres. Que magia tinha sur-
gido na historia para afectar a morfologia
da mulher?
Pensei então que o culto Madona e
Bambino certamente contribuía para fa-
zer da mulher italiana u m elemento de
seios grandes.
222 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DB FL CARVALHO

N a Itália, sente-se palpitar na sua


nudez primitiva e de uma maneira vigo-
rosa, duas grandes modalidades da vida
d o h o m e m : c o m e r e c o p u l a r . C o m e r e co-
pular parece que se confundem; senti
isso sobretudo em Gênova, certa tarde,
quando descia rumo ao cáes. A s ruelas
estreitas me apaixonavam. Embrenhei-
me aventureiro e encantado c o m a profu-
s ã o de luzes; t a n t a luz, t a n t a luz, que me
lembrei da place Blanche, em Montmar-
tre. Era uma associação absurda porque
só tinha da place Blanche, a luz. N a pro-
fusão de ruelas tortas as casas de 5 an-
dares pareciam se contorcer sob a pres-
são de uma corrente continua de gentes
que desciam e subiam e s a í a m de u m a i n -
finidade de lojas minúsculas brilhando
com jóias, macarrão, canetas-tinteiro, sa-
lames, imagens da virgem e toda a gama
da necessidade humana mal acomodada
e empilhada. A s lojas brilham da vitrine
até o fundo. T u d o está cheio; o menor es-
paço ocupado; as coisas se espremem;
parece que umas empurram as outras,
tudo é habitado e superlotado c o m a mer-
cadoria que se confunde c o m as crian-
ç a s , as f r a l d a s e as donas.
MADONA E BAMBINO 223

Varei o f o r m i g u e i r o de gentes e coi-


sas iluminadas e ouvi uma canção triste,
u m lamento com sanfona. Fugi do la-
mento e rumei para o cáes... sempre o
m e s m o m u n d o de gente e de vida; pare-
cia ter vida até mesmo entre os tijolos.
É o cáes, na frente o mar, escuro e
cheio de sombras negras, na fachada luz
até entre as telhas e os caibros. U m
turbilhão de pequenos restaurantes se
acumula pelos porões e se esparrama
pelos primeiros pisos, exibindo t o d o o i n -
terior pelo envidraçado. Por toda a parte
a idéa de vida intensa, o vapor cheiroso
das cosinhas e mulheres gordas limpan-
do, m e c h e n d o e f r i t a n d o sob o brilho da •
p r o f u s ã o de luzes. A vida é a nota domi-
n a n t e ; ela estoura p o r t o d o s os l a d o s ; os
restaurantes se c o n f u n d e m c o m os micto-
r i o s e c o m as m a d o n a s nos nichos de es-
q u i n a e c o m as j a n e l a s cheias de r o u p a s . A
humanidade passa: marinheiros, mulhe-
res, operários, damas elegantes pululam
iluminados, alegres, taciturnos, sonhado-
res.
A vida é t ã o intensa que q u e m passa
tem a impressão que se cosinha e se dá
á luz ao m e s m o tempo. Parece que estão
224 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DE R. CAHVALHO

parindo c cosinhando e que o produto do


parto é a própria comida que estão devo-
rando, e que u m ciclo acelerado predo-
mina. Parece que na f u m a ç a saborosa dos
caldeirões passam tanto os bambinos
c o m o o ravioli e a sopa de peixe.

A cultura e o pensamento do conti-


nente europeu se desenvolveram através
um ponto fraco na peninsula itálica; a
decadência do Império Romano. Esta de-
cadência foi, como veremos, a causa de
todo o desenvolvimento religioso, que do-
minou o continente, e do " t o m fundamen-
t a l " , religioso, que f o r m o u a base do pen-
samento e da animosidade européa.

Desde o século X V que os museus,


as g a l e r i a s e as i g r e j a s d a I t á l i a fornecem
quasi toda a besteira acadêmica que in-
feciona o mundo, e uma proporção exu-
berante da mediocridade que costuma ex-
tasiar os pintores, que se adatam facil-
mente ao dramalhão operatico.
MADONA B BAMBINO 225

M u i t o da verdadeira obra de arte dos


séculos permanece ainda oculta, enquanto
que só a obra preferida e escolhida pela
mediocridade operatica e superficial dos
medalhões, dos papas, dos monarcas que
dominaram o mundo, veio á tona da pu-
blicidade e do conhecimento.
Desde o s é c u l o X V q u e se c o p i a m os
"mestres" italianos, isto é, o que havia
de peor da pintura na Itália. Rubens
mesmo foi vitima dessa moda nefasta
l o g o n o c o m ê ç o d a s u a c a r r e i r a , e as som-
bras dos mestres jamais o abandonaram
até á morte. Os monarcas hespanhoes e
franceses, senhores quasi sempre de pou-
ca imaginação, importavam a pêso de
o u r o as próprias pessoas dos "mestres",
Francisco I , f o i u m dos maiores culpados
pela introdução, na França, da pintura
operatica italiana.
Creou-se, n o m u n d o , a idéa popular e
prejudicial ao pensamento, de que a Itá-
lia h a v i a de fornecer u m m o d ê l o pitorico
para as academias; a grande massa de
mediocridade que povoava as academias
rezou de cór o evangelho, e embalada
pelo entorpecimento da reza tornou-se
irracional e beata.

15
22C! Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DB R. CARVALHO

A pintura italiana é n ã o somente


responsável pelo entorpecimento cere-
bral que se seguiu á sua influencia, mas
também, devido ao seu apêlo voluptuoso
facilmente apreendido pelas massas,^agiu
como restaurador sexual da fé cristã; as
exigências espirituais mais imediatas das
massas eram puramente sexuais e prêsas
á idéa de familia, e á morfologia volu-
ptuosa, naturalista, ao alcance de todos.
A igreja, que tinha herdado do ju-
daísmo a aversão ás imagens e represen-
tações gráficas, era a principio icono-
clasta, e Tertuliano, no século I I denun-
ciava os artistas como sendo pessoas
perversas e de o c u p a ç ã o iníqua. S ó n o sé-
culo V I I I , com a e x c o m u n h ã o do impera-
dor iconoclasta Léo, o Izauro, pelo papa
Gregorio I I e com as afirmações da rai-
nha-mãe Irene, no concilio de Nice, é que
a arte entrou a atuar como auxiliar valo-
rosa do cristianismo. N o entanto, boa
parte da pujança do primitivismo artís-
tico da cristandade tinha sido destruída
pelos iconoclastas; era o f i m do periodo
clássico da arte cristã primitiva.
A inabilidade da arte primitiva tra-
zia consigo sérias vantagens; o artista
MADONA E BAMBINO 227

não era u m individuo que procurava re-


produzir a natureza c o m o ela é vista por
todo o m u n d o , visão m e d í o c r e e de pouca
emoção, mas colocava na reprodução as
suas p r ó p r i a s emoções, destacava apenas
o que a natureza possuia de mais expres-
sivo; o artista, lidava c o m a a l m a das coi-
sas, com o conteúdo da fôrma mais que
com a fôrma. A pintura primitiva, privada
dos efeitos entorpecentes do naturalismo,
pertence ao campo da pintura idealista.
Saindo de u m sentido estético elevado,
ela s ó r e t é m sobre a s u p e r f i c i e os essen-
ciais, a q u i l o que mais expressão dava ao
assunto, concentrando o interesse só no
que h a v i a de e x p r e s s ã o nos objétos e nas
pessoas, enquanto que a pintura natura-
lista e realista, p i n t u r a esta de pouca es-
piritualidade, procurava com cuidado de-
finir a perspectiva e o claro-escuro.
Todo o futuro da arte italiana e da
arte em geral na Europa, toda a animo-
sidade, toda a magia e todo o pensa-
mento europeu, estava preso á luta entre
os dois partidos políticos mais curiosos
e interessantes d o m u n d o , os iconoclastas
e os iconolatras, e que culminou com o
aparecimento da barba no Cristo, e com
228 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DE R. CAEVALHO

a impiantação definitiva da iconolatria


no cristianismo.
Cristo, que até então, tinha perma-
necido sem barba, como demonstram
grande numero de pinturas, e t a m b é m
certas esculturas encontradas no comêço
da éra cristã, passa a ostentar o orna-
mento viril para a maior segurança ani-
mica dos fieis, e o seu prestigio cresce
vertiginosamente. Póde-se dizer que
Cristo começou a ter barba com o desen-
volvimento dos primeiros mosaicos; mas
as imagens encontradas de Cristo sem
barba remontam de perto do seu século
até tão tarde quanto o século X I I . Deve
existir no mundo umas cento e tantas
pinturas e esculturas conhecidas repre-
sentando Cristo sem barba (1).

(1) Algumas das esculturas e p i n t u r a s de Cristo


sem b a r b a :
Sec. I I I , I V — Escultura de Cristo p r é g a n d o , Roma,
Museu C r i s t ã o de Terme.
Sec. I V — Escultura nos s a r c ó f a g o s das arcadas de
Cristo benzendo p ã e s e peixes, museu L a p i d a i r e de Aries.
Sec. I V — Esculturas nos s a r c ó f a g o s de c ê n a s da
p a i x ã o , museu Laterano, R o m a .
Sec. V I — P i n t u r a de Cristo entre arcanjos na apside
de S. V i t a l , Ravena.
Sec. V I — Mosaico m u r a l da pesca milagrosa e a
m u l t i p l i c a ç ã o dos p ã e s , S. A p o l i n a r i o Novo, Ravena.
MADONA E BAMBINO 220

Possivelmente, a barba foi introdu-


zida nas imagens de Cristo n ã o somente
para reforçar os laços afetivos entre a
i m a g e m e o seu adorador, m a s talvez tam-
bém como meio de impor maior respeito
aos destruidores de imagens, e como u m
estorvo aos s e n t i m e n t o s dos iconoclastas,
evitando a expansão dêsses sentimentos
e conseqüente contaminação dos iconola-
tras. Parece que a introdução ou a con-
servação da barba no Cristo foi u m es-
forço da igreja para evitar a dissolução
da própria igreja. A s lutas e as duvidas
do inicio do cristianismo a m e a ç a v a m des-

Sec. V I — Pinturas coptas muraes e apsidaes mos-


trando a Ascenção do Senhor, Bawit, Egito M é d i o .
Sec. V I I I — M i n i a t u r a de Cristo entronizado do
Evangeliario de Godes calco.
Sec. V I I I — Escultura de Cristo, de u m s a r c ô f a g o
bizantino, Estados Unidos.
Sec. I X — Diptico Carolingio de m a r f i m de Lorsch,
Cristo entre os arcanjos, Vaticano, Roma.
Sec. X — M i n i a t u r a de c r u c i f i c a ç ã o , do Sacramento
de Fulda, Staadtbibliothek, M u n i c h .
Sec. X — M i n i a t u r a de Jesus na Cruz do Evangelia-
rio de Oton, Tesouro da Catedral de A q u i s g r á n .
Sec. X — M i n i a t u r a de T r a n s f i g u r a ç ã o de Jesus do
Evangeliario de Oton, I I I , Staadtbibliothek, M u n i c h .
Sec. X — M i n i a t u r a , A lavagem dos p é s em Beta-
nia, do Codex Egberto, Staadtbibliothek, T r é v e r i s .
Sec. X — M i n i a t u r a , Jesus a a C a n a n é a , do Codex
Egberto, Staadtbibliothek, T r é v e r i s .
230 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CAHVAI.HO

truir essa doutrina, e a barba era u m


traço e m o t i v o de grande potencialidade,
como mostra claramente toda a historia,
e portanto a l g u m a coisa apta a atuar efi-
cientemente sobre as m a s s a s q u e reagem
sobretudo pela emoção. A introdução da
barba na imagem de Cristo era u m meio
de reanimar o mito do Deus-pae, que
sempre inspirava terror e impunha medo
e reverencia, concorrendo assim para do-
minar a revolta que crescia, e revivendo
u m processo de m a g i a pelo qual a figura

