Antropologia II
2ª EDIÇÃO
2014
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Maria Ivete Soares de Almeida Antônio Maurílio Alencar Feitosa
Lucíola Paranhos
Mestre em Desenvolvimento Social pela Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes.
Graduada em Ciências Sociais pela Unimontes.
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Unidade 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
A tradição evolucionista na antropologia e a primeira reação ao evolucionismo social 11
1.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
1.7 Difusionismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
Unidade 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
O culturalismo americano em sua fase clássica e o funcionalismo de Malinowski . . . . . 27
2.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
Unidade 3 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
A antropologia da escola sociológica Francesa: Durkheim e Mauss . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
3.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Referências básicas e complementares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
Atividades de Aprendizagem – AA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
Ciências Sociais - Antropologia II
Apresentação
A disciplina Antropologia II faz parte do segundo módulo do Curso de Ciências Sociais –
Licenciatura, da Universidade Aberta do Brasil da Universidade Estadual de Montes Claros – Uni-
montes.
Na disciplina Antropologia II será abordado um conjunto (específico) de questões sobre al-
gumas perspectivas do pensamento clássico na Antropologia. Iniciar-se-á com a apresentação e
discussão crítica do pensamento evolucionista na antropologia a partir de três autores clássicos:
Lewis Henry Morgan, Edward Burnett Tylor e George Frazer. Em seguida, apresentaremos o di-
fusionismo e as contribuições de Franz Boas para o conhecimento antropológico. As discussões
sobre esse autor estarão centradas nas suas principais críticas ao método e à teoria evolucionista
na antropologia. Será apresentada e discutida, em seguida, a perspectiva do culturalismo ame-
ricano em sua fase clássica a partir de autores como Ruth Benedict e Margaret Mead. Continu-
ando a discussão sobre a antropologia clássica, será apresentada a perspectiva funcionalista na
antropologia a partir de Bronislaw Malinowski. A disciplina terminará com a discussão sobre dois
representantes do que ficou conhecida como a Escola Sociológica Francesa: Èmile Durkheim e
Marcel Mauss.
Os objetivos a serem alcançadas serão:
• Propiciar a reflexão teórica e metodológica sobre conceitos fundamentais da antropologia
clássica;
• Possibilitar ao aluno uma incursão na constituição histórica da antropologia e um aprofun-
damento de instrumentos teóricos e metodológicos da reflexão antropológica produzidos
sob as rubricas do Evolucionismo, da antropologia clássica americana, do funcionalismo e
da Escola Sociológica Francesa.
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Ciências Sociais - Antropologia II
Unidade 1
A tradição evolucionista na
antropologia e a primeira reação
ao evolucionismo social
Carlos Caixeta de Queiroz
1.1 Introdução
Apresentaremos, inicialmente, a abordagem evolucionista na antropologia a partir de três
autores clássicos: Henry Morgan, Edward Tylor e James Frazer. Em seguida, discutiremos algumas
questões relacionadas ao pensamento de Franz Boas, um dos primeiros críticos da tradição evo-
lucionista na antropologia. O objetivo aqui é, então, apresentar algumas características ou pro-
posições marcantes do pensamento evolucionista e as reações de Franz Boas à teoria e ao méto-
do evolucionista. Primeiramente, situaremos minimamente o contexto histórico de surgimento
do pensamento evolucionista, que constitui a primeira síntese teórica na antropologia social, sin-
tetizando as principais ideias de teoria e método característicos do evolucionismo cultural. Em
seguida, focalizaremos as proposições teóricas e metodológicas apresentadas por Boas. Procu-
raremos acentuar que Boas reagiu criticamente ao método evolucionista, propondo o método
histórico como uma nova orientação para a antropologia em sua fase clássica.
É importante salientar que embora Morgan, Tylor e Frazer tenham sido considerados expo-
entes do evolucionismo, há outros autores representantes dessa corrente de ideias que não se-
rão tratados aqui, como Spencer (1854-1914), Maine (1822-1888), Mclennan (1827-1881), Bastian
(1826-1905), entre outros. Ressaltamos, ainda, que os autores que estamos tratando aqui como
representantes do evolucionismo cultural nem sempre podem ser encaixados ao rótulo de evo-
lucionistas. Suas contribuições aos diversos campos do conhecimento como parentesco, magia,
religião, os tornaram “pais fundadores” da antropologia e, embora eles próprios tenham assumi-
do posições que os identifiquem como representantes da tradição evolucionistas, às vezes eles
podem ser considerados autores que transitaram em outras tradições do pensamento antropo-
lógico.
O objetivo desta Unidade é apresentar aos alunos as linhas gerais do evolucionismo cultural
em sua fase clássica e a perspectiva teórica metodológica inaugurada por F. Boas, que acabou sen-
do o construtor de uma tradição no pensamento antropológico, influenciando vários autores que
ficaram conhecidos como os fundadores da “escola Culturalista”, nos Estados Unidos da América.
Espera-se, portanto, possibilitar aos alunos uma introdução à história teórica da antropologia e
ainda pensar em questões colocadas pela antropologia clássica que são permanentemente atuais.
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UAB/Unimontes - 2º Período
Laplantine (2000, p. 62) diz que “o século XVI descobre e explora espaços até então desconhe-
cidos e tem um discurso selvagem sobre os habitantes que povoam esses espaços”. O século XVIII
é “iluminado à luz dos filósofos, e a viagem é filosófica”. O século XIX “é a época durante a qual se
constitui verdadeiramente a antropologia enquanto disciplina: a ciência das sociedades primitivas
em todas as suas dimensões (biológica, econômica, política, religiosa, linguística, psicológica [...])”.
Vejam bem, inicialmente, o “Outro”, o diferente ou como estamos nos referindo o não oci-
dental é o “selvagem”, aquele que está fora da cultura e próximo da natureza, ou seja, recusava-se
o caráter de humano nos habitantes que povoavam espaços não ocidentais. Na perspectiva evo-
lucionista do pensamento antropológico, os selvagens passaram a ser nomeados os “primitivos”
que se contrastavam com os “civilizados”.
Pois bem, a primeira grande síntese teórica da antropologia foi o evolucionismo cultural,
que se formou nos meados e se consolidou nos finais do século XIX. Essa abordagem formou-se
Figura 1: Interior do
Palácio de Cristal em em um contexto histórico marcado por transformações econômicas, políticas e intensos e con-
Londres onde foi trovertidos debates intelectuais. A Europa, no final do século XVIII, já começava a sentir as trans-
realizada exposição formações provocadas pela revolução industrial na Inglaterra e a revolução política francesa.
em 1851 com amostras Já o século XIX foi marcado pelo contexto geopolítico que caracterizaria o processo da con-
culturais e tecnológicas
quista colonial. Como diz Laplantine (2000, p. 64), a “África, a Índia, a Austrália, a Nova Zelândia
de vários povos, de
forma a simbolizar passam a ser povoadas de um número considerável de emigrantes europeus, não se trata mais
a superioridade do de alguns missionários apenas, e sim de administradores”. Começou-se a produzir, nesse contex-
mundo europeu to, uma vasta historiografia, relatos e crônicas sobre os mais diferentes povos que habitavam o
ocidental em relação planeta. Todas as variadas informações sobre parentesco, religião, modos de subsistências, for-
aos outros povos
mas de governo seriam posteriormente tomadas como dados pelos primeiros teóricos evolucio-
Fonte: Disponível em
<http://omundopreepos-
nistas na antropologia. Aliás, é nesse momento que os debates sobre a diversidade cultural se
torreeiffel.blogspot.com/> intensificam, fortalecendo a consolidação de um discurso antropológico.
Acesso em fev.2009. Mas é preciso ressaltar melhor o contexto social europeu para ampliarmos nosso entendimen-
▼ to sobre o momento de formação do discurso evolucionista na antropologia. Segundo Stocking
(1987), a abordagem evolucionista estava imer-
sa nos debates de fins do século XIX. Esse autor
mostra, em seu livro Victorian Anthopology, que
em 1851 foi realizada, no Palácio de Cristal, uma
exposição que tinha o intuito de simbolizar a
união da humanidade e a divisão do trabalho.
Para esse autor, tal evento marcou o início de
uma mentalidade de superioridade da socie-
dade vitoriana. Na interpretação de Stocking, a
exposição no Palácio de Cristal estava permeada
pela ideia de progresso e evolução humana e
mostrava o interesse na época pelas sociedades
chamadas de primitivas.
A ideologia cultural forjada na época vi-
toriana sobre os povos não ocidentais era a de
considerá-los, em determinados momentos,
como selvagens, ignorantes e inconsequentes;
e, em outros, como observadores e lógicos. Os
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Ciências Sociais - Antropologia II
Dessa forma, como argumenta Castro (2005, p. 26), “as ideias filosóficas de Spencer levaram
à disposição de todas as sociedades conhecidas, segundo uma escala evolutiva ascendente, atra-
vés de vários estágios. Essa se tornaria a ideia fundamental do período clássico do evolucionismo
na antropologia”.
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UAB/Unimontes - 2º Período
Pois bem, entendido minimamente este contexto histórico, passemos agora a comentar so-
bre as linhas gerais do evolucionismo cultural em sua fase clássica, o esforço para se estabelecer
uma escala evolutiva da humanidade.
Existe uma espécie humana idêntica, mas que se desenvolve (tanto em suas
formas tecnoecônomicas como nos seus aspectos sociais e culturais) em ritmos
desiguais, de acordo com as populações, passando pelas mesmas etapas, para
alcançar o nível final que é o da “civilização” (LAPLANTINE, 2000, p. 65).
