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Carlos Caixeta de Queiroz

Cristina Andrade Sampaio


Lucíola Paranhos

2ª edição atualizada por


Carlos Caixeta de Queiroz

Antropologia II

2ª EDIÇÃO

Montes Claros/MG - 2014


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Maria da Luz Alves Ferreira
Autores
Carlos Caixeta de Queiroz
Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Graduado em
Ciências Sociais – Antropologia pela UFMG.

Cristina Andrade Sampaio


Doutoranda em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. Mestre
em Epidemiologia pela Unifesp e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de
Montes Claros – Unimontes.

Lucíola Paranhos
Mestre em Desenvolvimento Social pela Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes.
Graduada em Ciências Sociais pela Unimontes.
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Unidade 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
A tradição evolucionista na antropologia e a primeira reação ao evolucionismo social 11

1.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1.2 O contexto de formação do evolucionismo cultural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1.3 O conceito de evolução: a reconstrução da linha evolutiva numa sequência de


progresso a partir do estágio primitivo ao mais civilizado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

1.4 Morgan e o progresso humano a partir de estágios evolutivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

1.5 Tylor e a definição formal da cultura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

1.6 Frazer: magia, religião, ciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

1.7 Difusionismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

1.8 Franz Boas e a crítica ao evolucionismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

Unidade 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
O culturalismo americano em sua fase clássica e o funcionalismo de Malinowski . . . . . 27

2.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

2.2 Culturalismo e história cultural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

2.3 O funcionalismo de Malinowski e as novas bases da Antropologia . . . . . . . . . . . . . . . 35

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

Unidade 3 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
A antropologia da escola sociológica Francesa: Durkheim e Mauss . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

3.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

3.2 A escola sociológica Francesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

3.3 A origem social dos sistemas lógicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44

3.4 As representações coletivas e a sociologia do conhecimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47

3.5 Uma teoria geral da religião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

3.6 Noção de pessoa e a dádiva ou dom em Marcel Mauss . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Referências básicas e complementares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
Atividades de Aprendizagem – AA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
Ciências Sociais - Antropologia II

Apresentação
A disciplina Antropologia II faz parte do segundo módulo do Curso de Ciências Sociais –
Licenciatura, da Universidade Aberta do Brasil da Universidade Estadual de Montes Claros – Uni-
montes.
Na disciplina Antropologia II será abordado um conjunto (específico) de questões sobre al-
gumas perspectivas do pensamento clássico na Antropologia. Iniciar-se-á com a apresentação e
discussão crítica do pensamento evolucionista na antropologia a partir de três autores clássicos:
Lewis Henry Morgan, Edward Burnett Tylor e George Frazer. Em seguida, apresentaremos o di-
fusionismo e as contribuições de Franz Boas para o conhecimento antropológico. As discussões
sobre esse autor estarão centradas nas suas principais críticas ao método e à teoria evolucionista
na antropologia. Será apresentada e discutida, em seguida, a perspectiva do culturalismo ame-
ricano em sua fase clássica a partir de autores como Ruth Benedict e Margaret Mead. Continu-
ando a discussão sobre a antropologia clássica, será apresentada a perspectiva funcionalista na
antropologia a partir de Bronislaw Malinowski. A disciplina terminará com a discussão sobre dois
representantes do que ficou conhecida como a Escola Sociológica Francesa: Èmile Durkheim e
Marcel Mauss.
Os objetivos a serem alcançadas serão:
• Propiciar a reflexão teórica e metodológica sobre conceitos fundamentais da antropologia
clássica;
• Possibilitar ao aluno uma incursão na constituição histórica da antropologia e um aprofun-
damento de instrumentos teóricos e metodológicos da reflexão antropológica produzidos
sob as rubricas do Evolucionismo, da antropologia clássica americana, do funcionalismo e
da Escola Sociológica Francesa.

A disciplina estará organizada a partir das seguintes unidades temáticas:


• Unidade 1 – A tradição evolucionista na antropologia e a primeira reação ao evolucionismo
social
Esta Unidade está voltada, primeiramente, para uma apresentação dos autores conhecidos
como evolucionista na antropologia social. Apresentaremos o contexto histórico de surgimento
da perspectiva evolucionista e uma análise de suas linhas gerais. Pretende-se, portanto, apresen-
tar o método e a teoria da evolução social. Em seguida, apresentaremos as críticas de Franz Boas
ao evolucionismo social e suas contribuições para a consolidação da antropologia moderna.

• Unidade 2 – O culturalismo americano em sua fase clássica e o funcionalismo de Malinowski


Nesta parte da disciplina será abordada a antropologia americana em sua fase clássica, ou
como ficou mais conhecido o culturalismo americano a partir de autores como Margaret Mead
e Ruth Bendict. Essa perspectiva na antropologia foi grandemente influenciada pelas ideias de
Franz Boas e propôs como foco central a compreensão da relação entre cultura e personalidade,
os processos de configuração cultural e de contato intercultural. Nesta unidade apresentaremos
e discutiremos, também, a perspectiva funcionalista na antropologia a partir de um de seus ex-
poentes máximos: Malinowski. Discutiremos a teoria funcional de cultura desse autor e revisita-
remos a perspectiva metodologia proposta por ele, ou seja, a observação participante como fun-
damento da pesquisa etnográfica.

• Unidade 3 – A Antropologia da Escola Sociológica Francesa: Durkheim e Mauss


Esta última unidade da disciplina será dedicada a uma discussão de dois autores perten-
centes a “Escola Sociológica Francesa”, termo usado para indicar um movimento teórico na an-
tropologia que teve seu centro na França a partir de Émile Durkheim e Marcel Mauss. Esses dois
autores têm sido considerados os primeiros teóricos das Ciências Sociais. Portanto, abordaremos
as principais questões teóricas desenvolvidas por eles, principalmente a elaboração sobre repre-
sentação coletiva, fato social total e a ideia maussiana sobre a troca e a reciprocidade como fun-
damento da vida social.

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Ciências Sociais - Antropologia II

Unidade 1
A tradição evolucionista na
antropologia e a primeira reação
ao evolucionismo social
Carlos Caixeta de Queiroz

1.1 Introdução
Apresentaremos, inicialmente, a abordagem evolucionista na antropologia a partir de três
autores clássicos: Henry Morgan, Edward Tylor e James Frazer. Em seguida, discutiremos algumas
questões relacionadas ao pensamento de Franz Boas, um dos primeiros críticos da tradição evo-
lucionista na antropologia. O objetivo aqui é, então, apresentar algumas características ou pro-
posições marcantes do pensamento evolucionista e as reações de Franz Boas à teoria e ao méto-
do evolucionista. Primeiramente, situaremos minimamente o contexto histórico de surgimento
do pensamento evolucionista, que constitui a primeira síntese teórica na antropologia social, sin-
tetizando as principais ideias de teoria e método característicos do evolucionismo cultural. Em
seguida, focalizaremos as proposições teóricas e metodológicas apresentadas por Boas. Procu-
raremos acentuar que Boas reagiu criticamente ao método evolucionista, propondo o método
histórico como uma nova orientação para a antropologia em sua fase clássica.
É importante salientar que embora Morgan, Tylor e Frazer tenham sido considerados expo-
entes do evolucionismo, há outros autores representantes dessa corrente de ideias que não se-
rão tratados aqui, como Spencer (1854-1914), Maine (1822-1888), Mclennan (1827-1881), Bastian
(1826-1905), entre outros. Ressaltamos, ainda, que os autores que estamos tratando aqui como
representantes do evolucionismo cultural nem sempre podem ser encaixados ao rótulo de evo-
lucionistas. Suas contribuições aos diversos campos do conhecimento como parentesco, magia,
religião, os tornaram “pais fundadores” da antropologia e, embora eles próprios tenham assumi-
do posições que os identifiquem como representantes da tradição evolucionistas, às vezes eles
podem ser considerados autores que transitaram em outras tradições do pensamento antropo-
lógico.
O objetivo desta Unidade é apresentar aos alunos as linhas gerais do evolucionismo cultural
em sua fase clássica e a perspectiva teórica metodológica inaugurada por F. Boas, que acabou sen-
do o construtor de uma tradição no pensamento antropológico, influenciando vários autores que
ficaram conhecidos como os fundadores da “escola Culturalista”, nos Estados Unidos da América.
Espera-se, portanto, possibilitar aos alunos uma introdução à história teórica da antropologia e
ainda pensar em questões colocadas pela antropologia clássica que são permanentemente atuais.

1.2 O contexto de formação do


evolucionismo cultural
Como vocês já tiveram a oportunidade de observar a partir da leitura do Caderno Didático
da disciplina Antropologia I, a antropologia social institui-se no espaço do Ocidente e inicialmen-
te tomou como foco de análise as sociedades ditas não ocidentais. Tivemos a oportunidade de
ver, também, que falar da formação da antropologia é entender como se constituíram as várias

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UAB/Unimontes - 2º Período

percepções sobre as diferenças sociais e culturais. Portanto, a formação do conhecimento antro-


pológico pode ser entendida a partir dos grandes encontros que marcaram as várias etapas da
história da humanidade. Podemos nos referir, por exemplo, aos encontros entre gregos e bárba-
ros, cristãos e não cristãos, colonizadores e colonizados. Esses grandes encontros marcaram as
relações entre “Nós” e os “Outros”, a relação entre o igual e o diferente. É dessa relação que nasce
a formulação de um conhecimento sobre as diferenças. Primeiramente, uma atitude que ia do es-
tranhamento, do questionamento, da recusa, da negação à perplexidade e ao fascínio pelo dife-
rente até se chegar a uma reflexão sistemática, uma ciência, a antropologia. Portanto, é razoável
argumentar que a antropologia:

Emana de um impulso tão antigo quanto a humanidade, da curiosidade so-


bre os outros povos combinada com a introspecção a nosso próprio respeito,
quem quer que acreditamos ser. Ela deriva da especulação sobre a natureza
humana, sobre o que significa ser mulher ou homem, e de um desejo de enten-
der a variedade da cultura humana (MAYBURY-LEWIS, 2002, p. 15).

Laplantine (2000, p. 62) diz que “o século XVI descobre e explora espaços até então desconhe-
cidos e tem um discurso selvagem sobre os habitantes que povoam esses espaços”. O século XVIII
é “iluminado à luz dos filósofos, e a viagem é filosófica”. O século XIX “é a época durante a qual se
constitui verdadeiramente a antropologia enquanto disciplina: a ciência das sociedades primitivas
em todas as suas dimensões (biológica, econômica, política, religiosa, linguística, psicológica [...])”.
Vejam bem, inicialmente, o “Outro”, o diferente ou como estamos nos referindo o não oci-
dental é o “selvagem”, aquele que está fora da cultura e próximo da natureza, ou seja, recusava-se
o caráter de humano nos habitantes que povoavam espaços não ocidentais. Na perspectiva evo-
lucionista do pensamento antropológico, os selvagens passaram a ser nomeados os “primitivos”
que se contrastavam com os “civilizados”.
Pois bem, a primeira grande síntese teórica da antropologia foi o evolucionismo cultural,
que se formou nos meados e se consolidou nos finais do século XIX. Essa abordagem formou-se
Figura 1: Interior do
Palácio de Cristal em em um contexto histórico marcado por transformações econômicas, políticas e intensos e con-
Londres onde foi trovertidos debates intelectuais. A Europa, no final do século XVIII, já começava a sentir as trans-
realizada exposição formações provocadas pela revolução industrial na Inglaterra e a revolução política francesa.
em 1851 com amostras Já o século XIX foi marcado pelo contexto geopolítico que caracterizaria o processo da con-
culturais e tecnológicas
quista colonial. Como diz Laplantine (2000, p. 64), a “África, a Índia, a Austrália, a Nova Zelândia
de vários povos, de
forma a simbolizar passam a ser povoadas de um número considerável de emigrantes europeus, não se trata mais
a superioridade do de alguns missionários apenas, e sim de administradores”. Começou-se a produzir, nesse contex-
mundo europeu to, uma vasta historiografia, relatos e crônicas sobre os mais diferentes povos que habitavam o
ocidental em relação planeta. Todas as variadas informações sobre parentesco, religião, modos de subsistências, for-
aos outros povos
mas de governo seriam posteriormente tomadas como dados pelos primeiros teóricos evolucio-
Fonte: Disponível em
<http://omundopreepos-
nistas na antropologia. Aliás, é nesse momento que os debates sobre a diversidade cultural se
torreeiffel.blogspot.com/> intensificam, fortalecendo a consolidação de um discurso antropológico.
Acesso em fev.2009. Mas é preciso ressaltar melhor o contexto social europeu para ampliarmos nosso entendimen-
▼ to sobre o momento de formação do discurso evolucionista na antropologia. Segundo Stocking
(1987), a abordagem evolucionista estava imer-
sa nos debates de fins do século XIX. Esse autor
mostra, em seu livro Victorian Anthopology, que
em 1851 foi realizada, no Palácio de Cristal, uma
exposição que tinha o intuito de simbolizar a
união da humanidade e a divisão do trabalho.
Para esse autor, tal evento marcou o início de
uma mentalidade de superioridade da socie-
dade vitoriana. Na interpretação de Stocking, a
exposição no Palácio de Cristal estava permeada
pela ideia de progresso e evolução humana e
mostrava o interesse na época pelas sociedades
chamadas de primitivas.
A ideologia cultural forjada na época vi-
toriana sobre os povos não ocidentais era a de
considerá-los, em determinados momentos,
como selvagens, ignorantes e inconsequentes;
e, em outros, como observadores e lógicos. Os

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Ciências Sociais - Antropologia II

estudos evolucionistas socioculturais que con-


tribuíam para a formação de uma imagem dos
selvagens tinham como foco de análise princi-
pal as instituições da religião e do casamento.
Suas abordagens implicavam na análise de pro-
cessos psicológicos, sociais e culturais, confron-
tando com frequência o cristianismo da época
que concebia a origem humana a partir da cria-
ção de Deus (STOCKING, 1987, p. 186-196).
A humanidade era percebida como um
todo, mas com estágios evolutivos diferentes,
tanto moral como intelectualmente, o que re-
metia ao tema do progresso moral, da razão e
do instinto. Dentro da perspectiva evolucionis-
ta vitoriana, ocorria na humanidade uma tran-
sição gradual do instinto à razão. Em um ex-
tremo da escala evolutiva tinha-se o selvagem
movido por estímulos imediatos do ambiente
externo e da natureza interna. No outro extremo, tinham-se os intelectuais da classe média ingle- ▲
sa em um estágio civilizado, tanto moral como intelectual. O evolucionismo configurava-se, para Figura 2: Visão externa
a classe média inglesa, como uma ideologia, que comparava os selvagens com os criminosos, do Palácio de Cristal na
grande exposição de
as mulheres e as crianças, incluindo camponeses, trabalhadores, vilões, mendigos, indigentes,
1851.
loucos e irlandeses. Essa ideologia também servia de justificativa para o domínio nas colônias
Fonte: Disponível em:
inglesas, ao considerar os selvagens moralmente delinquentes, espiritualmente enganadores e http://1.bp.blogspot.com.
racialmente incapazes (STOCKING, 1987, p. 225-237). O evolucionismo clássico refletia os “valores Acessado em fev. 2009.
do colonialismo vitoriano, cheio de certezas racistas e superioridades políticas, econômicas e in-
telectuais” (DA MATTA, 1990, p. 89).
Outro aspecto importante a ser ressaltado é que a emergência do evolucionismo clássico
provocou um contundente questionamento na concepção bíblica da humanidade. O evolucio-
nismo, portanto, postulava outra lógica de explicação para os fenômenos sociais e culturais, rom-
pendo com a perspectiva teológica. Da mesma forma, no campo da biologia, a teoria de Darwin
sobre as origens das espécies provocou um incisivo impacto na perspectiva filosófica religiosa
sobre a origem do homem, bem como um alargamento do tempo histórico da espécie huma-
na. As teorias evolucionistas biológica e cultural, portanto, foram decisivas para a instauração de
um questionamento sobre a cosmologia cristã com as doutrinas da criação e da degenerescência
das culturas humana. Operou-se uma transição da visão teológica e criacionista para o ponto de
vista científico e evolucionista (WHITE, 1948).
No entanto, ressalte-se que o evolucionismo biológico e o cultural se desenvolveram parale-
lamente. Nesses termos, as ideias de Darwin não influenciaram diretamente os teóricos evolucio-
nistas na antropologia. Poder-se-ia mesmo afirmar que a perspectiva da evolução cultural na an-
tropologia antecedeu o próprio evolucionismo darwiniano. A ideia de evolução como explicação
para a diversidade cultural humana não é decorrência direta da ideia de evolução biológica, ten-
do como marco a publicação do livro do naturalista inglês Charles Darwin (CASTRO, 2005, p. 24).
Mas os teóricos do evolucionismo social ou cultural, principalmente Morgan, do qual esta-
remos falando mais adiante, foram influenciados pelas ideias do filósofo inglês Herbert Spencer
(1820-1903). Spencer foi o responsável pela difusão e popularização da palavra evolução.

O avanço do simples para o complexo, através de um processo de sucessivas


diferenciações, é igualmente visto nas mais antigas mudanças do Universo que
podemos conceber racionalmente e indutivamente estabelecer; ele é visto na
evolução geológica e climática da Terra, e de cada um dos organismos sobre a
superfície; ele é visto na evolução da Humanidade, quer seja contemplada no
indivíduo civilizado, ou nas agregações de raças; ele é igualmente visto na evo-
lução da Sociedade com respeito a sua organização política, religiosa e econô-
mica; e é visto na evolução de todos os infindáveis produtos concretos e abs-
tratos da atividade humana (SPENCER citado por CASTRO, 2005, p. 26).

Dessa forma, como argumenta Castro (2005, p. 26), “as ideias filosóficas de Spencer levaram
à disposição de todas as sociedades conhecidas, segundo uma escala evolutiva ascendente, atra-
vés de vários estágios. Essa se tornaria a ideia fundamental do período clássico do evolucionismo
na antropologia”.

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UAB/Unimontes - 2º Período

Pois bem, entendido minimamente este contexto histórico, passemos agora a comentar so-
bre as linhas gerais do evolucionismo cultural em sua fase clássica, o esforço para se estabelecer
uma escala evolutiva da humanidade.

1.3 O conceito de evolução: a


reconstrução da linha evolutiva
numa sequência de progresso
a partir do estágio primitivo ao
mais civilizado
A preocupação central do evolucionismo ou a questão crucial que os evolucionistas pro-
puseram como postulado teórico foi explicar o processo de evolução da humanidade como um
todo. Tratava-se em compreender os estágios de evolução. Assim, o conceito de evolução e a
ideia evolucionista de progresso tornaram-se o esquema por meio do qual se tencionava explicar
a linha evolutiva das sociedades humanas.
Na perspectiva evolucionista, a humanidade era percebida como um todo, mas com está-
gios evolutivos diferentes. Toda cultura deveria passar pela mesma sucessão de fases de desen-
volvimento na sua marcha evolutiva. Nesse esquema, a antropologia evolucionista procurou
abordar a história da humanidade como única, mas dividida em estágios evolutivos.
Segundo Laplantine, o pensamento antropológico evolucionista pode ser caracterizado as-
sim:

Existe uma espécie humana idêntica, mas que se desenvolve (tanto em suas
formas tecnoecônomicas como nos seus aspectos sociais e culturais) em ritmos
desiguais, de acordo com as populações, passando pelas mesmas etapas, para
alcançar o nível final que é o da “civilização” (LAPLANTINE, 2000, p. 65).

O postulado central no pensamento teórico da antropologia evolucionista era que a socie-


dade humana em todas as partes teria se desenvolvido em estágios sucessivos e obrigatórios,
numa trajetória unilinear ascendente (CASTRO, 2005, p. 28).
A partir da comparação de dados etnográficos recolhidos em várias sociedades, os evolucio-
nistas procuravam reconstruir a história da humanidade. Postulavam, assim, que a humanidade
tinha uma única origem, mas que evoluiria, necessariamente e linearmente, passando pelos mes-
mos estágios. Assim, a partir da verificação da diversidade cultural das sociedades que existiram
no passado e que conviviam contemporaneamente no espaço, os evolucionistas reduziram as di-
ferenças a estágios históricos de um mesmo caminho evolutivo. Nesse raciocínio, as sociedades
evoluíram e evoluiriam dos estágios mais simples para o mais complexo, do primitivo até o civili-
zado. Essa evolução seria necessária e contínua, todas as sociedades passariam pelos mesmos ca-
minhos evolutivos. Dessa forma, os antropólogos procuraram fazer a reconstituição da sequência
de fases de desenvolvimento de técnicas, dos modos de subsistência, das instituições sociais, das
formas de governo, formas de casamento e de família e de manifestações religiosas. O caminho
da evolução seria natural e necessário na percepção evolucionista.
Note-se bem que a diversidade cultural humana era percebida dentro dessa tradição da an-
tropologia como diferenças de estágios evolutivos. Havia sociedades que estavam em um está-
gio inferior de evolução se comparado com as sociedades dos próprios pesquisadores, que eram
postuladas como as mais avançadas. Observemos, ainda, que a cultura Ocidental, a cultura da
qual pertenciam os antropólogos evolucionistas, era colocada no topo da escala de evolução, as
outras sociedades eram escalonadas de acordo com as suas semelhanças e diferenças em rela-
ção à cultura Ocidental. Enfim, os evolucionistas apresentavam a sua cultura como o estágio mais
elevado de um desenvolvimento geral da cultura.