Sec. X I — P i n t u r a m u r a l , Cristo como j u i z do mun


do, igreja de B u r g f e l d e n .
Sec. X I — M i n i a t u r a , Jesus curando o surdo mudo,
do Evangeliario da catedral de Spira, monasterio de El
Escoriai.
Sec. X I — Coberta de u m l i v r o . Cristo coroado, Mu-
seu de historia da arte, C o l ô n i a .
Sec. X I — M i n i a t u r a de u m evangelho de Colônia,
S e m i n á r i o Conciliar, C o l ô n i a .
Sec. X I — M i n i a t u r a , Cristo manda a p ó s t o l o s pregar
evangelho, do Evangeliario de A b d i n h o f , Kupferstichka-
binett, B e r l i m .
Sec. X I I — Placa em r e l ê v o , Cristo entronisado,
Saint Sermin, Toulouse.
Sec. X I I — M i n i a t u r a , Batismo de Cristo, de u m le-
cionado de Limoges, Biblioteca Nacional, P a r i s .
P i n t u r a de Cristo crucificado, abadia de Sto. Antô-
nio, 2.* capela á esquerda, I n d r e et L o i r e .
Mosaico, C i r c u n c i s ã o de Cristo, S. Marcos, Veneza.
P i n t u r a , Fontaine Sanglante de Jean Bellegambe.
Sec. X X — Escultura m o n u m e n t a l , Ecea Homo, àe
Epstein, Londres.
MADONA E BAMBINO 231

barbada era coisa santa e apropriada ao


c u l t o e aos ritos, era encantada e era uma
reprodução homeopática do gigantismo
do próprio Deus-pae.
A barba ajudaria a esquecer e enco-
brir o ateísmo e a imoralidade que reina-
vam entre os c r i s t ã o s primitivos e que o
sisudo pae da igreja Tertuliano fez tanta
questão de negar. Cristo, com barba, t i -
nha mais prestigio que Cristo sem barba,
não somente p o r q u e se p a r e c i a m a i s com
o próprio Deus-pae, que usava longas
barbas e com os deuses do paganismo,
que eram quasi todos barbados, tinham'
certo parentesco c o m o Deus-pae e exer-
ciam ainda grande influencia sobre as
massas, mas t a m b é m era u m m e i o de exi-
bir no queixo a sua capacidade sexual,
encantando o sexo feminino, e servindo
de padrão ao masculino. Ainda hoje te-
mos o Barba Azul, como manifestação de
exuberância viril.
N o t a m o s que nas lutas c o n t r a os ico-
noclastas, as mulheres eram as mais ar-
dentes e ativas partidárias da conserva-
ção do culto da imagem, tomaram parte
diréta no assassinato dos iconoclastas, e
232 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CAHVALHO

foram o fator decisivo da luta; para a mu-


lher, a imagem era uma recordação se-
xual de primeira grandeza, que pela sua
imobilidade estava sempre pronta a acei-
tar todos os seus desejos, e p o r t a n t o al-
guma coisa própria para ser conservada.
Sobre a i m a g e m , ela a t i r a v a t o d o s os seus
Ímpetos de idealismo, o que era u m meio
tão cômodo e util de acomodar o desejo
de c o m p e n s a ç ã o , exigido pelo seu ser i n -
feriorisado e pelo estado de submissão
ao seu d o n o e m e s t r e , o homem. O apoio
sobre u m a i m a g e m era de m a i s fácil acei-
tação e compreensão; as mulheres não
tinham espirito nem imaginação sufi-
ciente para saciar os seus desejos e m coi-
sas n ã o materiais; elas necessitavam ter
á m ã o uma reprodução homeopática do
seu mundo de emoções domesticas, para
atuar sobre êste e praticar ritos de magia
capaz de elevá-la da sua i n f e r i o r i d a d e .
Cristo cresceu na historia, e nas visi-
nhanças do século V I I I tornou-se viril e
com u m inicio de barba; u m simbolo
apropriado ao lar e p o r t a n t o p r o n t o a re-
ceber a p r o t e ç ã o da m u l h e r . A defesa das
imagens do lar, pela mulher, na grande
MADONA E BAMBINO 2?, 3

luta do século V I I I iria afetar toda a


historia e todo o pensamento subse-
quente.
Agindo dessa f ô r m a , a m u l h e r do s é -
culo V I I I , na peninsula, agia como S A L -
V A D O R A da sua r a ç a , pois que ela colo-
cava em segurança dois simbolos da pro-
creação: o Cristo viril e a Virgem fe-
cunda. Dois simbolos capazes de afetar
seriamente toda a historia da peninsula
e da Europa.
A importância da atitude da mulher
do século V I I I ainda não foi apreciada
no seu justo valor; f o i dessa atitude be-
licosa e decisiva da m u l h e r que nasceram
os grandes tipos românticos e idealisti-
cos, que mais tarde serviram de padrão
para o pensamento de toda a Europa. A
imagem de Cristo, como n ó s a conhece-
mos hoje, é uma representação dos ideais
e do sonho sexual da mulher do século
V I I I . O Cristo de hoje é* u m retrato do
amante que a mulher do século V I I I de-
sejava ter, mesmo como mais tarde as
representações da virgem e da matrona
com o b a m b i n o v i e r a m a s i g n i f i c a r as as-
pirações sexuaes e domesticas dos ho-
mens. A mulher, em todas as épocas da
L>;U Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

sua historia, constróe o seu ideal de


acordo c o m os seus d e s e j o s m a i s ocultos,
que s ã o muitas vezes o contrario daquilo
que c o s t u m a acontecer no mundo da rea-
lidade; o seu grande sofrimento e a sua
condição servil faziam c o m que ela dese-
jasse, para parceiro ideal, u m sêr n ã o so-
mente capaz de satisfazer o ardor dos
seus Ímpetos de sexualismo, mas cuja
aparência seria suficientemente meiga e
branda e o contrario da do seu próprio
marido, para poder assim saciar os seus
desejos de vingança e de castigo que v i -
nham de longe na historia, para que nos
momentos de inferioridade e de tristeza
ela sinta que ainda existe n o m u n d o uma
i m a g e m que é quasi o seu igual, quasi tão
efeminada quanto ela mesma, e sobre a
qual ela pôde atuar á vontade, afim de
compensar a sua inferioridade e de ele-
var o seu E u espesinhado. A aparência
de Cristo surgiu e n t ã o como u m meio de
satisfazer as duas grandes necessidades
da m u l h e r inferiorísada; os ardores amo-
rosos do sexualismo, satisfeitos pela
barba e pelo olhar voluptuoso do sacrifi-
cado, e o desejo que ela t e m de castigar
o macho cruel que era a causa da sua in-
MADONA E BAMBINO 235

ferioridade, satisfeito pela aparência efe-


minada do Cristo que, rebaixado, torna-
se u m q u a s i i g u a l a ela.
A imagem de Cristo nada tem que
vêr, n e m com a existência de Cristo nem
com a própria aparência de Cristo; ela
foi confecionada pela animosidade da
historia; ela é u m produto das necessi-
dades e do t u m u l t o da alma da m u l h e r e
apareceu para satisfazer a êsse tumulto,
mesmo c o m o t o d a s as imagens da histo-
r i a e t o d a s as r e a l i s a ç õ e s d o h o m e m apa-
recem para satisfazer a u m tumulto que
se nutriu em formação durante longos
períodos.
A imagem de Cristo era uma repre-
sentação ideológica dos desejos revolto-
sos d a m u l h e r que a i n d a s o f r i a o j u g o pe-
sado de u m ciclo patriarcal.
Assim foi o homem brutal e violento
castigado pela mulher, e transformado
numa imagem que era uma mostra de
submissão á mulher, numa imagem com
valores h e r m a f r o d i t a s que era masculina-
mente ardente, e que tinha a aparência
meiga e submissa da própria mulher, e
que oferecia á mulher os prazeres do
coito com o sexo oposto; e os prazeres
23fi Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

do homosexualismo. Assim f o i creada a


imagem de Cristo, o amante ideal da
mulher inferiorisada.
Cristo se associa e sexualmente se
identifica com D . Juan, n ã o somente pe-
los seus característicos viris e o seu as-
péto fogoso e ardente, mas t a m b é m pelo
seu a s p é t o efeminado. D . J u a n , diz o pen-
sador portuguez Theophilo Braga, é o
lado amoroso do g ê n i o ocidental (1).
E espalhados pela arte que o h o m e m
produziu, encontram-se inúmeros Cristos
efeminados e e x i b i n d o os desejos da mu-
lher: por exemplo, n u m dos vitraux da
Catedral de Chartres, vê-se u m Cristo
com seios de mulher e quadris efemina-
dos e com o rio Jordão escoando do um-
bigo — u m quasi igual da mulher — e
n u m mosaico representando a Circunci-
s ã o e m S. M a r c o s , V e n e z a , u m b e l o Cristo
de seus 25 anos aparece com o vestido
aberto e exibindo u m penis volumoso em
erecção, e rodeado de mulheres semi-núas
e c o m os seios de f ó r a , e q u e o aguardam
e sem duvida o disputarão no coito.

(1) Vêr, Lendas C r i s t ã s — Theophilo Braga, p . 95.


MADONA E BAMBINO 237

O fenômeno de castigo é observado


não somente da mulher para com o ho-
mem, mas t a m b é m em menor escala do
h o m e m para com a mulher.
Mesmo como a mulher castiga o ho-
m e m efeminizando-o, o h o m e m parece
castigar a mulher masculinizando-a. A
arte sacra está cheia de mulheres com
seios cortados, cabelos cortados, santas
com barbas, etc. O suplicio e o s o f r i m e n t o
o b s e r v a d o n a a r t e de t o d o s os t e m p o s pa-
rece querer transformar a mulher em
homem; vê-se isso claramente, numa es-
tatua de Desid. da Settimano (Sta. T r i -
nitá-Florença) que mostra uma peniten-
ciadissima Maria Madalena que é quasi
u m homem.
As imagens de Cristo, mesmo como
acontece com a literatura sobre Cristo,
vão muito além da hipótese da vida de
Cristo; representam a animosidade e os
desejos dos habitantes da Europa du-
rante u m gránde numero de séculos, e
mostram sobretudo a necessidade que t i -
nha o h o m e m de construir apoios para a
pratica dos seus ritos de magia... ritos
ê s t e s q u e se r e s u m i a m n a d e p r e c i a ç ã o re-
238 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

ciproca da sugestibilidade emanada do


sexo.
E s t a i m a g e m , a g r a n d e c r e a ç ã o e ins-
piração da mulher européa, conservou-se
na historia como u m modêlo de modas,
de quando e m quando influenciando todo
o pensamento continental e atuando
como fetiche "infalível" nos momentos
de fraqueza da população feminina. N ã o
somente ela ajudou a firmar o cristianis-
mo, m a s f o i ela quem sexuou definitiva-
mente a r e l i g i ã o c a t ó l i c a , q u e se transfor-
mou consequentemente na primeira gran-
de força dos tempos modernos.
Todos os movimentos de romantis-
mo, no continente, parecem se aliar de
certo m o d o a essa i m a g e m ; o romantismo
visava o que havia de misterioso, aven-
tureiro, viril, desordenado e profundo na
alma. O romantismo era masoquista. E n -
contrava o prazer no sofrimento — e \
imagem de Cristo apresentava todas
essas qualidades á reacção romântica. A
atitude passiva, submissa e voluptuosa
da imagem, f o ia creadora do espirito de
lealdade e reverencia para c o m a mulher,
foi a instigadora da cavalaria e da honra
que se manifestaram no século X I I . A
MADONA E BAMBINO

própria barba, que sempre foi u m símbolo


de violência, de conquista e de guerra, u m
símbolo de amor e de poder sexual, tor-
nou-se u m atributo do romantismo, en
quanto que a cara raspada pertencia mais
ao clacissismo.
Os guerreiros usavam barbas para
parecerem mais primitivos, mais emoti-
vos, mais românticos e mais capazes de
violência, e em certas épocas o uso da
barba era só permitido 1
aos guerreiros.
Ainda hoje, nos períodos selvagens das
campanhas, os g u e r r e i r o s d e i x a m crescer
a barba e m u i t a s vezes a m o d e l a m e m fôr-
mas curiosas e significativas (1).
Cortar a barba foi tanto uma impo-
sição de castigo e u m sinal de aflição,
quando praticada pelo possuidor, quanto
foi uma manifestação de alegria. Nos
momentos de c a l a m i d a d e e a f l i ç ã o , os r o -
manos d e i x a v a m crescer a barba, enquan-
to que os hebreus a cortavam. Cortar a
barba de u m poderoso sempre f o i consi-
derado castigo dos mais severos, ao qual
a m o r t e era f r e q ü e n t e m e n t e preferida. Os
filósofos gregos, usavam a barba como

(1) Por exemplo, na Guerra C i v i l de 1932 ( B r a s i l ) .