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Ciências Sociais - Antropologia II
Outro princípio básico evolucionista era o da unidade psíquica de toda a espécie humana, a Atividade
uniformidade de seu pensamento (CASTRO, 2005, p. 28). Partindo desse postulado e da verifica- O antropólogo Eduardo Vi-
ção da semelhança de costumes e instituições sociais de várias sociedades em espaços geográfi- veiros de Castro, do Museu
cos variados, os antropólogos evolucionistas estabeleceram que a evolução cultural fosse regida Nacional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro,
por leis uniformes. Em outros termos, a constatação da existência de instituições, costumes ou em entrevista a Revista E,
crenças similares em duas ou mais sociedades, ou seja, aspectos sociais similares que aparecem diz: “Ao estudar as comuni-
em sociedades diferentes, no presente ou no passado, foram tomados como prova contundente dades indígenas, aprendi
que existe uma ideia muito
da existência de leis uniformes na ordenação da evolução cultural. Por isso, a evolução seria uni- comum entre nós, antropó-
forme para toda a humanidade. Em consonância com essa formulação, postulava-se que todas as logos, de que os problemas
sociedades passariam pelos mesmos estágios de evolução. humanos são todos os
mesmos, em toda parte
É também importante ressaltar que um dos conceitos centrais cunhados pelos evolucionis- sempre foram os mesmos e
tas para explicar a passagem de uma etapa de evolução para outra foi o de “sobrevivência”. São o que varia são as soluções
que cada sociedade dá a
os costumes que permaneceram e possibilitaram aos evolucionistas apreender o sentido das eta- eles. Ou seja, é a ideia de
pas de evolução das sociedades. Nesse sentido, as “sobrevivências” constituem uma prova evi- que no fundo somos todos
dente do processo de evolução unilinear para os antropólogos evolucionistas na antropologia. iguais, o que varia são as
soluções de cada socieda-
Como forma de mostrar a evolução social, os evolucionistas procuravam mostrar as seme- de. Acho que está claro que
lhanças entre fenômenos sociais existentes em várias sociedades que estariam em graus diferen- isso não é verdade: o que
tes de evolução. A partir desse postulado, enfatizavam a existência de uma unidade do pensa- varia são os problemas, as
sociedades têm problemas
mento humano e afirmavam que causas semelhantes produziriam efeitos semelhantes. muito diferentes entre si,
Assim, os antropólogos evolucionistas procuraram reconstruir uma linha evolutiva, numa e elas são diferentes por
sequência de progresso técnico do mais “primitivo” ao mais “civilizado”, a partir dos conceitos de causa dos problemas que
têm e não por causa das
sobrevivência e de cultura. Como argumenta Jean Copans: soluções que dão a eles. A
fração mais urbanizada e
[...] o progresso técnico econômico é prova incontestável de uma certa evolu- industrializada do planeta,
ção histórica. Decalcando o modelo do evolucionismo biológico, buscam-se e com consumo energético
mais elevado – como os
os estádios da evolução humana e, em consequência, as sociedades primitivas Estados Unidos e alguns
aparecem como os antepassados naturais das sociedades ocidentais atuais. países da Europa –, co-
Trata-se de um evolucionismo unilinear, quer dizer, tal sucessão de estádios é meçou a lidar com outros
necessária e obrigatória: por uma série de transformações passa-se do inferior problemas. A questão hoje
ao superior (s/d, p. 19). é: “Vamos chegar ao século
22?”. Se sim: “Com quantas
pessoas a Terra vai chegar
lá?” Por isso falo que é
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UAB/Unimontes - 2º Período
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Ciências Sociais - Antropologia II
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UAB/Unimontes - 2º Período
unilinear de evolução cultural. Analisou e ordenou em termos de uma teoria social evolucionis-
GLOSSÁRIO ta dados de várias partes do planeta vindos através de escritórios coloniais, museus, sociedades
Matrilinear: Diz-se de científicas, organizações missionárias e instituições oficiais e não oficiais que tivessem interesse
uma regra de filiação nos povos das colônias (MAYBURY-LEWIS, 2002, p. 16). Classificou as sociedades não ocidentais
que determina que o como as menos civilizadas por comparação às ocidentais.
indivíduo adquire os Nesses termos, estudando o parentesco como fundamento da organização social e política,
principais elementos
do seu estatuto, e
Morgan formulou a ideia de que a sequência evolutiva da organização familiar foi: promiscuida-
nomeadamente, a sua de à matriarcado à patriarcado. Nesse entendimento haveria, inicialmente, uma forma de filia-
inclusão num determi- ção matrilinear, que evoluirá no estágio de civilização para a patrilinear.
nado grupo de paren- Da mesma forma, Morgan concluiu que, no estágio da selvageria, o homem sobreviveu da
tesco, tendo exclusi- caça, pesca e coleta; no estágio da barbárie, o homem criou a agricultura e a irrigação; e, no es-
vamente em vista os
laços genealógicos que
tágio de civilização, o homem desenvolveu instrumentos, máquinas e indústrias. Assim, Morgan
passam pelas mulheres. postulou que a evolução social significou uma melhoria constante da humanidade. O desenvol-
Por extensão, diz-se vimento tecnológico, o progresso técnico representaria, na perspectiva teórica evolucionista,
igualmente matrilinear uma chave para se resolver os problemas da humanidade.
um grupo (linhagem, Consideramos com mais vagar a perspectiva de Morgan por ser esse autor um dos mais ex-
clã etc.) cujo recruta-
mento é determinado
pressivos representantes da perspectiva teórica evolucionista na antropologia. Passemos a foca-
pela aplicação dessa lizar a seguir, de forma mais breve, as contribuições de outro autor pertencente à tradição evolu-
regra de filiação. cionista: Edward Burnett Tylor.
Patrilinear: Regra
que determina que o
indivíduo receberá au-
tomaticamente do pai
os principais elementos
do seu estatuto e, no-
1.5 Tylor e a definição formal da
cultura
meadamente, que esse
indivíduo pertencerá
ao mesmo grupo de
filiação (linhagem, clã
etc.) que o seu pai e o
pai do seu pai” (PANOFF Tylor nasceu em 1832, na Inglaterra. Publicou seu primeiro livro em 1861 com o título
e PERRIN). Anahuac: or, México, Ancient and Modern [Anahuac: ou, México, antigo e moderno]. Em 1865,
publicou Researches into the Early History of Mankind and the Development of Civilization [Pes-
quisas sobre a antiga história da humanidade e o desenvolvimento da civilização]. Em seguida,
escreveu seu mais importante livro: Primitive Culture: Researches into the Development of Mytho-
logy, Philosophy, Religion, Language, Art and Custom [Cultura primitiva; pesquisas sobre o de-
senvolvimento da mitologia, filosofia, religião, linguagem, arte e costume], publicado em 1871.
Publicou, ainda em 1881, um pequeno manual sobre antropologia: Anthropology: an Introduc-
tion to the Study of Man and Civilization [Antropologia: uma introdução ao estudo do homem e
da civilização].
Tylor tem sido considerado um dos ancestrais da antropologia por ter formulado pela pri-
meira vez uma definição de cultura. Esse antropólogo inicia seu livro Cultura Primitiva com a se-
guinte afirmação:
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Ciências Sociais - Antropologia II
quizada, não relativista e não pluralista. “Cultura, para Tylor, era palavra usada sempre no singu-
lar, e essencialmente hierarquizada” (CASTRO, 2005, p. 17). Configurando, assim, um postulado
crucial da perspectiva evolucionista na antropologia.
Atado a uma visão evolucionista de cultura, Tylor afirma que a cultura pode ser objeto de
um estudo sistemático, pois se trata de um fenômeno natural que possui causas e regularida-
des, permitindo um estudo objetivo e uma análise capazes de proporcionar a formulação de leis
sobre o processo cultural e a evolução (LARAIA, 2003, p. 30). Formulando certos postulados que
orientariam implicitamente seus trabalhos, Tylor argumentou:
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Ciências Sociais - Antropologia II
mais vistos como divinos... O Ramo de Ouro, estilo literário, Frazer introduz e analisa um ri-
creio poder demonstrar, era o visco, e toda a tual de rebelião e o compara com narrativas
lenda pode, creio, ser posta em conexão, por míticas de várias sociedades. Discute o apa-
um lado, com a reverência druística pelo vis- recimento da política a partir da religião. Para
co e os sacrifícios humanos que acompanha- Frazer, o poder político originou-se dos reis
vam seu culto; e, por outro lado, com a lenda sacerdotes tal como a religião constitui uma
nórdica da morte de Balder. O que quer que forma de pensamento que evoluiu da magia.
se pense das teorias [do livro], descobrirão No início, religião e política se misturavam, o
que ele contém um grande estoque de costu- rei sacerdote cumpria ao mesmo tempo o pa-
mes muito curiosos, muitos dos quais podem pel de mediador político e intercessor entre o
ser novidade mesmo para antropólogos re- mundo terreno e espiritual, entre o sagrado e
conhecidos. A semelhança de muitos desses o profano.
costumes e ideias selvagens com as doutrinas Mas o que nos interessa mais de perto
fundamentais da Cristandade é admirável. Mas nesse momento é entender como Frazer faz
não faço referência a esse paralelismo, deixan- a triangulação entre magia, religião e ciência,
do que meus leitores tirem suas próprias con- como forma de compreendermos a análise in-
clusões, de uma maneira ou de outra’. telectualista que esse autor elaborou sobre as
A primeira edição de O Ramo de Ouro foi formas e a evolução do pensamento humano.
publicada em 1890, em dois volumes e com Em seu magistral livro O Ramo de Ouro,
um total de 800 páginas. A segunda edição, de Frazer argumenta que o pensamento humano
1900, ampliava a obra em um volume [...] A ter- seguiu etapas sucessivas, da magia à religião,
ceira edição, publicada entre 1911 e 1915, tinha e depois da religião à ciência. No argumento
13 volumes e um total de 4.568 páginas, levan- desse autor, no inicio da humanidade prevale-
do o leitor através de uma vertiginosa viagem ceu um pensamento mágico que evolui para o
por todas as províncias etnográficas e mito- religioso que, por sua vez, na etapa mais avan-
lógicas do mundo. Em 1922, Frazer preparou çada de evolução, foi substituído pelo pensa-
uma versão condensada em um volume que mento científico. Em outras palavras, a sequ-
se tornou um best seller... ência evolutiva seguiria o seguinte caminho:
Ao longo do meio século decorrido en- em um primeiro estágio, o pensamento ope-
tre a primeira edição de O Ramo de Ouro rava através da magia, no estágio subsequen-
(1890) e sua morte, Frazer desfrutou de uma te, a magia desaparecia e passava a vigorar o
dupla reputação: à medida que seu reconhe- pensamento religioso, e em seguida, caracteri-
cimento e sucesso cresciam junto ao público zando o mundo ocidental, o pensamento cien-
leigo – provavelmente Frazer foi o autor mais tífico substituiria o religioso. Como argumenta
conhecido junto ao “grande público” de toda Frazer, (1982): “a magia representa uma fase
a história da antropologia – e a profissionais anterior, mais grosseira da história do espírito
de outras disciplinas – como, por exemplo, os humano, pela qual todas as raças da humani-
estudiosos da mitologia, da literatura e mes- dade passaram, ou estão passando, para diri-
mo Freud, que se baseou na obra de Frazer gir-se para a religião e a ciência”. Percebe-se,
para escrever Totem e Tabu, publicado em assim, que para Frazer o estágio mais remoto
1913 –, sua influência decrescia junto aos an- da evolução do pensamento era mágico, o se-
tropólogos profissionais. Seu estilo, a partir gundo, religioso, e o terceiro, científico.