14
Ciências Sociais - Antropologia II

Outro princípio básico evolucionista era o da unidade psíquica de toda a espécie humana, a Atividade
uniformidade de seu pensamento (CASTRO, 2005, p. 28). Partindo desse postulado e da verifica- O antropólogo Eduardo Vi-
ção da semelhança de costumes e instituições sociais de várias sociedades em espaços geográfi- veiros de Castro, do Museu
cos variados, os antropólogos evolucionistas estabeleceram que a evolução cultural fosse regida Nacional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro,
por leis uniformes. Em outros termos, a constatação da existência de instituições, costumes ou em entrevista a Revista E,
crenças similares em duas ou mais sociedades, ou seja, aspectos sociais similares que aparecem diz: “Ao estudar as comuni-
em sociedades diferentes, no presente ou no passado, foram tomados como prova contundente dades indígenas, aprendi
que existe uma ideia muito
da existência de leis uniformes na ordenação da evolução cultural. Por isso, a evolução seria uni- comum entre nós, antropó-
forme para toda a humanidade. Em consonância com essa formulação, postulava-se que todas as logos, de que os problemas
sociedades passariam pelos mesmos estágios de evolução. humanos são todos os
mesmos, em toda parte
É também importante ressaltar que um dos conceitos centrais cunhados pelos evolucionis- sempre foram os mesmos e
tas para explicar a passagem de uma etapa de evolução para outra foi o de “sobrevivência”. São o que varia são as soluções
que cada sociedade dá a
os costumes que permaneceram e possibilitaram aos evolucionistas apreender o sentido das eta- eles. Ou seja, é a ideia de
pas de evolução das sociedades. Nesse sentido, as “sobrevivências” constituem uma prova evi- que no fundo somos todos
dente do processo de evolução unilinear para os antropólogos evolucionistas na antropologia. iguais, o que varia são as
soluções de cada socieda-
Como forma de mostrar a evolução social, os evolucionistas procuravam mostrar as seme- de. Acho que está claro que
lhanças entre fenômenos sociais existentes em várias sociedades que estariam em graus diferen- isso não é verdade: o que
tes de evolução. A partir desse postulado, enfatizavam a existência de uma unidade do pensa- varia são os problemas, as
sociedades têm problemas
mento humano e afirmavam que causas semelhantes produziriam efeitos semelhantes. muito diferentes entre si,
Assim, os antropólogos evolucionistas procuraram reconstruir uma linha evolutiva, numa e elas são diferentes por
sequência de progresso técnico do mais “primitivo” ao mais “civilizado”, a partir dos conceitos de causa dos problemas que
têm e não por causa das
sobrevivência e de cultura. Como argumenta Jean Copans: soluções que dão a eles. A
fração mais urbanizada e
[...] o progresso técnico econômico é prova incontestável de uma certa evolu- industrializada do planeta,
ção histórica. Decalcando o modelo do evolucionismo biológico, buscam-se e com consumo energético
mais elevado – como os
os estádios da evolução humana e, em consequência, as sociedades primitivas Estados Unidos e alguns
aparecem como os antepassados naturais das sociedades ocidentais atuais. países da Europa –, co-
Trata-se de um evolucionismo unilinear, quer dizer, tal sucessão de estádios é meçou a lidar com outros
necessária e obrigatória: por uma série de transformações passa-se do inferior problemas. A questão hoje
ao superior (s/d, p. 19). é: “Vamos chegar ao século
22?”. Se sim: “Com quantas
pessoas a Terra vai chegar
lá?” Por isso falo que é

1.4 Morgan e o progresso humano


como se estivéssemos em
uma nova Idade Média. De
repente, as possibilidades
do fim do mundo estão

a partir de estágios evolutivos


novamente no horizonte,
evidentemente não mais
no mesmo sentido. Essa
ideia de que a tecnologia
é a chave para resolver os
problemas da humanidade
Procuremos ver mais de perto em que consiste a abordagem evolucionista a partir de um me parece que hoje está
de seus principais representantes, Lewis Henry Morgan. A formulação mais sistemática da abor- posta em dúvida. Isso não
dagem evolucionista pode ser encontrada em seu trabalho intitulado Ancient Society (A Socie- quer dizer que se possa,
ou se queira, voltar um
dade Antiga), publicado em 1877. estágio. Não sou neoprimi-
Morgan nasceu nos Estados Unidos, em 1818, em uma família de proprietários rurais de tivista, que é uma corrente
Nova York. Formou-se em direito, em 1842. Envolveu-se com temas antropológicos a partir de que diz que devemos
voltar ao Paleolítico. Até
seus contatos diretos com o povo iroquês da tribo de Sêneca. Um dos temas centrais com que porque, se não tomarmos
Morgan se envolveu foi o estudo de sistemas de parentesco. Como mostra Castro, em 1858, na cuidado, voltaremos. Acho
reunião da American Association for the Advancement of Science (Associação Americana para o que temos de começar a
imaginar que a tecnologia
Progresso da Ciência), Morgan apresentou um trabalho não é o modo de o homem
controlar a natureza, mas
sobre as características essenciais da sociedade iroquesa, destacando-se seu é o modo de o homem
sistema de parentesco com suas leis de consanguinidade e descendência (...) controlar as suas relações
com a natureza. O homem
Morgan acreditava que o sistema classificatório de parentesco dos iroqueses pode ficar certo de uma
era similar ao encontrado entre várias outras tribos norte-americanas (o que coisa: se ele for brigar com
poderia provar sua origem comum) e talvez mesmo em várias partes do mun- a natureza, vai perder”.
do (o que a seu ver, se também fossem encontradas no Oriente, estabelece- Reflitam sobre o que Vivei-
ria cientificamente a origem asiática dos nativos norte-americanos) (CASTRO, ros de Castro diz, tomando
2005, p. 11). como referências as ideias
dos evolucionistas sobre
progresso e desenvolvi-
Como resultado de informações coletadas a partir de vários “questionários enviados a deze- mento tecnológico como
nas de missões religiosas, agências governamentais e instituições científicas nos Estados Unidos uma evolução e melhoria
constante das sociedades
e em todos os continentes, perguntando sobre a organização social de povos nativos e sobre o humanas.

15
UAB/Unimontes - 2º Período

sistema de parentesco” (CASTRO, 2005, p. 11) e a partir


de rápidas pesquisas de campo a missões e reservas in-
dígenas nos estados de Kansas e Nebraska, Morgan es-
creveu sua monumental obra, em 1871, publicada com
Figura 3: foto de ► o título de Systems of Consanguinity and Affinity of the
Morgan. Human Family (Sistema de Consanguinidade e Afinida-
Fonte: Disponível em
http://www.jornallivre.
de da Família Humana).
com.br/images_enviadas/ Em 1873, Morgan passa a se ocupar de outro pro-
lewis-henry-morganmor- jeto: interpretar a história passada a partir da aplica-
gan-jpg.jpg. Acessado em
fev. 2009.
ção do conhecimento antropológico contemporâneo.
O resultado desse projeto intelectual foi a publicação,
em 1877, do livro Ancient Society (A Sociedade Antiga).
Nesse livro, Morgan “estudou os estágios de progresso
da sociedade humana através da análise de cinco casos
exemplares: os aborígines australianos, os índios iro-
queses, os astecas, os gregos e os romanos” (CASTRO,
2005, p. 13).
Para Morgan, a história da humanidade séria única, mas dividida em estágios evolutivos.
GLOSSÁRIO
Postulava, assim, que a sociedade humana teria se desenvolvido em estágios sucessivos e obri-
Iroquês: “tribo que, na gatórios, numa trajetória unilinear. Como argumenta Morgan:
chegada dos europeus,
vivia no vale de São Lou-
renço e nas margens dos Como a humanidade foi uma só na origem, sua trajetória tem sido essencial-
lagos Erie, Huron e On- mente uma, seguindo por canais diferentes, mas uniformes, em todos os conti-
tário (Canadá e E.U.A.). nentes, e muito semelhantes em todas as tribos e nações da humanidade que
Era a mais poderosa das se encontram no mesmo status de desenvolvimento. Segue-se daí que a histó-
tribos índias da América ria e a experiência das tribos indígenas americanas representam, mais ou me-
do Norte. Por motivos nos aproximadamente, a história e experiência de nossos próprios ancestrais
militares, essa tribo ti- remotos, quando em condições correspondentes. Sendo uma parte do registro
nha-se organizado numa humano, suas instituições, artes, invenções e experiências práticas possuem
vasta confederação que um grande e especial valor que alcança muito mais do que apenas a raça indí-
agrupava 6 ou 7 grupos gena (MORGAN, 1973).
linguísticos diferentes,
mas que, ainda assim,
pertenciam à mesma fa-
De acordo com a perspectiva teórica apresentada por Morgan, a humanidade teria sua ori-
mília. Os Iroqueses eram gem na “selvageria”, passando para a “barbárie” e, posteriormente, para a “civilização”. Tomando
sedentários e praticavam como tema central o progresso humano do estado selvagem ao da civilização, Morgan utilizou
a agricultura e, apenas a para sua análise “quatro categorias de fatos” que, em linhas paralelas, acompanhavam o progres-
título acessório, a caça e
a pesca”.
so humano. Assim, as instituições, as invenções e as descobertas; as gens, as fratrias e as tribos;
Sistema classificatório a família e a propriedade dividem-se em diversas fases evolutivas capazes de permitir ao autor
de parentesco: um “ter- visualizar a história da humanidade (MORGAN, 1973, p. 8).
mo de parentesco diz-se No esquema de evolução apresentado por Morgan, as invenções, descobertas e o desen-
classificatório quando
se aplica a pessoas que
volvimento das ideias de família, propriedade e governo seriam as vias principais do progresso
pertencem a duas ou humano. Em sua análise sobre o progresso da humanidade, Morgan vai enfatizar as formas de
mais categorias distintas governo, pois estas têm um vínculo com a família e a propriedade. Para esse autor, as formas de
de parentes. A presença governo evoluíram da societas para a civitas, ou seja, inicialmente a societas era uma forma de
de termos classificató-
rios diminui considera-
governo baseada nas pessoas e nas relações pessoais, cuja unidade dessa organização é a gens.
velmente o número de Posteriormente, no processo de evolução e progresso humano, apareceria outra forma de gover-
categorias de parentesco no: a civitas. A civitas seria baseada no território e na propriedade, cuja unidade de organização é
logicamente possíveis. a cidade ou o aglomerado. A societas conduz à “sociedade gentílica” e a civitas à “sociedade políti-
Por exemplo, no nosso
sistema de parentesco, o
ca” (MORGAN, 1973, p.13-17).
termo avô, que confun- Para analisar a evolução da sociedade gentílica para a política, Morgan faz uma distinção en-
de o pai do pai e o pai tre períodos de estágios étnicos. Cada estágio seria, no argumento desse autor, delimitado pelas
da mãe, é classificatório. invenções e descobertas, e suas subdivisões. O esquema evolutivo morganiano distingue três es-
O mesmo acontece com
tio, cunhado, primo, etc.”
tágios principais: a selvageria, a barbárie e a civilização. O período do estado selvagem conteria
(PNOFF e PERRIN, 1973, o germe da civilização e estaria dividido em antigo, médio e recente. A cada um destes subperí-
p. 44) odos corresponde um estado da sociedade considerado como fase inferior, média e superior do
estado selvagem. O mesmo ocorre para o período da barbárie, enquanto no estado civilizado há
apenas a classificação de “fase da civilização”. Mesmo ciente da dificuldade de estabelecer as deli-
mitações precisas entre um estágio e outro, Morgan afirma que a passagem do estado selvagem
para a barbárie, relacionado com as invenções e descobertas, ocorreu com a invenção e o uso da
cerâmica, enquanto a passagem da barbárie à civilização com a invenção do alfabeto fonético e
o uso da escrita (MORGAN, 1973, p. 13-24).

16
Ciências Sociais - Antropologia II

No quadro a seguir se pode perceber a perspectiva evolucionista sobre o progresso técnico


da humanidade: GLOSSÁRIO
Gens: Grupo formado
Quadro 1 – Estágios Evolutivos proposto por Morgan
pelos indivíduos que
Períodos Condições Desenvolvimento se reclamam de um
antepassado comum
I. Período inicial de Status inferior de selva- Da infância da raça humana em linha masculina.
selvageria geria até o começo do próximo Historicamente, essa
palavra designa uma
período. instituição da Roma
II. Período interme- Status intermediário de Da aquisição de uma dieta de subsistência antiga, mas, sob a
influência de Morgan,
diário de selva- selvageria à base de peixes e de um conhecimento do
acabou por servir para
geria uso do fogo etc. designar, em diver-
Ex.: Australianos sos autores, o grupo
chamado patriclã, na
III. Período final Status superior de selva- Da invenção do arco e flecha etc. Inglaterra, ou patri-sib,
de selvageria geria Ex.: Polinésios nos Estados Unidos.
Patriclã, patrisib: “Clã
IV. Período inicial Status inferior da bar- Da invenção da arte da cerâmica etc. ou sib cujo recrutamen-
da barbárie bárie Ex.: Iroqueses to é assegurado por
uma regra de filiação
V. Período interme- Status intermediário da Da domesticação de animais no hemisfério patrilinear ou cujos
diário da barbárie barbárie oriental e, no ocidental, do cultivo irrigado membros têm uma
de milho e plantas, com o uso de tijolos de residência patrilocal”.
adobe e pedras etc. CLÃ ou SIB: “Grupo
Ex.: Zunis formado por uma ou
várias linhagens. Pode
VI. Período final de Status superior de bar- Da invenção do processo de fundir minério ser localizado ou não,
barbárie bárie de ferro, com o uso de ferramentas de ferro exógomo ou não, mas
etc. para ser considerado
Ex.: Gregos homéricos como tal, deve estar
animado de um espírito
VII. Status de civili- Status de civilização Da invenção do alfabeto fonético, com o de corpo bem marcado
zação uso da escrita, até o tempo presente. e deve ser o quadro de
uma solidariedade ativa
Fonte: MORGAN, L. H. A Sociedade Primitiva. In: CASTRO, C. Evolucionismo Cultural/textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio entre os seus mem-
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 60. bros”.
Fratria: “Grupo for-
Segundo Morgan, a verdadeira história do homem está contida na história do crescimento mado pela reunião de
e desenvolvimento das instituições, das quais a gens é apenas um exemplo. Esta representa, no vários clãs ou sibs e
cujos membros se con-
entanto, a base de todas aquelas que maior influência prática exerceram sobre a história humana sideram ligados uns aos
(MORGAN, 1973, p. 118). Assim, a base para o progresso humano percebido a partir dos perío- outros por uma regra
dos étnicos encontra-se no aparecimento das invenções e descobertas e, principalmente, no pro- de filiação unilinear.
gresso das instituições. Esses laços são, em
Focalizando as instituições sociais como forma de teorizar sobre o progresso humano, Mor- muitos casos, perfeita-
mente convencionais e
gan argumenta que no início as sociedades humanas se organizavam a partir das diferenças en- bastante vagos. O sen-
tre os sexos. Essa organização seria, na perspectiva de Morgan, anterior à sociedade gentílica e tido do termo, tal como
representaria o tipo mais primitivo de instituições. As classes de homens e mulheres seriam, por- os etnólogos o utilizam,
tanto, a forma de organização mais próxima do “tipo primitivo de instituições”, as gens. As classes, deve ser distinguido
de acordo com o autor, contêm, em germes, as gens, entretanto, estão fundadas sobre o sexo e daquele que alguns
psicanalistas lhe
não sobre o parentesco, como na sociedade gentílica (MORGAN, 1973. p. 63-68). atribuem; para estes, a
Para Morgan, a sociedade gentílica estaria fundamentada na organização social das gens, fratria é o grupo forma-
das fratrias, das tribos e das confederações de tribos, exemplificada por Morgan através dos ín- do, no quadro familiar
dios iroqueses. No entanto, os iroqueses não realizaram a passagem do estado de barbárie para europeu , pelos irmãos
o da civilização, permaneceram com filiação matrilinear, organizados em confederações e com e pelas irmãs, face aos
seus progenitores” (PA-
uma base territorial estabelecida sobre a propriedade coletiva. A civilização teria surgido entre os NOFF e PERRIN, s/d).
gregos da Ásia e entre os gregos da Europa (MORGAN, 1973, p. 257). Os gregos, portanto, reali-
zaram a passagem da sociedade gentílica para a política, baseada no território e na propriedade
particular e estatal. Além de terem se organizado em nações, as filiações gregas tornaram-se pa-
trilineares na transformação da sociedade gentílica para a política. Assim, da perspectiva de Mor-
gan, os gregos e romanos realizaram a transformação da organização gentílica para a política; os
iroqueses e astecas permaneceram com uma organização gentílica.
Como pudemos ver, enfim, Morgan, através do método comparativo, ou seja, através da
comparação entre as diferentes culturas passadas e presentes, procurou elaborar um esquema

17
UAB/Unimontes - 2º Período

unilinear de evolução cultural. Analisou e ordenou em termos de uma teoria social evolucionis-
GLOSSÁRIO ta dados de várias partes do planeta vindos através de escritórios coloniais, museus, sociedades
Matrilinear: Diz-se de científicas, organizações missionárias e instituições oficiais e não oficiais que tivessem interesse
uma regra de filiação nos povos das colônias (MAYBURY-LEWIS, 2002, p. 16). Classificou as sociedades não ocidentais
que determina que o como as menos civilizadas por comparação às ocidentais.
indivíduo adquire os Nesses termos, estudando o parentesco como fundamento da organização social e política,
principais elementos
do seu estatuto, e
Morgan formulou a ideia de que a sequência evolutiva da organização familiar foi: promiscuida-
nomeadamente, a sua de à matriarcado à patriarcado. Nesse entendimento haveria, inicialmente, uma forma de filia-
inclusão num determi- ção matrilinear, que evoluirá no estágio de civilização para a patrilinear.
nado grupo de paren- Da mesma forma, Morgan concluiu que, no estágio da selvageria, o homem sobreviveu da
tesco, tendo exclusi- caça, pesca e coleta; no estágio da barbárie, o homem criou a agricultura e a irrigação; e, no es-
vamente em vista os
laços genealógicos que
tágio de civilização, o homem desenvolveu instrumentos, máquinas e indústrias. Assim, Morgan
passam pelas mulheres. postulou que a evolução social significou uma melhoria constante da humanidade. O desenvol-
Por extensão, diz-se vimento tecnológico, o progresso técnico representaria, na perspectiva teórica evolucionista,
igualmente matrilinear uma chave para se resolver os problemas da humanidade.
um grupo (linhagem, Consideramos com mais vagar a perspectiva de Morgan por ser esse autor um dos mais ex-
clã etc.) cujo recruta-
mento é determinado
pressivos representantes da perspectiva teórica evolucionista na antropologia. Passemos a foca-
pela aplicação dessa lizar a seguir, de forma mais breve, as contribuições de outro autor pertencente à tradição evolu-
regra de filiação. cionista: Edward Burnett Tylor.
Patrilinear: Regra
que determina que o
indivíduo receberá au-
tomaticamente do pai
os principais elementos
do seu estatuto e, no-
1.5 Tylor e a definição formal da
cultura
meadamente, que esse
indivíduo pertencerá
ao mesmo grupo de
filiação (linhagem, clã
etc.) que o seu pai e o
pai do seu pai” (PANOFF Tylor nasceu em 1832, na Inglaterra. Publicou seu primeiro livro em 1861 com o título
e PERRIN). Anahuac: or, México, Ancient and Modern [Anahuac: ou, México, antigo e moderno]. Em 1865,
publicou Researches into the Early History of Mankind and the Development of Civilization [Pes-
quisas sobre a antiga história da humanidade e o desenvolvimento da civilização]. Em seguida,
escreveu seu mais importante livro: Primitive Culture: Researches into the Development of Mytho-
logy, Philosophy, Religion, Language, Art and Custom [Cultura primitiva; pesquisas sobre o de-
senvolvimento da mitologia, filosofia, religião, linguagem, arte e costume], publicado em 1871.
Publicou, ainda em 1881, um pequeno manual sobre antropologia: Anthropology: an Introduc-
tion to the Study of Man and Civilization [Antropologia: uma introdução ao estudo do homem e
da civilização].
Tylor tem sido considerado um dos ancestrais da antropologia por ter formulado pela pri-
meira vez uma definição de cultura. Esse antropólogo inicia seu livro Cultura Primitiva com a se-
guinte afirmação:

Cultura ou Civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aque-


le todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e
quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição
de membro da sociedade. (TYLOR, 1971, p. 01).