240 OB OSSOS Tftô M U N D O -J- F L A V I O DE R. CARVALHO

indicação de sabedoria. Cortar a barba ou


deixar crescer a barba era u m gesto que
se prendia á aflição e ao desespero; nos
desesperos classicistas, o desespero era
indicado pelo crescimento da barba, e nos
periodos classicistas, o desespero era
a indicação do desespero. Entre os inú-
meros exemplos que ornamentam a his-
toria, u m dos mais famosos é o desespero
e a aflição de Augustus, que após a der-
rota de Varus e a destruição de três le-
giões romanas, deixou crescer a barba e
os cabelos. U m o u t r o e x e m p l o m e n o s im-
portante mas mais recente na historia,
após a "derrota da Alemanha, em 1918, o
imperador, acabrunhado e no exilio deixa
crescer a barba. Portanto, o desespero se
manifesta por uma alteração na aparên-
cia da f i s i o n o m i a d o i n d i v i d u o . O h o m e m
é vaidoso e sente que após uma derrota
não pôde apresentar ao mundo a mesma
cara que tinha na sua época de poderio
e alegria dominadora. Sem duvida, êle
sente que a fisionomia da vitória deve-se
conservar intata na historia, e que o ho-
mem que representava a vitória n ã o deve
ser o mesmo que representa a derrota, a
fisionomia da vitória n ã o pôde ser pro-
MADONA E BAMBINO 241

fanada pela t r e m e n d a h u m i l h a ç ã o de uma


derrota. A aparência da sua cara deve
mudar, pois é mais pela cara que êle se
diferencia dos seus camaradas de sexos,
e é quasi sempre primeiro pela cara que
êle transmite as suas grandes emoções.

Mesmo hoje, a significação da barba


ainda é conspicua. U m a barba de vários
dias é c o n s i d e r a d a u m sinal de d e s l e i x o e
com f r e q ü ê n c i a indica u m a a f l i ç ã o ; os i n -
gleses c o n s i d e r a m u m a falta absoluta de
auto-controle n ã o se ôarbear todos os
dias, os i n g l e s e s são bem comportados e
portanto classicistas.
A barba aparada e tratada perdeu
grande parte da sua significação ances-
tral, mas ainda é usada como meio de
esconder uma inferioridade ou de com-
pensar uma inferioridade, e nos centros
mais atrazados é u m truque para impor
respeito, c o m o acontecia c o m os filósofos
gregos, que n ã o e r a m atrazados — o cas-
tigo de c o r t a r a barba, os b i g o d e s o u ra-
par a cabeia, ainda é praticado nas pe-
nitenciárias, entre os estudantes, e át
u m a m a n e i r a s o l i c i t a , e n t r e as f r e i r a s n o s

16
242 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

conventos. No caso da freira, cortar o ca-


belo é u m castigo sexual, e visa retirar
o próprio sexo da mulher masculinisan-
do-a, e ela e n c o n t r a u m sedativo fácil no
sexualismo do seu amor intenso para o
Cristo.
As oscilações de classicismo e ro-
mantismo na Europa, com excepção dos
filósofos gregos, parecem se caracterisar
pela ausência ou pelo crescimento da
barba. Os grandes periodos românticos
surgem com caras barbadas, selvagens,
com a agressividade primitiva e revolu-
c i o n á r i a , q u e se a s s o c i a a épocas remotas
em que o h o m e m n ã o se barbeava, en-
quanto que o c o m p o r t a m e n t o da cara ras-
pada é u m a d i s c i p l i n a q u e se a d a p t a mais
ao classicismo, á i d é a de r e p e t i ç ã o e stan-
dardisação.
O romântico aparecia no mundo, so-
nhador, primitivo e barbado. A sua ima-
ginação era forte e creadora, e tendo lu-
tado e creado, tendo vencido na luta, êle
impõe a sua creação ao meio e repete-
se... e pouco a pouco êle abandona a sua
casca s e l v a g e m e sente a necessidade de
fazer a barba, sente que será superior
com a cara raspada diariamente, êle pe-
MADONA E BAMBINO 243

netra nos domínios do classicismo e da


repetição, e é só com o advento de uma
derrota que êle, adotará novamente a
barba. A s civilisações, de quando em
quando, sentem a necessidade de £azer
a barba o ü de deixar crescer a barba. Ro-
m a n t i s m o associa-se a desleixo e a abun-
dância de imáginação desregrada; a ex-
cepção das barbas dos filósofos gregos é
provavelmente explicável pelo desejo que
t i n h a m ê s t e s d e se a s s e m e l h a r aos deuses
do paganismo, que eram quasi todos bar-
bados. Luciano n ã o acreditava na magia
dessas barbas e f r e q ü e n t e m e n t e as expu
n h a ao chiste e a caçoada.
Romantismo e classicismo se mani-
festam da seguinte maneira: tudo quanto
é romântico, é inculto, •preocupa-se com
sentimento (conteúdo da fôrma), n ã o se
interessa pela idéa de gosto, é sonhador,
fantástico e visa a novidade, é espontâ-
neo e vem de sentimentos profundos,
(produção rara), e tudo quanto é clássico
é culto, preocupa-se com a fôrma, se in-
teressa pela apuração do gosto, é stan-
dardisado e repetido e visa a produção
em massa, é copiado mecanicamente.
(produção vulgar). Á primeira vista pa-
2U Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

rece que classicismo é o c o n t r a r i o de ro-


manticismo, mas o que realmente acon-
tece é que o classicismo é u m comple-
mento do romanticismo, uma etapa final
da evolução do ímpeto revolucionário ro-
mântico. Reconstróe-se então o seguinte
ciclo: ao r o m a n t i s m o barbado, revolucio-
nário e impetuoso, sucede-se a calma do
classicismo de cara raspada, e uma per-
turbação dessa calma, uma catástrofe e
desespero, traz n o v a m e n t e o aparecimen-
to da barba. O f i m do ciclo se confunde
com o começo do ciclo; a aflição e o de-
s e s p e r o se c o n f u n d e m c o m a g r a n d e emo-
ção interna do revolucionário do começo
do ciclo.
O próprio cristianismo contem tanto
a essência clacissista como a essência do
romantismo nas correntes do apostolado
de Pedro e do revolucionário Paulo. O
primeiro, semita, dogmático e farisaico,
enquanto que Paulo c o m o seu mundo de
sonho e de felicidade, dando inicio a u m
reinado do espirito, baseado na fé, na es-
perança e no amor, mostrava a sua ati-
tude iconoclasta e romântica.
A barba de Cristo tornou-se t ã o im-
portante para saciar a animosidade da
i
MADONA E BAMBINO 245

mulher que mesmo hoje é considerado


um desrespeito representar Cristo sem
barba, e todas as vezes que u m escultor
mais emotivo e mais sensivel que os ou-
tros representa o proféta sem barbas,
u m a onda de i n d i g n a ç ã o surge exibindo a
mediocridade das grandes massas. A
indignação v e m sobretudo das mulheres,
que se sentem ludibriadas no seu sexua-
lismo ancestral. A mesma indignação sur-
ge da m e s m a massa mediocre, quando u m
escultor representa uma Venus de uma
maneira n ã o tradicional (para o estu-
dioso Venus e C r i s t o se identificam no
panteon da idolatria), e uma indignação
menor mas n ã o menos importante surge
na massa cretinizada pelo dogma e pela
politica do dogma, quando os pintores e
escultores modernos representam o cor-
po h u m a n o e a natureza de u m a maneira
não religiosa, chegando até a provocar
uma bula, ou coisa semelhante, do papa
condenando a arte moderna.
Felizmente, os verdadeiros artistas
não se p r e o c u p a m c o m a b u r r i c e estética
que costuma sair das massas e dos mur-
múrios ex-catedras dos papas — o ver-
24f> Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

dadeiro artista é um lider que impõe a


sua opinião.
A i m p o r t â n c i a da barba de Cristo, ou
de u m C r i s t o s e m barba, s ó p ô d e ser ava-
liada quando consideramos as lutas que
se desenrolam no mundo e m torno do
problema da barba, sobretudo no seio do
cléro; as excomunhões mais fulminantes
foram proferidas e m nome da barba por
papas, bispos, monarcas etc.... Basta
mencionar algumas como: a bula de in-
t e r d i ç ã o de G r e g o r i o V I I c o n t r a a barba,
o patriarca Photius excomungando a bar-
ba do papa Nicolau I , a guerra civil da
barba provocada pela e x c o m u n h ã o do
bispo de R o u e n , os estatutos sinodais do
bispo de S. M a i o sobre a barba, e a luta
em torno do problema da barba entre a
igreja grega e a igreja romana, luta esta
que d u r o u mais de oito séculos.
F o i , ao que parece, a barba de Cristo
que salvou o cristianismo da destruição
e do esquecimento, logo no inicio da ico-
nolatria. Sendo uma m o s t r a de romantis-
mo e de exuberância sexual obteve logo
o apoio valioso da mulher. Esta além de
ser o fator decisivo na conservação da
iconolatria, culminando com o golpe da
MADONA E BAMBINO 217

rainha m ã e Irene, sentia no fundo do seu


sêr que a barba era u m a d e m o n s t r a ç ã o de
potência e virilidade selvagem... e assim
sendo era coisa agradável.

A pintura concentrou-se na represen-


tação religiosa do drama da familia; a di-
vinisação do pae, da m ã e , do filho, do
amante da m ã e , e de uma grande legião
de amigos da familia; era o pequeno
mundo da emoção cristã que passava em
cores para o m u r o e a tela, e c o m fôrmas
para o templo. T o d o o pensamento do
povo italiano desenvolveu-se em torno
desse drama divinisado — a fúria do
Deus cornudo apaziguada, esquecida, es-
condida e deturpada pelas aspirações reli-
giosas, a m a n u t e n ç ã o das barbas divinas
como uma demonstração da sabedoria do
chefe de familia, a discreção conveniente
da vida misteriosa e quasi desconhecida
da m ã e que usava o v é o para se ocultar
dos olhares impudicos dos parentes e
amigos, a dôr do Cristo e a desolação
operatica de todos e que ainda hoje se
perpetúa em certa fôrma nas consagra-
248 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

ções dramatico-musicaes do Scala de Mi-

lano.
Os artistas da Itália desenvolveram
toda a sua indole volutuosa, todo o seu
sonho amoroso para pintar a m ã e de
Cristo.
A virgem era a idéa que tinha o ar-
tista, o seu sonho, sobre a mulher, mas
l o g o as r e p r o d u ç õ e s da V i r g e m se torna-
ram r e p r e s e n t a ç õ e s g r á f i c a s dos ideais do
povo italiano sobre a mulher, e algumas
dessas r e p r e s e n t a ç õ e s s ã o de rara beleza
e delicadeza, porque retêm o idealismo
sexual do artista e f r e q ü e n t e m e n t e expri-
mem o drama intimo do próprio artista.
Uma epidemia de Madona e Bam-
bino apoderou-se da peninsula.
Mulheres tentadoras exibiam a sua
carne ardente e m m e m ó r i a da Virgem;
viu-se toda a escala do desejo e do idea-
lismo oscilar historia fóra. O s primitivos,
que conservavam ainda consigo u m a mis-
tura do temperamento clássico e da gran-
de e m o t i v i d a d e africana, f i z e r a m obra va-
liosa e expressiva onde o conteúdo da
fôrma dominava e se sobrepunha á fôr-
ma, obra esta que m a i s tarde caracterisou
toda a produção da idade escura.
MADONA E BAMBINO 249

N o primitivismo da escola toscaria


do século X I I I , encontram-se alguns va-
liosos exemplares de expressionismo.
A vantagem do primitivo era preci-
samente desconhecer os grandes truques
d a p i n t u r a n a t u r a l i s t a , n ã o se preocupan-
do n e m c o m técnica n e m c o m os desejos
de reproduzir a natureza. Ê l e colocava
sobre a tela a emoção. A emoção apare-
cia em evidencia tal, que a f ô r m a e a té-
cnica se localisavam como secundarias.
A candura do primitivo era a candura do
grande artista, aquele que desconhece o
truque e a astucia, era a m e s m a candura
d a c r i a n ç a . N o p r i m i t i v o de t o d a s as é p d ^
cas, a e m o ç ã o era sempre o seu primeiro
impulso, mesmo como é hoje a emoção
que domina o desenho da criança e do
louco, e a produção de certos artistas
avançados. " Naturalmente, a fase da
criança representa u m periodo primitivo
da humanidade, c o m o tive ocasião de de-
monstrar no congresso internacional de
psicotécnica em Praga êste ano (1), e
portanto a criança desconhece perspetiva
e técnica, e n ã o visa reproduzir a natu-

(1) 1934, Setembro.