da década de 1920, era considerado demasia- A perspectiva que Frazer apresenta sobre
damente literário por uma geração de antro- a evolução do pensamento humano revela
pólogos que se considerava científicos, por uma inquietação dominante do seu tempo: a
mais que o público em geral continuasse gos- de que a humanidade fazia parte da natureza.
tando de ler sue livros”. Revelava, portanto, uma forma de percepção
Esse trecho de uma biografia de Frazer sobre as diferenças entre as sociedades: os oci-
escrita pelo antropólogo Celso de Castro, no dentais estavam na cultura, na civilização, no
seu livro Evolucionismo Cultural: textos de Mor- pensamento racional, e os não ocidentais na
gan, Tylor e Frazer, nos permite perceber e ava- natureza, na irracionalidade, na magia. Como
liar a importância de Frazer para o pensamen- escreve Darcy Ribeiro no prefácio a edição
to social da época. Mas, acima de tudo, nos brasileira de O Ramo de Ouro de 1982: o tem-
revela o impacto dos estudos de Frazer sobre po de Frazer “é o tempo europeu imperial de
mito, magia e religião. E, também, a gigan- antes da decadência, ainda cheio de orgulho
tesca dimensão de sua obra O Ramo de Ouro de si mesmo. Ser europeu, então, se possível
e sua difusão ou repercussão entre um vasto inglês ou francês, era a única forma alta de ser
público, não apenas entre profissionais da an- gente verdadeiramente humana” (RIBEIRO,
tropologia. 1982, p. 7). Em consonância com essa ideolo-
Nesta imensa obra, belíssima pelo seu gia, Frazer escreveu:
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UAB/Unimontes - 2º Período
Assim, Frazer argumenta que a magia foi o mais antigo sistema de superstição que predomi-
nou sobre o espírito humano em todas as épocas e em topos os países (1982, p. 33). Mas em que
constitui os princípios da magia?
Frazer mostra que toda magia funciona segundo um princípio simpático. Como comenta
Mary Douglas, Frazer distinguiu dois princípios de simpatia: a simpatia das partes orgânicas e a
simpatia das semelhanças observadas.
Podemos perceber, assim, que a magia por contágio, as coisas ou pessoas, uma vez em con-
tato, permanecem para sempre em contato, e a magia por similaridade, o semelhante produz o
semelhante, constituíam a forma como o pensamento dos chamados “primitivos” ou “selvagens”
operava. No entanto, essa forma de pensamento tenderia a desaparecer com a evolução das so-
ciedades humanas.
Frazer argumenta que a magia constituía em uma associação errônea de ideias, portanto,
tenderia a perder a legitimidade. As pessoas começariam a desconfiar da legitimidade do mago
e, sem a crença no seu poder, a magia poderia desaparecer. Por outro lado, Frazer mostra que
a magia é um processo que liga um indivíduo a um mago ou xamã, um consultor a um cliente,
da mesma forma em que na nossa sociedade um indivíduo procura um psicólogo ou um psica-
nalista. Mas, à medida que várias pessoas começam a procurar simultaneamente o consultor (o
mago), a sua prática deixa de ser particular e torna-se pública. Nesse caso, pode surgir um fenô-
meno coletivo, que pode resultar em um fenômeno religioso.
Note-se bem, para Frazer, a magia perderia sua legitimidade e daria lugar à religião que, por
sua vez, cederia lugar para a ciência. Essa era a sequência evolutiva do pensamento humano na
perspectiva frazeriana. Pode-se resumir essa perspectiva assim: as sociedades aparecem hierar-
quizadas a partir de formas de pensamento, seguindo a sequência da magia, passando pela reli-
gião até a última escala de evolução, a sociedade científica, racional.
Nesta concepção, a magia seria uma forma primeva da ciência que, fracassan-
do por precoce e temporã, deu lugar ao desvario descabelado da conduta re-
ligiosa. Com ela a humanidade entraria no carreirão sombrio e sangrento do
sacrifício que só pouco a pouco, lentissimamente, se apura e espiritualiza. A
solução final viria com a ascensão às concepções e às práticas fundadas na ci-
ência (RIBEIRO, 1982, p. 8).
No entanto, e isso vale como uma crítica que se pode fazer a Frazer, magia e religião coexis-
tem em todas as sociedades em qualquer tempo e espaço. Ou, como diz Ribeiro, ontem como
hoje, é a conduta mágica que guia o selvagem australiano ou o feiticeiro londrino (ibidem).
Já temos condições agora de perceber que Morgan, Tylor e Frazer, ao apresentarem seus es-
quemas evolutivos unilineares, deixaram de lado a questão do relativismo. Mas a posição desses
autores não poderia ser outra, porque a ideia de relativismo cultural está implicitamente associa-
da à de evolução multilinear. “A unidade da espécie humana, por mais paradoxal que possa pare-
cer tal afirmação, não pode ser explicada senão em termos de sua diversidade cultural” (LARAIA,
2003. p. 34).
A principal reação ao esquema de evolução unilinear tem sido atribuída por muitos ao an-
tropólogo Franz Boas. Boas elabora uma nova perspectiva na antropologia, o relativismo cultural.
22
Ciências Sociais - Antropologia II
No entanto, antes de passarmos a comentar a perspectiva de Boas, falaremos sobre outra tradi-
ção antropológica: o difusionismo.
1.7 Difusionismo
A corrente difusionista conviveu com a
corrente evolucionista da antropologia, sendo,
no entanto, crítica aos seus pressupostos. No
final de séc. XIX e início do séc. XX, defendia
que as diferenças e semelhanças entre as socie-
dades não se davam em função de avanço ou
atraso de algumas sociedades, numa linha evo-
lutiva comum a todas. Acreditavam, sim, que a
evolução de cada sociedade não se dava inde-
pendentemente das outras, mas que as mudan-
ças e o progresso se davam com a apropriação
de traços de uma cultura pela outra, traços es-
tes que seriam aperfeiçoados e retransmitidos.
O progresso ou evolução das culturas se
daria, então, por difusão de traços culturais. O
mecanismo de empréstimo cultural, fruto da
tendência humana para imitar e absorver tra-
ços culturais, seria então fundamental nesse
processo de evolução cultural. Os difusionistas
apresentavam, assim, uma alternativa para compreender a diversidade cultural que, segundo ▲
eles, seria resultado da difusão de alguns traços culturais vindos de um único centro. Figura 6: A ideia de
Assim como quando uma pequena pedra é jogada na água e provoca deslocamentos em difusão representada
em ondas na água
forma de ondas circulares, da mesma forma seria a difusão de traços culturais que partem de um
Fonte: Disponível em
ponto formando ondas que vão se expandindo. Cada onda tem suas características e amplitu- <http://flickr.com/photos/
des. Ou seja, os traços culturais que conhecemos no presente teriam nascido em locais e mo- brautigam/610756388/
mentos distanciados entre si, mas, na verdade, eram resultado da difusão a partir de uma origem Acesso em jan. 2009.
comum.
Difusionistas mais radicais no início do séc. XX, como Rivers e seu discípulo Elliot Smith, de-
fendiam, por exemplo, que o inventário cultural da humanidade se originou no Egito e a partir
daí se irradiou para todo o mundo.
As ideias difusionistas foram posteriormente derrubadas pelas comprovações arqueológicas
que mostraram que as ideias originais em diferentes culturas no mundo antigo eram mais fre-
quentes do que atualmente, não podendo, portanto, ter a mesma origem.
A corrente difusionista foi, no entanto, muito importante para a compreensão da diversida-
de cultural e seus conceitos foram retomados nos estudos de história cultural. As pesquisas sobre
fenômenos de contato cultural e de empréstimo abriram caminho para os futuros estudos de
aculturação e trocas culturais dos quais falaremos mais adiante.
23
UAB/Unimontes - 2º Período
direta, institucionalizando a etnografia como demasiado simplistas para serem úteis à An-
fundamental para a antropologia. tropologia.
Antes de tudo, buscava pensar a diferen- Questionava fortemente os pesquisado-
ça como fundada em questões culturais e não res que, com base em evidências fragmen-
raciais. tadas, construíam generalizações acerca das
Sua formação acadêmica era em Física, culturas. Afirmava, assim, a impossibilidade de
Matemática e Geografia, mas sua carreira an- identificar leis gerais sobre o condicionamento
tropológica se inicia após ter sido muito in- social, fenômeno tão complexo e determinado
historicamente.
Figura 7: Franz Boas ► Tornou-se assim muito conhecido por
entre os Inuit suas afirmações sobre o particularismo históri-
Fonte: Disponível em co. Segundo ele, a vida cultural de cada povo
http://www.amazon. só pode ser compreendida sob as condições
ca/Franz-Inuit-Baffin-
-Island-1883-1884/ únicas de configuração dos acontecimentos
dp/0802041507 Acesso em históricos vividas por ele.
jan. 2009. Questionava a uniformidade da história
presente nas teorias evolucionistas. Argumen-
tava ferozmente contra a sua definição de es-
tágios de evolução da cultura e questionava a
PARA SABER MAIS validade do método comparativo, conforme
Para mostrar que a va- aplicado na época, que ele classificava de im-
riação do tipo físico hu- prudente, por justificar as reconstruções evo-
mano não estava ligada lucionistas ingênuas, repletas de imprecisões
somente a questões teóricas e metodológicas, que não passavam
raciais, mas também de preconceito disfarçado na forma de experi-
se alteravam devido à
influência ambiental, ência científica.