Tylor sintetizou na sua definição de cultura o termo ger-


mânico de Kultur (“utilizado para simbolizar todos os aspec-
Figura 4: foto de Tylor ► tos espirituais de uma comunidade”) e a palavra francesa Ci-
Fonte: Disponível em: vilization (que se refere às realizações materiais de um povo).
http://www.d.umn.
edu/cla/faculty/troufs/ A grande contribuição de Tylor ao definir cultura foi destacar
anth3618/images/ o caráter de “aprendizado da cultura em oposição à ideia de
Tylor_EB.jpg. Acesso em aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos” (LA-
fev. 2009.
RAIA, 2003, p. 25), Dessa perspectiva, cultura passa a ser en-
tendida como tudo aquilo que aprendemos como membro
de uma determinada sociedade através de mecanismos de
socialização.
Mas é importante destacar que a definição de cultura
dada por Tylor permanece dentro de uma concepção hierar-

18
Ciências Sociais - Antropologia II

quizada, não relativista e não pluralista. “Cultura, para Tylor, era palavra usada sempre no singu-
lar, e essencialmente hierarquizada” (CASTRO, 2005, p. 17). Configurando, assim, um postulado
crucial da perspectiva evolucionista na antropologia.
Atado a uma visão evolucionista de cultura, Tylor afirma que a cultura pode ser objeto de
um estudo sistemático, pois se trata de um fenômeno natural que possui causas e regularida-
des, permitindo um estudo objetivo e uma análise capazes de proporcionar a formulação de leis
sobre o processo cultural e a evolução (LARAIA, 2003, p. 30). Formulando certos postulados que
orientariam implicitamente seus trabalhos, Tylor argumentou:

A situação da cultura entre as várias sociedades da humanidade, na medida


em que possa ser investigada segundo princípios gerais, é um tema adequa-
do para o estudo de leis do pensamento e da ação humana. De um lado, a
uniformidade que tão amplamente permeia a civilização pode ser atribuída,
em grande medida, à ação uniforme de causas uniformes; de outro, seus vá-
GLOSSÁRIO
rios graus podem ser vistos como estágios de desenvolvimento ou evolução... Animismo: “Teoria
(Tylor, 1871, In: CASTRO, 2005, P. 69). ilustrada por Tylor e
que postulava que o
Assim, amparando-se nas Ciências Exa- as instituições humanas, tal como as rochas primeiro estádio da
evolução da huma-
tas, Tylor, como todos os autores evolucio- estratificadas, se sucedem em séries bastante
nidade consistia na
nistas, procurou mostrar que os fenômenos uniformes em todo o mundo, independente- crença de que tudo na
culturais e sociais ou os fenômenos etnoló- mente do que parecem ser diferenças superfi- natureza possui uma
gicos poderiam ser interpretados a partir de ciais de raças e línguas, já que estão conforma- alma. Essa posição foi
um processo natural ou de uma evolução. das por uma natureza humana similar. criticada pelos autores
posteriores, nomeada-
Assim, a evolução pode ser descrita por meio Pode-se dizer que Tylor trata a humani-
mente Frazer e Mauss,
de leis gerais que, de acordo com seus supos- dade como um conjunto de natureza homo- que se esforçaram por
tos, é possível deduzir da observação de um gênea, mas situada em diferentes graus de mostrar que a religião
processo histórico real. Como ressalta Tylor, civilização. Dessa perspectiva, opera-se uma era muito diferente
a história da humanidade é parte da história abstração, pois o que se compara não são so- do culto dos espíritos
e não podia historica-
natural e são as causas naturais que deter- ciedades humanas tal como funcionam no
mente derivar desse
minam a ação do homem (1970, p.2-3). Esse conjunto, mas aspectos dessas sociedades. culto. De fato, esse tipo
autor ainda acrescenta que o etnógrafo deve Não se compara cultura, mas elementos ou de problemas e de in-
classificar os costumes na sua distribuição ge- traços culturais deslocados de seus contex- terpretações provém da
ográfica e histórica, observando as relações tos. Como pudemos ver, nesse ponto Morgan história conjetural que,
com base em dados
existentes entre eles, tarefa essa que pode é mais atento, pois toma como objetivo não
mal identificados e mal
ser feita como se faz a classificação das plan- a evolução das instituições individuais isola- observados, se fazia
tas (TYLOR, 1970, p. 8). das de seus contextos sociais, mas a evolução passar por etnologia
Tylor procurou, dessa forma, estabelecer como um todo. Assim, estabelece uma ordem no fim do século XIX e
uma comparação entre as sociedades a partir de sucessão de evolução dos grupos sociais – no início do século XX.
Atualmente, a palavra
das suas instituições sociais e costumes como o que ele chama de “períodos étnicos” – “o sel-
e a ideia de animismo
forma de teorizar sobre a escala evolutiva da vagem”, o “bárbaro” e o “civilizado”. desapareceram da lite-
humanidade. Nessa perspectiva, as socieda- No entanto, tanto em Morgan quanto em ratura antropológica”
des humanas poderiam ser estratificadas des- Tylor fica implícito que a sequência evolutiva (PANOFF e PERRIN, s/d,
de as mais “simples” até as mais “complexas” implica a ideia de aperfeiçoamento gradual p. 18).
ou, como aparece no discurso evolucionista, das sociedades humanas. Em outras palavras,
do “primitivo” ao “civilizado”. Focalizando as o aperfeiçoamento da cultura, na perspectiva
representações sociais Tylor chegou à seguin- evolucionista desses autores, significa o pro-
te conclusão: a manifestação religiosa mais gresso ou o melhoramento da humanidade.
primitiva é a crença de que almas e espíritos Enfim, Morgan e Tylor, partindo da veri-
animam todas as coisas e todos os seres vivos ficação da semelhança de fenômenos sociais
do universo. Esse chamado estágio religioso em várias sociedades, estabeleceram uma
primitivo foi denominado por Tylor de animis- escala evolutiva do simples ao complexo. En-
mo. Para esse autor, as manifestações religio- fatizaram a existência de uma unidade do
sas apareceriam na seguinte escala evolutiva: pensamento humano e afirmaram que causas
animismo à magia à idolatria à politeísmo semelhantes produzem efeitos semelhantes
à monoteísmo. Essa sequência aparecia para em qualquer sociedade humana. Por isso mes-
a perspectiva evolucionista tyloriana como mo, concluíram que todas as sociedades em
uma história unilinear. Todas as sociedades qualquer tempo e espaço evoluiriam passan-
evoluíram e evoluiriam de uma representação do pelos mesmos estágios de evolução.
animistas até a última escala em que predomi- Como vimos, Morgan, tomando como
naria a manifestação monoteísta. foco de estudo o parentesco, a família, as for-
Tylor formulou assim seus pressupostos: mas de propriedade e de governo elaborou

19
UAB/Unimontes - 2º Período

um esquema linear de evolução da humanida- dedicou de forma insofismável ao estudo dos


de. De outro modo, Tylor centrou seu interesse mitos, da magia e da religião. Passemos, então,
na religião e elaborou uma escala evolutiva so- a comentar brevemente como Frazer triangula
bre o pensamento religioso. Mas foi Frazer que magia/religião/ciência.

1.6 Frazer: magia, religião, ciência


Fragmentos de uma biografia de Fra- nutria admiração, Herbert Spencer. Naquele
zer. tempo, no entanto, seu interesse predominan-
James George Frazer “nasceu em Glas- te continuava sendo pelos estudos clássicos.
gow, Escócia, em 1854, numa família de classe Em 1884, Frazer acertou com o editor George
média, filho de um farmacêutico. Matriculou- MacMillan (...) a preparação de uma nova tra-
-se em 1869 na Universidade de Glasgow, dução de Pausânias, geógrafo e antiquário do
graduando-se em 1874. Para completar sua século II d. C. que viajou extensamente pela
Grécia e escreveu aquele que é geralmente
reconhecido como o primeiro guia de viagem:
Descrição da Grécia. Em 1898, após mais de 13
anos de trabalho, que incluíram viagens à Gré-
cia para conhecer in loco as recentes descober-
tas arqueológicas e ver em que elas ajudariam
Figura 5: foto de Frazer. ► a compreender o texto de Pausânias, projeto
Fonte: Disponível em: resultou numa tradução comentada que veio
http://www.nndb.com/ público com não menos que seis volumes [...] e
people/600/000099303/
sir-james-frazer-1.jpg.
mais de três mil páginas [...].
Acessado em: fev. 2009. Na mesma época em que começou a tra-
dução de Pausânias, Frazer conheceu William
Robertson Smith (1846-1894), antropólogo es-
pecializado no estudo histórico das religiões
do Oriente Médio, em especial do Antigo Tes-
tamento, autor de The Religion of the Semites.
Os dois tornaram-se amigos inseparáveis até
a morte de Robertson Smith, que foi o gran-
de responsável pela conversão de Frazer para
a antropologia, embora nunca o tenha feito
abandonar os estudos clássicos.
Bem antes de completar sua edição de
formação, seguiu para o Trinity College em Pausânias, Frazer já tinha um novo projeto,
Cambridge, ao qual estaria ligado por quase que resultaria na sua maior obra [...]. Em 1889,
todo o resto de sua vida. Dedicou-se com im- [...] Frazer resumiu o argumento do livro que
pressionante energia aos estudos clássicos estava escrevendo paralelamente, The Golden
(isto é, aos autores gregos e romanos, lidos no Bough [O Ramo de Ouro]. O propósito explíci-
original) e, devido a seu desempenho, ganhou to seria explicar um tema da mitologia clássi-
uma bolsa-prêmio da universidade com dura- ca: a regra para a sucessão do sacerdócio no
ção de seis anos. A bolsa não exigia que desse templo do bosque de Nemi, perto de Roma.
aulas nem tivesse qualquer tipo de produção Qualquer um poderia se tornar sacerdote a rei
acadêmica e seria renovada seguidamente do bosque, dede que primeiro arrancasse um
até 1895, quando se tornou vitalícia. Ou seja, ramo – o ramo de ouro – de uma certa árvore
apesar de relativamente modesta, sem nenhu- sagrada daquele bosque e, em seguida, ma-
ma exigência de contrapartida, por toda a sua tasse o sacerdote. Frazer concluiu, num estilo
vida. semelhante ao da trama de uma história de
Em 1885, Frazer deu uma palestra no An- detetive: ‘através de uma aplicação do méto-
thropological Institute, “On Certain Burial Cos- do comparativo, creio poder demonstrar ser
tumes as Ilustrative of the Primitive Theory of provável que o sacerdote representou em sua
the Soul” [Sobre certos costumes funerários pessoa o deus do bosque – Virbius – e que
como ilustrativos da teoria primitiva da alma]. seu sacrifício foi visto como a morte do deus.
Na audiência estavam, entre outros, [...] dward Isso levanta a questão sobre o significado do
Tylor e o autor por quem Frazer na época mais difundido costume de se matar homens e ani-

20
Ciências Sociais - Antropologia II

mais vistos como divinos... O Ramo de Ouro, estilo literário, Frazer introduz e analisa um ri-
creio poder demonstrar, era o visco, e toda a tual de rebelião e o compara com narrativas
lenda pode, creio, ser posta em conexão, por míticas de várias sociedades. Discute o apa-
um lado, com a reverência druística pelo vis- recimento da política a partir da religião. Para
co e os sacrifícios humanos que acompanha- Frazer, o poder político originou-se dos reis
vam seu culto; e, por outro lado, com a lenda sacerdotes tal como a religião constitui uma
nórdica da morte de Balder. O que quer que forma de pensamento que evoluiu da magia.
se pense das teorias [do livro], descobrirão No início, religião e política se misturavam, o
que ele contém um grande estoque de costu- rei sacerdote cumpria ao mesmo tempo o pa-
mes muito curiosos, muitos dos quais podem pel de mediador político e intercessor entre o
ser novidade mesmo para antropólogos re- mundo terreno e espiritual, entre o sagrado e
conhecidos. A semelhança de muitos desses o profano.
costumes e ideias selvagens com as doutrinas Mas o que nos interessa mais de perto
fundamentais da Cristandade é admirável. Mas nesse momento é entender como Frazer faz
não faço referência a esse paralelismo, deixan- a triangulação entre magia, religião e ciência,
do que meus leitores tirem suas próprias con- como forma de compreendermos a análise in-
clusões, de uma maneira ou de outra’. telectualista que esse autor elaborou sobre as
A primeira edição de O Ramo de Ouro foi formas e a evolução do pensamento humano.
publicada em 1890, em dois volumes e com Em seu magistral livro O Ramo de Ouro,
um total de 800 páginas. A segunda edição, de Frazer argumenta que o pensamento humano
1900, ampliava a obra em um volume [...] A ter- seguiu etapas sucessivas, da magia à religião,
ceira edição, publicada entre 1911 e 1915, tinha e depois da religião à ciência. No argumento
13 volumes e um total de 4.568 páginas, levan- desse autor, no inicio da humanidade prevale-
do o leitor através de uma vertiginosa viagem ceu um pensamento mágico que evolui para o
por todas as províncias etnográficas e mito- religioso que, por sua vez, na etapa mais avan-
lógicas do mundo. Em 1922, Frazer preparou çada de evolução, foi substituído pelo pensa-
uma versão condensada em um volume que mento científico. Em outras palavras, a sequ-
se tornou um best seller... ência evolutiva seguiria o seguinte caminho:
Ao longo do meio século decorrido en- em um primeiro estágio, o pensamento ope-
tre a primeira edição de O Ramo de Ouro rava através da magia, no estágio subsequen-
(1890) e sua morte, Frazer desfrutou de uma te, a magia desaparecia e passava a vigorar o
dupla reputação: à medida que seu reconhe- pensamento religioso, e em seguida, caracteri-
cimento e sucesso cresciam junto ao público zando o mundo ocidental, o pensamento cien-
leigo – provavelmente Frazer foi o autor mais tífico substituiria o religioso. Como argumenta
conhecido junto ao “grande público” de toda Frazer, (1982): “a magia representa uma fase
a história da antropologia – e a profissionais anterior, mais grosseira da história do espírito
de outras disciplinas – como, por exemplo, os humano, pela qual todas as raças da humani-
estudiosos da mitologia, da literatura e mes- dade passaram, ou estão passando, para diri-
mo Freud, que se baseou na obra de Frazer gir-se para a religião e a ciência”. Percebe-se,
para escrever Totem e Tabu, publicado em assim, que para Frazer o estágio mais remoto
1913 –, sua influência decrescia junto aos an- da evolução do pensamento era mágico, o se-
tropólogos profissionais. Seu estilo, a partir gundo, religioso, e o terceiro, científico.
da década de 1920, era considerado demasia- A perspectiva que Frazer apresenta sobre
damente literário por uma geração de antro- a evolução do pensamento humano revela
pólogos que se considerava científicos, por uma inquietação dominante do seu tempo: a
mais que o público em geral continuasse gos- de que a humanidade fazia parte da natureza.
tando de ler sue livros”. Revelava, portanto, uma forma de percepção
Esse trecho de uma biografia de Frazer sobre as diferenças entre as sociedades: os oci-
escrita pelo antropólogo Celso de Castro, no dentais estavam na cultura, na civilização, no
seu livro Evolucionismo Cultural: textos de Mor- pensamento racional, e os não ocidentais na
gan, Tylor e Frazer, nos permite perceber e ava- natureza, na irracionalidade, na magia. Como
liar a importância de Frazer para o pensamen- escreve Darcy Ribeiro no prefácio a edição
to social da época. Mas, acima de tudo, nos brasileira de O Ramo de Ouro de 1982: o tem-
revela o impacto dos estudos de Frazer sobre po de Frazer “é o tempo europeu imperial de
mito, magia e religião. E, também, a gigan- antes da decadência, ainda cheio de orgulho
tesca dimensão de sua obra O Ramo de Ouro de si mesmo. Ser europeu, então, se possível
e sua difusão ou repercussão entre um vasto inglês ou francês, era a única forma alta de ser
público, não apenas entre profissionais da an- gente verdadeiramente humana” (RIBEIRO,
tropologia. 1982, p. 7). Em consonância com essa ideolo-
Nesta imensa obra, belíssima pelo seu gia, Frazer escreveu:

21
UAB/Unimontes - 2º Período

Um selvagem dificilmente concebe a distinção, feita habitualmente pelos po-


vos mais adiantados, entre o natural e o sobrenatural. Para ele, o mundo é, em
grande medida, regido por agentes sobrenaturais, isto é, por seres pessoais
que agem por impulsos e motivos idênticos aos dele próprio, e que, como ele,
podem ser movidos por apelos que lhes mobilizem a piedade, as esperanças
ou os receios (RIBEIRO, 1982, p. 33).

Assim, Frazer argumenta que a magia foi o mais antigo sistema de superstição que predomi-
nou sobre o espírito humano em todas as épocas e em topos os países (1982, p. 33). Mas em que
constitui os princípios da magia?
Frazer mostra que toda magia funciona segundo um princípio simpático. Como comenta
Mary Douglas, Frazer distinguiu dois princípios de simpatia: a simpatia das partes orgânicas e a
simpatia das semelhanças observadas.

A primeira supunha que as coisas antes reunidas e depois separadas conser-


vavam permanente poder uma sobre as outras: assim quando dois amigos be-
biam mutuamente os respectivos sangues, cada um deles, a partir de então,
entrava em comunicação física direta com o outro, podendo saber quando
perigos ameaçavam a este ou até definhando ou morrendo quando o outro
era atacado. Já o segundo tipo de simpatia é bastante diverso do primeiro. Se,
por exemplo, o ouro é considerado sendo de um amarelo positivo e a icterí-
cia como de um amarelo negativo, então o ouro será usado na cura desta, para
subjugar o tipo negativo de cor amarela. Esses dois princípios de contágio e
similaridade devem ser considerados como uma influência poderosa no pen-
samento primitivo (DOUGLAS, 1982, p. 12).

Podemos perceber, assim, que a magia por contágio, as coisas ou pessoas, uma vez em con-
tato, permanecem para sempre em contato, e a magia por similaridade, o semelhante produz o
semelhante, constituíam a forma como o pensamento dos chamados “primitivos” ou “selvagens”
operava. No entanto, essa forma de pensamento tenderia a desaparecer com a evolução das so-
ciedades humanas.
Frazer argumenta que a magia constituía em uma associação errônea de ideias, portanto,
tenderia a perder a legitimidade. As pessoas começariam a desconfiar da legitimidade do mago
e, sem a crença no seu poder, a magia poderia desaparecer. Por outro lado, Frazer mostra que
a magia é um processo que liga um indivíduo a um mago ou xamã, um consultor a um cliente,
da mesma forma em que na nossa sociedade um indivíduo procura um psicólogo ou um psica-
nalista. Mas, à medida que várias pessoas começam a procurar simultaneamente o consultor (o
mago), a sua prática deixa de ser particular e torna-se pública. Nesse caso, pode surgir um fenô-
meno coletivo, que pode resultar em um fenômeno religioso.
Note-se bem, para Frazer, a magia perderia sua legitimidade e daria lugar à religião que, por
sua vez, cederia lugar para a ciência. Essa era a sequência evolutiva do pensamento humano na
perspectiva frazeriana. Pode-se resumir essa perspectiva assim: as sociedades aparecem hierar-
quizadas a partir de formas de pensamento, seguindo a sequência da magia, passando pela reli-
gião até a última escala de evolução, a sociedade científica, racional.

Nesta concepção, a magia seria uma forma primeva da ciência que, fracassan-
do por precoce e temporã, deu lugar ao desvario descabelado da conduta re-
ligiosa. Com ela a humanidade entraria no carreirão sombrio e sangrento do
sacrifício que só pouco a pouco, lentissimamente, se apura e espiritualiza. A
solução final viria com a ascensão às concepções e às práticas fundadas na ci-
ência (RIBEIRO, 1982, p. 8).

No entanto, e isso vale como uma crítica que se pode fazer a Frazer, magia e religião coexis-
tem em todas as sociedades em qualquer tempo e espaço. Ou, como diz Ribeiro, ontem como
hoje, é a conduta mágica que guia o selvagem australiano ou o feiticeiro londrino (ibidem).
Já temos condições agora de perceber que Morgan, Tylor e Frazer, ao apresentarem seus es-
quemas evolutivos unilineares, deixaram de lado a questão do relativismo. Mas a posição desses
autores não poderia ser outra, porque a ideia de relativismo cultural está implicitamente associa-
da à de evolução multilinear. “A unidade da espécie humana, por mais paradoxal que possa pare-
cer tal afirmação, não pode ser explicada senão em termos de sua diversidade cultural” (LARAIA,
2003. p. 34).
A principal reação ao esquema de evolução unilinear tem sido atribuída por muitos ao an-
tropólogo Franz Boas. Boas elabora uma nova perspectiva na antropologia, o relativismo cultural.

22
Ciências Sociais - Antropologia II

No entanto, antes de passarmos a comentar a perspectiva de Boas, falaremos sobre outra tradi-
ção antropológica: o difusionismo.