I

250 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

reza, mas sim emoções provavelmente


simbólicas da natureza, que são sem du-
vida as emoções mais fortes e as mais
sentidas. Mesmo na arte esquematica da
humanidade, o esquema é composto de
traços que representam a maior emoção.
Botticelli era u m a manifestação atá-
vica de arte etrusca. — Esta afirmação,
a principio, n ã o parece muito clara por-
que a pintura d e B o t t i c e l l i n ã o se identi-
fica c o m a arte etrusca, como a conhece-
mos, mas a afirmação será melhor com-
preendida quando considerarmos que a
Toscania, terra de B o t t i c e l l i , 600 anos an-
tes de C r i s t o f a b r i c o u as m a g n í f i c a s cole-
ções de vasos etruscos, e m a i s tarde uma
escultura notável e uma interessantíssi-
ma pintura no interior de t ú m u l o s , e m se-
guida dando origem no século X I I I a uma
escola de p i n t u r a quasi expressionista.
T o d a s essas m a n i f e s t a ç õ e s da Tosca-
nia se a f a s t a m d a a r t e d o r e s t o d a penin-
sula, e parecem sair u m a da outra e pos-
s u e m u m t r a ç o c o m u m : as f ú t e i s emoções
secundarias se a c h a m ausentes. Somente
d o m i n a m as e m o ç õ e s c o s m o g o n i c a s como
a alegria pura e a dôr aguda — demo-
níaco, que tanto caracterisa o etrusco
MADONA E BAMBINO 251

como cosmogonico e como primário, di-


minue em intensidade com o correr dos
séculos, mas sempre conserva a expressão
da sua pureza e o p e r i g o da sua infantili-
dade.
As figuras dos vasos etruscos pos-
suem bastante da graça e do preciosismo
das m u l h e r e s de B o t t i c e l l i , e observamos
que a p r ó p r i a escultura etrusca libertada
como é de detalhes provenientes de emo-
ções secundarias, mostrando apenas as
grandes emoções cosmogonicas, as emo-
ções do começo, se a p r o x i m a da rigidez
e da pureza de u m idealismo final, para-
disiaco, que Botticelli visava. A força
malsã do demoniaco crêa a limpidez do
paradisíaco, conservando quasi a mesma
mascara através os séculos. Parece que
demoniaco e paradisíaco se e n t e n d e m no
mesmo terreno.
O preciosismo de Botticelli n ã o era
f o r m a d o de e m o ç õ e s secundarias mas era
uma acumulação de valores emocionaes
de g r a n d e "sex a p p e a l " e de grande espi-
ritualidade, como por exemplo os cabe-
los, os l á b i o s , os seios, as dobras do ves-
tido. Botticelli conservou na pintura
m u i t o da sua aprendisagem de joalheiro;
252 Os Ossos oo MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

o seu ardor para querer indicar "sex


a p p e a l " é t ã o grande que a sua pintura, ás
vezes parece b u r i l a d a e esculpida com a
emoção dos seus primeiros dias de joa-
lheiro. O idealismo marca todas as suas
obras e a sua vida, u m i m p e t o de maso-
quismo, levou-o mais tarde, sofrendo
grandes privações e abandonando a sua
arte, a seguir u m destruidor da arte pelo
puritanismo, Savonarola. A melancolia e
a graça esguia das suas Virgens é uma
m o s t r a do seu próprio sonho e m matéria
de mulher. O grande artista n ã o mos-
trava nem exprimia nada da decadência
carnal e melodramática e futil que logo
em seguida dominaria a peninsula.
Com Botticelli terminava a grande
oportunidade da arte italiana, desapare-
cia toda a tumultuosa emoção primaria
interior que a técnica simples, despre-
tenciosa e sem truques fazia a principio
dominar a fôrma, como acontecia com a
escultura e pintura etrusca, e e m seguida
transbordar por cima da fôrma e m calor
africano, como c o m a pintura toscana do
século X I I I . A pintura avançava pelo
mesmo caminho que tinha passado a es-
cultura, i s t o é, d e s c o b r i a emoções secun-
MADONA E BAMBINO 253

darias, e se deixava dominar por estas


emoções; a partir do século X V todas as
emoções cosmogonicas ficam encobertas
e escondidas pelos detalhes futeis das
emoções secundarias. Repete-se sôbre a
tela o d r a m a da escultura clássica.

O dramalhão, Madona-Bambino e
S a n t i i n v a d e e e m o c i o n a os c o r a ç õ e s sim-
ples e de fácil contentamento dos inspi-
rados, e domina epidemicamente a pe-
ninsula; uma imaginação poética carnal
e de baixa categoria desenvolveu-se. V i -
mos multidões de homens nus, barbados
com cabeças torcidas para cima em êx-
tase olhando para u m buraco no céo ou
em suplica a uma Madona, toda uma va-
riedade de homens alados, cherubins ro-
sados e m g e s t i c u l a ç ã o operatica e e m v ô o
inocente entre as nuvens, anjos, virgens,
santos e padres, proliferavam rapida-
mente pelos muros, pelas abobadas, es-
voaçando em panos e flores, e em con-
tato uns com os outros e parecia que o
munido era todo feito de carne... por
toda a parte membros que se cruzavam
e entrelaçavam...
25 \ Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

Aquilo mesmo que os criticos deno-


minam renascimento, como depreciação
á arte primitiva, o realismo do século
X V I I , nada m a i s era s e n ã o u m a decadên-
cia. Vimos as telas fecundas de Rubens
j o r r a n d o s ê r e s h u m a n o s p o r t o d o s os can-
tos do espaço, o próprio equilibrio do
m u n d o era feito c o m carne, R u b e n s acha-
v a q u e s ó a c a r n e p o d i a e q u i l i b r a r as suas
composições, o calor intrauterino espa-
lhava-se e tudo envolvia.
A opera religiosa dominava; a ima-
ginação febril e fraca de soberanos es-
trangeiros se impressionava com o dra-
malhão italiano, Madonas e Bambinos
proliferaram... Vimos o fenômeno espa-
nhol, a prostração extatica marcadamen-
te anormal das télas de Jacinto Espi-
nosa, Francisco Ribalta, Luiz Tristan e
Francisco Zurbarán.
A civilisação aumentava a sua sen-
sibilidade, mas destruía as grandes for-
ças primitivas, os detalhes e as emoções
futeis encobriam o sentido "colossal" da
natureza intima do assunto... os homens
n ã o s e n t i a m m a i s a s u a o r i g e m e as gran-
des f o r ç a s cio s e u começo.
MADONA E BAMBTNO 255

As emoções secundarias crêam a


nossa burrice de civilisados... Hoje ain-
da mal compreendemos a significação e
o valor da pintura de todos os tempos e
da arte que o h o m e m deixou.

Parece haver na arte qualquer coisa


de significativo e de importante que vae
além do prazer visual. Os homens não
pintavam Madona e Bambino por sim-
ples acaso; atraz da manifestação havia
a causa, a força motriz... que força era
esta?... o que tinha acontecido á civi-
lisação para que os homens de uma pe-
ninsula pintassem Madona e Bambino
epidemicamente?...
Que drama era êsse, que fazia da re-
p r o d u ç ã o na t é l a das m a n d i n g a s da fami-
lia, u m processo de magia de primeira
grandeza?...
N ã o era uma força individual, como
os e s f o r ç o s de u m possivel Cristo... Era
uma força atraz da raça, que envolvia o
equilibrio e a segurança de toda a penin-
sula. N ã o era uma necessidade universal,
pois que outras civilisações simultâneas
não pintavam Madona e Bambino com a
2ófi Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

intensidade e o ardor dos povos da pe-


ninsula.
Para responder satisfatoriamente,
precisamos, em primeiro logar, fazer al-
gumas considerações sobre a grande im-
portância do processo de magia no de-
senrolar da vida do homem.
Desde o seu começo até hoje, o ho-
mem se utilisa de magia para saciar a
movimentação da sua animosidade (1).
Toda pintura, escultura e arquitetura são
manifestações de magia; são a constru-
ção plástica ou em cores de u m mundo,
que representa u m desejo intenso pro-
fundo, desejo êste que precisa ser reali-
zado. E sobre a obra de arte, a magia é
exercida por meio de ritos, como nos
templos e igrejas, olhares, contemplação
beatica, etc.... e todos êstes visam tor-
nar a imagem simpática ao individuo,
isto é visam o controle da imagem e da
obra de arte pelo individuo.
O desejo imprescindível de realisar,
que está na creação artística, é uma ma-
n i f e s t a ç ã o das necessidades da r a ç a , e faz

(1) V ê r a rainha teoria f e t i c h i s t a da v i d a em " E x -


periência n . ° 2 " .
MADONA E BAMBINO 257

parte do mecanismo psiGonevrotico de


toda a historia de u m povo. Portanto,
quando n ó s conhecemos uma dada mani-
festação artistica, podemos, invertendo
o raciocinio, determinar a causa racial
dessa m a n i f e s t a ç ã o e até mesmo os mo-
tivos de ordem psicológica que levaram
ao a p a r e c i m e n t o dessa manifestação.
A epidemia pictorica Madona e Bam-
bino estava enraizada ás essências espi-
rituais e á s c o m p e n s a ç õ e s materiais mais
profundas da historia da peninsula.