Boas utilizou dados da Afirmava que a existência de objetivos,
forma da cabeça de fenômenos e conceitos semelhantes em luga-
17.821 indivíduos nos res distantes, por si, não prova que exista uma
Estados Unidos, já que uniformidade da história, ou seja, que todos os
a cabeça geralmente é
vista como o traço da povos se desenvolveram a partir de um mes-
figura humana menos mo ponto, mesmo que através da difusão. Não
mutável. Considerando acreditava que todos os traços comuns desen-
um espaço de tempo volvem-se sempre a partir das mesmas causas.
decorrido a partir Para ele, faltavam dados coletados que permi-
da chegada dos pais
imigrantes de várias na- tissem essa conclusão.
cionalidades aos EUA, fluenciado pelo contato íntimo com os esqui- Para Boas, era impossível afirmar a exis-
os resultados demons- mós (povo Inuit) em viagem realizada à Ilha tência de um sistema de evolução da socieda-
traram que a forma da Baffin, entre 1883-1884, que fez aumentar seu de sem a prova de que os fenômenos comuns
cabeça dos indivíduos interesse pela Geografia Cultural e vai levá-lo tiveram a mesma origem. Sem essa prova só
de um grupo pode
sofrer mudança com a interessar-se pelo papel da tradição social se poderia pensar, por outro lado, que o de-
o tempo, mesmo sem como causa determinante da cultura e dos senvolvimento histórico das sociedades se
ter havido mudança comportamentos humanos. deu, na verdade, por caminhos diversos.
de descendência e no Boas se destacou por seu rigor científico Boas afirmava que os fatos devem ser
caso dos indivíduos e cuidado nas afirmações, mais do que a rea- observados para que sejam compreendidos,
estudados tendiam
com o tempo para o lização de pesquisa de campo e coleta deta- então, para compreender a história não basta-
formato típico predo- lhada de dados. Boas defendia que estas eram va saber como as coisas são, mas também era
minante nos Estados tão ou mais importantes que as teorizações e preciso saber como elas chegaram a ser como
Unidos. (SILVA, 2006). defendia que a construção de afirmações et- são. Dizia então que deveria ser feita a compa-
Nesse caso, reflita sobre nográficas só deveriam ser feitas sobre provas, ração das histórias culturais individuais e que
as noções de raça e cul-
tura como forma de se sendo imperdoável a falta de atenção aos da- daí poderiam surgir as leis gerais do desenvol-
entender as sociedades dos e às conclusões precipitadas. Deu enorme vimento humano.
humanas. contribuição ao elevar o nível dos métodos da Ao invés do método comparativo puro e
investigação antropológica e seus critérios de simples, utilizado pelos evolucionistas, Boas
verificação. propunha investigações históricas de culturas
Era conhecido pelo rigor de seus relató- simples para descobrir a origem de traços cul-
rios, sempre objetivos e austeros, qualidades turais e interpretar seu lugar numa determina-
certamente trazidas de sua formação em Físi- da cultura.
ca e Matemática. Evitava ao máximo as gene- A partir de Boas, construiu-se nos antro-
ralizações, julgando mesmo que estas seriam pólogos americanos uma preocupação com a
24
Ciências Sociais - Antropologia II
Referências
CASTRO, Celso (org.). Evolucionismo Cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2005.
25
UAB/Unimontes - 2º Período
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LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2003.
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de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
TYLOR, Edward B. The Origins of Culture. New York: Harper e Row, 1970.
26
Ciências Sociais - Antropologia II
Unidade 2
O culturalismo americano em sua
fase clássica e o funcionalismo de
Malinowski
Carlos Caixeta de Queiroz
Lucíola Paranhos
2.1 Introdução
Nesta unidade apresentaremos a abordagem do culturalismo americano a partir das con-
tribuições teóricas de Franz Boas para os debates desta e consequentemente para o desenvol-
vimento da antropologia moderna. Abordaremos, em seguida, a formação da escola de Cultura
e Personalidade, seus principais expoentes e suas principais teorias. Por fim, falaremos sobre os
estudos de aculturação também influenciados pelo culturalismo de Franz Boas.
Essa unidade tem também o objetivo de explorar o significado da emergência do trabalho
de campo na Antropologia, por meio de Bronislaw Kaspar Malinowski (1884-1942), e a formação
da perspectiva funcionalista na análise da cultura. É importante salientar que os conceitos, pro-
gressos e teorias da Antropologia devem ser entendidos em função do contexto em que foram
elaborados.
Malinowski desempenhou um importante papel na constituição da Antropologia como dis-
ciplina científica autônoma. Seus postulados relacionados ao modo de pesquisa etnográfica, ten-
do como estratégia básica o trabalho de campo e a observação participante, são apresentados
na introdução de “Argonautas do pacífico ocidental” (publicado em 1922). Esse livro, sem dúvida,
dividiu a Antropologia em duas fases: antes e depois de Malinowski (PEIRANO, 1992).
27
UAB/Unimontes - 2º Período
Nos Estados Unidos, estes estudos culminaram com o refinamento de conceitos como “área
cultural” e ”traço cultural”, tomados emprestados dos difusionistas alemães. As áreas culturais se-
riam, então, unidades geográficas relativamente pequenas, baseadas na distribuição contígua de
elementos culturais.
O “traço cultural” seria, então, o menor componente de uma cultura. A ideia dos estudiosos
era estudar a área espacial de um traço cultural, ou um conjunto deles, em culturas próximas, e
entender como este traço se difundiu. Quando havia uma grande convergência de traços cultu-
rais semelhantes em um dado espaço, isso era chamado de “área cultural”. (CUCHE, 1999)
No centro da área cultural encontravam-se os elementos fundamentais de cada cultura. À
medida que se aproximava das bordas da área cultural, aumentavam os traços provenientes de
áreas vizinhas.
Este conceito se aplicou perfeitamente às exigências práticas da investigação etnográfica
americana para classificar e representar cartograficamente as culturas indígenas da América do
Norte. Isso permitiu a definição de categorias geográficas usadas como unidades de exposição
para a ordenação dos materiais, em seções ou salas no Museu Americano de História Natural e
no Museu de Chicago.
O próprio Kroeber advertia, no entanto, que este conceito não seria tão aplicável em outras
partes do mundo, devendo ser aplicado de forma mais flexível para manter sua capacidade des-
critiva.
Conceito semelhante se desenvolveu na Europa. A noção de “círculos culturais” designava
complexos culturais que se encontravam dispersos pelo mundo cuja origem geográfica inicial
não se conhecia.
28
Ciências Sociais - Antropologia II
A chave para compreensão da lógica de cada cultura seria, portanto, o estudo desta con-
figuração específica de cada povo. Em sua obra Padrões de Cultura, Benedict conclui que cada
cultura se caracteriza por um padrão, um estilo. A ideia de padrão leva, então, a uma visão das
culturas como algo homogêneo e coerente.
Afirmando a singularidade de cada cultura e a variedade das culturas, a autora defendia, no
entanto, que estas se reduziam a certo número de tipos, que poderiam ser identificados.
Benedict descreveu em detalhes o comportamento e as características de povos de diferen-
tes culturas, para demonstrar que cada cultura tinha uma “personalidade” que era estimulada em
cada indivíduo, em seus rituais, crenças, preferências pessoais etc.
A diversidade das culturas resulta não apenas da facilidade com que as socie-
dades elaboram ou repudiam aspectos possíveis da existência. É devida ainda
mais a um complexo entretecimento de feições culturais [...] A natureza da fei-
ção será variável com as regiões e de acordo com os elementos com que está
combinada (BENEDICT, [195?], p49).
29
UAB/Unimontes - 2º Período
GLOSSÁRIO Entre os povos estudados por Benedict, buscando demonstrar suas teorias, estão os Kwakiu-
Potlatch: Termo da tl, da Ilha de Vancouver, na costa noroeste dos Estados Unidos, e os Índios Pueblo, do Novo Mé-
língua índia nootka que xico. Comparando seus modelos culturais, ela classificou os Kwakiutl como sendo do “tipo dioni-
significa ‘dar’ e designa síaco” por seu temperamento mais agressivo, até violento, ambicioso e individualista, com uma
um dom ofertado por tendência afetiva mais exagerada. Mostravam-se violentos tanto em sua vida econômica e na
motivos de rivalidade guerra como em suas iniciações e danças cerimoniais. Exemplo de seu temperamento exagerado
ou de provocação.
Inicialmente, o termo e violento são as famosas cerimônias do Potlach.
referia-se a uma Os Pueblo por sua vez, foram classificados como do “tipo apolínico”, uma vez que se mos-
instituição própria travam tranquilos, respeitadores, solidários e mais contidos nas emoções. O homem ideal dos
dos índios da costa Pueblo deve ser amável e delicado, jamais querer ser um líder ou se destacar, jamais demonstrar
noroeste dos Estados arrogância ou emoção forte.
Unidos (etnias Kwakiutl,
Tlingit, Tsimshian, etc.);
posteriormente, e uma
vez que se reconheceu
a universalidade desta Figura 10: Esculturas de ►
prática ou a existência Totens Kwakiutl e casa
de práticas semelhan- do Chefe Nimpkish,
tes no resto do mundo, Tlah-Co-Glass
o termo potlatch é cada Fonte: Disponível em
vez mais utilizado pelos <http://content.lib.
etnólogos como um washington.edu/aipnw/
termo genérico que se wright.html> Acesso em
aplica a certo tipo de jan. 2009.
comportamento em
relação à riqueza. O
potlatch consistia em os
chefes ou os membros
da aristocracia ofere-
cerem solenemente
riquezas a um rival para
o desafiarem, humi-
lharem ou dominarem.
O donatário, uma vez
que não podia recusar Em sua última obra, O Crisântemo e a Espada, de 1946, Benedict busca desvendar os pa-
o presente que lhe era
feito, encontrava-se drões da cultura japonesa. O objetivo do estudo, assim como de outros encomendados a outros
vencido e perde para antropólogos que apoiavam os Estados Unidos e seus Aliados na Segunda Guerra, então em
sempre a sua posição e guerra com o Japão, era entender os padrões culturais dos povos inimigos, entender suas táticas
todo o seu prestígio ao e descobrir seus pontos fracos.
mostrar-se incapaz de
fazer, posteriormente,
a contraoferenda espe-
rada, ou levantar a luva
e devolver com usura o
que tivesse recebido. A
instituição do potlatch
transformou-se quando
as condições econômi- Figura 11: Anotações ►
cas e demográficas que de Ruth Benedict
acompanhavam o seu da entrevista com
funcionamento se mo- Hashima, retirada dos
dificaram. A introdução arquivos do Vassar
da economia mercantil College
dos brancos provocou
fenômenos inflacioná- Fonte: Disponível em
<http://www.japan-
rios, precisamente no focus.org/products/
momento em que o details/2474> Acesso em
declínio demográfico jan. 2009.
atingia as populações
índias e punha fim à
competição. Finalmen-
te, o potlatch deixou
de funcionar como
sistema de distribuição
dos papéis sociais,
para sobreviver como
festa de destruição das
riquezas tradicionais.