1.7 Difusionismo
A corrente difusionista conviveu com a
corrente evolucionista da antropologia, sendo,
no entanto, crítica aos seus pressupostos. No
final de séc. XIX e início do séc. XX, defendia
que as diferenças e semelhanças entre as socie-
dades não se davam em função de avanço ou
atraso de algumas sociedades, numa linha evo-
lutiva comum a todas. Acreditavam, sim, que a
evolução de cada sociedade não se dava inde-
pendentemente das outras, mas que as mudan-
ças e o progresso se davam com a apropriação
de traços de uma cultura pela outra, traços es-
tes que seriam aperfeiçoados e retransmitidos.
O progresso ou evolução das culturas se
daria, então, por difusão de traços culturais. O
mecanismo de empréstimo cultural, fruto da
tendência humana para imitar e absorver tra-
ços culturais, seria então fundamental nesse
processo de evolução cultural. Os difusionistas
apresentavam, assim, uma alternativa para compreender a diversidade cultural que, segundo ▲
eles, seria resultado da difusão de alguns traços culturais vindos de um único centro. Figura 6: A ideia de
Assim como quando uma pequena pedra é jogada na água e provoca deslocamentos em difusão representada
em ondas na água
forma de ondas circulares, da mesma forma seria a difusão de traços culturais que partem de um
Fonte: Disponível em
ponto formando ondas que vão se expandindo. Cada onda tem suas características e amplitu- <http://flickr.com/photos/
des. Ou seja, os traços culturais que conhecemos no presente teriam nascido em locais e mo- brautigam/610756388/
mentos distanciados entre si, mas, na verdade, eram resultado da difusão a partir de uma origem Acesso em jan. 2009.
comum.
Difusionistas mais radicais no início do séc. XX, como Rivers e seu discípulo Elliot Smith, de-
fendiam, por exemplo, que o inventário cultural da humanidade se originou no Egito e a partir
daí se irradiou para todo o mundo.
As ideias difusionistas foram posteriormente derrubadas pelas comprovações arqueológicas
que mostraram que as ideias originais em diferentes culturas no mundo antigo eram mais fre-
quentes do que atualmente, não podendo, portanto, ter a mesma origem.
A corrente difusionista foi, no entanto, muito importante para a compreensão da diversida-
de cultural e seus conceitos foram retomados nos estudos de história cultural. As pesquisas sobre
fenômenos de contato cultural e de empréstimo abriram caminho para os futuros estudos de
aculturação e trocas culturais dos quais falaremos mais adiante.

1.8 Franz Boas e a crítica ao


evolucionismo
Franz Boas, alemão naturalizado america- ser estudada em sua totalidade e, consideran-
no, pode ser considerado um dos pais da an- do o seu desenvolvimento histórico próprio,
tropologia americana do século XX e da antro- uma postura mais funcionalista com forte viés
pologia moderna de forma geral. histórico.
Grande crítico das teorias difusionistas e Franz Boas foi o primeiro antropólogo a
evolucionistas, afirmava que a cultura devia fazer pesquisas em campo para observação

23
UAB/Unimontes - 2º Período

direta, institucionalizando a etnografia como demasiado simplistas para serem úteis à An-
fundamental para a antropologia. tropologia.
Antes de tudo, buscava pensar a diferen- Questionava fortemente os pesquisado-
ça como fundada em questões culturais e não res que, com base em evidências fragmen-
raciais. tadas, construíam generalizações acerca das
Sua formação acadêmica era em Física, culturas. Afirmava, assim, a impossibilidade de
Matemática e Geografia, mas sua carreira an- identificar leis gerais sobre o condicionamento
tropológica se inicia após ter sido muito in- social, fenômeno tão complexo e determinado
historicamente.
Figura 7: Franz Boas ► Tornou-se assim muito conhecido por
entre os Inuit suas afirmações sobre o particularismo históri-
Fonte: Disponível em co. Segundo ele, a vida cultural de cada povo
http://www.amazon. só pode ser compreendida sob as condições
ca/Franz-Inuit-Baffin-
-Island-1883-1884/ únicas de configuração dos acontecimentos
dp/0802041507 Acesso em históricos vividas por ele.
jan. 2009. Questionava a uniformidade da história
presente nas teorias evolucionistas. Argumen-
tava ferozmente contra a sua definição de es-
tágios de evolução da cultura e questionava a
PARA SABER MAIS validade do método comparativo, conforme
Para mostrar que a va- aplicado na época, que ele classificava de im-
riação do tipo físico hu- prudente, por justificar as reconstruções evo-
mano não estava ligada lucionistas ingênuas, repletas de imprecisões
somente a questões teóricas e metodológicas, que não passavam
raciais, mas também de preconceito disfarçado na forma de experi-
se alteravam devido à
influência ambiental, ência científica.
Boas utilizou dados da Afirmava que a existência de objetivos,
forma da cabeça de fenômenos e conceitos semelhantes em luga-
17.821 indivíduos nos res distantes, por si, não prova que exista uma
Estados Unidos, já que uniformidade da história, ou seja, que todos os
a cabeça geralmente é
vista como o traço da povos se desenvolveram a partir de um mes-
figura humana menos mo ponto, mesmo que através da difusão. Não
mutável. Considerando acreditava que todos os traços comuns desen-
um espaço de tempo volvem-se sempre a partir das mesmas causas.
decorrido a partir Para ele, faltavam dados coletados que permi-
da chegada dos pais
imigrantes de várias na- tissem essa conclusão.
cionalidades aos EUA, fluenciado pelo contato íntimo com os esqui- Para Boas, era impossível afirmar a exis-
os resultados demons- mós (povo Inuit) em viagem realizada à Ilha tência de um sistema de evolução da socieda-
traram que a forma da Baffin, entre 1883-1884, que fez aumentar seu de sem a prova de que os fenômenos comuns
cabeça dos indivíduos interesse pela Geografia Cultural e vai levá-lo tiveram a mesma origem. Sem essa prova só
de um grupo pode
sofrer mudança com a interessar-se pelo papel da tradição social se poderia pensar, por outro lado, que o de-
o tempo, mesmo sem como causa determinante da cultura e dos senvolvimento histórico das sociedades se
ter havido mudança comportamentos humanos. deu, na verdade, por caminhos diversos.
de descendência e no Boas se destacou por seu rigor científico Boas afirmava que os fatos devem ser
caso dos indivíduos e cuidado nas afirmações, mais do que a rea- observados para que sejam compreendidos,
estudados tendiam
com o tempo para o lização de pesquisa de campo e coleta deta- então, para compreender a história não basta-
formato típico predo- lhada de dados. Boas defendia que estas eram va saber como as coisas são, mas também era
minante nos Estados tão ou mais importantes que as teorizações e preciso saber como elas chegaram a ser como
Unidos. (SILVA, 2006). defendia que a construção de afirmações et- são. Dizia então que deveria ser feita a compa-
Nesse caso, reflita sobre nográficas só deveriam ser feitas sobre provas, ração das histórias culturais individuais e que
as noções de raça e cul-
tura como forma de se sendo imperdoável a falta de atenção aos da- daí poderiam surgir as leis gerais do desenvol-
entender as sociedades dos e às conclusões precipitadas. Deu enorme vimento humano.
humanas. contribuição ao elevar o nível dos métodos da Ao invés do método comparativo puro e
investigação antropológica e seus critérios de simples, utilizado pelos evolucionistas, Boas
verificação. propunha investigações históricas de culturas
Era conhecido pelo rigor de seus relató- simples para descobrir a origem de traços cul-
rios, sempre objetivos e austeros, qualidades turais e interpretar seu lugar numa determina-
certamente trazidas de sua formação em Físi- da cultura.
ca e Matemática. Evitava ao máximo as gene- A partir de Boas, construiu-se nos antro-
ralizações, julgando mesmo que estas seriam pólogos americanos uma preocupação com a

24
Ciências Sociais - Antropologia II

história e a reconstrução das culturas. Parado-


xalmente, Boas acreditava que, através da aná-
lise profunda de uma cultura única, pode-se
conhecer todo o seu sentido, mesmo sem co-
nhecer o desenvolvimento histórico que deu
origem às formas atuais.
A investigação etnográfica de campo era
para Boas a peça central e atributo básico para
o trabalho do profissional da antropologia. ◄ Figura 8: Mulher Inuit
Para tanto, era imprescindível a postura em 1907.
metodológica do relativismo cultural, que ga- Fonte: Disponível em
rantiria que na coleta de dados e na análise http://commons.wikime-
dia.org/wiki/File:Inuit_wo-
cultural não se formulassem juízos de valor so- men_1907.jpg Acesso em
bre a cultura em estudo a partir da cultura do jan. 2009.
observador. Era a busca por um estudo com o
mínimo de preconceitos etnocêntricos.
Boas acabou por evitar ao máximo as
comparações e generalizações centrando seus
esforços na coleta, classificação e armazena-
mento de grandes quantidades de dados bru-
tos, que foram considerados, posteriormente,
a mais segura fonte de informações. Com o As diferenças entre os grupos humanos seriam
tempo, passa a aplicar a análise estatística aos então devidas à cultura, ou seja, adquiridas e
dados sociais. não inatas.
Traço de destaque na metodologia e teo- Boas defendia, então, uma concepção
rias de Boas era a distinção clara entre raça e relativista de cultura. Para ele, cada cultura
cultura, ideia totalmente inovadora no início representava uma totalidade singular, e um
do séc. XX. Em “A mente do homem primiti- costume particular só poderia ser explicado
vo”, um de seus estudos mais famosos, mostra se relacionado ao seu contexto cultural. Assim,
a ausência de relação entre traços culturais, buscava descrever os fatos culturais de forma
como mentalidade, virtudes e idioma, e os tra- que, juntos, formassem a síntese de cada cul-
ços físicos. tura. Os fatos culturais deviam ser compreen-
Foi muito importante sua obra sobre o didos interligados, dando uma coerência inter-
crescimento e desenvolvimento racial e físico na a cada cultura. Boas insistia no relativismo
na contribuição do conhecimento sobre raças cultural ao afirmar a dignidade de cada cultura
e seus esforços de provar a influência ambien- e a necessidade do respeito e tolerância a cul-
tal na variabilidade do tipo físico humano. turas diferentes, já que cada uma é única no
Boas procurou refletir e elaborar um en- seu modo de ser e se expressar.
tendimento mais sofisticado sobre a noção de Na década de 30, inova mais ainda ao afir-
raça. Assim, demonstrou, a partir do método mar que a estrutura da mente humana pode-
estatístico, que as pretensas “raças” não são ria explicar as regularidades dos fenômenos
estáveis, que não existem caracteres raciais culturais. Estabelecia, assim, uma conexão
imutáveis, sendo impossível definir o que seria entre a psicologia humana e a cultura, contra-
uma raça “pura”. Para Boas, então, o postulado riando a tendência da época de reconstrução
de uma “raça pura” aparecia como uma ideo- histórica.
logia, que serviria como justificativa do domí- As ideias e teorias de Franz Boas influen-
nio de uma sociedade sobre outra. ciaram a formação do chamado culturalismo e
Assim, Boas questionou de forma contun- da escola de Cultura e Personalidade, difundi-
dente a ligação feita na época entre traços físi- dos por seus discípulos, fundamentalmente na
cos e traços mentais, adotando o conceito de Antropologia Americana, no início do séc. XX,
cultura para dar conta da diversidade humana. como veremos a seguir.

Referências
CASTRO, Celso (org.). Evolucionismo Cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2005.

25
UAB/Unimontes - 2º Período

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WHITE, Lesly. Evolucionismo e Anti-Evolucionismo na Teoria Etnológica Americana. In: Sociolo-


gia, São Paulo, v. 10, n. 1, 1948.

26
Ciências Sociais - Antropologia II

Unidade 2
O culturalismo americano em sua
fase clássica e o funcionalismo de
Malinowski
Carlos Caixeta de Queiroz
Lucíola Paranhos

2.1 Introdução
Nesta unidade apresentaremos a abordagem do culturalismo americano a partir das con-
tribuições teóricas de Franz Boas para os debates desta e consequentemente para o desenvol-
vimento da antropologia moderna. Abordaremos, em seguida, a formação da escola de Cultura
e Personalidade, seus principais expoentes e suas principais teorias. Por fim, falaremos sobre os
estudos de aculturação também influenciados pelo culturalismo de Franz Boas.
Essa unidade tem também o objetivo de explorar o significado da emergência do trabalho
de campo na Antropologia, por meio de Bronislaw Kaspar Malinowski (1884-1942), e a formação
da perspectiva funcionalista na análise da cultura. É importante salientar que os conceitos, pro-
gressos e teorias da Antropologia devem ser entendidos em função do contexto em que foram
elaborados.
Malinowski desempenhou um importante papel na constituição da Antropologia como dis-
ciplina científica autônoma. Seus postulados relacionados ao modo de pesquisa etnográfica, ten-
do como estratégia básica o trabalho de campo e a observação participante, são apresentados
na introdução de “Argonautas do pacífico ocidental” (publicado em 1922). Esse livro, sem dúvida,
dividiu a Antropologia em duas fases: antes e depois de Malinowski (PEIRANO, 1992).

2.2 Culturalismo e história cultural


O chamado culturalismo, na verdade incluem, segundo Cuche (1999), mais de uma abor-
dagem teórica que ele divide em três grupos: a primeira, herdeira dos ensinamentos de Boas
que encara a cultura sob o ângulo da história cultural; a segunda, que tem o foco nas relações
entre cultura e personalidade; e a terceira, que considera a cultura como um sistema de co-
municações entre indivíduos. Trataremos neste curso somente das duas primeiras.
Todas, porém, ainda segundo Cuche (1999), afirmavam que toda a diversidade das cul-
turas não poderia ser atribuída à natureza, ou seja, a fatores raciais ou genéticos, mas estaria
relacionada a fatores culturais.
A diversidade das culturas estava visível nos traços do comportamento, ou seja, na divi-
são sexual do trabalho, nos comportamentos religiosos, na hospitalidade, na troca de olha-
res, nos cumprimentos, nos comportamentos sexuais, na alimentação, na maneira de vestir,
na forma de descansar. Toda a diversidade estaria visível ainda nas estruturas constitutivas da
própria personalidade, como se buscou perceber no estudo do contraste de personalidades
de povos tradicionais, no qual se destacou a Antropologia Americana.
A influência de Franz Boas e sua defesa da história cultural como a única forma capaz de
permitir conhecer a situação e as características de qualquer sociedade fizeram com que seus
discípulos se aprofundassem nos estudos sobre a difusão cultural e a interação entre culturas.
Destaca-se aí Kroeber que vai se esforçar para explicar o processo de distribuição dos elementos
culturais no espaço.

27
UAB/Unimontes - 2º Período

Nos Estados Unidos, estes estudos culminaram com o refinamento de conceitos como “área
cultural” e ”traço cultural”, tomados emprestados dos difusionistas alemães. As áreas culturais se-
riam, então, unidades geográficas relativamente pequenas, baseadas na distribuição contígua de
elementos culturais.
O “traço cultural” seria, então, o menor componente de uma cultura. A ideia dos estudiosos
era estudar a área espacial de um traço cultural, ou um conjunto deles, em culturas próximas, e
entender como este traço se difundiu. Quando havia uma grande convergência de traços cultu-
rais semelhantes em um dado espaço, isso era chamado de “área cultural”. (CUCHE, 1999)
No centro da área cultural encontravam-se os elementos fundamentais de cada cultura. À
medida que se aproximava das bordas da área cultural, aumentavam os traços provenientes de
áreas vizinhas.
Este conceito se aplicou perfeitamente às exigências práticas da investigação etnográfica
americana para classificar e representar cartograficamente as culturas indígenas da América do
Norte. Isso permitiu a definição de categorias geográficas usadas como unidades de exposição
para a ordenação dos materiais, em seções ou salas no Museu Americano de História Natural e
no Museu de Chicago.
O próprio Kroeber advertia, no entanto, que este conceito não seria tão aplicável em outras
partes do mundo, devendo ser aplicado de forma mais flexível para manter sua capacidade des-
critiva.
Conceito semelhante se desenvolveu na Europa. A noção de “círculos culturais” designava
complexos culturais que se encontravam dispersos pelo mundo cuja origem geográfica inicial
não se conhecia.

2.2.1 A escola de “cultura e personalidade”


No aprofundamento dos estudos sobre a singularidade de cada cultura, surge a preocupa-
ção dos antropólogos de compreender como os seres humanos incorporam e vivem sua cultura.
Passa-se a ver a cultura não somente como um elemento abstrato, em si, mas, antes de tudo,
como algo que só pode existir nos indivíduos, apesar da relativa independência destes.
Busca-se, então, entender como a cultura induz ou provoca ações e comportamentos nos
indivíduos. Parte-se do pressuposto de que cada cultura determina um tipo de comportamento,
compartilhado pelas pessoas que fazem parte desta cultura.
Nessa corrente teórica, alguns estudiosos se preocupam mais com a influência da cultura
sobre o indivíduo e outros com as reações do indivíduo à cultura. Todos, porém, consideram em
seus estudos elementos da psicologia e da psicanálise.
A influência das ideias de Boas sobre o tema se resume, a seguir, no trecho da Introdução
escrita pelo próprio Franz Boas para uma das obras mais famosas de Ruth Benedict – Padrões de
Cultura:

O desejo de captar o sentido de uma cultura como um conjunto, leva-nos a


considerar descrições de comportamento estereotipado apenas como uma al-
pondra que nos conduz a outros problemas. Devemos compreender o indiví-
duo como um ser que vive na sua cultura; e a cultura, como vivida pelos seus
indivíduos. O interesse por estes problemas sócio-psicológicos não se opõe de
modo algum ao ponto de vista histórico. Pelo contrário, revela processos dinâ-
micos que têm atuado em modificações culturais, e habilita-nos a apreciar tes-
temunhos obtidos por uma comparação pormenorizada de culturas aparenta-
das (BENEDICT, [195?], p.8)

A questão era descrever os mecanismos de transformação dos indivíduos inicialmente


iguais em indivíduos de personalidades diferentes. A hipótese básica é que a pluralidade das cul-
turas correspondia a uma pluralidade dos tipos de personalidade.
Nessa escola de pensamento, posteriormente chamada de Cultura e Personalidade, são
destaque os estudos ressaltando os contrastes de personalidade nos povos das sociedades
“tradicionais”.
Ruth Benedict, em seus trabalhos realizados na década de 1930, busca identificar padrões
de personalidade em povos tradicionais. Margaret Mead destacou-se por sua discussão sobre a
importância da educação na formação da personalidade adulta. Ralph Linton e Abram Kardiner,
por sua vez, expuseram o conceito de personalidade de base, que consistiria num mínimo psico-
lógico comum a todos os membros de uma sociedade.

28
Ciências Sociais - Antropologia II

O estudo da diversidade das culturas vi-


sava evidenciar a especificidade das persona-
lidades culturais, bem como as produções cul-
turais de cada etnia ou nação, relacionando a
etnologia com a psicologia ou psicanálise. As
obras de destaque dessa escola foram:
• Amostras de Civilização (1934), Ruth Bene-
dict; ◄ Figura 9: Ruth
• Hábitos e Sexualidade na Oceania (1935), Benedict entre nativos.
Margaret Mead; Fonte: Disponível em
• O indivíduo e sua sociedade (1943), A. Kar- <http://anthropology.usf.
diner; e edu/women/ruthb/ruth-
benedict.htm> Acesso
• Os Fundamentos Culturais a Personalida- em jan. 2009.
de (1945), R. Linton.

2.2.2 Ruth Benedict e os padrões


de cultura
Ruth Benedict é antropóloga americana,
discípula de Franz Boas, e, em sua obra, dedica-
-se principalmente à definição de tipos cultu-
rais, introduzindo os conceitos de arco cultural
e padrões de cultura. Segundo Margaret Mead,
a obra Padrões de Cultura de Ruth Benedict
tem como ideia central a visão das culturas humanas como as grandes reguladoras das persona-
lidades.
Em sua teoria do Arco Cultural, cada cultura valoriza determinado segmento do grande arco
do círculo de possibilidades da humanidade. Ela encoraja certos comportamentos ao invés de
outros que serão censurados, determinando inclinações e aversões. Uma configuração cultural,
um objetivo.
Uma cultura não se caracterizaria, portanto, por um traço ou conjunto de traços culturais, mas
um por uma configuração específica e coerente desses traços combinados, configuração esta que
forneceria um esquema inconsciente para que os indivíduos realizassem todas as atividades da
vida.

Também em cultura temos de imaginar um grande arco em que alinham os


interesses possíveis que o ciclo da vida humana, ou o ambiente, ou as várias
atividades do homem fornecem [...] O seu caráter distintivo, como uma cultu-
ra, depende da escolha de certos segmentos desse arco. Toda a sociedade hu-
mana, onde quer que seja, realizou essa escolha nas suas instituições culturais.
Cada uma delas, do ponto de vista de qualquer outra, ignora o que é essencial
e explora o que é irrelevante. Uma cultura quase não reconhece valores mone-
tários; outra, tornou-os fundamentais em todos os campos do comportamento
[... Uma erige uma enorme superestrutura cultural sobre a adolescência outra,
sobre a morte, outra ainda, sobre a vida futura (BENEDICT, [195?], p. 36).

A chave para compreensão da lógica de cada cultura seria, portanto, o estudo desta con-
figuração específica de cada povo. Em sua obra Padrões de Cultura, Benedict conclui que cada
cultura se caracteriza por um padrão, um estilo. A ideia de padrão leva, então, a uma visão das
culturas como algo homogêneo e coerente.
Afirmando a singularidade de cada cultura e a variedade das culturas, a autora defendia, no
entanto, que estas se reduziam a certo número de tipos, que poderiam ser identificados.
Benedict descreveu em detalhes o comportamento e as características de povos de diferen-
tes culturas, para demonstrar que cada cultura tinha uma “personalidade” que era estimulada em
cada indivíduo, em seus rituais, crenças, preferências pessoais etc.