O Império Romano, após o seu pe-


ríodo de grandeza e potência, entrava,
com os primeiros séculos da éra cristã,
em plena fase de desgraça, a decadência
e o azar imperavam juntos; as legiões
eram derrotadas, os i m p e r a d o r e s assassi-
n a d o s se s u c e d i a m r a p i d a m e n t e , as novas
fôrmas de governo falhavam; no século
I I I uma peste que durou 15 a n o s abatia
a metade da população do Império, a
perda da Espanha, as constantes lutas, a
dispersão do Império e uma segunda
peste que, n o s é c u l o X I V , reduzida a po-
pulação de Roma a 20.000 habitantes,

17
258 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

juntamente com as lutas dêsse século e


a confusão do Grande Schismo, tudo, t i -
nha despovoado brutalmente a peninsula.
O periodo de desgraças iniciado com
a quéda do Império Romano, tinha-se
prolongado até fins do século X I V , e só
no inicio do século X V , com o papa Eu-
genius I V , deu-se a restauração e o re- i
s u r g i m e n t o de Roma.
Vemos, que o grande problema da
peninsula era o repovoamento do solo, e
o repovoamento era o grande instinto de
defesa racial, era uma exigência psicoge-
netica para a conservação da raça e da
cultura.
Já no século V I I I , o instinto ma-
terno da mulher, lutando contra os ico-
noclastas, salvava da sanha destruidora
as imagens dos grandes simbolos da
procreação; a Virgem e o macho viril.
Como geradora da vida, que é a mulher,
ela tinha a predisposição sempre viva
para sentir mexer dentro de si o instinto
protetor e salvador dos povos.
A "finale" bacanalica do Império
Romano havia tripudiado com o sexo da
fêmea, o sadismo da grandeza e os con-
seqüentes desastres haviam despovoado
MADONA E BAMTINO 25t)

o paiz, o produto fabricado pela fêmea


desaparecia, o povo peninsular sentia no
seu inconsciente que só uma fôrma de
reerguimento da fêmea poderia reerguer
a raça que desaparecia, e por isso uma
adoração e uma reverencia ao sexo da
fêmea vinha como uma reação natural, e
aparecia precisamente no século I V , isto
é, l o g o a p ó s u m a grande desgraça, a pes-
te d o s é c u l o I I I . O culto da Virgem ini-
ciado no século I V , e que era u m retorno
ao v e l h o c u l t o d a v a g i n a , p r e e n c h i a todas
as n e c e s s i d a d e s a n i m i c a s d a p e n i n s u l a . A
sua imposição era tarefa solicitada pelo
instinto de segurança racial que visa
sempre o repovoamento. A virgem se de-
senvolveu carnal, pudica, eterea, vapo-
rosa, velada, misteriosa, matrona, adul-
terina, sedutora, e no I V século, por
graça especial das massas, ela transfor-
ma-se realmente em virgem, e quando al-
cança o limiar do s é c u l o V I ela j á é san-
tificada.
A l é m da função lógica de repovoa-
mento, no momento de perigo, dois ou-
tros fatores de m e n o r importância ajuda-
ram a conservar a Virgem, como símbolo
de fartura sexual apropriado a grande
2fiO Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

magia, que dominaria a peninsula e mais


tarde toda a E u r o p a : o partido árabe dos
antidikomarianitas (1) do século I V que
sustentava ser a " V i r g e m " u m especi-
men prolifero, e o próprio sonho amoroso
do homem, função da sua crueldade, e
que desejava uma mulher de aspéto in-
táto, eternamente virgem, e ao mesmo
tempo capaz de povoar o mundo.
O sadismo sanguinário do Império
Romano, das lutas e das pestes, era em
essência similar ao i m p u l s o sadista do
homem primitivo patriarcal, que destruia
o primogênito. S ó u m a seria a solução ló-
gica: u m maior respeito ao produto da
fêmea, uma especial reverencia e adora-
ção ao primogênito, a reverencia salva-
d o r a d a e s p é c i e , q u e se m a n i f e s t o u t a n t a s
vezes na historia, o que significa a Ado-
ração ao Menino Jesus, registrada farta-
mente pela arte. O sentimento de matar
o primogênito aparece antiteticamente
como o sentimento de adorar o primogê-
nito era uma medida de primeira neces-

(1) Os a n t i d i k o m a r i a n i t a s do século I V eram de


o p i n i ã o que a Virgem t i n h a t i d o m u i t o s f i l h o s com S.
J o s é . Por pensarem assim f o r a m t a m b é m declarados he-
réticos Helvetius e o bispo Berosus.
MADONA E BAMBINO 261

sidade, importa pela astucia da m ã e ; o


pai primitivo que matava o primogênito
aparece adorando êste primogênito na
pessoa do m e n i n o Jesus.
Esta necessidade, imposta pela mu-
lher, é t ã o p r e m e n t e para salvar a raça (e
ás vezes, na evolução da humanidade, a
espécie) que encontramos até mesmo os
poderosos prostrados aos p é s do menino
Jesus e da Virgem: a adoração dos reis
Magos. A vontade da mulher é tão forte
e t ã o eficaz, que os reis da terra se cur-
vam em obediência e respeito ao seu pro- •
duto.
O "soi disant" mito cristão, que na
realidade tinha sido calcado dos hábitos
mais antigos das civilisações mais primi-
t i v a s d o m u n d o ( 1 ) , se adaptava admira-
velmente ás condições da peninsula.
A necessidade natural de repovoa-
mento do solo pelo mito Madona e Bam-
bino, manifesta-se claramente em toda
arte; a grande filharada da Madona apa-
rece sob a fôrma de cabeças de crianças

(1) Vêr " O Mecanismo da E m o ç ã o Amorosa", do


autor, a parte que se refere a Leuaniua.
262 Cs Ossos DO MUNDO — F L A V I O DIÍ R. CARVALHO

jorrando em abundância da extremidade


da saia. A Virgem d á a luz a u m mundo.
Todas as representações, na arte,
da I m a c u l a d a Concepção, são representa-
ções de partos prodigiosos, onde a Vir-
gem geralmente de p é m a n t é m a sua apa-
rência virgem, ao mesmo tempo que a
p r o f u s ã o d e c r i a n ç a s se e s p a l h a p e l o s pés
s a i n d o da saia. A famosa Imaculada Con-
cepção de Murilo é típica dêsse povoa-
mento do m u n d o ; nela observamos a ex-
p r e s s ã o de g r a n d e d ô r da Imaculada Vir-
gem, no momento mesmo em que as
crianças surgem dos p é s da saia. O mes-
mo fenômeno de parto é observado na
Imaculada Concepção de Alonso Cano,
catedral de Granada, e na V i r g e m do Ro-
sário do mesmo autor, catedral de Mala-
ga, na I m a c u l a d a Concepção de J o s é A n -
tolinez, convento das Joanas e muitos
outros.
Nas igrejas do nosso interior e das
capitais, freqüentemente, as imagens da
Virgem — t a n t o as m a i s a n t i g a s datando
do século X V I e X V I I como as de hoje
— mostram a virgem em p é dando á luz
a uma porção de crianças que surgem da
parte de baixo da saia.
MADONA E BAMBINO 263

A Virgem e o Menino de Mante-


gna (1) simbolisam claramente a grande
fecundidade da mulher de Deus, pois,
mesmo após ter concebido a criança pre-
dileta, a divina senhora continua em fôr-
ma clássica dando a luz a uma profusão
de crianças. A pintura de Mantegna é
altamente elucidativa do ponto de vista
psicopatologico (2).

Estabelece-se d e f i n i t i v a m e n t e que f i -
cou observado que todos os quadros re-
presentando a Concepção da Virgem,
mostram quasi sempre, conspicuamente,
de uma maneira inconsciente e não pre-

(1) Se achava na coleção do p r í n c i p e T r i v u l z i o , em


Milão, p o r é m recentemente f o i adquirida por u m grupo
de financistas piemonteses, para a cidade de T u r i m .
(2) Para melhor orientar o leitor passo a citar mais
algumas das i n ú m e r a s obras, onde a Virgem se apresenta
claramente como a grande povoadora do m u n d o :
A Assunção de Sta. Catarina, (1660) Melchor Cafá,
relevo de m á r m o r e no altar m o r de Sta. Catarina de
Sena, Roma.
Madona com Santos, (1592) Annibale Carraci, L o u -
vre, Paris.
Madona com Santos, (1614) Giacomo Cavedoni, P i -
nacoteca de B o l o n h a .
A Virgem e m Gloria com Santos, (1633) Pietro da
Cortona, Santa Maria, em Vallicella, Roma.
A A n u n c i a ç ã o , (1616) Guido Reni, San Ambrosia,
Gênova.
264 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

meditada, u m a cena de parto c o m grande


numero de crianças que acabam de sair
da citada v i r g e m . E s t a ação inconsciente
do artista, que se repetiu epidemicamen-
te, t e m g r a n d e importância para o conhe-
cimento dos "desejos" da historia.

Já nas pinturas da Anunciação, a


Virgem e o ambiente se manifestam de
outra maneira: a cena é uma cena de
coito entre a V i r g e m e o Deus Pai, a vir-
g e m aparece quasi sempre numa attitude
envergonhada de cabeça baixa como na
A n u n c i a ç ã o de A l o n s o Cano, na Catedral
de Granada, ou bem c o m o rosto radiante
de gozo e da alegria, de uma cócega so-
licitada, como n u m a i m a g e m da Anuncia-
ção em pedra na catedral de Ratisbona,
ou bem exibindo a expressão do extasis
peculiar ao coito, c o m o n u m a imagem de
pedra na catedral de Uberlingen. Nas
pinturas da A n u n c i a ç ã o , o penis do Deus
é representado pelo Espirito Santo pene-
trando na Virgem; á s vezes é uma espé-
cie de v o m i t o s a i n d o da b o c a d o D e u s que
penetra na Virgem. N a Anunciação de
i
MADONA E BAMBINO 265

Cláudio Coelho, na Igreja do convento


d e S. P l á c i d o , Madrid, a Virgem acha-se
em baixo, e m cima vê-se u m deus barbado
rodeado de crianças e evidentemente
saindo dêsse deus u m espirito santo en-
caminha-se para penetrar na Virgem.
Observa-se que, tanto nas pinturas
da A n u n c i a ç ã o , como nas da Concepção,
o desejo de povoamento do mundo é cla-
ramente indicado pelo elevado numero
de crianças. Nas pinturas da Concepção
as crianças acham-se em baixo dos pés
da Virgem e saindo da saia dessa se-
nhora, enquanto que nas pinturas da
Anunciação as crianças se encontram na
parte superior do quadro, e m cima da ca-
beça da Virgem, evidentemente nô céo,
e olhando c o m ternura para esta como se
estivessem com vontade de penetrar e se
localisar dentro dela.
Outras pinturas, como a Visão de S.
Francisco, de Vicente Carducho (Museu
de Budapest), mostram a angustia ope-
r a t i c a q u e se m a n i f e s t a p e l a d ô r d o parto
e a da Imaculada Concepção, de Fran-
cisco P a c h e c o (catedral de Sevilha) mos-
tra uma lua saindo de baixo da saia —
2#6 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

freqüentemente a Virgem é representada


em c i m a de u m a lua. A lua é u m simbolo
imemoravel da vagina, tanto no vale do
Amazonas como na África e na Asia, e,
de maneira mais disfarçada, mesmo na
Europa. As emoções inconscientes dos
pintores iconográficos d ã o o verdadeiro
significado da religião, que é u m signi-
ficado sexual.

A pintura italiana, toda ela marcada


do traço epidêmico Madona e Bambino,
era pintura para as igrejas e, portanto,
era p i n t u r a p a r a as m a s s a s . C o m o t a l , era
pintura operatica, com acentuada decla-
maçãb lírica. A experiência de todos os
tempos mostra que a opera é o espetáculo
predileto das massas, desde os primeiros
dramas sagrados do século V , como as
Virgens Loucas e as Virgens B e m Com-
portadas, a t é o sec. X V , que marca a im-
plantação definitiva da opera no espirito
nacional da peninsula. A opera girou em
torno do problema sexual religioso, Deus,
Filho, Espirito Santo, Virgem, que era o
drama lírico do pequeno mundo da fami-
MADONA E BAMBINO* 207

lia e do grupo, e portanto acessivei e co-


m u m á compreensão das massas.
A opera, na sua origem, Missa Can-
tada, era u m canto á vagina, provavel-
mente á vagina da Santa Madre Igreja,
q u e se c o n f u n d e c o m a v a g i n a da Virgem
Maria — era uma suplica ao sexo que se
revestia com opas, cruzes, palios e olha-
res ternos.
Os grandes gestos de adoração e de
arrependimento f o r m a m a base da gesti-
culação operatica e da declamação lirica,
e o canto dentro da igreja ou na porta da
Santa M a d r e Igreja é u m canto á vagina.
que visa tornar esta simpática aos fieis.
Não somente as pinturas e imagens da
Virgem são utilizadas pelos fieis no pro-
cesso de m a g i a e simpatia, mas a própria
arquitetura da Santa Madre Igreja é uma
representação do poder fecundo da Gran-
de M ã e , e recebe o c â n t i c o e a m i m i c a dos
fieis e dos sacerdotes como u m espetá-
culo encantador, uma mostra de submis-
s ã o e, p o r t a n t o , de amizade que transfor-
ma a Santa Madre e Virgem n u m ser
acoihedor e c a p a z de a b r i r as suas portas,
2í>.X Os Ossos no MUNDO — FLAVIO nE R. CARVALHO

ou a sua vagina, para a penetração dos

fieis (1).
O edificio da igreja como represen-
t a ç ã o da m u l h e r e da V i r g e m é confirma-
do, de uma maneira inconsciente, por
esta s a u d a ç ã o de S ã o Francisco de Assis
á "bemaventurada V i r g e m " ; S ã o Fran-
cisco referindo-se á Virgem vociferava:
"Salve Palácio de Deus. Salve, taberna-
culo de Deus. Salve M a d r e de Deus!"
A missa cantada, o grande canto á
vagina, torna-se o protótipo da opera.
A origem religiosa e peninsular da
opera n ã o quer dizer que n ã o t e m havido
outros cânticos á vagina e m outras civi-
lisações anteriores, mas significa apenas
que a opera que se desenvolveu através
das cerimonias religiosas na peninsula,
e que no s é c u l o X V c o m e ç o u a influenciar
a arte e o comportamento de toda a Eu-
ropa, era plasmada no lirismo sexual da
familia desta peninsula, e nos sentimen-
tos de inferioridade que a decadência do