30
Ciências Sociais - Antropologia II
O Crisântemo e a Espada é uma obra muito elogiada e considerada muito acurada sobre a
cultura japonesa.
A pesquisa que levou à publicação de O Crisântemo e a Espada foi feita totalmente à distân-
cia, sem nenhuma pesquisa in loco ou visita ao Japão. O estudo foi realizado a partir da literatura
e filmes do Japão, recortes, documentos, arquivos e entrevistas com imigrantes. As visitas ao Ja-
pão ou à Alemanha eram impossíveis em função da Guerra. PARA SABER MAIS
Como boa discípula de Franz Boas, Benedict defendia fortemente o relativismo cultural, de-
Podemos julgar como
monstrando que cada cultura tem seus imperativos morais, e que estes só podem ser compreen- imorais as práticas da
didos quando se analisa a cultura como um todo. Afirma que a moralidade é relativa e que a cul- poligamia ou de liber-
tura de um povo não poderia ser avaliada somente com base em nossas referências. Cada cultura dade sexual existentes
tem seus próprios valores e estes devem ser respeitados. Esforçava-se por descrever as culturas em outras culturas?
por inteiro e defender a igualdade das culturas.
Benedict também criticou com toda veemência as crenças racistas e defendeu a igualdade
das raças. Produzindo material de divulgação com o ponto vista científico contra as ideias racis-
tas, reforçava a irmandade das raças e argumentava que a suposta diferença de inteligência ou
outras de características entre as raças se devia antes as diferenças de rendimento, educação,
vantagens culturais e outras oportunidades. Lembrava, ainda, que todos somos produto das
miscigenações raciais produzidas nos movimentos dos povos pela Terra.
31
UAB/Unimontes - 2º Período
São muitas as pesquisas realizadas sobre as variadas formas de comportamento sexual, re-
sultantes tanto das diferenças de educação sexual como dos próprios rituais amorosos em si.
Durante a Segunda Guerra, Mead registrou dados sobre o relacionamento entre soldados
americanos, em trabalho na Grã-Bretanha, e as jovens inglesas. Ambos reclamavam do compor-
tamento uns dos outros nos relacionamentos amorosos. Mead identifica aí um choque intercul-
tural, uma vez que os soldados norte-americanos e as jovens inglesas não compartilhavam do
mesmo código de regras para o relacionamento entre homens e mulheres. Sendo assim, os mes-
mos gestos e atitudes tinham significados distintos para os dois grupos oriundos de diferentes
culturas. Um beijo, por exemplo, para os americanos era considerado um gesto normal para o
início de um namoro, já para as inglesas significava algo com consequências mais sérias, já que
seria a última etapa antes do ato sexual.
Assim como Mead, outros antropólogos identificaram variações nos padrões de comporta-
mento sexual em diferentes culturas. Na Melanésia, meninos e meninas na puberdade são inicia-
dos nas técnicas amorosas por monitores experimentados, e entre os Muriana, na Índia, os jogos
sexuais entre os jovens são incentivados. (LAPLANTINE, 2003)
A sua pesquisa sobre os Manus da Nova Guiné, condensada na obra Growing up in New Gui-
nea, publicada em 1930, permite visualizar as vidas em família, suas atitudes face ao sexo, casa-
mento, educação dos filhos e ao sobrenatural.
Um dos trabalhos mais importantes de Mead foi realizado entre 1931 e 1935, na Oceania,
entre os Arapeshs, os Mundugomors e os Chambulis, exemplificando a existência de culturas
que manifestam de formas radicalmente distintas a diferenciação dos sexos, uma obra exemplar
da abordagem culturalista.
Nessa pesquisa, ela demonstra que existem culturas em que a diferenciação da personalida-
de masculina e feminina não é destacada ou ainda que as características normalmente atribuídas
a homens e mulheres se encontram diferentes ou até mesmo invertidas em determinados povos,
mostrando que, na verdade, não estão ligadas à definição biológica do sexo.
Os Arapesh cuidam para que desde a infância, homens e mulheres sem distinção sejam pes-
soas doces e sensíveis. Entre os Mundugomor, homens e mulheres são incentivados a competir
entre si, reforçando uma natureza mais agressiva. Em ambos os povos não se espera um compor-
tamento diferenciado de homens e mulheres.
Já entre os Chambulis, a diferenciação entre os sexos é bem marcada. No entanto, eles acre-
ditam que homens são, “por natureza”, mais sensíveis, menos seguros, mais preocupados com a
aparência, sendo os responsáveis por atividades rituais e estéticas. Já as mulheres devem garan-
tir a sobrevivência do grupo e por isso são elas que têm o poder econômico, devendo ser empre-
endedoras e dinâmicas.
Em seus estudos, Margaret Mead acabou por focar a educação e a variabilidade das relações
entre os homens e as mulheres, em que conclui:
32
Ciências Sociais - Antropologia II
33
UAB/Unimontes - 2º Período
34
Ciências Sociais - Antropologia II
Antropologia
tografias que reflete os
consideráveis avanços
no conhecimento sobre
os Aborígines. Spencer
irá disparar a imagina-
As novas bases da Antropologia confun- ção dos antropólogos
dem-se com a história de Malinowski, pois foi e do público em geral
ele que propôs novos termos metodológicos também (www.wes-
para a disciplina. Sua formação inicial, no en- print.com.au).
Veja a biografia de
tanto, foi no campo das ciências exatas, tendo Walter Baldwin Spencer
se doutorado em física e matemática pela Uni- (1860-1929) no Austra-
versidade de Cracóvia na Polônia, onde nasceu. lian Dictionary of Biogra-
Influenciado pela leitura da obra de James phy Online. Disponível
Frazer, The Golden Bough, (O Ramo de Ouro), em<http://www.adb.
online.anu.edu.au/
iniciou-se na Antropologia e, já na Inglaterra, biogs/A120043b.htm>
inicia seus estudos sob a orientação de Karl Acesso em jan. 2009.
Bucher Wilhelm Wundt. Mantém contato com
Seligman, Haddon, Rivers, Frazer e Marett – im-
portantes antropólogos da época (MALINO-
WSKI, 1984, p. VIII)
O início da carreira de Malinowski é mar- ◄ Figura 15: Livro de
fotografias de Baldwin
cado pelo desenvolvimento de novas técnicas Spencer
de pesquisa e críticas aos métodos adotados Fonte: Disponível em
até então. Nesta época, fim do séc. XIX, os an- <http://www.westprint.
tropólogos não tinham qualquer contato com com.au/Product%20
Pages/aboriginals7.htm>
os povos que chamavam de primitivos e sobre Acesso em jan. 2009.
os quais escreviam. Seus escritos baseavam em
relatos históricos, arqueológicos e de viagens.
No entanto, algumas exceções eram registra-
das: na América, Morgan e Cushing; e, na Europa, iniciam-se trabalhos com observações diretas
sobre populações tribais. De acordo com Mercier (1974?), nessa época é que surge a preocupa-
ção em verificar hipóteses geográficas e em transformar toda viagem em empreendimento de
coletar dados etnográficos. Por esse motivo é que é publicado “L’Instruction générale aux voya-
geurs” pela Sociedade Etnológica de Paris.
As potencialidades do trabalho de campo são enfatizadas com uma orientação te-
órica direcionada a uma coleta de dados em profundidade. São publicadas as extensas
investigações feitas por Baldwin Spencer e Frank Gillen (1889) sobre aborígenes austra-
lianos, época da famosa Expedição Cambridge ao Estreito de Torres, organizada por Ha-
ddon.
Como pioneiros, Rivers, que pesquisou os Todda em 1901, e Seligman, que fez ex-
tenso levantamento na Melanésia em 1904, iniciaram trabalhos de campo, “fase que Ma- ▲
linowski iria revolucionar” (DURHAM, 2004, p. 206). Essas experiências e a abordagem teórica de Figura 16: Baldwin
Durkheim é que formaram a nova geração de antropólogos do qual Malinowski fazia parte. Spencer Expedition,
Em 1913, Malinowski publica “A família entre os aborígenes australianos”, trabalho baseado 1901.
nas descrições de Spencer e Gillen. Disponível em <http://
www.abc.net.au/limelight/
Apenas em 1914 é que Malinowski realiza sua primeira experiência de campo (na Melanésia docs/films/5_1_2_3.htm>
entre os Mailu). A primeira Guerra Mundial o impede de voltar à Inglaterra. Assim, inicia nova Acesso em jan. 2009.
pesquisa de campo nas Ilhas Trobriand, Nova Guiné, ficando por lá entre junho de 1915 a maio
de 1916 e entre outubro de 1917 a outubro de 1918. Foi essa importante experiência que deu
origem ao livro “Argonautas do Pacífico Ocidental”.
No decorrer de duas estadias sucessivas nas ilhas Trobriand, ninguém antes dele tinha se
esforçado tanto em penetrar na mentalidade dos outros e em compreender de dentro, por uma
verdadeira busca de despersonalização, o que sentem os homens e as mulheres que pertencem
a uma cultura que não é nossa (LAPLANTINE, 2000, p. 80).
O livro “Argonautas” se destaca na obra de Malinowski pelo “ideal de paridade embutido no
35
UAB/Unimontes - 2º Período
programa didático de sua introdução” (PEIRANO, 1992, p. 5). O homem primitivo, para ele, não
PARA SABER MAIS era atrasado, ignorante ou infantil, como podia ser observado em obras científicas. Isso decorria
de um defeito da observação. Completa Laplantine:
Com o Funcionalismo,
as sociedades não Os antropólogos [...] identificavam-se totalmente com a sua sociedade [...] con-
europeias passam a siderada como civilização. [...] Em relação a esta, os costumes dos povos primiti-
ser estudadas naquilo vos eram vistos como aberrantes. Malinowski inverte essa relação: a antropolo-
que lhes era próprio e gia supõe uma identificação (ou pelo menos, uma busca de identificação) com
específico. a alteridade, não mais considerada como forma social anterior à civilização, e
sim como forma contemporânea mostrando-nos em sua pureza aquilo que nos
faz tragicamente falta: a autenticidade. Assim sendo, a aberração não está mais
do lado das sociedades primitivas e sim do lado da sociedade ocidental. (LA-
PLANTINE , 2000, p. 82-83
Para Durham (2004), Malinowski teve uma capacidade de reconstruir uma realidade cultu-
ral específica. Seus conhecimentos são produto de uma reflexão teórica (principalmente a crítica
aos métodos da Antropologia Clássica – Evolucionismo e Difusionismo) e de uma proposição de
novas técnicas de investigação.