A diversidade das culturas resulta não apenas da facilidade com que as socie-
dades elaboram ou repudiam aspectos possíveis da existência. É devida ainda
mais a um complexo entretecimento de feições culturais [...] A natureza da fei-
ção será variável com as regiões e de acordo com os elementos com que está
combinada (BENEDICT, [195?], p49).

29
UAB/Unimontes - 2º Período

GLOSSÁRIO Entre os povos estudados por Benedict, buscando demonstrar suas teorias, estão os Kwakiu-
Potlatch: Termo da tl, da Ilha de Vancouver, na costa noroeste dos Estados Unidos, e os Índios Pueblo, do Novo Mé-
língua índia nootka que xico. Comparando seus modelos culturais, ela classificou os Kwakiutl como sendo do “tipo dioni-
significa ‘dar’ e designa síaco” por seu temperamento mais agressivo, até violento, ambicioso e individualista, com uma
um dom ofertado por tendência afetiva mais exagerada. Mostravam-se violentos tanto em sua vida econômica e na
motivos de rivalidade guerra como em suas iniciações e danças cerimoniais. Exemplo de seu temperamento exagerado
ou de provocação.
Inicialmente, o termo e violento são as famosas cerimônias do Potlach.
referia-se a uma Os Pueblo por sua vez, foram classificados como do “tipo apolínico”, uma vez que se mos-
instituição própria travam tranquilos, respeitadores, solidários e mais contidos nas emoções. O homem ideal dos
dos índios da costa Pueblo deve ser amável e delicado, jamais querer ser um líder ou se destacar, jamais demonstrar
noroeste dos Estados arrogância ou emoção forte.
Unidos (etnias Kwakiutl,
Tlingit, Tsimshian, etc.);
posteriormente, e uma
vez que se reconheceu
a universalidade desta Figura 10: Esculturas de ►
prática ou a existência Totens Kwakiutl e casa
de práticas semelhan- do Chefe Nimpkish,
tes no resto do mundo, Tlah-Co-Glass
o termo potlatch é cada Fonte: Disponível em
vez mais utilizado pelos <http://content.lib.
etnólogos como um washington.edu/aipnw/
termo genérico que se wright.html> Acesso em
aplica a certo tipo de jan. 2009.
comportamento em
relação à riqueza. O
potlatch consistia em os
chefes ou os membros
da aristocracia ofere-
cerem solenemente
riquezas a um rival para
o desafiarem, humi-
lharem ou dominarem.
O donatário, uma vez
que não podia recusar Em sua última obra, O Crisântemo e a Espada, de 1946, Benedict busca desvendar os pa-
o presente que lhe era
feito, encontrava-se drões da cultura japonesa. O objetivo do estudo, assim como de outros encomendados a outros
vencido e perde para antropólogos que apoiavam os Estados Unidos e seus Aliados na Segunda Guerra, então em
sempre a sua posição e guerra com o Japão, era entender os padrões culturais dos povos inimigos, entender suas táticas
todo o seu prestígio ao e descobrir seus pontos fracos.
mostrar-se incapaz de
fazer, posteriormente,
a contraoferenda espe-
rada, ou levantar a luva
e devolver com usura o
que tivesse recebido. A
instituição do potlatch
transformou-se quando
as condições econômi- Figura 11: Anotações ►
cas e demográficas que de Ruth Benedict
acompanhavam o seu da entrevista com
funcionamento se mo- Hashima, retirada dos
dificaram. A introdução arquivos do Vassar
da economia mercantil College
dos brancos provocou
fenômenos inflacioná- Fonte: Disponível em
<http://www.japan-
rios, precisamente no focus.org/products/
momento em que o details/2474> Acesso em
declínio demográfico jan. 2009.
atingia as populações
índias e punha fim à
competição. Finalmen-
te, o potlatch deixou
de funcionar como
sistema de distribuição
dos papéis sociais,
para sobreviver como
festa de destruição das
riquezas tradicionais.

30
Ciências Sociais - Antropologia II

O Crisântemo e a Espada é uma obra muito elogiada e considerada muito acurada sobre a
cultura japonesa.
A pesquisa que levou à publicação de O Crisântemo e a Espada foi feita totalmente à distân-
cia, sem nenhuma pesquisa in loco ou visita ao Japão. O estudo foi realizado a partir da literatura
e filmes do Japão, recortes, documentos, arquivos e entrevistas com imigrantes. As visitas ao Ja-
pão ou à Alemanha eram impossíveis em função da Guerra. PARA SABER MAIS
Como boa discípula de Franz Boas, Benedict defendia fortemente o relativismo cultural, de-
Podemos julgar como
monstrando que cada cultura tem seus imperativos morais, e que estes só podem ser compreen- imorais as práticas da
didos quando se analisa a cultura como um todo. Afirma que a moralidade é relativa e que a cul- poligamia ou de liber-
tura de um povo não poderia ser avaliada somente com base em nossas referências. Cada cultura dade sexual existentes
tem seus próprios valores e estes devem ser respeitados. Esforçava-se por descrever as culturas em outras culturas?
por inteiro e defender a igualdade das culturas.
Benedict também criticou com toda veemência as crenças racistas e defendeu a igualdade
das raças. Produzindo material de divulgação com o ponto vista científico contra as ideias racis-
tas, reforçava a irmandade das raças e argumentava que a suposta diferença de inteligência ou
outras de características entre as raças se devia antes as diferenças de rendimento, educação,
vantagens culturais e outras oportunidades. Lembrava, ainda, que todos somos produto das
miscigenações raciais produzidas nos movimentos dos povos pela Terra.

2.2.3 Margaret Mead e a educação na formação da personalidade


Margaret Mead destacou-se por sua discussão sobre a importância da educação na forma-
ção da personalidade adulta, ou seja, preocupava-se com a maneira como o indivíduo recebe
sua cultura, os processos de transmissão cultural e de socialização e as consequências disso na
formação da personalidade.
Em sua obra Coming of Age in Samoa (1928), (Chegando à maioridade em Samoa) trata da
adolescência em Samoa e as suas especificidades no desenvolvimento da sexualidade.
Através de suas pesquisas, afirma a cultura como um fator determinante dos comportamen-
tos sociais do ser humano ao mostrar que, desde a mais tenra infância, o ser humano é envolvido
nos pressupostos do padrão cultural que modela a sua sociedade.
No livro, demonstra a influência das instituições e dos costumes sobre a personalidade, pon-
do em dúvida a ideia de que as dificuldades da puberdade e adolescência são as mesmas em
toda parte. Afirma, assim, que os comportamentos típicos desse estágio da vida com amplos
reflexos na vida adulta vão variar conforme os diferentes padrões culturais.
Em sua pesquisa em Samoa, Mead convive por alguns meses e entrevista garotas com idade
entre nove e vinte anos, concluindo que a passagem da infância para a adolescência e vida adul-
ta em Samoa se caracterizava por uma transição mais tranquila, com menor pressão psicológica
e ansiedade do que acontecia nos Estados Unidos. Segundo as entrevistas, as jovens de Samoa
podiam adiar o casamento por alguns anos, período no qual era aceito o sexo casual, até o mo-
mento em que finalmente se casavam e criavam seus filhos, ficando caracterizada uma formação
livre da repressão sexual.

◄ Figura 12: Margaret


Mead entre duas
garotas de Samoa em
1926 e foto reproduzida
na capa de seu livro.
Fonte: Disponível em
<http://www.japan-
focus.org/products/
details/2474> Acesso em
jan. 2009.

31
UAB/Unimontes - 2º Período

São muitas as pesquisas realizadas sobre as variadas formas de comportamento sexual, re-
sultantes tanto das diferenças de educação sexual como dos próprios rituais amorosos em si.
Durante a Segunda Guerra, Mead registrou dados sobre o relacionamento entre soldados
americanos, em trabalho na Grã-Bretanha, e as jovens inglesas. Ambos reclamavam do compor-
tamento uns dos outros nos relacionamentos amorosos. Mead identifica aí um choque intercul-
tural, uma vez que os soldados norte-americanos e as jovens inglesas não compartilhavam do
mesmo código de regras para o relacionamento entre homens e mulheres. Sendo assim, os mes-
mos gestos e atitudes tinham significados distintos para os dois grupos oriundos de diferentes
culturas. Um beijo, por exemplo, para os americanos era considerado um gesto normal para o
início de um namoro, já para as inglesas significava algo com consequências mais sérias, já que
seria a última etapa antes do ato sexual.
Assim como Mead, outros antropólogos identificaram variações nos padrões de comporta-
mento sexual em diferentes culturas. Na Melanésia, meninos e meninas na puberdade são inicia-
dos nas técnicas amorosas por monitores experimentados, e entre os Muriana, na Índia, os jogos
sexuais entre os jovens são incentivados. (LAPLANTINE, 2003)
A sua pesquisa sobre os Manus da Nova Guiné, condensada na obra Growing up in New Gui-
nea, publicada em 1930, permite visualizar as vidas em família, suas atitudes face ao sexo, casa-
mento, educação dos filhos e ao sobrenatural.
Um dos trabalhos mais importantes de Mead foi realizado entre 1931 e 1935, na Oceania,
entre os Arapeshs, os Mundugomors e os Chambulis, exemplificando a existência de culturas
que manifestam de formas radicalmente distintas a diferenciação dos sexos, uma obra exemplar
da abordagem culturalista.
Nessa pesquisa, ela demonstra que existem culturas em que a diferenciação da personalida-
de masculina e feminina não é destacada ou ainda que as características normalmente atribuídas
a homens e mulheres se encontram diferentes ou até mesmo invertidas em determinados povos,
mostrando que, na verdade, não estão ligadas à definição biológica do sexo.
Os Arapesh cuidam para que desde a infância, homens e mulheres sem distinção sejam pes-
soas doces e sensíveis. Entre os Mundugomor, homens e mulheres são incentivados a competir
entre si, reforçando uma natureza mais agressiva. Em ambos os povos não se espera um compor-
tamento diferenciado de homens e mulheres.
Já entre os Chambulis, a diferenciação entre os sexos é bem marcada. No entanto, eles acre-
ditam que homens são, “por natureza”, mais sensíveis, menos seguros, mais preocupados com a
aparência, sendo os responsáveis por atividades rituais e estéticas. Já as mulheres devem garan-
tir a sobrevivência do grupo e por isso são elas que têm o poder econômico, devendo ser empre-
endedoras e dinâmicas.
Em seus estudos, Margaret Mead acabou por focar a educação e a variabilidade das relações
entre os homens e as mulheres, em que conclui:

[...] os traços do caráter que qualificamos de masculinos ou de femininos são,


muitos deles, se não na totalidade, determinados pelo sexo, de uma manei-
ra tão superficial como o são o vestuário, as maneiras e o penteado, que uma
determinada época, atribui, indiferentemente, a um ou a outro sexo (Sex and
Temperament, 1935, citado por CARVALHO, 2005, p. 85).

A variação da divisão sexual do trabalho em diferentes culturas é um exemplo disso. Nas


sociedades ocidentais, geralmente os homens cuidam de prover o sustento da casa enquanto as
mulheres cuidam da criação dos filhos. Já na Ilha de Alor ou entre os Chambuli, são as mulheres
que cultivam a terra ou vão pescar enquanto os homens cuidam da educação dos filhos.
Mesmo durante a Guerra, Mead continua seus estudos, principalmente em Bali e na Nova
Guiné, pesquisando oito culturas diferentes e criando um vasto acervo e trabalhos etnográficos.
Aplicando a concepção culturalista dos valores, evidencia a estruturação da personalidade,
segundo figuras tais como: conformidade/conflito, inovação/conservadorismo, normalidade/
desvio.
Todo este volume de pesquisas realizadas buscou por fim demonstrar a especificidade
de cada cultura, seus valores intrínsecos e a determinação destes sobre os comportamentos
humanos e formação da personalidade.
Mead lembrava, no entanto, que nenhum indivíduo recebe, através da educação, sua cultu-
ra como um todo. Nenhum indivíduo pode adquirir toda a cultura de seu grupo. Os indivíduos,
na verdade, vão se apropriando da cultura através de suas histórias de vida, reinterpretando a
cultura de maneiras particulares. Isto faz que com a cultura evolua e permaneça dinâmica.

32
Ciências Sociais - Antropologia II

2.2.4 A “Personalidade Básica” em Kardiner e Linton PARA SABER MAIS


Se o comportamento
Os estudiosos da escola de Cultura e Personalidade partiam da ideia que cultura e indivíduo diferente de homens e
são duas realidades indissociáveis, já que a cultura só pode ser definida através das vivências dos mulheres não nas-
indivíduos. ce com eles, mas é
aprendido de formas
Os antropólogos Abraham Kardiner e Ralph Linton também perceberam que a personalida- diferentes ao longo
de dos indivíduos é composta de um aspecto estritamente individual e outro que é comum a da vida, pense sobre o
todos os membros de um mesmo grupo. Esse último aspecto é que interessa à antropologia e é que julgamos ser uma
diretamente determinado pela cultura à qual o indivíduo pertence. aptidão natural de ho-
A esse aspecto da personalidade, comum a todos os membros de um grupo, Ralph Linton mens e mulheres para
certas profissões, como
chamou de “personalidade básica”. Segundo ele, em cada cultura podemos encontrar toda a va- mulheres cuidando de
riedade de psicologias individuais, mas, em cada cultura, um tipo é predominante e se torna o crianças e homens em
tipo socialmente conhecido como “normal”. Este seria então a personalidade básica que cada in- serviços de mecânica.
divíduo, por sua vez, adquire através do sistema educativo de uma sociedade.
Kardiner estudará mais a fundo o papel da educação na formação da personalidade bá-
sica, em especial o papel da família e do sistema educativo. Ele definiu a personalidade básica
DICA
como: Em 1939, os antropólo-
gos Melville e Frances
Uma configuração psicológica particular própria aos membros de uma dada Herskovits realizaram
sociedade e que se manifesta por um certo estilo de comportamento sobre um trabalho em Toco,
o qual os indivíduos bordam suas variantes singulares (KARDINER citado por uma pequena vila,
CUCHE, 1999, p.85) na Ilha de Trinidad e
Tobago, onde grava-
ram 352 canções do
Linton ressaltava que em uma cultura podem existir vários tipos normais de personalidade, povo desta pequena
já que há diversidade no interior de cada cultural. comunidade crioula, da
Sobre a interação entre indivíduo e cultura, Linton e Kardiner afirmam que o indivíduo não ponta nordeste da Ilha.
tem um papel passivo, de simples guardador da cultura. Mesmo em seus traços singulares, o in- Eles gravaram canções
locais de carnaval
divíduo pode contribuir para modificar a cultura e também a personalidade básica, porque mes- (calipsos, kalindas, can-
mo sendo profundamente marcado pela cultura cada indivíduo tem seu próprio meio de viver a ções indígenas), bon-
cultura (CUCHE, 1999). gos, reels, quadrilhas, e
A concepção desses autores sobre transmissão cultural é muito flexível, considerando varia- canções sentimentais;
ções individuais e a mudança cultural. spirituals batistas, e
canções do oeste da
África (Yoruba), quase
todo o tipo de música
2.2.5 Mudança cultural conhecida pelo povo
de Toco. Esse trabalho
ficou registrado na obra
Os antropólogos difusionistas se interes- Trinidad Village.
Para ouvir algumas
savam pelos processos de difusão de traços dessas canções
culturais, através de empréstimos e repartições acesse o endereço:
entre sociedades, sempre tendo em mente http://www.rounder.
uma suposta origem cultural. Sua preocupação com/?id=album.
então era o resultado final da difusão. php&catalog_id=5532
O contexto era ainda o da busca dos ele-
mentos originais e autênticos das culturas em
estudo, numa clara oposição entre a pureza
da cultura original e a degradação da miscige-
nação de povos e suas culturas. Essa perspec-
tiva acabava por restringir os estudos sobre os
◄ Figura 13: Melville J.
contatos culturais já que não se via com bons
Herskovits
olhos a alteração de traços culturais originais.
Fonte: Disponível em
No início do séc. XX, no entanto, alguns <http://www.library.nor-
antropólogos decidem por privilegiar os es- thwestern.edu/africana/
tudos do contato entre culturas, valorizando exhibits/50yearsinventory.
html> Acesso em jan.
o sincretismo e o processo de mudança em si, 2009.
dando início aos chamados estudos de mudan-
ça cultural e estudos de aculturação.
Herskovits foi um dos pioneiros dessa linha ao se interessar pela cultura dos negros descen-
dentes dos escravos africanos na América.

33
UAB/Unimontes - 2º Período

Em 1936, Herskovits, juntamente com Ralph Linton e Robert Redfield, é


designado para compor um Comitê que organizaria a pesquisa sobre fatos de
aculturação nos EUA. A partir daí, cria-se um novo campo de pesquisa com ins-
trumentos teóricos específicos.
Este Comitê buscou esclarecer pontos teóricos importantes sobre o con-
tato entre culturas e as mudanças daí resultantes, sendo uma das primeiras
preocupações a distinção entre aculturação, assimilação, mudança cultural e
difusão.
Ao pensarem a aculturação como um processo resultante do contato en-
tre culturas diferentes, provocando mudanças, ressaltam uma série de aspec-
tos ignorados até então, por serem considerados irrelevantes cientificamente,
uma vez que a mistura de culturas e a consequente mudança de traços cultu-
rais não era vista positivamente e muito menos considerada desejável.
No Memorando para o Estudo da Aculturação, de 1936, esclarecem:

A aculturação é o conjunto de fenômenos que resultam de um contato con-


tínuo e direto entre grupos de indivíduos de culturas diferentes e provocam
mudanças nos modelos (patterns) culturais iniciais de um ou dos dois grupos
(MEMORANDO para estudo da aculturação, citado por CUCHE, 1999, p.115).

A aculturação se diferenciava da mudança cultural por ser gerada so-


▲ mente por causas externas, ou seja, pelo próprio contato intercultural, dife-
rentemente da mudança cultural que poderia se dar a partir de alterações internas à própria
Figura 14: Livro As
bases da Antropologia
sociedade.
Cultural de Herskovits, A ideia de assimilação também não poderia ser confundida com a aculturação porque, na
de 1950 verdade, corresponderia a um dos estágios da aculturação, o último. A aculturação engloba uma
Fonte: Disponível em série de fenômenos complexos, anteriores e intermediários resultantes do contato, que não ne-
<http://www.library.nor- cessariamente levariam à assimilação total de uma cultura por outra.
thwestern.edu/africana/
exhibits/50yearsinventory. Os estudos de aculturação iniciados por esse grupo de antropólogos americanos buscam
html> Acesso em jan. 09. tirar do termo aculturação todo o caráter pejorativo associado à perda irreparável da cultura,
tentando dar a ele um caráter puramente descritivo do processo de contato, mais amplo e mais
DICA complexo, a princípio, nem bom e nem ruim.
Por fim, os estudos de aculturação se diferenciam dos estudos de difusão cultural porque
Leia o capítulo I: Pré-
-história, do livro de esta poderia se dar sem o contato direto e contínuo entre culturas, indispensável à aculturação
Paul Mercier, História de acordo com a definição dada pelos teóricos.
da Antropologia, para A antropologia americana, fortemente influenciada pelo culturalismo de Franz Boas, consa-
aprofundar seus conhe- grou os estudos dos aspectos de contato, difusão e interação e aculturação de culturas. Era as-
cimentos sobre a histó-
sim considerada uma antropologia difusionista por se preocupar em compreender o processo de
ria da Antropologia.
transmissão de elementos de uma cultura para a outra.
PARA SABER MAIS
A famosa expedição
ao Estreito de Torres
2.2.6 Críticas e contribuições dos culturalistas
realizada por Baldwin
Spencer e Frank Gillen,
num contexto evolucio-
O culturalismo americano foi muito criticado por sua abordagem muito empírica tenden-
nista, coletou informa- do a gerar uma redução dos comportamentos humanos a tipos, característica associada a seu
ções, convocando os pressuposto da observação daquilo que é manifesto em detrimento do que é recalcado e in-
nativos para fornecer consciente.
os dados requisitados Por outro lado, devemos aos chamados culturalistas a visão de que cada cultura tem certa
(“sentando-se em uma
mesa ou na varanda de
coerência e lógica interna, sendo única e específica em suas características.
um oficial de colônia Também foram muito importantes ao tornar mais clara a distinção entre o que se refere à
ou missionário, ou natureza dos homens e o que se refere à cultura, mostrando que a cultura acaba por transformar
num convés de navio a natureza em muitos aspectos e não que as diferenças entre os povos se devia a diferenças bio-
em trânsito no local”). lógicas.
Eles se referiam aos
aborígenes com a infe-
A importância da educação na diferenciação entre as culturas também é grande contribui-
liz expressão niggers ção da escola de Cultura e Personalidade.
(negros) e à atividade
de campo como nigge-
ring (PEIRANO, 1992,
p. 4-5)