(1) A p s i c a n á l i s e demonstra claramente que tanto


a i g r e j a como as suas portas s ã o r e p r e s e n t a ç õ e s do sexo
da f ê m e a . A mulher como imagem da i g r e j a se acha cla-
ramente representada n u m afresco da catacumba de S.
Caiíxto mostrando a c o n s a g r a ç ã o eucaristica.
MADONA B BAMBINO 269

Império Romano havia creado e desen-


volvido na peninsula.
Seis s é c u l o s antes de Cristo, Eschylo
o "inventor" (1) da mascara e do manto
trágico e o introdutor do dialogo decla-
mado e ritmado, havia já colocado em
cena os m i s t é r i o s da grande deusa.
A missa cantada na sua origem é
uma cerimonia noturna e na realidade era
uma representação do habito que tinha o
homem de cantar á sua fêmea, antes de
dormir, e durante a frugal e ultima ceia
do dia, semelhante canto visava excitar
a fêmea e torná-la amena e apropriada
aps seus desejos. Observamos de passa-
gem que as origens da missa são retra-
çadas pelos católicos ás reuniões notur-
nas dos apóstolos, para comemorarem a
ultima ceia com Cristo no Cenaculo, e
que e m certo afresco na catacumba de S.
Calixto, representando o sacrificio da

(1) Segundo Horacio, Eschylo é o inventor da mas-


cara, mas as c o n s i d e r a ç õ e s e t n o g r á f i c a s de h o j e parecem
colocar a origem da mascara ou na Á f r i c a o u na Asia.
O autor acha que a origem da mascara n ã o é uma ques-
tão g e o g r á f i c a mas sim psicológica e religiosa que apa-.
rece e desapparece nas c i v i l i s a ç õ e s . A mascara p ô d e mes-
mo ter surgido simultaneamente em muitos logares.
27f> Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O OE R. CARVALHO

missa, vemos uma ceia frugal e ao lado


uma m u l h e r que simbolisa a igreja.
A gesticulação amorosa á mulher,
precedida e acompanhada dos cânticos
encantadores, e realizada sempre na hora
do crepúsculo e das sombras da noite,
hora apropriada ao coito, é o cerimonial
que na ordem etnológica precede o culto
da vagina e mais tarde o ritual da missa
com a prece cantada, e que deu origem
ao sentimentalismo operatico e á magia
executada epidemicamente sobre as pin-
turas e as i m a g e n s da Virgem.
Todos nós conhecemos a expressão
popular brasileira "cantata", expressão
eminentemente sugestiva no caso em
discussão e cujo áto relembrando u m cân-
tico a principio, u m cântico que visava
tornar a fêmea acessivel aos desejos do
macho, hoje significa qualquer processo
de engodo tal como caricias, promessas,
olhares, etc, capazes de capturar o con-
sentimento da fêmea. A s serenatas visa-
vam u m f i m análogo.
É bem provável que o canto á vagina
e a declamação lirica sejam anteriores á
manifestação pictorica, mesmo porque
semelhante canto pôde perfeitamente
MADONA K BAMBINO 271

pertencer a uma época que indicaria o


inicio do uso das cordas vocais. E m todo
o caso, parece que os processos da histo-
ria se repetem em outras escalas, obser-
vando-se, na Itália, que o periodo de
grande desenvolvimento da opera deu-se
no século X V e precede de dois séculos
o periodo agudo da pintura realista e ope-
ratica do século X V I I na Europa, o que
mostra que a opera levou de u m a dois sé-
culos para contaminar a pintura. U m
exame da iconografia da V i r g e m desde os
primeiros séculos da era cristã, revela
que n o inicio a " v i r g e m " era u m a mulher
potente sem auréola, apenas uma repre-
sentação simples do seu sexo, á espera
do coito, e escutando as imprecações so-
noras e movimentadas do pretendente a
uma noite de nupcias — essa era a mu-
lher do banquete eucaristico, da missa
privada a dois, na pintura da catacumba
d e S. C a l i x t o , era ela o f u t u r o s i m b o l o da
igreja cristã. Pouco a pouco ela se torna
santificada e pura, e mais apropriada a
escutar o cântico de desespero e de soli-
citude do homem, a sua carreira é bri-
lhante e antecipa sob fôrma religiosa o
que o feminismo mais tarde clamará
272 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

como direito social, a sua pureza e o seu


sofrimento são confecionados quasi sob
medida, como u m aviso contra u m a nova
manifestação sadista.
Esta senhora que precisou de quatro
s é c u l o s p a r a se t o r n a r r a s o a v e l m e n t e vir-
gem — sem duvida devido á importância
da sua m i s s ã o s a l v a d o r a — e que era psi-
cologicamente e morfologicamente a úni-
ca "salvadora" possivel (1), revivendo o
antigo culto da vagina e de uma deusa,
introduzia no ocidente uma nova idéa: a
reverencia e a apreciação dos valores da
mulher. O ocidente começa a apreciar
uma coisa que n ã o t i n h a antes percebido
direito; o valor do engodo da m u l h e r e a
preciosidade que ela sugere. Póde-se di-
zer que o culto da virgem representa os
primeiros indicios do feminismo no oci-
dente. Aos poucos a V i r g e m é ornamen-
tada e acariciada como uma boneca pre-
ciosa, é a e t a p a e m q u e a m u l h e r se apre-
senta sedutora, sugestiva e dominadora
dos fieis, é o periodo de astucia da histo-

(1) Vêr a função da mulher como salvadora da


espécie no meu l i v r o " O Mecanismo da E m o ç ã o Amo-
rosa " .

i
MADONA K BAMBINO 273

ria da mulher, periodo logo anterior ao


seu f u t u r o d o m i n i o m á s c u l o e severo.
Com o canto á m u l h e r nas cerimonias
da hora do crepúsculo e mais tarde na
missa cantada, a igreja cristã dá origem
á opera na peninsula. É interessante no-
tar que na evolução do espetáculo litur-
gico da missa, a igreja só começa a dar á
luz ao teatro propriamente, entre o sé-
culo X I I I e X I V , i s t o é, l o g o a p ó s u m pe-
riodo de depreciação intensa dos valores
místicos, após uma época em que o povo
caçoava dos mistérios primitivos, e em
que nas festas do asno ouviam-se os hi-
n i d o s d o a n i m a l se c o n f u n d i r e m aos cân-
ticos da missa.
O teatro destaca-se definitivamente
da l i t u r g i a quando a liturgia se t o r n a de-
preciada pelo chiste e pela chalaça. O
parto e o processo de separação v ê m
como conseqüência de u m estado inferior.
A e x p r e s s ã o teatral que residia dentro da
igreja, e que executava uma mímica e u m
cântico apropriados á escuridão intra-
u t e r i n a —- m í m i c a encolhida e fetal onde
os s o n s s ã o m u r m ú r i o s de u m m u n d o dis-
tante, — passa a executar uma nova mí-
mica e u m novo cântico fóra e defronte

18
274 Os Ossos no MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

da porta da igreja. Não é mais o homem


encolhido em m u r m ú r i o s que ouve o som
cristalino distante, êle t e m novos gestos,
a gesticulação da alegria e da luz, êle le-
vantou-se, é erecto e samba no sol, a sua
atitude mostra ainda a saudade da escuri-
dão e o medo da luz, o seu espetáculo é
mágico e dirige-se ao sexo mesmo do
simbolo da igreja. Saindo do utero o ator
conserva ainda uma posição agachada e
samba como criança quando contempla o
orificio vaginal, a porta da igreja exibe
a sombra acolhedora que o t o r n a r á invisí-
vel no momento do perigo.
Esta mímica cantada na frente das
igrejas do século X I I era de c a r á t e r semi-
liturgico e mostra ser u m estado inter-
mediário entre o teatro leigo e o espetá-
culo sagrado das sombras do utero da
Santa Madre Igreja.
Encontramos assim, na evolução do
espectaculo teatral na peninsula uma re-
produção da cêna do parto e da vida do
homem.
Esta evolução pôde ser classificada
em quatro fases distintas:
1) Período intra-uterino, represen-
tado pelos dramas sagrados do século V ,
MADONA E BAMBINO 275

que precediam ou se seguiam ás cerimo-


nias do culto, executados dentro do utero
da Santa Madre (dentro da igreja).

2) Periodo das dores e da dissidên-


cia: entre o século X I e o século X V apa-
r e c e m os p r i m e i r o s indicios da f u t u r a se-
paração, o chiste e a chalaça dos valores
misticos provocam u m estado de inferio-
ridade entumecente. Dá-se a expulsão.

3) Vida infantil diante da vagina


materna: os dramas semi-liturgicos do
século X I I representados diante da en-
trada da igreja. Encontramos u m para-
lelo no espetáculo do Maracatú, que no
Norte do Brasil ainda é cantado e dan-
sado na frente da porta da igreja, e nas
dansas dos padres etíopes ainda hoje na
frente da igreja, e nas dansas praticadas
em tempos idos pelos sacerdotes judeus
defronte ao templo.

4) Puberdade e liberdade: a gloria


do m u n d o do sol e da luz afasta definiti-
vamente o ator para longe da vagina ma-
terna ou da porta da igreja; entre o sé-
culo X I I I e o século X I V o teatro des-
taca-se por completo da liturgia.
'JTTi Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

O periodo agudo da pintura opera-


tica é o século X V I I e póde-se dizer que
êste periodo começou nos meiados ou
fins do século X V , isto é, l o g o depois da
separação do teatro da igreja que se deu
entre o século X I I I e o s é c u l o X I V .É um
fáto significativo e parece demonstrar
em alguma fôrma que a exuberencia da
pintura operatica é u m a manifestação de
saudade da grande e potente vagina, de
pezar pelo afastamento da porta da
igreja, os atores n ã o executam mais a
mimica dos grandes dias diante da fa-
chada da Santa Madre, levam as suas
emoções para o palco e o sentimento cí-
clico da historia por meio de atitudes
nostálgicas perpetúa o seu tumulto em
lirismo exagerado na pintura. Parece ha-
ver u m paralelo entre a saudade provo-
cada por êsse processo de afastamento e
a saudade do camponez afastado na mon-
tanha e que crêa u m mapa do seu campo
cultivado — n ã o pôde haver duvida que
a pintura operatica é uma expressão
aguda de magia e de saudade e é u m
mapa das emoções sexuaes da segurança
da peninsula e da exuberante materni-
dade da grande Deusa o u da Santa Madre
MADONA E BAMHINÓ

que aparece no momento preciso para


garantir essa segurança por meio de
magia.
A pintura operatica n ã o são apenas
as representações de parto abundante
mas é t a m b é m toda a ardente gesticula-
ção religiosa que marca tão definida-
mente o e s p e t á c u l o sacro e que a p ó s o sé-
culo X V se transportou para o palco do
teatro e consequentemente para a opera.
É verdade que a gesticulação religiosa
tem suas raizes nas emoções do parto e
no valor do p r o d u t o da mulher.