GLOSSÁRIO
Couvade: (palavra
francesa que significa
“choco”, “incubação”). 2.3.1 Fundamentos da escola funcionalista
Costume em vigor no
período que precede
um parto. Esse costume Antropólogos britânicos da nova geração como Radcliffe-Brown e Malinowski criticaram ra-
impõe ao futuro pai dicalmente os postulados evolucionistas e difusionistas vigentes no séc. XIX.
certo número de No Evolucionismo, os costumes só faziam sentido quando estavam relacionados em um
proibições, assim como eixo temporal, em que sempre há algo que sobra, que consegue perpassar a transformação que
um comportamento
decalcado sobre o da
vem com o tempo, privilegiava-se a noção de sobrevivência desse resíduo que permitia “relacio-
futura mãe (repouso, nar o presente com o passado” (DAMATTA, 1987, p.102). Em oposição a esses conceitos, o Fun-
isolamento, estada na cionalismo buscava revelar que em uma sociedade nada poderia ocorrer ao acaso. Como uma
cama etc.). Considera- sobrevivência de tempos passados, tudo tem uma funcionalidade.
-se, pois, que o pai Com o Funcionalismo, a sociedade é estudada como um sistema coerente integrado de rela-
participa no processo
de dar à luz à criança.
ções sociais (DAMATTA, 1987).
Numerosas teorias Esse mesmo autor cita que o posicionamento Funcionalista é positivo e revolucionário em
foram propostas para relação ao Evolucionismo, pois, na definição do sistema social, afirmava:
justificar a couvade; a. Não existem restos culturais, tudo desempenha um papel;
algumas delas apelam b. Tudo tem um sentido, ainda que esse sentido não seja facilmente localizável; e
para a noção de magia
por contágio, outras
c. O sentido de um costume, hábito social ou instituição tem que ser compreendido nos ter-
para a psicanálise etc. mos do sistema do qual provém [...] (DAMATTA, 1987, p. 103-104).
36
Ciências Sociais - Antropologia II
37
UAB/Unimontes - 2º Período
38
Ciências Sociais - Antropologia II
Referências
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CARVALHO, Alix de. Colectando com Margaret Mead pelo Pacífico Sul. Episteme, Porto Alegre, n.
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DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro, 1987.
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39
Ciências Sociais - Antropologia II
Unidade 3
A antropologia da escola
sociológica Francesa: Durkheim e
Mauss
Cristina Andrade Sampaio
Carlos Caixeta de Queiroz
3.1 Introdução
Nesta unidade abordaremos as teorias e estudos produzidos pela chamada “escola france-
sa de sociologia”. Mais especificamente trataremos das contribuições de Émile Durkheim, Marcel
Mauss e Lévy-Bruhl, primeiros teóricos da antropologia e, em especial, dos estudos sobres os sis-
temas de representações.
41
UAB/Unimontes - 2º Período
Durkheim dá como exemplo os deveres que cumprimos nos vários papéis que assumimos
na sociedade, deveres que estão definidos fora de nós, no direito e nos costumes. Assim como as
crenças e as práticas da vida religiosa, ou a forma de nos vestirmos, ou a linguagem e o sistema
ATIVIDADE de moedas que utilizamos, que embora não sejam obrigatórios, são fatos sociais, exteriores a nós
Baseado na definição e exercem certo poder sobre nós, quer queiramos ou não.
e exemplos dados por A definição dos fatos sociais vai, daí em diante, marcar toda a obra de Durkheim, da Escola
Durkheim, pense em Sociológica Francesa e das ciências sociais em geral.
mais três exemplos de Partindo da concepção de fato social de Durkheim (fato social como “coisa”, objeto a ser es-
fatos sociais. tudado), Mauss introduz no conceito o aspecto simbólico. Nos fatos sociais totais – como a troca
nas tribos do noroeste americano –, exprimem-se as instituições religiosas, jurídicas, morais, eco-
nômicas, bem como os fenômenos estéticos e morfológicos; enfim, toda a vida social se mistura
e está presente ali.
Para Mauss:
Neles [fatos sociais totais] tudo se mistura, tudo o que constitui a vida pro-
priamente social das sociedades que precederam as nossas [...]. Nesses fe-
nômenos sociais “totais”, como nos propomos chamá-los, exprimem-se, de
uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas
sendo políticas e familiares ao mesmo tempo -; econômicas – estas supondo
formas particulares da produção e do consumo, ou melhor, do fornecimento
e da distribuição-; sem contar os fenômenos estéticos em que resultam es-
ses fatos e os fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam.
(MAUSS 2003, p. 187).
Mauss afirma, então, que para existir o fato social total, não é necessária somente a integra-
ção de vários aspectos, mas também que o fato se encarne em uma experiência individual.
42
Ciências Sociais - Antropologia II
GLOSSÁRIO
Para Peirano (1990), foi o kula de Malinowski que permitiu a Marcel Mauss conceber o fato Totemismo: “Termo for-
social total. O Kula consiste em uma “troca cerimonial de conchas de spondylus vermelho por jado a partir da expressão
algonkin (língua índia da
braceletes de conchas brancas entre determinados parceiros no extenso círculo de ilhas no ex- América do Norte) otote-
tremo oriental da Nova Guiné” (PEIRANO, 1990, p. 3). Para essa autora, não era apenas um fenô- man, ‘ele é meu parente’,
para designar um sistema
meno econômico de troca de bens preciosos, mas envolvia as esferas do religioso, da política, simultaneamente religioso
da mitologia, dos ritos, repercutia nas formas linguísticas e incluía também o comércio puro e e sociológico, do qual, du-
rante muito tempo, se fez a
simples, criando um circuito fechado de relações entre as ilhas do arquipélago. Dessa forma, as quintessência do ‘primitivis-
trocas em si permitiam a fortalecimento dos vínculos sociais, sendo bem mais que simples troca mo’. Esse sistema baseia-se
na relação que existe, numa
dos objetos. sociedade segmentada,
É nesse processo do Kula que Mauss conseguiu entender o social integrado na experiência entre um conjunto de ani-
mais ou, mais raramente, de
individual dos melanésios. vegetais ou de fenômenos
O Kula se constitui como fato social total por ser apreendido em uma experiência concreta, naturais e um conjunto de
grupos humanos (exem-
por integrar o social (econômico, jurídico, estético etc.) e o individual (físico e psíquico) na vida plo: o conjunto dos clãs,
dos melanésios das Ilhas Trobriand. o conjunto das classes
de idade, o conjunto das
Durkheim e Maus vão percebendo, com o tempo, a complexidade dos fenômenos sociais e fratrias dessa sociedade).
a necessidade de analisá-los em suas diversas dimensões, entre elas a dimensão cultural, já que O animal ou o vegetal
associado a cada grupo
os fenômenos sociais têm seu caráter simbólico. Debruça-se, então, no final do séc. XIX, junta- chama-se Totem. Muitas
mente com Marcel Mauss, sobre o estudo das representações sociais das sociedades primitivas vezes, mas nem sempre,
o totem é objeto de um
que culminará no estudo denominado “Algumas Formas Primitivas de Classificação”, publicado culto, de veneração ou de
em 1901. Inaugura-se a denominada “linhagem francesa” na Antropologia. Com essa obra, aca- tabus por parte do grupo
em questão. Acontece
bam por estabelecer uma ponte entre a teoria sociológica e as preocupações da antropologia. também que o totem seja
Discordando completamente dos pressupostos evolucionistas, em especial da ideia de evo- considerado o antepassado
do grupo. Várias gerações
lução unilinear de todas as sociedades, Durkheim demonstrava uma postura relativista e afirma- de teóricos fizeram dessa
va que a normalidade é relativa a cada sociedade e ao seu nível de desenvolvimento. Em seus es- instituição complexa a
forma mais elementar
tudos, ele procurava demonstrar a unidade da humanidade e refutar a distinção entre primitivos da religião e a origem de
e civilizados. diversos costumes que
pareciam característicos
Durkheim era antes de tudo um sociólogo e enxergava a Antropologia, ou mais especi- das sociedades “primitivas”:
ficamente a etnografia, como um ramo anexo da Sociologia. Seguia, então, em seu interesse a exogamia, o sacrifício,
o culto dos antepassados
demonstrar que fenômenos sociais só podem ser explicados pelo social. Por isso, buscava es- etc. O melhor exemplo da
tabelecer um método rigoroso para os estudos dos fatos sociais. Recusava o comparativismo utilização do totemismo
como explicação unitária é
especulativo, comum entre os evolucionistas, e buscava o desenvolvimento do procedimento dado por Freud em Totem e
empírico, baseado em dados etnográficos. A grande preocupação era determinar a natureza Tabu. Mas, a partir de 1920,
os etnólogos começaram
do vínculo social. a duvidar da existência do
Ainda diferente dos estudiosos evolucionistas, Durkheim não vê no homem primitivo o totemismo como instituição
autônoma e distinta, de tal
seu objetivo principal de análise. O homem primitivo passa a ser um instrumento para o co- forma grande se revelou
nhecimento de uma realidade mais geral e atual, como, por exemplo, a religião e seu papel na a heterogeneidade dos
elementos culturais reuni-
sociedade. O homem primitivo se torna, assim, um caminho metodológico para compreensão dos sob esta etiqueta, ao
desse objeto. mesmo tempo que a sua
presença ou ausência nas
Para seus estudos, ele partia então de alguns pressupostos: a sociedade como uma totali- várias sociedades parecia
dade orgânica, como sistemas complexos e solidários e a prioridade da sociedade sobre o indi- cada vez mais fortuita.