34
Ciências Sociais - Antropologia II

2.3 O funcionalismo de Dica

Malinowski e as novas bases da O livro de Baldwin


Spencer traz uma
edição ampliada das fo-

Antropologia
tografias que reflete os
consideráveis avanços
no conhecimento sobre
os Aborígines. Spencer
irá disparar a imagina-
As novas bases da Antropologia confun- ção dos antropólogos
dem-se com a história de Malinowski, pois foi e do público em geral
ele que propôs novos termos metodológicos também (www.wes-
para a disciplina. Sua formação inicial, no en- print.com.au).
Veja a biografia de
tanto, foi no campo das ciências exatas, tendo Walter Baldwin Spencer
se doutorado em física e matemática pela Uni- (1860-1929) no Austra-
versidade de Cracóvia na Polônia, onde nasceu. lian Dictionary of Biogra-
Influenciado pela leitura da obra de James phy Online. Disponível
Frazer, The Golden Bough, (O Ramo de Ouro), em<http://www.adb.
online.anu.edu.au/
iniciou-se na Antropologia e, já na Inglaterra, biogs/A120043b.htm>
inicia seus estudos sob a orientação de Karl Acesso em jan. 2009.
Bucher Wilhelm Wundt. Mantém contato com
Seligman, Haddon, Rivers, Frazer e Marett – im-
portantes antropólogos da época (MALINO-
WSKI, 1984, p. VIII)
O início da carreira de Malinowski é mar- ◄ Figura 15: Livro de
fotografias de Baldwin
cado pelo desenvolvimento de novas técnicas Spencer
de pesquisa e críticas aos métodos adotados Fonte: Disponível em
até então. Nesta época, fim do séc. XIX, os an- <http://www.westprint.
tropólogos não tinham qualquer contato com com.au/Product%20
Pages/aboriginals7.htm>
os povos que chamavam de primitivos e sobre Acesso em jan. 2009.
os quais escreviam. Seus escritos baseavam em
relatos históricos, arqueológicos e de viagens.
No entanto, algumas exceções eram registra-
das: na América, Morgan e Cushing; e, na Europa, iniciam-se trabalhos com observações diretas
sobre populações tribais. De acordo com Mercier (1974?), nessa época é que surge a preocupa-
ção em verificar hipóteses geográficas e em transformar toda viagem em empreendimento de
coletar dados etnográficos. Por esse motivo é que é publicado “L’Instruction générale aux voya-
geurs” pela Sociedade Etnológica de Paris.
As potencialidades do trabalho de campo são enfatizadas com uma orientação te-
órica direcionada a uma coleta de dados em profundidade. São publicadas as extensas
investigações feitas por Baldwin Spencer e Frank Gillen (1889) sobre aborígenes austra-
lianos, época da famosa Expedição Cambridge ao Estreito de Torres, organizada por Ha-
ddon.
Como pioneiros, Rivers, que pesquisou os Todda em 1901, e Seligman, que fez ex-
tenso levantamento na Melanésia em 1904, iniciaram trabalhos de campo, “fase que Ma- ▲
linowski iria revolucionar” (DURHAM, 2004, p. 206). Essas experiências e a abordagem teórica de Figura 16: Baldwin
Durkheim é que formaram a nova geração de antropólogos do qual Malinowski fazia parte. Spencer Expedition,
Em 1913, Malinowski publica “A família entre os aborígenes australianos”, trabalho baseado 1901.
nas descrições de Spencer e Gillen. Disponível em <http://
www.abc.net.au/limelight/
Apenas em 1914 é que Malinowski realiza sua primeira experiência de campo (na Melanésia docs/films/5_1_2_3.htm>
entre os Mailu). A primeira Guerra Mundial o impede de voltar à Inglaterra. Assim, inicia nova Acesso em jan. 2009.
pesquisa de campo nas Ilhas Trobriand, Nova Guiné, ficando por lá entre junho de 1915 a maio
de 1916 e entre outubro de 1917 a outubro de 1918. Foi essa importante experiência que deu
origem ao livro “Argonautas do Pacífico Ocidental”.
No decorrer de duas estadias sucessivas nas ilhas Trobriand, ninguém antes dele tinha se
esforçado tanto em penetrar na mentalidade dos outros e em compreender de dentro, por uma
verdadeira busca de despersonalização, o que sentem os homens e as mulheres que pertencem
a uma cultura que não é nossa (LAPLANTINE, 2000, p. 80).
O livro “Argonautas” se destaca na obra de Malinowski pelo “ideal de paridade embutido no

35
UAB/Unimontes - 2º Período

programa didático de sua introdução” (PEIRANO, 1992, p. 5). O homem primitivo, para ele, não
PARA SABER MAIS era atrasado, ignorante ou infantil, como podia ser observado em obras científicas. Isso decorria
de um defeito da observação. Completa Laplantine:
Com o Funcionalismo,
as sociedades não Os antropólogos [...] identificavam-se totalmente com a sua sociedade [...] con-
europeias passam a siderada como civilização. [...] Em relação a esta, os costumes dos povos primiti-
ser estudadas naquilo vos eram vistos como aberrantes. Malinowski inverte essa relação: a antropolo-
que lhes era próprio e gia supõe uma identificação (ou pelo menos, uma busca de identificação) com
específico. a alteridade, não mais considerada como forma social anterior à civilização, e
sim como forma contemporânea mostrando-nos em sua pureza aquilo que nos
faz tragicamente falta: a autenticidade. Assim sendo, a aberração não está mais
do lado das sociedades primitivas e sim do lado da sociedade ocidental. (LA-
PLANTINE , 2000, p. 82-83

Para Durham (2004), Malinowski teve uma capacidade de reconstruir uma realidade cultu-
ral específica. Seus conhecimentos são produto de uma reflexão teórica (principalmente a crítica
aos métodos da Antropologia Clássica – Evolucionismo e Difusionismo) e de uma proposição de
novas técnicas de investigação.
GLOSSÁRIO
Couvade: (palavra
francesa que significa
“choco”, “incubação”). 2.3.1 Fundamentos da escola funcionalista
Costume em vigor no
período que precede
um parto. Esse costume Antropólogos britânicos da nova geração como Radcliffe-Brown e Malinowski criticaram ra-
impõe ao futuro pai dicalmente os postulados evolucionistas e difusionistas vigentes no séc. XIX.
certo número de No Evolucionismo, os costumes só faziam sentido quando estavam relacionados em um
proibições, assim como eixo temporal, em que sempre há algo que sobra, que consegue perpassar a transformação que
um comportamento
decalcado sobre o da
vem com o tempo, privilegiava-se a noção de sobrevivência desse resíduo que permitia “relacio-
futura mãe (repouso, nar o presente com o passado” (DAMATTA, 1987, p.102). Em oposição a esses conceitos, o Fun-
isolamento, estada na cionalismo buscava revelar que em uma sociedade nada poderia ocorrer ao acaso. Como uma
cama etc.). Considera- sobrevivência de tempos passados, tudo tem uma funcionalidade.
-se, pois, que o pai Com o Funcionalismo, a sociedade é estudada como um sistema coerente integrado de rela-
participa no processo
de dar à luz à criança.
ções sociais (DAMATTA, 1987).
Numerosas teorias Esse mesmo autor cita que o posicionamento Funcionalista é positivo e revolucionário em
foram propostas para relação ao Evolucionismo, pois, na definição do sistema social, afirmava:
justificar a couvade; a. Não existem restos culturais, tudo desempenha um papel;
algumas delas apelam b. Tudo tem um sentido, ainda que esse sentido não seja facilmente localizável; e
para a noção de magia
por contágio, outras
c. O sentido de um costume, hábito social ou instituição tem que ser compreendido nos ter-
para a psicanálise etc. mos do sistema do qual provém [...] (DAMATTA, 1987, p. 103-104).

O desenvolvimento do trabalho de campo sistemático originou novas maneiras de colher


e manipular dados empíricos. O nome de Malinowski está ligado ao termo Funcionalismo pela
tentativa de definição da realidade sociocultural, daí em diante, sempre a partir da sociedade es-
tudada pelo investigador.
A comparação na perspectiva funcionalista, diferentemente da evolucionista, passa a envol-
ATIVIDADE ver, também, a reflexão sobre a sociedade e os costumes do observador. Para DaMatta, o Funcio-
nalismo é que revela que a pesquisa antropológica exigia um movimento duplo:
Leia o capítulo de
introdução do livro
[...] uma viagem de ida, em direção ao selvagem desconhecido e confundido
Argonautas do Pacífico
em meio a costumes exóticos e irracionais; e uma viagem de volta quando o
Ocidental – Tema, mé-
etnólogo reexamina seus dados e os integra no plano mais profundo das es-
todo e objetivo desta
colhas humanas. Descobre-se, então, que aquilo que se chamou de exótico ou
pesquisa – e identifique
de irracional é apenas a forma explícita de um traço conhecido em sua própria
os principais conceitos
sociedade (DA MATTA, 1987, p. 107).
e recomendações pro-
postos pelo autor.
Em seus primeiros trabalhos, Malinowski e Radcliff-Brown foram altamente influenciados
por Durkheim, que elaborou inicialmente os conceitos de função e integração social.
De acordo com Mercier (1974), outros pesquisadores já tinham afirmado que não se pode
interpretar o fato sem considerar todos os fatos ou fatos conexos: Franz Boas, Marcel Mauss e
Thurnwald. Esse último nas inter-relações de fatos religiosos, políticos, econômicos e familiares.
As críticas dos funcionalistas à Antropologia Clássica direcionam-se à arbitrariedade das ca-
tegorias utilizadas:

36
Ciências Sociais - Antropologia II

[...] a comparação entre sociedades diversas é feita através de um desmembra- GLOSSÁRIO


mento inicial da realidade em itens culturais tomados como elementos autô-
nomos; com os fragmentos assim obtidos os autores procedem a um rearran- Kula: Vasto circuito inter-
jo arbitrário, agrupando-os de acordo com categorias tomadas de sua própria tribal de trocas respeitante
a uma vintena de ilhas da
cultura e fabricando com isso intuições, complexos culturais e estágios evolu-
Melanésia, sendo as mais
tivos que não encontram correspondência em qualquer sociedade real. (MALI-
conhecidas o arquipéla-
NOWSKI, 1984, p.X). go Trobiand, estudado
por Malinowski, e a ilha
Dobu. As transações mais
características do sistema
Figura 17: Tradução: ► Kula não são comerciais,
porque não incidem sobre
Cena em Yourawotu
mercadorias, mas sobre
(Ilhas Trobriand). Um
objetos sem qualquer
dos rituais, bastante utilidade e que têm a
complexo, mas bem mesma função que as
definido, dos que joias da coroa no ritual
compõem o sagali. Sob das monarquias europeias
a confusão aparente, ou os troféus ganhos nas
existe um sistema competições desportivas.
bem definido de Esses objetos, que são
princípios econômicos apenas de duas espécies
e cerimoniais. (pulseiras e colares), não
Fonte: MALINOWSKI, B.K. saem nunca do circuito e
Argonauts of the western são trocados seguindo um
pacific. 2ª impression. percurso inverso ao longo
London: Gerge Routledge do círculo das transações.
& Sons Ltd, New Yaork: E. P. Levam de 2 a 10 anos a
Dutton e Co, 1932. dar uma volta completa e
a voltar ao seu ponto de
partida. No termo de um
ciclo, cada um dos indiví-
duos que procedeu a esta
troca encontra-se na posse
dos objetos que tinha no
início e quem quer que
procure obter mais do que
deu inicialmente ficará
definitivamente desonra-
do. Ao lado e por ocasião
dessas trocas ‘nobres’, têm
Laplantine (2000) cita que, para Malinowski, trabalhos como o de Boas – que procurava es- também lugar operações
tabelecer repertórios exaustivos e correlações entre um número enorme de variáveis – “era aber- de caráter especificamen-
te comercial, mas são
ração” (p.80). Era importante, mostrar que a partir de um costume, ou um único objeto, aparece o estritamente separadas
perfil do conjunto de sociedade. daquelas. O sistema ba-
O foco principal da análise funcional relacionava-se à preocupação com a adequação das seia-se em duas espécies
categorias à realidade estudada, com o intuito de reconhecer e preservar as particularidades de de operações complemen-
tares: a primeira, grandes
cada cultura. O postulado de integração funcional relaciona-se aos elementos culturais que não expedições marítimas
podem ser manipulados por fazerem parte de sistemas definidos e próprios de cada cultura, ca- que veiculam um número
bendo a cada investigador descobrir. considerável de objetos;
Para DaMatta (1987), a partir do desenvolvimento do Funcionalismo, o centro de referência a segunda, trocas muito
mais humildes, que fazem
do investigador não é mais a Europa e seus costumes e sim um novo ponto: a sociedade, tribo ou circular apenas um dos
cultura por ele estudada. Dessa forma, o plano comparativo fundava-se na observação de cada objetos preciosos numa
sistema com racionalidade própria. Como esse autor, citamos Malinowski: distância de alguns qui-
lômetros ou de uma casa
para outra (Kula interior).
A ciência moderna, porém, nos mostra que as sociedades nativas têm uma or-
Outros sistemas, bastante
ganização bem definida, são governadas por leis, autoridade e ordem em suas
semelhantes na sua forma
relações públicas e particulares, e que estão, além de tudo, sob o controle de e nas suas funções, foram
laços extremamente complexos de raça e parentesco. De fato podemos cons- observados em diversas
tatar nas sociedades nativas a existência de um entrelaçado de deveres, fun- regiões do mundo (nome-
ções e privilégios intimamente associados a uma organização tribal, comunitá- adamente na Melanésia).
ria e familiar bastante complexa. As suas crenças e costumes são coerentes [...] O interesse teórico dessas
hoje estamos muito longe da afirmação feita há muitos anos por uma célebre instituições é considerável
autoridade que, ao responder uma pergunta sobre as maneiras e os costumes porque nelas encontramos
dos nativos, afirmou: “Nenhum costume, maneiras horríveis”. Bem diversa é a intimamente misturados
posição do etnógrafo moderno que, armado com seus quadros de termos de fenômenos econômicos,
parentesco, gráficos genealógicos, mapas, planos e diagramas, prova a existên- comportamentos de
cia de uma vasta organização nativa [...] (MALINOWSKI, 1984, p. 23) fachada, o funcionamen-
to de redes de alianças
políticas etc.

37
UAB/Unimontes - 2º Período

A análise funcional objetiva explicar os à observação de fatos sociais aparentemente


fatos antropológicos pela função e papel que minúsculos e insignificantes, cuja significação
desempenham no sistema da cultura, na ma- só pode ser encontrada nas suas posições res-
PARA SABER MAIS neira que se ligam uns aos outros no interior pectivas no interior de uma totalidade mais
Leia o trecho a seguir, desse sistema. A cultura deve ser vista como ampla (LAPLANTINE, 2000, p. 84).
retirado do livro “Uma uma totalidade e cada aspecto dela é impor- Já dissemos aqui que, para Malinowski, a
teoria científica da tante para a manutenção do todo. cultura constitui uma totalidade integrada que
cultura” de Malinowski
A identidade real de uma cultura pare- apresenta núcleos de ordenação e correlação,
(1975, p.46-47):
Fôssemos nós descre- ce basear-se na conexão orgânica de todas as as denominadas instituições. Dessa forma, es-
ver todas as manifes- suas partes, na função que o detalhe desem- clarece Laplantine (2000), a função da cultura
tações de cada cultura penha no interior do sistema, nas relações consiste em satisfazer as ‘necessidades’ funda-
no mundo, encontra- entre sistema, meio e necessidades humanas mentais do indivíduo e cada cultura as realiza
ríamos obviamente
(MALINOWSKI, 1935, citado por MERCIER 1974, elaborando instituições que podem ser econô-
elementos tais como o
canibalismo, a caça de p.96). micas, políticas, jurídicas, educativas etc.
cabeças, a couvade, o O conceito de função possibilita, como Para Mercier (1974), a teoria das ‘necessi-
potlatch, a kula, a cre- instrumento, reconstruir os sistemas que or- dades’ apontava que para cada necessidade
mação, a mumificação denam os costumes, nos quais são caracteriza- há uma resposta cultural, entretanto, as neces-
e um vasto rol de minu-
dos os comportamentos dos homens. sidades são de muitas espécies:
ciosas excentricidades
periféricas. Desse ponto Agora, percebam, estudantes, que essas Primárias – alimentação, reprodução, con-
de vista, é claro que ne- preocupações de Malinowski já o acompanha- servação, proteção etc.;
nhuma cultura abrange vam anteriormente a seu trabalho de campo, • Derivadas – educação, linguagem;
todas as extravagân- especificamente quando publicou seu primei- • Ligadas ao sistema religioso: expressar
cias e excentricidades
ro livro – A família entre os aborígenes australia- sentimentos coletivos e experimentar
catalogadas de muitas
outras. Acredito, toda- nos – baseado em material bibliográfico, “[...] já uma sensação de confiança.
via, que essa aborda- mostrava deficiência das categorias de análise Prossegue Mercier (1974, p. 98), “o que
gem é essencialmente e dos conceitos evolucionistas e difusionistas nasce para responder a uma determinada
anticientífica. Deixa, e propõe um novo método de ordenação e in- necessidade não são traços de cultura ou
em primeiro lugar,
terpretação da evidência empírica” (MALINO- de organização social, mas conjuntos muito
para definir, de acordo
com os princípios de WSKI, 1984, p. X). complexos denominados instituições”. As ins-
relevância, os elemen- Mercier (1974) cita que a carreira profissio- tituições é que constituem, para a antropolo-
tos de uma cultura que nal de Malinowski inicia-se com a publicação gia funcionalista, as unidades elementares de
podem ser considera- de “Argonautas do Pacífico Ocidental” (Ar- estudos.Para estudá-las, é necessário um estu-
dos reais e de significa-
gonauts of the Western Pacific), em 1922, até do de todos os seus componentes.
ção. Deixa, também, de
nos dar qualquer pista “Uma Teoria Científica da Cultura” (A Scientific As instituições são limites naturais esta-
para os costumes ou Theory of Cutlture and the Other essays), em belecidos pela cultura que, para Malinowski
disposições aparen- 1944. Essa última, obra póstuma. Entretanto, (1984), é sempre uma unidade multidimen-
temente exóticas. Na houve a publicação de “A família entre os abo- sional.
verdade, devemos ser
rígenes australianos”, em 1913, já mencionada De acordo com Cuche (1999), é através da
capazes de demonstrar
que algumas realidades anteriormente nesse material. Entendemos teoria das necessidades que Malinowski sai da
que parecem estranhas que os autores consideram como início da reflexão sobre a cultura para voltar ao estudo
à primeira vista são ‘carreira profissional’ de Malinowlki a obra “Ar- da natureza humana. Essa concepção ‘biolo-
essencialmente apa- gonautas”, pois é através dela que Malinowski gista’ da cultura o leva a ver apenas fatos que
rentadas aos elementos
formula as linhas gerais do seu método. implicavam em uma estabilidade harmoniosa
culturais humanos
verdadeiramente uni- Podemos considerar, a partir das consi- de todas as culturas.
versais e fundamentais; derações de Malinowski e ainda nos dias atu- Em seu livro “Uma teoria científica da cul-
e o próprio reconheci- ais, que uma das formas de conhecimento em tura”, Malinowski (1974) discute que há dois
mento disso permitirá profundidade do outro é a participação, pos- tipos de análise: a funcional e a institucional
a explicação, ou seja, a
sibilitada por um estudo intensivo do que nos que possibilitam definir a cultura. Nesse con-
descrição, em termos
comuns, de costumes é estranho. Porém, ressalta Laplantine (2000), texto, a cultura é um conjunto integral de ins-
exóticos. a longa duração do trabalho de campo, como tituições, às vezes autônomas, outras vezes,
forma de impregnar-se da mentalidade do ou- coordenadas. A cultura se integra à base de
tro pode parecer banal no dias de hoje, mas uma série de princípios: por meio da comuni-
Malinowski, incontestavelmente, ensinou-nos dade de sangue, por meio da procriação, por
a ‘olhar’, explicando como deveria ser uma meio da continuidade espacial (relacionada à
pesquisa de campo. cooperação), por meio da especialização de
Em Argonautas [...], pela primeira vez, o atividades e por meio do uso do poder na or-
social deixa de ser anedótico, curiosidade exó- ganização política.
tica, descrição moralizante ou coleção exaus- Malinowski imprime sua marca e mérito
tiva erudita. Pois, para alcançar o homem em ao demonstrar que não se pode estudar a cul-
todas as suas dimensões, é preciso dedicar-se tura analisando-a do exterior, à distância. Sis-

38
Ciências Sociais - Antropologia II

tematizou o método etnográfico chamado de Em suma, Malinowski é praticamente o


‘observação participante’ como a única forma pai ou o único expoente do funcionalismo.
de conhecimento da alteridade cultural que Outros pregaram ou praticaram sua fé, ele fez
poderia escapar do etnocentrismo. os dois.

Referências
BENEDICT, Ruth. Padrões de Cultura. Lisboa: Edição Livros do Brasil, [195?].

CARVALHO, Alix de. Colectando com Margaret Mead pelo Pacífico Sul. Episteme, Porto Alegre, n.
20, suplemento especial, p. 81-91, jan/jun 2005.

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999.

DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro, 1987.

DURHAM, Eunice. A Dinâmica da Cultura: ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac Naify,
2004.

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2003.

LARAIA, Roque de B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacifico Ocidental: Um relato do empreendimento


e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guine Melanésia. São Paulo: Abril Cultural,
1984. (Coleção Os Pensadores)

MERCIER, Paul. História da Antropologia. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974.