Iniciando como uma mulher vulgar e


prolifera e a p ó s ter-se tornado v i r g e m no
século I V , a Nossa Senhora ou a Santa
Madre, leva uns nove séculos mais ou
menos para começar os partos abundan-
tes que atingem o seu auge pitorico no
século X V I I .
Êsse exagerado instinto materno
após ter servido magicamente ao repo-
voamento da peninsula, reflete-se na pes-
soa d o c h e f e d a i g r e j a , m a s só manifesta-
se n a h i s t o r i a d o p a p a d o após o seu apa-
recimento pitorico. É u m outro processo
$78 Os Ossos DO MUNDO — F L A V I O DE It. CARVALHO

de magia da historia; a animosidade sal-


vadora da Virgem e Santa Madre, acaba
contaminando a própria pessoa do Papa.
O papa torna-se uma espécie de Grande
Mãe pacifica e fecunda. N ã o creio que o
Papa se torne verdadeiramente uma
"grande M ã e " antes do inicio do século
X V I I I — o clamor da bofetada aplicada
por Colonna sobre as faces do Papa Bo-
nifácio V I I I muito contribui para efemi-
nisar o papa, prepará-lo e guiá-lo no ca-
minho de papa-grande m ã e , mas foi a
sugestibilidade pitorica e o intenso pro-
cesso de magia dos grandes partos da
Santa Madre Igreja (Nossa Senhora)
que o tornou definitivamente efeminado
e matronal.
Magias dessa ordem são freqüentes
na historia. A p r ó p r i a historia do papado.
é altamente elucidativa: observamos que
o grande desejo dos papas de v ê r os so-
beranos da terra prostrados a seus pés,
desejo êste b e m definido pela historia do
papado e realisado espetacularmente com
a autocracia de Gregorio V I I e o impe-
rialismo de Inocente I I I ,é uma imita-
ção do espetáculo antigo dos reis Magos
adorando o m e n i n o Jesus. Ê s s e processo
MADONA E BAMBINO 27ü

de magia atuou desde os primeiros sé-


culos da é r a cristã, m a s s ó se t o r n o u rea-
lidade depois da identificação do papa
com a própria pessoa de Cristo, isto é,
quando o papa d e c l a r a ser ê l e o represen-
tante exclusivo de Cristo sobre a terra.
Os anatemas do século V , o proceder de
Constantino e Valentino I I I , s ã o os pri-
meiros vestigios positivos dêsse desejo
mágico de dominio p a p a l , os reis Magos
serão muito em breve substituídos pelos
próprios reis da E u r o p a no drama da ado-
ração. O século V I I I mostra papas exco-
mungando imperadores. Pouco a pouco
o poder centraliza-se e cresce, o papa
confunde-se c o m a pessoa de Cristo e do
menino Jesus, e logo após o espetáculo
vergonhoso do papado no século X , os
reis se p r o s t r a m c a t e g o r i c a m e n t e aos pés
dos papas, imitando a lenda dos reis
Magos.
Êste processo de magia é muito i m -
portante, n ã o somente porque é uma de-
monstração do funcionamento da histo-
ria, mas t a m b é m porque mostra que an-
tes de se tornar Grande M ã e identifi-
cando-se c o m a santa madre, o papa iden-
tifica-se com Cristo, para receber a hu-
28u 0$ Ossos po M Ü Í Í D O — F L A V I O DE H. CAIWAI.HO

miidade agachada dos homens, e mostra


t a m b é m alguma coisa da cronologia dos
acontecimentos; dentro do cristianismo a
importância da Santa Madre parece ser
posterior á de Cristo.

A evolução do papado é psicologica-


mente bem marcada e pôde ser dividida
em quatro fases ( 1 ) : (1) Periodo maso-
quista, até o século I I todos os papas
eram mártires, exceptuando u m ou outro.
(2) Periodo de dissipação — marcado
pelo espetáculo vergonhoso dos papas no

(1) As seguintes notas podem ser ú t e i s ao l e i t o r :


Até ao século I I — Com excepção de u m ou outro
todos os papas são m á r t i r e s .
Século V — 630 bispos p r o n u n c i a m anatema a todos
os que n ã o acreditam n u m só papa. Constantino au-
menta p o t ê n c i a religiosa. Valentino I I I coloca bispos do
ocidente sob j u r i s d i ç ã o de u m só papa. O poder dos con-
cilios e c u m ê n i c o s é superior ao do papa. Papa é de-
fensor das massas e eleito pelo povo.
Século V I — Gregorio o Grande envia seus monges
beneditinos para " ' c i v i l i s a r " a E u r o p a .
Século V I I — Papas c o m e ç a m a excomungar as tes-
tas coroadas. 2 . ° Conselho de Nicéa sobre o culto das
imagens.
Século X — Papado d á ao mundo e s p e t á c u l o ver-
gonhoso .
Século X I — O vicio de vender as g r a ç a s do céo
m u i t o espalhado. Gregorio V I I atribuin-se a si só o t i -
t u l o de papa. L e i do celibato do clero. P r o i b i ç ã o da
MADONA K BAMBINO

século X e peio abuso e a intensidade da


venda de graças divinas no século X I . A
proibição da barba e a lei do celibato i m -
posições de Gregorio V I I devem ser con-
sideradas como castigos tendentes a des-
virilisar u m clero que tinha se excedido
e m d i s s i p a ç ã o e p o r t a n t o os p r i m e i r o s i n -
dícios e a primeira tentativa de efemini-
sação do clero. (3) Periodo sadista: sé-
culos X I I e X I I I , I m p e r i a l i s m o de Ino-
cente I I I e os rios de sangue da inquisi-
ção; o Papa torna-se vigário exclusivo de

barba no s a c e r d ó c i o . São os primeiros i n d í c i o s de efe-


minização.
Século X I I — I m p e r i a l i s m o de Inocente I I I . Car-
deais passam a eleger o papa. Inicio da I n q u i s i ç ã o .
Século X I I I — Rios de sangue da I n q u i s i ç ã o . E m b r u -
tecimento das massas. Papa torna-se vigário exclusivo
de Cristo.
Século X I V — N ã o conseguindo t r a n s f o r m a r Filipe
o Belo em vassalo h u m i l d e o papa B o n i f á c i o V I I I r a i -
voso profere o U n a m Sanctam (1302) declarando toda
a creatura humana submissa ao p o n t í f i c e romano. D u -
rante a l u t a e a briga com Filipe o Belo, Bonifácio V I I I
é esbofeteado por Colonna em 1303. A salutar rebeldia
de F i l i p e o Belo e c o n s e q ü e n t e v i t o r i a sôbre o papado
marca u m inicio da d e s i n t e g r a ç ã o da i g r e j a . Na F r a n ç a
o ensino do Direito C i v i l predomina sôbre o ensino do
Direito Canonico.
Século X V — Concilio de C o n s t a n ç a declara-se acima
do papa.
Século X V I — Concilio de Trento f o r m u l a nova dou-
t r i n a c a t ó l i c a . Descobertas de mundos novos. A intensa
282 <>S Ossos DO MüNDO-r- FLÀVÍO I>F. R. CARVALHO

Cristo. A loucura papal e o desejo de es-


cravisar os homens atingem o auge no
U n a m Sanctam pronunciado pelo papa
Bonifácio V I I I , logo após ter sido de-
preciado e desobedecido por Felipe o
Belo, e que declara toda a creatura hu-
mana submissa ao pontifice romano. É o
declinio do poder da igreja, e o inicio de
um grande acréscimo do poder leigo, a
humanidade livra-se de u m perigo, a

obra das missões procura compensar perdas na Europa.


Aparecimento de novas seitas.
Século X V I I — Paz de W e s t p h a l i a . L u i z X I V ordena
as dragonadas cortando o poder do papa.
Século X V I I I — Grande movimento f i l o s ó f i c o d i m i -
nue o prestigio da i g r e j a . R e v o l u ç ã o Francesa igualisa
todas as religiões, declara a ilegalidade dos votos r e l i -
giosos e os casamentos e enterros á t o s seculares, os ho-
mens t ê m o direito de n ã o acreditar em nada. Os papas
são humilhados e derrotados continuamente.
Século X I X — No momento em que o papado se en-
contra em estado de grande fraqueza e d e p r e c i a ç ã o
(1870), o papa anuncia ao mundo a sua I n f a l i b i l i d a d e .
Século XX — Inicia-se no novo mundo a repulsa
contra os poderes do clero — o governo mexicano repu-
dia os poderes do clero, o governo soviético inicia cam-
panha de e d u c a ç ã o das massas contra as r e l i g i õ e s , com a
queda da monarquia na Espanha centenas de igrejas são
d e s t r u í d a s pelas massas e na Alemanha H i t l e r procura
subtrair da influencia do papado o povo a l e m ã o . Con-
tudo na I t á l i a de Mussolini o Vaticano oblem uma v i -
ctoria regional com o tratado de L a t r ã o , e na F r a n ç a e
na Bélgica observa-se uma r e a ç ã o católica caracterizada
pelo nco-tomismo.
MADONA E BAMBINO 283

ameaça de uma teocracia que visava o


mundo, a maior fôrma de b a n d i t i s m o que
até então tinha presenciado. (4) Período
de efeminísação dos papas. A partir do sé-
culo X V o poder temporal do papa aos
poucos desaparece. A bofetada de Colon-
na e a rebeldia de Filipe o Belo, tinham
surtido e f e i t o : seguem-se a paz de West-
p h a l i a , as D r a g o n a d a s de L u i z X I V ,a re-
v o l u ç ã o f r a n c e s a e, p a r a o b e m e s t a r d e t o -
dos, destróem as ultimas possibilidades
de u m a teocracia e fixam os novos cara-
cterísticos das p r e t e n ç õ e s religiosas. Pre-
senciamos a derrota e a humilhação su-
cessiva dos papas, e precisamente n u m
m o m e n t o de grande fraqueza e de grande
inferioridade do papado (1870) o papa de-
clara-se infalivel. Esta derradeira e inútil
manifestação de loucura é u m exemplar
típico do inconsciente papel e do desejo
absolutista que sempre manifestou nas
ultimas partes da sua historia, o de dar
ordens ao m u n d o e de v ê r a humanidade
prostrada e humilhada a seus pés.

A astucia é um dos característicos


mais inherentes á vida e á conservação do
284 Os Ossos DO M U N D O — F L A V I O DE H. CARVALHO

papado. As grandes forças que procura-


ram destruir o papado desde o inicio d i
sua existência, algumas destas dentro da
própria igreja (1), nos momentos mais
agudos da luta, provocavam sempre no
papado uma manifestação intensa de as-
tucia. Pela astucia, o papado se levantava
e se salvava no momento mesmo de ser
esmagado, e a r e p e t i ç ã o f r e q ü e n t e das l u -
tas tornou êste carateristico feminil u m
traço dominante na mentalidade dos
papas.
E n t r e as m u i t a s m a n i f e s t a ç õ e s de as-
tucia a que mais empolga pela sua natu-
reza instintiva e de atualidade é o paci-
fismo. O pacifismo começa a se manifes-
tar no papado precisamente na sua ulti-
ma fase, n o P e r i o d o de E f e m i n i s a ç ã o que
é o periodo de o p r e s s ã o e de depreciação
do pontifice romano.
Depois do século X I I I , á medida que
o papado se a p r o x i m a de nossos dias, a
sua autocracia e a sua força diminuem e
o seu pacifismo e a sua astucia aumen-
tam. O pacifismo recomendado pelo papa
aparece sobretudo nos momentos de fra-

(1) Vêr lutas entre papas e c o n c l l i o i .