Finalmente, em 1962, Lévi-
víduo. -Strauss demonstrou que o
Esses dois pontos se materializam, segundo Durkheim, na chamada “consciência coletiva” da totemismo era uma ilusão
devida aos preconceitos
sociedade. É ela que realiza a unidade e coesão. Feita de representações coletivas, ideais, valores dos sábios do final do
comuns a todos os indivíduos da sociedade, a consciência coletiva se impõem aos indivíduos e é século XIX (‘o totemismo
é, antes de mais nada,
exterior a eles. Em “A Divisão do Trabalho Social”, ele a define: uma projeção, para fora do
nosso universo e como que
O conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de através de um exorcismo,
de atitudes mentais incom-
uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem sua vida pró- patíveis com a exigência
pria; poderemos chamá-lo: consciência coletiva ou comum. Sem dúvida ela de descontinuidade entre
não tem por substrato um órgão único; é, por definição, difusa em toda a ex- o homem e a natureza,
tensão da sociedade; mas não deixa de ter caracteres específicos que fazem exigência que o pensa-
mento cristão considerava
dela uma realidade distinta. Com efeito, é independente das condições par- essencial, Le Totémisme
ticulares em que os indivíduos estão colocados; eles passam, ela permanece Aujourd’hui). A única reali-
(DURKHEIM, 1973, p.342). dade que se pode distinguir
ainda nesta pseudo-insti-
tuição é um processo de
Ressaltava, assim, que os grupos, as sociedades possuem uma individualidade psíquica pró- classificação que provém
da ciência ‘primitiva’ e faz
pria que se reflete em sua consciência coletiva e, por isso, se contrapunha às teses individualistas corresponder diversos ele-
e ao psicologismo na explicação de fatos sociais. mentos do reino da cultura
a diversas entidades do
reino da natureza” (PANOFF
e PERRIN, s/d, p. 167).
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UAB/Unimontes - 2º Período
Por fim, afirmavam que o sistema lógico de qualquer sociedade é fundado no seu sistema
social. Para isso, eles mostraram que as formas de classificação existentes em cada sociedade são
objetivações das determinações próprias da sociedade, ou seja, são um decalque da vida social.
Durkheim argumenta contra a ideia de que o processo de surgimento das faculdades lógi-
cas das sociedades, ou o que ele chama de função classificadora, dependa somente da psicolo-
gia individual, ou que seja uma faculdade inata do ser humano. Toda classificação implica uma
ordem hierárquica da qual nem o mundo sensível nem a nossa consciência nos oferecem o mo-
delo. (MAUSS, 1981, p. 403)
Utilizando dados empíricos, Durkheim e Mauss buscam, então, provar que a função classi-
ficadora está longe de ser uma necessidade natural do ser humano e vão discutir sobre a proce-
dência dessa função.
Nos seus estudos, Durkheim segue a ideia de que só é possível apreender a essência de um
fenômeno social observando suas formas mais elementares. Por isso busca, por exemplo, anali-
sar as formas de classificação das sociedades primitivas (no caso as australianas) e o totemismo
que, segundo Durkheim, seria a forma mais elementar de religião.
Ele argumenta tomando como a base os sistemas de classificação dos grupos australianos
(considerados os mais elementares) e descreve o tipo de organização social dessa sociedade.
Elas, em geral, se dividem em dois grandes grupos chamados fratrias. Cada fratria, por sua vez, se
divide em um número de clãs, que correspondem a grupos de indivíduos portadores do mesmo
totem. Além da divisão em clãs, cada fratria tem ainda a divisão por classes matrimoniais.
Um clã é composto por indivíduos que se consideram unidos por um laço de parentesco.
Mas esse parentesco não é necessariamente consanguíneo. Os indivíduos se consideram paren-
tes por serem designados pelo mesmo nome.
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Ciências Sociais - Antropologia II
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UAB/Unimontes - 2º Período
classificados, rotulados, e colocados num lugar único no sistema, com partes coordenadas e su-
bordinadas umas às outras segundo os graus de parentesco (MAUSS, 1981).
Durkheim, a partir de dados etnográficos de várias tribos, conclui que existe, portanto, um
vínculo estreito entre o sistema social e o sistema lógico destas tribos.
Assim, os dois tipos de classificação que acabamos de estudar nada mais fazem
senão exprimir, sob diferentes aspectos, as próprias sociedades no seio das
quais elas foram elaboradas; a primeira era modelada de acordo com a organi-
zação jurídica e religiosa da tribo, a segunda segundo a organização morfoló-
gica. [...] Mas ambos os quadros são de origem social (MAUSS, 1981, p. 441).
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Ciências Sociais - Antropologia II
Em outro trecho diz ainda que são todas elas maneiras de agir, pensar e sentir, exteriores ao
indivíduo e dotadas de poder coercitivo que se impõe a eles.
Segundo MINAYO (1995), Durkheim nos remete à importância da compreensão das ideias
(nesse caso, das representações) e de sua eficácia na configuração da sociedade, já que as repre-
sentações são um reflexo da vida social.
Durkheim diz ainda que as ideias coletivas tendem a se individualizar nos sujeitos, tornan-
do-se para eles uma fonte autônoma de ação. As representações se manifestam em palavras,
sentimentos e condutas e terminam sendo institucionalizadas pela sociedade (MINAYO, 1995).
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UAB/Unimontes - 2º Período
Durkheim queria desenvolver estudos para mostrar o caráter social da construção dessas ca-
tegorias, que constituem os fundamentos do conhecimento. A análise das categorias do entendi-
mento permitiria perceber o modo pelo qual o grupo compreende e representa o mundo e suas
maneiras de pensar associadas às práticas sociais.
As categorias do entendimento têm as mesmas características das representações coletivas,
são construídas socialmente, referem-se ao todo e não a aspectos específicos, são impessoais e
se impõem aos indivíduos. Mas de acordo com Dukheim, segundo Oliveira (1993), na obra da Es-
cola Francesa de Sociologia, as categorias do entendimento são vistas como um tipo especial de
representações coletivas.
Como fundamentos para a construção do conhecimento e da razão, as categorias do enten-
dimento são um ponto de partida para as representações coletivas. São noções que permeiam
todas as classificações e ordenamentos que uma sociedade faz do mundo e devem ser encontra-
das em todo e qualquer grupo.
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Ciências Sociais - Antropologia II
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UAB/Unimontes - 2º Período
Não há, pois, religiões, que sejam falsas. Todas são verdadeiras à sua maneira:
todas respondem, ainda que de maneiras diferentes, a determinadas condi-
ções da vida humana (DURKHEIM, 1996, p.VII)
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Ciências Sociais - Antropologia II
Durkheim vê a religião como um sistema, formado por partes. Distingue dois tipos funda- DICA
mentais de fenômenos religiosos: os ritos e as crenças. Marcel Mauss (1872-
1950), formado em Filo-
As crenças religiosas são representações que exprimem a natureza das coisas sofia e especialista em
sagradas e as relações que essas mantêm entre si e com as coisas profanas. En- História das Religiões,
fim, os ritos são regras de comportamento que prescrevem como o homem participou da gênese
deve se comportar com as coisas sagradas. (DURKHEIM, 1996, p.24) do que seria conhecido
mais tarde como a Esco-
la Sociológica Francesa,
Durkheim classifica os ritos em três tipos: da qual seu tio Émile
• Os negativos (tabus) – Dizem respeito às interdições, ao distanciamento; Durkheim foi criador. As
• Os positivos (totem) – São atos de comunhão (de proximidade e identificação com o totem). ideias do grupo eram
veiculadas pelo Année
tais como as relações rituais; Sociologique, periódico
• Os ritos de imitação – São ritos miméticos ou representativos, que tendem a imitar a coisa no qual Mauss publicou
que deseja provocar. grande parte de seus
textos, e do qual foi
Os ritos teriam por função proporcionar coesão social, suscitar, manter e renovar o senti- editor, após a morte
mento de participação no grupo. de Durkheim, durante
Em As Formas Elementares da Religiosa, após esclarecer as definições e concepções do fenô- a Primeira Guerra. Foi
meno religioso, Durkheim começa a discutir as crenças e ritos próprios da religião totêmica, bus- professor de História
das Religiões dos Povos
cando demonstrar os elementos essenciais do fenômeno religioso. não Civilizados na École
No totemismo, entre as crenças mais importantes estão as relacionadas ao totem. O totem, Pratique dês Hautes
como já mencionamos, é a espécie de coisa que serve para designar coletivamente, dar nome a Études, colaborou na
fundação do Instituto de
um clã. Etnologia da Universida-
Os objetos que servem de totem pertencem, na grande maioria dos casos, ao reino animal e de de Paris, em 1925, e
vegetal; mas podem ser também coisas inanimadas, fenômenos cósmicos ou naturais ou corpos foi eleito, em 1930, para
celestes. Acontece também do totem ser designado pela parte de um objeto ou órgão particular a cadeira de Sociologia
do prestigioso Collège
de um animal. de France. Além das
O pertencimento a um determinado clã e o consequente parentesco com determinado to- atividades acadêmi-
tem tem reflexos nos costumes e marca profundamente a vida cotidiana de seus membros. cas e editoriais, nunca
abandonou a militância
Mas o totem não é apenas um nome, é antes um emblema, uma marca distintiva que repre- no partido de Jaurès,
senta o clã, a família. Assim, ele é sempre representado em vários objetos, nas canoas, nas armas, de quem foi amigo e
nos túmulos, nas paredes das casas e até no corpo das pessoas, com pinturas e ornamentos, para colaborador. Mauss
identificar o pertencimento ao clã ou a ligação com o totem. chamava a Etnografia de
“museu de fatos” e o seu
É comum entre os índios da América do Norte a representação dos totens em mastros escul- concorrido curso sobre
pidos, de mais de 15 metros de altura, colocados ao lado da porta de entrada, geralmente com- a matéria no Instituto
binando formas humanas e de animais, pintados com cores chamativas. de Etnologia, que teve
Marcel Griaule, Michel
Buscando ter o aspecto de seu totem, os membros dos clãs totêmicos alteram suas vesti- Leiris, Roger Bastide,
mentas, usam máscaras, mudam o corte de cabelo, fazem tatuagens, especialmente quando os Louis Dumont e Claude
clãs se reúnem. Lévi-Strauss entre seus
alunos, formou os
Durkheim diz, por fim, que, além de uma etiqueta coletiva, o totem tem caráter religioso. primeiros etnógrafos da
“[...] é em relação a ele que as coisas são classificadas em sagradas e em profanas. Ele é o próprio antropologia francesa.
modelo das coisas sagradas” (DURKHEIM, 1996, p. 113). Ironicamente, Mauss
São exemplo de instrumentos sagrados de representação do totem, os churinga, utilizados nunca fez pesquisa de
campo, considerava-se
nos ritos. São peças de madeira ou pedra polida, de formas variadas. Nelas são gravados dese- um “etnólogo de museu”
nhos que representam o totem. A palavra churinga significa a (e não de gabinete).
coisa que tem por característica essencial ser sagrada. A sua antropologia
baseava-se em erudição
Por isso, os profanos – mulheres ou jovens não iniciados histórica, vasto saber
– não podem nem mesmo ver os churinga, talvez só de longe, linguístico e no conhe-
em raras ocasiões. cimento profundo das
Esses instrumentos permanecem em lugar especial. Seu monografias produzi-
das, sobretudo, pela an-
caráter sagrado se estende ao lugar e a tudo mais em volta. tropologia social inglesa
Para os membros das tribos, os churinga possuem todo tipo que, em geral, forneciam
de propriedades maravilhosas, curam doenças, conferem po- a esse leitor perspicaz
o material a partir do
deres, por isso tem alto valor religioso e sua perda lesa gra- qual elaborava as suas
vemente a coletividade, é um desastre para todo o clã. Sua teorias. A esse respeito,
natureza religiosa se deve unicamente ao fato de portarem o Evans-Pritchard, prova-
emblema totêmico. velmente referindo-se
Figura 29: Marcel Mauss ► a Malinowski, dizia que
Mauss “era capaz de
Fonte: http://editora.cosac-
ensinar aos especialistas
naify.com.br/Autor/283/
o que eles não haviam
Marcel-Mauss.aspx.Acesso
em 20 de jun. de 2013
visto em seus próprios
textos”.