PEIRANO, Mariza G. S. A favor da etnografia. Brasília: UnB, 1992. (Série Antropologia, 130) Dis-
ponível em <http://www.unb.br/ics/dan/Serie413empdf.pdf> Acesso em set. 2008.

SILVA, Inayá Bittencourt e. Franz Boas e os sentidos contemporâneos do culturalismo. Revista


Uniara, n 17/18, 2005/2006, p. 195-206.

39
Ciências Sociais - Antropologia II

Unidade 3
A antropologia da escola
sociológica Francesa: Durkheim e
Mauss
Cristina Andrade Sampaio
Carlos Caixeta de Queiroz

3.1 Introdução
Nesta unidade abordaremos as teorias e estudos produzidos pela chamada “escola france-
sa de sociologia”. Mais especificamente trataremos das contribuições de Émile Durkheim, Marcel
Mauss e Lévy-Bruhl, primeiros teóricos da antropologia e, em especial, dos estudos sobres os sis-
temas de representações.

3.2 A escola sociológica Francesa


Diferentemente da antropologia na Inglaterra e nos Estados Unidos, a antropologia na Fran-
ça ficou marcada por um grande atraso no início da prática da etnografia. Durante todo final do
séc. XIX e início do séc. XX, não se destacou na França nenhum nome equivalente ao de Franz
Boas ou de Malinowski. A etnografia na França só começa a partir dos anos 30 com Griaule.
No entanto, com os antropólogos franceses, a chamada escola francesa vai se destacar por
ser a primeira a formular os pressupostos teóricos da disciplina. A linhagem francesa da antropo-
logia e o surgimento de seus primeiros teóricos estarão intimamente ligados à história da forma-
ção e reconhecimento da sociologia e das ciências sociais como ciência.
Nesse contexto, Émile Durkheim (1858 – 1917) é a referência com a formação da famosa Es-
cola Sociológica Francesa de onde começa o debate sobre as especificidades do social e a ne-
cessidade do desenvolvimento de modo de investigação e teorias próprias para o estudo dos
fenômenos sociais.
Durkheim, seu grupo e depois seus seguidores – entre eles seu sobrinho Marcel Mauss –
visavam constituir uma ciência propriamente social e precisavam, antes de tudo, argumentar e
convencer a comunidade científica da necessidade de uma ciência específica para tratar de fenô-
menos sociais, que deveriam estar independentes de explicações históricas, geográficas, biológi-
cas ou psicológicas.
A questão era mostrar que o social só poderia ser explicado pelo social. Ou seja, as grandes
questões da época, como a diversidade das culturas e a desagregação e aparente caos instalado
na sociedade do fim do séc. XIX, não seriam explicadas por argumentos biológicos, como a dife-
rença das raças, ou ainda históricos, como os diferentes estágios de evolução dos povos, ou ex-
plicações geográficas, ou explicações psicológicas para as transformações do mundo moderno.
Afinal, a sociedade não é a simples soma dos indivíduos, é algo mais.
Em uma de suas principais obras, O Suicídio, Durkheim vai dizer que, ao unirem-se, os indi-
víduos formam um ser psíquico de uma nova espécie que tem a sua própria maneira de pensar
e de agir. É a sociedade, agora vista como um organismo que transcende aos indivíduos, e que,
portanto, demanda um estudo específico.
Durkheim mostrava a partir daí a necessidade de estudar o social para explicar as questões
de seu tempo.

41
UAB/Unimontes - 2º Período

As preocupações eminentemente teóricas


desse período eram, então, conduzidas por fi-
lósofos e sociólogos. Um marco dessa escola é
a publicação, em 1895, das Regras de Método
Figura 18: Émile ► Sociológico, de Durkheim, em que ele demar-
Durkheim. ca e detalha as especificidades da investigação
Fonte: Disponível em dos fatos sociais.
http://www.phillwebb. Com a definição do fato social, Durkheim
net/Topics/Society/
Durkheim/Durkheim.htm
demarca o campo das ciências sociais que se
Acessado em fev. 2009. voltariam para o estudo desse tipo especial de
fenômeno. Segundo ele, os fatos sociais não
poderiam ser confundidos com fenômenos or-
gânicos ou psicológicos, pois têm característi-
cas específicas que os distinguem. Então ele os
descreve:

Eis, portanto uma ordem de fatos que apresentam


características muito especiais: consistem em ma-
neiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao
indivíduo, e que são dotadas de um poder de co-
erção em virtude do qual esses fatos se impõem a
ele. Por conseguinte, eles não poderiam se confun-
dir com os fenômenos orgânicos, já que consistem
em representações e em ações; nem com os fenômenos psíquicos, os quais
só têm existência na consciência individual e através dela. Esses fatos consti-
tuem, portanto uma espécie nova, e é a eles que deve ser dada e reservada a
qualificação de sociais (DURKHEIM, 1973b, p.390).

Durkheim dá como exemplo os deveres que cumprimos nos vários papéis que assumimos
na sociedade, deveres que estão definidos fora de nós, no direito e nos costumes. Assim como as
crenças e as práticas da vida religiosa, ou a forma de nos vestirmos, ou a linguagem e o sistema
ATIVIDADE de moedas que utilizamos, que embora não sejam obrigatórios, são fatos sociais, exteriores a nós
Baseado na definição e exercem certo poder sobre nós, quer queiramos ou não.
e exemplos dados por A definição dos fatos sociais vai, daí em diante, marcar toda a obra de Durkheim, da Escola
Durkheim, pense em Sociológica Francesa e das ciências sociais em geral.
mais três exemplos de Partindo da concepção de fato social de Durkheim (fato social como “coisa”, objeto a ser es-
fatos sociais. tudado), Mauss introduz no conceito o aspecto simbólico. Nos fatos sociais totais – como a troca
nas tribos do noroeste americano –, exprimem-se as instituições religiosas, jurídicas, morais, eco-
nômicas, bem como os fenômenos estéticos e morfológicos; enfim, toda a vida social se mistura
e está presente ali.
Para Mauss:

Neles [fatos sociais totais] tudo se mistura, tudo o que constitui a vida pro-
priamente social das sociedades que precederam as nossas [...]. Nesses fe-
nômenos sociais “totais”, como nos propomos chamá-los, exprimem-se, de
uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas
sendo políticas e familiares ao mesmo tempo -; econômicas – estas supondo
formas particulares da produção e do consumo, ou melhor, do fornecimento
e da distribuição-; sem contar os fenômenos estéticos em que resultam es-
ses fatos e os fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam.
(MAUSS 2003, p. 187).

Mauss afirma, então, que para existir o fato social total, não é necessária somente a integra-
ção de vários aspectos, mas também que o fato se encarne em uma experiência individual.

O fato social total apresenta-se, portanto, com um caráter tridimensional. Ele


deve fazer coincidir a dimensão propriamente sociológica, com seus múltiplos
aspectos sincrônicos; a dimensão histórica ou diacrônica; e, enfim, a dimensão
fisiopsicológica. Ora, é somente em indivíduos que essa tríplice aproximação
pode ocorrer. Se nos dedicamos a esse “estudo do concreto, e do completo”,
devemos necessariamente perceber que o “que é verdadeiro não é a pre-
ce ou o direito, mas o melanésio dessa ou daquela ilha, Roma, Atenas” (LEVI-
-STRAUSS, 2003, p. 24).

42
Ciências Sociais - Antropologia II

GLOSSÁRIO
Para Peirano (1990), foi o kula de Malinowski que permitiu a Marcel Mauss conceber o fato Totemismo: “Termo for-
social total. O Kula consiste em uma “troca cerimonial de conchas de spondylus vermelho por jado a partir da expressão
algonkin (língua índia da
braceletes de conchas brancas entre determinados parceiros no extenso círculo de ilhas no ex- América do Norte) otote-
tremo oriental da Nova Guiné” (PEIRANO, 1990, p. 3). Para essa autora, não era apenas um fenô- man, ‘ele é meu parente’,
para designar um sistema
meno econômico de troca de bens preciosos, mas envolvia as esferas do religioso, da política, simultaneamente religioso
da mitologia, dos ritos, repercutia nas formas linguísticas e incluía também o comércio puro e e sociológico, do qual, du-
rante muito tempo, se fez a
simples, criando um circuito fechado de relações entre as ilhas do arquipélago. Dessa forma, as quintessência do ‘primitivis-
trocas em si permitiam a fortalecimento dos vínculos sociais, sendo bem mais que simples troca mo’. Esse sistema baseia-se
na relação que existe, numa
dos objetos. sociedade segmentada,
É nesse processo do Kula que Mauss conseguiu entender o social integrado na experiência entre um conjunto de ani-
mais ou, mais raramente, de
individual dos melanésios. vegetais ou de fenômenos
O Kula se constitui como fato social total por ser apreendido em uma experiência concreta, naturais e um conjunto de
grupos humanos (exem-
por integrar o social (econômico, jurídico, estético etc.) e o individual (físico e psíquico) na vida plo: o conjunto dos clãs,
dos melanésios das Ilhas Trobriand. o conjunto das classes
de idade, o conjunto das
Durkheim e Maus vão percebendo, com o tempo, a complexidade dos fenômenos sociais e fratrias dessa sociedade).
a necessidade de analisá-los em suas diversas dimensões, entre elas a dimensão cultural, já que O animal ou o vegetal
associado a cada grupo
os fenômenos sociais têm seu caráter simbólico. Debruça-se, então, no final do séc. XIX, junta- chama-se Totem. Muitas
mente com Marcel Mauss, sobre o estudo das representações sociais das sociedades primitivas vezes, mas nem sempre,
o totem é objeto de um
que culminará no estudo denominado “Algumas Formas Primitivas de Classificação”, publicado culto, de veneração ou de
em 1901. Inaugura-se a denominada “linhagem francesa” na Antropologia. Com essa obra, aca- tabus por parte do grupo
em questão. Acontece
bam por estabelecer uma ponte entre a teoria sociológica e as preocupações da antropologia. também que o totem seja
Discordando completamente dos pressupostos evolucionistas, em especial da ideia de evo- considerado o antepassado
do grupo. Várias gerações
lução unilinear de todas as sociedades, Durkheim demonstrava uma postura relativista e afirma- de teóricos fizeram dessa
va que a normalidade é relativa a cada sociedade e ao seu nível de desenvolvimento. Em seus es- instituição complexa a
forma mais elementar
tudos, ele procurava demonstrar a unidade da humanidade e refutar a distinção entre primitivos da religião e a origem de
e civilizados. diversos costumes que
pareciam característicos
Durkheim era antes de tudo um sociólogo e enxergava a Antropologia, ou mais especi- das sociedades “primitivas”:
ficamente a etnografia, como um ramo anexo da Sociologia. Seguia, então, em seu interesse a exogamia, o sacrifício,
o culto dos antepassados
demonstrar que fenômenos sociais só podem ser explicados pelo social. Por isso, buscava es- etc. O melhor exemplo da
tabelecer um método rigoroso para os estudos dos fatos sociais. Recusava o comparativismo utilização do totemismo
como explicação unitária é
especulativo, comum entre os evolucionistas, e buscava o desenvolvimento do procedimento dado por Freud em Totem e
empírico, baseado em dados etnográficos. A grande preocupação era determinar a natureza Tabu. Mas, a partir de 1920,
os etnólogos começaram
do vínculo social. a duvidar da existência do
Ainda diferente dos estudiosos evolucionistas, Durkheim não vê no homem primitivo o totemismo como instituição
autônoma e distinta, de tal
seu objetivo principal de análise. O homem primitivo passa a ser um instrumento para o co- forma grande se revelou
nhecimento de uma realidade mais geral e atual, como, por exemplo, a religião e seu papel na a heterogeneidade dos
elementos culturais reuni-
sociedade. O homem primitivo se torna, assim, um caminho metodológico para compreensão dos sob esta etiqueta, ao
desse objeto. mesmo tempo que a sua
presença ou ausência nas
Para seus estudos, ele partia então de alguns pressupostos: a sociedade como uma totali- várias sociedades parecia
dade orgânica, como sistemas complexos e solidários e a prioridade da sociedade sobre o indi- cada vez mais fortuita.
Finalmente, em 1962, Lévi-
víduo. -Strauss demonstrou que o
Esses dois pontos se materializam, segundo Durkheim, na chamada “consciência coletiva” da totemismo era uma ilusão
devida aos preconceitos
sociedade. É ela que realiza a unidade e coesão. Feita de representações coletivas, ideais, valores dos sábios do final do
comuns a todos os indivíduos da sociedade, a consciência coletiva se impõem aos indivíduos e é século XIX (‘o totemismo
é, antes de mais nada,
exterior a eles. Em “A Divisão do Trabalho Social”, ele a define: uma projeção, para fora do
nosso universo e como que
O conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de através de um exorcismo,
de atitudes mentais incom-
uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem sua vida pró- patíveis com a exigência
pria; poderemos chamá-lo: consciência coletiva ou comum. Sem dúvida ela de descontinuidade entre
não tem por substrato um órgão único; é, por definição, difusa em toda a ex- o homem e a natureza,
tensão da sociedade; mas não deixa de ter caracteres específicos que fazem exigência que o pensa-
mento cristão considerava
dela uma realidade distinta. Com efeito, é independente das condições par- essencial, Le Totémisme
ticulares em que os indivíduos estão colocados; eles passam, ela permanece Aujourd’hui). A única reali-
(DURKHEIM, 1973, p.342). dade que se pode distinguir
ainda nesta pseudo-insti-
tuição é um processo de
Ressaltava, assim, que os grupos, as sociedades possuem uma individualidade psíquica pró- classificação que provém
da ciência ‘primitiva’ e faz
pria que se reflete em sua consciência coletiva e, por isso, se contrapunha às teses individualistas corresponder diversos ele-
e ao psicologismo na explicação de fatos sociais. mentos do reino da cultura
a diversas entidades do
reino da natureza” (PANOFF
e PERRIN, s/d, p. 167).

43
UAB/Unimontes - 2º Período

3.3 A origem social dos sistemas


lógicos
GLOSSÁRIO Em “Algumas Formas Primitivas de Classificação” – um estudo a respeito dos sistemas lógi-
Função classificadora: cos de compreensão do mundo originários de distintos grupos sociais –, Durkheim e Mauss bus-
faculdade de classificar cam demonstrar que os primitivos são perfeitamente aptos para o pensamento lógico. Ao con-
seres, os acontecimen- trário do que diziam os teóricos evolucionistas, que afirmavam que havia uma ausência de lógica
tos, os fatos do mundo nos povos primitivos.
em gênero e espécies,
bem como as relações
entre esses elementos.

Figura 19: Aborígenes ►


australianos
Fonte: Disponível em
<http://www.forum-
-gallaecia.net/viewtopic.
php?p=2668> Acesso em
jan. 2009.

Por fim, afirmavam que o sistema lógico de qualquer sociedade é fundado no seu sistema
social. Para isso, eles mostraram que as formas de classificação existentes em cada sociedade são
objetivações das determinações próprias da sociedade, ou seja, são um decalque da vida social.
Durkheim argumenta contra a ideia de que o processo de surgimento das faculdades lógi-
cas das sociedades, ou o que ele chama de função classificadora, dependa somente da psicolo-
gia individual, ou que seja uma faculdade inata do ser humano. Toda classificação implica uma
ordem hierárquica da qual nem o mundo sensível nem a nossa consciência nos oferecem o mo-
delo. (MAUSS, 1981, p. 403)
Utilizando dados empíricos, Durkheim e Mauss buscam, então, provar que a função classi-
ficadora está longe de ser uma necessidade natural do ser humano e vão discutir sobre a proce-
dência dessa função.
Nos seus estudos, Durkheim segue a ideia de que só é possível apreender a essência de um
fenômeno social observando suas formas mais elementares. Por isso busca, por exemplo, anali-
sar as formas de classificação das sociedades primitivas (no caso as australianas) e o totemismo
que, segundo Durkheim, seria a forma mais elementar de religião.
Ele argumenta tomando como a base os sistemas de classificação dos grupos australianos
(considerados os mais elementares) e descreve o tipo de organização social dessa sociedade.
Elas, em geral, se dividem em dois grandes grupos chamados fratrias. Cada fratria, por sua vez, se
divide em um número de clãs, que correspondem a grupos de indivíduos portadores do mesmo
totem. Além da divisão em clãs, cada fratria tem ainda a divisão por classes matrimoniais.
Um clã é composto por indivíduos que se consideram unidos por um laço de parentesco.
Mas esse parentesco não é necessariamente consanguíneo. Os indivíduos se consideram paren-
tes por serem designados pelo mesmo nome.

44
Ciências Sociais - Antropologia II

◄ Figura 20: Esquema


representando as
subdivisões das tribos
australianas.
Fonte: Estruturado pelo
autor.

Figura 21: Esculturas


de totens de tribos
do noroeste da Costa
Americana
Fonte: Acesso em<http://
O importante é que essa classificação ou organização se estende a todas as coisas. Todas www.flickr.com/
search/?q=totem&m=t
as coisas são organizadas e classificadas correspondentes às fratrias da tribo. Quando o siste- ext> Acesso em jan. 2009.
ma torna-se mais complexo, todas as coisas são associadas ou classificadas de acordo com as

classes matrimoniais ou de acordo com os clãs
ou totens.
As relações estabelecidas entre os grupos
das coisas, apoiadas nesta organização, são
concebidas pelos australianos sob a forma de
relações de parentesco com respeito ao indiví-
duo. Em outros casos, estas relações são pen-
sadas sob a forma de correspondências entre
possuidores e possuídos. Ou seja, um indivíduo
pertencente a um clã que tem o totem corres-
pondente, se considera parente do totem (seja
animal ou vegetal, etc.) ou mesmo se confun-
de com ele ou se sente parte dele. Ou ainda se
considera possuidor do totem e de todos os
elementos a ele associados; ou pode dizer tam-
bém que o totem o possui.
Por exemplo, a tribo australiana Mont-
-Gambier, se divide em duas fratrias, uma cha-
mada Kumite e a outra Krobi. Cada fratria está
dividida em cinco clãs totêmicos. Todas as coi-
sas da natureza pertencem a um ou outro des-
tes dez clãs.
Um dos clãs da Fratria Kumite tem o totem
chamado Parangal ou Pelicano e a ele estão
unidos a árvore de madeira negra, os cães, o
fogo, o gelo e sucessivamente uma série de ou-
tros elementos. Ao totem Karato (serpente ino-
fensiva) pertencem o peixe, a árvore com fila-
mentos, o salmão, a foca, e etc. (MAUSS, 1981).
Entre os Zuñis, da América do Norte, da
mesma forma, todos os seres, objetos, animais,
plantas, pessoas e elementos do universo são

45
UAB/Unimontes - 2º Período

classificados, rotulados, e colocados num lugar único no sistema, com partes coordenadas e su-
bordinadas umas às outras segundo os graus de parentesco (MAUSS, 1981).
Durkheim, a partir de dados etnográficos de várias tribos, conclui que existe, portanto, um
vínculo estreito entre o sistema social e o sistema lógico destas tribos.

Assim, os dois tipos de classificação que acabamos de estudar nada mais fazem
senão exprimir, sob diferentes aspectos, as próprias sociedades no seio das
quais elas foram elaboradas; a primeira era modelada de acordo com a organi-
zação jurídica e religiosa da tribo, a segunda segundo a organização morfoló-
gica. [...] Mas ambos os quadros são de origem social (MAUSS, 1981, p. 441).

Utiliza ainda como último exemplo, o sis-


tema de classificação de um país “civilizado”,
Figura 22: Escultura ► descrevendo o que chamou de “sistema divi-
do totem de nativos natório astronômico, astrológico, geomântico
do noroeste da costa
americana
e horoscópico dos chineses”. Descreveu o siste-
Fonte: Disponível
ma de classificação chinês, em seus princípios
em<http://www. gerais, dizendo ter este os mesmos princípios
flickr.com/photos/digi- dos exemplos anteriores, embora muito mais
tal_derf/2711770500/>
Acesso em jan., 2009
elaborado, relaciona espaço, tempos, as coisas
e os acontecimentos.
A divisão do mundo em quatro regiões,
correspondentes às quatro estações, regen-
do todos os pormenores da vida dos chineses.
Um sistema de tempo não homogêneo, mas
contado em ciclos de doze anos, simbolizado
por elementos, pontos cardeais, cores e coisas
de toda espécie. Os doze anos de cada ciclo se
referem a doze animais, compondo o que cha-
mamos hoje de horóscopo chinês.
Tal classificação dos espaços, dos tempos,
das coisas, das espécies domina toda a vida chi-
nesa, orientando as escolhas; onde e quando se
deve fazer tudo, construir casas, fechar negó-
cios, etc.
Durkheim afirma que não se deve diferen-
ciar os sistemas de classificação primitivos dos
Figura 23: Horoscopo ► sistemas de classificação científica. Segundo
chinês ele, ambos são sistemas de noções hierarqui-
Fonte: Disponível em zadas e não tem outra função senão fazer com-
<http://www.revistama-
cau.com/images/indi- preender, tornar inteligíveis as relações existen-
ce/0021501.jpg> Acesso tes entre os seres.
em jan., 2009 Conclui ainda dizendo que as primeiras
categorias lógicas foram categorias sociais;
as primeiras classes de coisas foram classes
de homens nas quais tais classes foram inte-
gradas. Sendo a hierarquia lógica nada mais
do que outro aspecto da hierarquia social e
a unidade do conhecimento não é outra coi-
sa senão a própria unidade da coletividade.
(MAUSS, 1981)
A repartição lógica das coisas segue os
mesmos sentimentos utilizados no espaço doméstico, o parentesco, a subordinação, a afinidade
entre coisas e indivíduos. Foram estados afetivos da alma coletiva que deram origem ao sistema
lógico. O agrupamento de diferenças e semelhanças é determinado pela maneira como afetam
os sentimentos dos grupos. As coisas são, portanto, sagradas profanas, favoráveis ou desfavorá-
veis, puras ou impuras. Esse valor emocional das noções é que orienta as classificações.
Por fim o centro dos primeiros sistemas de classificação não é o indivíduo; é a sociedade.