MADONA F. BAMBINO 28?

queza do papado e é u m m e i o de se pro-


teger a si m e s m o (1).
O pacifismo do papa é n ã o somente
uma medida de precaução contra a sua
própria destruição e ruina, mas visa ma-
ternalmente proteger o seu rebanho. O
papa e a m u l h e r s ã o pacifistas pelos mes-
mos motivos.
Observamos que o papa começa a
adquirir os carateristicos de m ã e no sé-
culo X V I I ou X V I I I , após u m longo pe-
riodo de sofrimento; êle só começa a ser
mãe depois de passar pelo século X I I I e
de se ter tornado o vigário exclusivo de
Cristo; isto é, após uma identificação
maior c o m a Santa Madre Igreja. O ins-
tinto materno do papa manifesta-se so-
bretudo pela sua grande bondade, que
consiste em impor a sua infalibilidade e
castigar os recalcitrantes, e que precisa-
mente se assemelha ao comportamento
da m u l h e r amada por muitos, como tam-
bém ao c o m p o r t a m e n t o da dona de casa.
A bondade é u m dom essencialmente
feminil e tem origem na mulher (1).

(1) V ê r o cap. A origem da bondade, no meu l i v r o


" 0 Mecanismo da E m o ç ã o A m o r o s a " .
286 Os Ossos DÓ MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

A bondade papal, depois do pacifis-


mo, é u m dos traços feminis que mais
marcam o seu caráter. O papa, após a
grande opressão e a grande derrota do
papado nas suas p r e t e n ç õ e s , tornou-se u m
sêr essencialmente bom, possuindo exa-
tamente o mesmo tipo de bondade que
aparece na mulher após ter ela passado
na sua historia por uma grande opressão
e u m grande sofrimento depreciador da
sua pessoa.
Toda a m u l h e r parece ter u m a certa
repugnância em ser julgada por quem
quer que seja, t e m u m a tendência á infa-
libilidade, tendência perfeitamente expli-
cável, pois que é u m m e i o veloz de com-
pensar o seu longo estagio de inferiori-
dade na historia. A infalibilidade do papa
é puramente emotiva e mulheril e a sub-
missão exigida pela infalibilidade é a
mesma submissão exigida pela mulher
amada. É o papa-virgem, o papa-matrona
e o papa-dona de casa. Os julgamentos
dos papas são "inapelaveis", como no
caso da mulher amada e da mulher em
geral. Como a mulher, êle n ã o pode ser
julgado por pessoa a l g u m a e gosa de pri-
vilegio e benevolência especiais. É o pri-
MADONA E BAMBINO
237

vilegio que o confunde e o associa c o m o


sexo fraco. A distribuição de indulgên-
cias se confunde com a indulgência e a
graça da mulher. E quem n ã o se sente
tentado em prolongar a analogia dizendo
que os^ pronunciamentos excatedra do
papa são como verdadeiros partos onde
o produto, mesmo como acontece com o
filho da mulher, já s á e inteiro, composto
e pronto para ser utilisado pelo mundo!
A infalibilidade do papa como a da
mulher é in-natura, não é construida no
mundo exterior, vem pronta de dentro,
não pôde ser impedida sem o uso de ve-
neno, mas sim evitada.
Resumindo: todo o b o m papa conser-
va no seu intimo uma ambição secreta e
de caráter psiconevrotico. O desejo de
ser m ã e , a Grande M ã e do "começo das
coisas", o instinto materno do b o m papa
é universal e abrange u m grande rebanho.
Todo o b o m papa caminha para uma cas-
tidade, tendo como conseqüências prová-
veis identificar-se c o m uma Virgem Ma-
t r o n a e ser capaz de p a r i r a n j i n h o s e che-
rubins com a mesma displicência e abun
dancia. Notamos que o vigário de Jesus
Cristo, o representante da divindade sô-
288 Os Ossos DO M U N D O — F L A V I O DE R. CARVALHO

bre a t e r r a era a igreja personificada e


portanto apto a adquirir com o tempo os
carateres efeminados da madre igreja.
O m á o papa é aquele que se associa
com a virilidade e luxuria do periodo nu-
bil de Cristo.
O pacifismo do papa é uma demons-
t r a ç ã o do seu instinto m a t e r n o ; o instinto
de proteger o r e b a n h o que é considerado
por ê l e a sua grande cria, os seus filhos.
» Quando o papa pede a Deus o reino da
paz, é uma suplica feminil que se eleva
ao "dono djas coisas", suplica idêntica
àquela que visava apaziguar a cólera e a
raiva destruidora dêsse dono, em seme-
lhante momento o papa comporta-se mes-
m o c o m o se c o m p o r t a v a a m u l h e r d e certa
época que diante da fúria sadista do seu
dono, para proteger a prole, prostrava-
se em suplica aos pés do macho e mes-
tre, daquele que "tudo sabia e tudo po-
dia". O papa ajoelhado e rezando a Deus
para o bem estar do seu rebanho é uma
representação exata da Santa Madre
(igreja) em suplica ao senhor e mestre,
e da mulher oprimida em suplica ao
opressor que na sua fúria destruiria a
prole. A posição agachada, ajoelhada e
MADONA E BAMBINO 289

em suplica pertence a u m tipo de drama


que m e parece t e m de ir a l é m da pose da
h u m i l h a ç ã o que t a m b é m é agachada, per-
tence a u m drama de importância deci-
siva e que os residuos de h á b i t o s desapa-
recidos parecem demonstrar ser o drama
mesmo da proteção da prole.
U m outro importante traço feminil
do feminismo papal é o castigo da cas-
tração praticado nas estatuas masculinas
d o V a t i c a n o . Q u a n d o o p a p a se t o r n a e f e -
minado e grande m ã e , ê l e se torna tam-
b é m cruel e pratica a crueldade da reivin-
dicação feminista; êle começa a castigar
os representantes másculos do mal, os
que e s t ã o m a i s á m ã o e que s ã o mais fa-
c i l m e n t e castigaveis, os m e m b r o s das es-
tatuas s ã o decepados sem piedade, al-
guns dos mais belos exemplares da arte
do mundo sofrem a mutilação pudica e
criminosa (1).
U m observador precipitado tomaria
o gesto como uma mostra de b u r r i c e pa-
pal; tentadora como se apresenta esta
hipótese, ela n ã o preenche bem o nosso

(1) E ?
grande o numero de estatuas castradas no
Vaticano.
290 Os Ossos no MUNDO — F L A V I O DE R. CARVALHO

desejo de pesquiza, porque atraz da bur


rice dourada está o clamor da Inocência.
O amor sadista do papa-bondoso para
com a arte confunde-se c o m o amor e
com a vingança da mulher; o papa efe-
minado e com tendências matriarcaes,
identificado com a Santa Madre, age
para c o m as estatuas pagas, os inimigos
da Santa Madre, como sem duvida agiu
em épocas remotas a mulher matriarcal
castrando os seus i n i m i g o s , os causadores
do seu sofrimento. Ainda hoje vemos os
residuos dêsse clamor de Inocência an-
tiga na fobia de castração manifestada
pelo menino e pelo macho adulto, fobia
esta que parece sair de u m a v i n g a n ç a re-
mota da mulher, vingança perdida atraz
da historia e cujo tumulto percebemos
apenas (1). Q u a n d o a m ã e de hoje amea-
ça o seu menino com o castigo da cas-
tração, ela reproduz sôbre u m objéto de
grande aféto u m desejo antigo e afastado
e que na sua origem sem duvida visava
evitar que aquele que era a causa do seu
sofrimento por estar mais chegado a ela

(1) V ê r o "Mecanismo da E m o ç ã o A m o r o s a " , dq


autor.
MADONA E BAMBINO 291

recomeçasse o drama. Quando a mulher


de h o j e sente o desejo de a m p u t a r o penis
dos seus machos prediletos, ou dos ma-
chos e m geral, ela reaviva u m a velha vin-
gança da m u l h e r , u m a v i n g a n ç a j á esque-
cida e cuja seqüência perdeu-se, e é o
mesmo sentimento que propulsiona o
papa a amputar o penis das estatuas do
Vaticano. O papa de hoje funciona com
as grandes emoções da mulher.
A fobia da castração só pôde ter a
sua a n t í t e s e n u m desejo de v i n g a n ç a ope-
rado pela mania de castração e, está
claro, ê s t e d e s e j o s ó p ô d e ser proveniente
de u m sentimento feminil e oposto á fo-
bia.
É mais que provável que a iconogra-
fia da V i r g e m tenha atuado magicamente
na f o r m a ç ã o da mentalidade e da atitude
do papa, tornando-se sugestiva a ponto
de t r a n s f o r m á - l o n u m a grande m ã e idên-
tica á santa madre igreja. A iconografia
já t i n h a preenchido a necessidade de su-
gerir o repovoamento e como o papa era
a personificação mesmo da santa madre
igreja nada mais natural para êle que
adquirir por meio da magia proporcio-
292 Os Ossos DO MUNDO — FLAVIO DE R. CARVALHO

nada pelas imagens da Virgem as dispo-


sições da própria virgem m ã e .
A autocracia matriarcal do papa pa-
rece ser uma conseqüência e u m reflexo
da decadência do Império Romano e das
forças destruidoras que t e n d i a m ao desa-
parecimento do Império, o pacifismo do
papa surge como surgiria uma necessi-
dade de repovoamento, uma fôrma de
auto-proteção, u m m e i o de perpetuar-se e
associa-se ás funções históricas da Vir-
gem e da Santa Madre Igreja.
Tudo, aparentemente, indica que
uma vez desaparecida a necessidade de
repovoamento e talvez n u m momento em
que o despovoamento seja necessário, de-
sapareceria o culto da V i r g e m e possivel-
mente o pacifismo do papa; o papa dei-
xaria então de ser a Grande M ã e .
A decadência do Império Romano
representa o inicio de u m novo ciclo na
civilisação do continente, e que começa
com a creação de u m símbolo renovado
para a mulher, u m a nova potencialidade,
a Santa Madre Igreja. A o sadismo volu-
tuoso e veloz da grandeza do Império,
veloz como uma ejaculação, sucedem-se
as dores do masoquismo e a expetativa
MADONA, E BAMBINO 293

amorosa da d e c a d ê n c i a e da inferioridade.
A grandeza do Império Romano é para
a historia uma fase de coito violento e
sadio onde a contraparte fêmea tripu-
diada e ensangüentada parirá para com-
pensar a sua inferioridade, para salvar o
seu mundo. O periodo de maternidade
que caracteriza a decadência do Império
se prolonga a t é nossos dias, quando ou-
vimos de passagem as exortações de
Mussolini (1).

(1) P r ê m i o s para as mulheres proliferas, imposto


sobre o celibato, medidas para f o r t i f i c a r o t i p o comum
EXPERIÊNCIA N." 2, realisada, escrita e ilustrada por
Flavio de R. Carbalho e distribuída pela União Jorna-
lística Brasileira na rua do Dr. Falcão Filho, 33 —
Sáo Panlo — Brasil.

Mm
Í N D I C E

Pags.

P r e f a c i o do A u t o r 3
de Gilberto F r e y r e 5
Voajpdo sobre as Costas Brasileiras e Notas so-
bre a s e n s a ç ã o do m ê d o 11
Deus assignalado a bordo 41
A Taverna Fitzroy 57
A s Ruinas do M u n d o 75
D o i s Congressos Sofisticados 107
O M a p a da Saudade, o primeiro Mapa do
Mundo (1) 117 #

A M e m ó r i a * do N ã o - A c a b a d o 141
O B e r ç o da F o r ç a P o é t i c a 155
A p r o c u r a de u m monarca cigano 177
O T a b ú da Vegetariana 201
Madona e Bambino 217

*
I

i
U L T I M A S N O V I D A D E S :

Stendhal '

DO AMOR — Traducção

de Marques Rebello e Cor-


r ê a de S á .Br. 15$000

René-Albert Guzman

C I Ú M E — (4. a
edição) .. .Br. 6$000

José Júlio Soares

S O C I E D A D E S C O O P E R A T I -
V A S (4. a
edição) Br. 15$000

Paulo Guanabara

A O R I G E M D O M U N D O — 1.°
voliííne da collecção: "His-
torias do T i o J o ã o " . . . Cart. 8$000

Pedidos a

A R I E L E D I T O R A L T D A .

R u a 7 d e S e t e m b r o , 162=1.°

RIO DE JANEIRO

OF. GB, DA S. A. A NOITE

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