51
UAB/Unimontes - 2º Período
Também são sagradas as coisas associadas ao totem como, por exemplo, os próprios ani-
mais e plantas que dão nome aos totens. Se são considerados sagrados, é proibido consumi-los
como alimento e, ao contrário, são considerados profanos se servem de alimento. Essa classifica-
ção vai mudar de acordo com o totem de cada clã. Geralmente não se pode comer do animal ou
planta que te serve de totem.
Por outro lado, os homens têm também sua parcela sagrada, uma vez que se confundem
com o próprio totem. São sagrados especialmente certos órgãos e tecidos do corpo, como o san-
gue e o cabelo.
O sagrado, segundo Durkheim, pode ser ambíguo. As forças religiosas são de dois tipos:
1 – Benéficas, guardiãs da ordem física e moral, da saúde, das qualidades prezadas pelo ho-
mem. Inspiram respeito, amor, reconhecimento. As coisas e pessoas próximas a elas são santas.
2 – Más e impuras – produtoras de desordem, causam morte e doença, a desgraça. Inspiram
o temor, o horror, provém das coisas impuras, da profanação das coisas sagradas, dos mortos,
dos gênios malignos.
Os seres profanos devem evitar relações com ambas. Apesar dos sentimentos diferentes que
causam, ambas são sagradas.
[...] entre as duas formas opostas não somente não há solução de continuida-
de, como também um mesmo objeto pode passar de uma a outra sem mudar
de natureza. Com o puro se faz o impuro, e reciprocamente. É na possibilida-
de destas transmutações que consiste a ambiguidade do sagrado (DURKHEIM,
1996, p. 452).
Figura 30: Totens O que faz a santidade de uma coisa é como mostramos, o sentimento coletivo
Kwakiutl de que ela é objeto (DURKHEIM, 1996, p. 453).
Os dois polos da vida religiosa correspondem aos dois estados opostos porque
Fonte: Disponível
em<http://www.callipy-
passa toda vida social [...] A unidade e a diversidade da vida social é que produ-
gia600.com/allpictures/ zem, ao mesmo tempo, a unidade e a diversidade dos seres e das coisas sagra-
inside_passage/inside_ das (DURKHEIM, 1996, p. 454).
passage.htm> Acesso em
jan. 2009. A ambiguidade também está presente nos ritos. Tanto as práticas como as crenças não se
▼ classificam em gêneros separados. Correspondem a uma mesma necessidade: elevar o homem
acima de si mesmo, a uma vida superior.
As crenças exprimem essa vida em ter-
mos de representações, os ritos a orga-
nizam e regulam seu funcionamento.
Durkheim faz uma distinção entre
dois fatos semelhantes, mas de ordens
diferentes: a religião e a magia. A magia
também é composta de crenças e ritos,
cerimônias, coisas sagradas. Diferente
da religião, no entanto, a magia é uma
prática individual.
A religião supõe uma ação coleti-
va, um grupo social, uma igreja, cultos
e símbolos bem definidos. O religioso
liga, diferente da magia que isola. Daí a
definição de religião de Durkheim que
a caracteriza como um sistema “solidá-
rio” de crenças e práticas, à medida que
cumpre sua função de coesão social
(LALLEMENT, 2003, p.234)
Assim, a religião nada mais é que a
própria transfiguração da sociedade.
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Ciências Sociais - Antropologia II
[...] pois, a prestação total não implica somente a obrigação de retribuir os pre-
sentes recebidos, mas supõe duas outras igualmente importantes: obrigação
de dar, de um lado, obrigação de receber, de outro (MAUSS, 2003, p. 201)
Godbout (1999) cita, a partir de Mauss, os dois exemplos de dádiva: o Potlatch – tal como
estudou Franz Boas entre os índios da região noroeste americana –, e o Kula – descrito por Mali-
nowski em Os Argonautas do Pacífico Ocidental.
No sistema da dádiva, as relações estabelecidas pelos sujeitos através das quais bens e ser-
viços são trocados, não tem como fim o bem ou serviço recebido, mas unicamente o estabeleci-
mento e manutenção do vínculo caracterizado pelo ciclo que inclui a tríplice obrigação de dar,
receber e contribuir.
Referências
DURKHEIM, E. Da Divisão do Trabalho Social. IN: COMTE e DURKHEIM. São Paulo: Abril Cultural,
1973. (Coleção Os Pensadores)
______. As Regras do Método Sociológico. IN: COMTE E DURKHEIM. São Paulo: Abril Cultural,
1973b. (Coleção Os Pensadores)
DURKHEIM, E; MAUSS, M. Algumas formas primitivas de classificação. In: DURKHEIM, Émile. Émile
Durkheim. São Paulo: Ática, 1978. (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
53
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DURKHEIM. E. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
LALLEMENT, M. (2003). História das Ideias Sociológicas. Das origens a Max Weber. Petrópolis-
-RJ: Vozes.
LEVI-STRAUSS. Introdução à obra de Marcel Mauss. IN: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropolo-
gia. São Paulo: Cosac Naify Edições, 2003.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify Edições, 2003.
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Ciências Sociais - Antropologia II
Resumo
Unidade 1
Na Unidade 1, foram apresentadas as principais ideias dos autores da antropologia evolu-
cionista clássica: Morgan, Tylor e Frazer. Apresentaram-se, também, as principais reações de Franz
Boas ao evolucionismo e sua proposta para a consolidação da moderna antropologia. Dentre os
principais pontos comentados na Unidade 1, destacam-se:
Unidade 2
Na Unidade 2, exploramos algumas questões e abordagens da perspectiva da antropologia
americana em sua fase clássica, sobretudo, do que ficou conhecido como o culturalismo ameri-
cano ou escola de cultura e personalidade. Abordamos, ainda, a perspectiva funcionalista na an-
tropologia a partir de Malinowski. Sobretudo, pontuamos algumas questões da teoria funcional
e a importância do trabalho de campo na antropologia atribuída por esse autor. Seguem algu-
mas questões resumidas que discutimos.
Unidade 3
Na Unidade 3, discutimos a perspectiva de Marcel Mauss e Durkheim, considerados os pri-
meiros teóricos das Ciências Sociais. Foram discutidas as principais questões teóricas desenvolvi-
das por eles, principalmente a elaboração sobre representação coletiva, fato social total e a ideia
de Marcel Mauss sobre a troca e a reciprocidade como fundamento da vida social.
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Referências
Básicas
CASTRO, Celso (org.) Evolucionismo Cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed. 2005.
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FRAZER, James. O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982. Cap. 1 – “O rei do
bosque”, cap. 2 – “Os reis sacerdotes” e cap. 3 – “A magia simpática”.
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Editora Abril Cultural,
Coleção Os Pensadores, 1977. “Introdução” e Cap. III – “Características essenciais do Kula”.
MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades primitivas”. In So-
ciologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, vol. 2, 1974.
complementares
BOAS, Franz. Race, Language and Culture. New York: Macmillan Company, 1976.
MEAD, Margaret. Sexo e Temperamento. São Paulo: Editora Perspectiva, 1969. Introdução e cap.
6 e 17.
57
Ciências Sociais - Antropologia II
Atividades de
Aprendizagem – AA
1) Sobre as linhas gerais da perspectiva evolucionista na antropologia, é INCORRETA a afirmativa
que se faz na alternativa:
a. O conceito de evolução e a ideia evolucionista de progresso tornaram-se o esquema por
meio do qual tencionava-se explicar a linha evolutiva das sociedades humanas.
b. b) Na perspectiva evolucionista, a humanidade era percebida como um todo, mas com es-
tágios evolutivos diferentes. Toda cultura deveria passar pela mesma sucessão de fases de
desenvolvimento na sua marcha evolutiva.
c. O postulado central no pensamento teórico da antropologia evolucionista era que a socie-
dade humana em todas as partes teria se desenvolvido em estágios sucessivos e obrigató-
rios, numa trajetória unilinear ascendente.
d. Para os evolucionistas, na antropologia não poderia postular a existência de leis uniformes
da evolução, já que não há uma igualdade geral da natureza humana. Portanto, não se pode
dizer que há um único caminho da evolução da humanidade.
3) Os difusionistas defendiam a teoria de que os traços culturais de povos que conhecemos atu-
almente seriam resultado da difusão de traços culturais ao longo da história a partir de um ponto
geográfico comum.
a. ( ) Verdadeiro.
b. ( ) Falso.
4) Como a ideia do particularismo histórico, proposta por Franz Boas, se contrapunha às ideias
evolucionistas?
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7) Sobre a relação indivíduo e cultura, os pesquisadores Kardiner e Linton afirmavam que a per-
sonalidade básica é totalmente marcada pela cultura, determinando definitivamente o modo de
vida dos indivíduos.
a. ( ) Verdadeiro.
b. ( ) Falso.
8) Durkheim estudava as formas de classificação das sociedades “primitivas” para mostrar que es-
tas não tinham lógica ou razão.
a. ( ) Verdadeiro.
b. ( ) Falso.
9) Como os totens, elemento chave das crenças totêmicas estudados por Durkheim, se encaixam
em suas teorias sobre as representações coletivas?
60