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Ciências Sociais - Antropologia II

3.4 As representações coletivas e a


sociologia do conhecimento
Com Durkheim e seus estudos sobre as representações coletivas nasce a sociologia do co-
nhecimento. Procurava responder à luz da sociologia questões como: Como se forma o que cha-
mamos de razão? Como se forma o conhecimento?
Para a elaboração do conhecimento é necessária a formação de conceitos. A matéria do
pensamento lógico é feita de conceitos.
Durkheim se pergunta como são formados os conceitos. Pensa então que um conceito não
pertence a um determinado indivíduo, é comum a este e a outros homens. Para ser um concei-
to tem que ser comum a todos. A partir daí Durkheim vai conduzir seus estudos no sentido de
demonstrar que os fundamentos da elaboração do conhecimento e da razão têm origem nas ca-
racterísticas da vida na coletividade, ou seja, têm origem social. Vai se perguntar então: Como a
sociedade participa da formação dos conceitos?
Os conceitos são representações. As representações são uma forma de reproduzir aquilo
que pensamos. Porém, as representações podem ser individuais ou coletivas.
Os conceitos são representações coletivas porque são comuns a um grupo social inteiro. Por
exemplo, a linguagem e o sistema de conceitos que ela traduz é produto de elaboração coletiva.
As noções que correspondem aos elementos da língua são representações coletivas. As repre-
sentações coletivas designam um conjunto de conhecimentos e crenças.
A representação coletiva não é uma simples soma de representações individuais. É um novo
conhecimento formado que supera a soma dos indivíduos e favorece a criação do coletivo. Seria
como uma transmissão da herança coletiva dos antepassados.
Durkheim conduzirá seus estudos sobre as representações e a sociologia do conhecimento
através da análise das religiões primitivas – o totemismo (a mais simples). Estudando as religiões
primitivas pensou que poderia perceber como os homens encaram a realidade e constroem cer-
ta concepção do mundo, ou como eles se organizam hierarquicamente, informados por tal con-
cepção. Os ritos e símbolos são fenômenos que nos permitem acessar as representações sociais.
Fica claro aí, que não é apenas através do que diz que o homem procura representar sua
realidade, mas também nas suas formas de organizar a vida social. Por exemplo, na forma como
um grupo se distribui em seu território.
A vida social seria condição de todo o pensamento organizado e vice-versa. Assim, ao tentar
criar uma teoria do conhecimento da realidade social, Durkheim a situa no campo simbólico, no
espaço das representações.
Acredita que o mundo tem um espírito lógico, que vai além da experiência imediata. E que
ele viria das representações coletivas: aceitas, preservadas e reproduzidas pelos grupos que, atra-
vés delas se expressam. Ao colocar os fundamentos do social e do humano como sendo de natu-
reza essencialmente simbólica, Durkheim afirma a origem social, cultural e histórica deles, seme-
lhante às dos próprios símbolos.
Para a Escola Francesa as representações coletivas são todas aquelas inferências que faze-
mos a respeito da vida e do mundo, imagens que criamos sobre a nossa realidade. Em As Regras
do Método Sociológico Durkheim diz:

As representações coletivas traduzem a maneira como o grupo se pensa nas


suas relações com os objetos que o afetam. [...] Os símbolos com que ela (a so-
ciedade) se pensa mudam de acordo com sua natureza [...]. (DURKHEIM, 1973b,
p.381)

Em outro trecho diz ainda que são todas elas maneiras de agir, pensar e sentir, exteriores ao
indivíduo e dotadas de poder coercitivo que se impõe a eles.
Segundo MINAYO (1995), Durkheim nos remete à importância da compreensão das ideias
(nesse caso, das representações) e de sua eficácia na configuração da sociedade, já que as repre-
sentações são um reflexo da vida social.
Durkheim diz ainda que as ideias coletivas tendem a se individualizar nos sujeitos, tornan-
do-se para eles uma fonte autônoma de ação. As representações se manifestam em palavras,
sentimentos e condutas e terminam sendo institucionalizadas pela sociedade (MINAYO, 1995).

47
UAB/Unimontes - 2º Período

Segundo Durkheim, as representações coletivas são encaradas como representações men-


tais ou representações simbólicas que por sua vez são imagens da realidade empírica.
Mas, voltemos à sociologia do conhecimento.
Para a elaboração do conhecimento, nosso pensamento tem como base certas noções que
os estudiosos e filósofos, desde Aristóteles, passaram a chamar de categorias do entendimento.
Entre elas, destacam-se as noções de tempo, espaço, de gênero, de número, de causa, de subs-
tância e de personallidade.

Na raiz de nossos julgamentos, há um certo número de noções essenciais que


dominam toda a nossa vida intelectual; são aquelas que os filósofos, desde
Aristóteles, chamam de categorias do entendimento; [...] Elas correspondem
às propriedades mais universais das coisas. [...] Tudo indica que não podemos
pensar objetos que não estejam no tempo ou no espaço, que não sejam nume-
ráveis, etc (DURKHEIM, 1996, p.XV).

Havia até aquele momento dois tipos de


teorias filosóficas sobre como estas categorias
se formam, que Durkheim agrupou em:
• Teorias empiristas – que entendiam que os
conceitos resultam diretamente da experiên-
Figura 24: Calendário ► cia sensível, ou seja, resultam da experiência
egípcio de 4000 anos pessoal dos nossos sentidos e, por isso, são ela-
a.C. borações individuais, noções simples que qual-
Fonte: Disponível em
<www.terravista.pt>
quer um pode apreender; e
Acesso em jan. 2009. • Teorias aprioristas (de Kant) – que enten-
diam as categorias como dados inatos do es-
pírito humano e, portanto, impenetráveis pela
análise.
Durkheim, então, insere sua hipótese so-
ciológica para o tema, afirmando que essas
categorias não são inatas, como pensavam os
filósofos, e muito menos se construiriam a par-
tir das experiências sensoriais dos indivíduos,
mas, ao contrário, são sociais e coletivas, porque são tomadas da organização da sociedade.
As ideias de tempo e espaço não são apenas formas de sensibilidade, inatas, conforme pen-
sava Kant, são também categorias do entendimento e, portanto, representações sociais, porque
são construídas socialmente. Afinal, a ideia de tempo só faz sentido se for igualmente pensada
por todos os indivíduos com os quais nos comunicamos.
Durkheim nos propõe pensar como seria um tempo que não fosse uma sucessão de anos,
meses, semanas, dias e horas. Percebemos o tempo ao conseguir distinguir uma sucessão de mo-
mentos diferentes. Mas como se originou essa diferenciação? Ele responde:

E de fato, a observação estabelece que esses pontos de referência indispen-


sáveis, em relação aos quais todas as coisas se classificam temporalmente, são
tomadas da vida social. As divisões em dias, semanas, meses, anos, etc. corres-
pondem à periodicidade dos ritos das festas, das cerimônias públicas. Um ca-
lendário exprime o ritmo da vida coletiva, ao mesmo tempo em que tem por
função assegurar sua regularidade (DURKHEIM, 1996, p. XVII).

Durkheim queria desenvolver estudos para mostrar o caráter social da construção dessas ca-
tegorias, que constituem os fundamentos do conhecimento. A análise das categorias do entendi-
mento permitiria perceber o modo pelo qual o grupo compreende e representa o mundo e suas
maneiras de pensar associadas às práticas sociais.
As categorias do entendimento têm as mesmas características das representações coletivas,
são construídas socialmente, referem-se ao todo e não a aspectos específicos, são impessoais e
se impõem aos indivíduos. Mas de acordo com Dukheim, segundo Oliveira (1993), na obra da Es-
cola Francesa de Sociologia, as categorias do entendimento são vistas como um tipo especial de
representações coletivas.
Como fundamentos para a construção do conhecimento e da razão, as categorias do enten-
dimento são um ponto de partida para as representações coletivas. São noções que permeiam
todas as classificações e ordenamentos que uma sociedade faz do mundo e devem ser encontra-
das em todo e qualquer grupo.

48
Ciências Sociais - Antropologia II

São as mesmas para todas as sociedades


(espaço, tempo, totalidade, causalidade etc.),
variando na maneira como se apresentam em
cada uma. A definição ou classificação de como
pensar o tempo e o espaço pode ser completa- ◄ Figura 25: Foto de um
Xamã Tungu da Sibéria,
mente diferente em cada sociedade. tirada no final do séc.
As representações coletivas, diferente- XIX.
mente, variam de uma sociedade para outra, Fonte: Disponível em
podendo algumas estar presentes numa socie- <http://www.portais.
dade e ausente em outras. org/_xaman/files/xama-
nism.htm> Acesso em jan.
Durkheim e Mauss viam nas instituições 2009.
sociais a principal fonte de pesquisa no estudo
das categorias fundamentais do entendimento
humano. Dessa forma, a categoria da totalida-
de foi apreendida por Durkheim através do es-
tudo da religião. Para ele, a religião era uma ex-
pressão resumida de tudo o que é essencial à
vida coletiva e por isso tinha sido a base para a
formação de outras instituições como o direito,
a ciência, a moral e a educação.
A noção de totalidade presente no pen-
samento dos grupos humanos é assim visível
através da religião, que agrega as representa-
ções coletivas e o imaginário social que permi-
tem ao homem elevar-se acima de si mesmo e
apreender a totalidade construída e representada por seu grupo, sua sociedade.
Mauss, por sua vez, estudou as categorias de causalidade e personalidade através do estudo
da magia, do direito e da moral. A ideia de eficácia mágica, essência da crença na magia, remete
à ideia de causalidade. Para Mauss, a noção de causalidade provém da vida coletiva a partir da
ideia de força.
A força coletiva, superior à dos indivíduos isoladamente, é criada pela comunhão dos ho-
mens entre si, resultante da experiência coletiva presente nas situações de trabalho e de festa.
São situações de uma efervescência social, uma troca intensa entre homens reunidos em torno
de ideias e crenças comuns.
Durkheim afirma que as crenças e a lógica não se opõem. Percebe a lógica própria de cada
crença, e a crença como base das categorias do entendimento.
Consequentemente, afirma que a razão não pode ser considerada universal ou abstrata. Na
verdade, ela é relativa aos grupos e se impõe definindo, orientando representações e guiando as
condutas.

3.5 Uma teoria geral da religião


Em As formas elementares da vida religio-
sa, de 1912, Durkheim discute a temática da
religião. O objetivo central dessa obra era ela-
borar uma teoria geral da religião. Durkheim
estava em busca de leis gerais. Buscava enten-
◄ Figura 26: Símbolos de
der o papel da religião na sociedade. Essa obra
vários religiões
segue três grandes eixos: Fonte: Disponível em
1. Compreensão da natureza da religião e <http://pt.wikipedia.org/
de sua importância para a vida social; wiki/Ficheiro:Religious_
symbols.svg>. Acesso em
2. Descrição e análise detalhada do sistema fev. 2009.
de clãs e totemismo de certas tribos aus-
tralianas; e
3. Construção inicial de uma teoria do co-
nhecimento.
Portanto, não estava interessado em des-

49
UAB/Unimontes - 2º Período

crever e ressaltar as especificidades de um ou outro sistema religioso, queria, sim, compreender


ATIVIDADE
a religião como um aspecto essencial e permanente da humanidade, uma característica geral da
Leia o capítulo de sociedade humana.
introdução do livro “As
Formas Elementares
O que vem a ser uma religião? Que elementos a compõem ou são mais comuns em sua
da Vida Religiosa”, de composição? Essas perguntas orientaram os estudos de Durkheim. Ele acreditava que todos os
Durkheim, e identifique sistemas de crenças e culto deveriam ter certo número de representações fundamentais e atitu-
os dois principais temas des rituais, que em toda parte teriam o mesmo significado e função.
debatidos pelo autor Seguindo rigorosamente as regras do método de pesquisa sociológico a que se propôs,
na obra.
Durkheim começa por se afastar de todas as pré-noções e das teorias anteriores sobre o tema
que, em geral, viam na religião uma espécie de ilusão coletiva, delírio, engano ou uma forma pré-
-científica de pensamento. Procura, então, a partir da revisão de dados etnográficos, redefinir o
que é religião e demonstrar seu caráter social.
Busca realmente explicar as religiões, partindo da eficácia simbólica e social das crenças.
Afirma que por serem obras da sociedade, as religiões se prendem à realidade e a expressam.
Portanto, não podem ser falsas ou um simples delírio.

Não há, pois, religiões, que sejam falsas. Todas são verdadeiras à sua maneira:
todas respondem, ainda que de maneiras diferentes, a determinadas condi-
ções da vida humana (DURKHEIM, 1996, p.VII)

Ignorando a tendência de busca das


origens evolutivas do fenômeno religioso,
Durkheim busca descobrir os significados e
Figura 27: Totem da ► funções das religiões.
tribo Ketchikan Propõe-se, então, a análise da religião
Fonte: Disponível em mais simples que se conhece – no caso, as
http://www.flickr.com/
photos/fncll/8757746/ crenças totêmicas de tribos australianas – a fim
Acesso em jan. 2009. de determinar as formas elementares da vida
religiosa. Julgava que as “religiões mais primi-
tivas” retratariam melhor as necessidades bási-
cas e gerais da humanidade, o que seria mais
difícil de identificar nas religiões atuais, mais
complexas.
Para Durkheim, as religiões são os primei-
ros sistemas coletivos de representação do
mundo.
Durkheim conclui que a religião é coisa
eminentemente social. As representações reli-
giosas são representações coletivas, com reali-
dades coletivas. Os ritos são exemplos disso. A
religião é um produto do pensamento coletivo,
uma abstração impessoal, incluindo a nossa
existência individual e a da humanidade.
Um sistema religioso seria, antes de tudo,
um sistema classificatório do mundo, que faria
a distinção básica entre os elementos PROFA-
NOS e SAGRADOS. Caracteriza, assim, o fenô-
meno religioso:

Mas o aspecto característico do fenômeno religioso


é o fato de que ele pressupõe uma divisão bipartida
▲ do universo conhecido e conhecível em dois gêneros que compreendem tudo
o que existe, mas que se excluem radicalmente. As coisas sagradas são aque-
Figura 28: Churinga las que os interditos protegem e isolam; as coisas profanas, aquelas às quais
Fonte: Disponível em esses interditos se aplicam e que devem permanecer à distância das primeiras
http://pro.corbis.com/ (DURKHEIM, 1996, p.24).
search/Enlarg
ement.
aspx?CID=isg&mediauid= Durkheim esclarece que o sagrado não se resume aos deuses, inclui também elementos da
{C2FB371F-6CC0-48DA-9 natureza, objetos, palavras, gestos; qualquer coisa pode ser sagrada. Existem palavras e frases
EF3-081A7B845B0D} Aces-
so em jan. 2009. que só podem ser pronunciadas pela boca de personagens consagradas e existem gestos e mo-
vimentos que não podem ser executados por qualquer um.

50
Ciências Sociais - Antropologia II

Durkheim vê a religião como um sistema, formado por partes. Distingue dois tipos funda- DICA
mentais de fenômenos religiosos: os ritos e as crenças. Marcel Mauss (1872-
1950), formado em Filo-
As crenças religiosas são representações que exprimem a natureza das coisas sofia e especialista em
sagradas e as relações que essas mantêm entre si e com as coisas profanas. En- História das Religiões,
fim, os ritos são regras de comportamento que prescrevem como o homem participou da gênese
deve se comportar com as coisas sagradas. (DURKHEIM, 1996, p.24) do que seria conhecido
mais tarde como a Esco-
la Sociológica Francesa,
Durkheim classifica os ritos em três tipos: da qual seu tio Émile
• Os negativos (tabus) – Dizem respeito às interdições, ao distanciamento; Durkheim foi criador. As
• Os positivos (totem) – São atos de comunhão (de proximidade e identificação com o totem). ideias do grupo eram
veiculadas pelo Année
tais como as relações rituais; Sociologique, periódico
• Os ritos de imitação – São ritos miméticos ou representativos, que tendem a imitar a coisa no qual Mauss publicou
que deseja provocar. grande parte de seus
textos, e do qual foi
Os ritos teriam por função proporcionar coesão social, suscitar, manter e renovar o senti- editor, após a morte
mento de participação no grupo. de Durkheim, durante
Em As Formas Elementares da Religiosa, após esclarecer as definições e concepções do fenô- a Primeira Guerra. Foi
meno religioso, Durkheim começa a discutir as crenças e ritos próprios da religião totêmica, bus- professor de História
das Religiões dos Povos
cando demonstrar os elementos essenciais do fenômeno religioso. não Civilizados na École
No totemismo, entre as crenças mais importantes estão as relacionadas ao totem. O totem, Pratique dês Hautes
como já mencionamos, é a espécie de coisa que serve para designar coletivamente, dar nome a Études, colaborou na
fundação do Instituto de
um clã. Etnologia da Universida-
Os objetos que servem de totem pertencem, na grande maioria dos casos, ao reino animal e de de Paris, em 1925, e
vegetal; mas podem ser também coisas inanimadas, fenômenos cósmicos ou naturais ou corpos foi eleito, em 1930, para
celestes. Acontece também do totem ser designado pela parte de um objeto ou órgão particular a cadeira de Sociologia
do prestigioso Collège
de um animal. de France. Além das
O pertencimento a um determinado clã e o consequente parentesco com determinado to- atividades acadêmi-
tem tem reflexos nos costumes e marca profundamente a vida cotidiana de seus membros. cas e editoriais, nunca
abandonou a militância
Mas o totem não é apenas um nome, é antes um emblema, uma marca distintiva que repre- no partido de Jaurès,
senta o clã, a família. Assim, ele é sempre representado em vários objetos, nas canoas, nas armas, de quem foi amigo e
nos túmulos, nas paredes das casas e até no corpo das pessoas, com pinturas e ornamentos, para colaborador. Mauss
identificar o pertencimento ao clã ou a ligação com o totem. chamava a Etnografia de
“museu de fatos” e o seu
É comum entre os índios da América do Norte a representação dos totens em mastros escul- concorrido curso sobre
pidos, de mais de 15 metros de altura, colocados ao lado da porta de entrada, geralmente com- a matéria no Instituto
binando formas humanas e de animais, pintados com cores chamativas. de Etnologia, que teve
Marcel Griaule, Michel
Buscando ter o aspecto de seu totem, os membros dos clãs totêmicos alteram suas vesti- Leiris, Roger Bastide,
mentas, usam máscaras, mudam o corte de cabelo, fazem tatuagens, especialmente quando os Louis Dumont e Claude
clãs se reúnem. Lévi-Strauss entre seus
alunos, formou os
Durkheim diz, por fim, que, além de uma etiqueta coletiva, o totem tem caráter religioso. primeiros etnógrafos da
“[...] é em relação a ele que as coisas são classificadas em sagradas e em profanas. Ele é o próprio antropologia francesa.
modelo das coisas sagradas” (DURKHEIM, 1996, p. 113). Ironicamente, Mauss
São exemplo de instrumentos sagrados de representação do totem, os churinga, utilizados nunca fez pesquisa de
campo, considerava-se
nos ritos. São peças de madeira ou pedra polida, de formas variadas. Nelas são gravados dese- um “etnólogo de museu”
nhos que representam o totem. A palavra churinga significa a (e não de gabinete).
coisa que tem por característica essencial ser sagrada. A sua antropologia
baseava-se em erudição
Por isso, os profanos – mulheres ou jovens não iniciados histórica, vasto saber
– não podem nem mesmo ver os churinga, talvez só de longe, linguístico e no conhe-
em raras ocasiões. cimento profundo das
Esses instrumentos permanecem em lugar especial. Seu monografias produzi-
das, sobretudo, pela an-
caráter sagrado se estende ao lugar e a tudo mais em volta. tropologia social inglesa
Para os membros das tribos, os churinga possuem todo tipo que, em geral, forneciam
de propriedades maravilhosas, curam doenças, conferem po- a esse leitor perspicaz
o material a partir do
deres, por isso tem alto valor religioso e sua perda lesa gra- qual elaborava as suas
vemente a coletividade, é um desastre para todo o clã. Sua teorias. A esse respeito,
natureza religiosa se deve unicamente ao fato de portarem o Evans-Pritchard, prova-
emblema totêmico. velmente referindo-se
Figura 29: Marcel Mauss ► a Malinowski, dizia que
Mauss “era capaz de
Fonte: http://editora.cosac-
ensinar aos especialistas
naify.com.br/Autor/283/
o que eles não haviam
Marcel-Mauss.aspx.Acesso
em 20 de jun. de 2013
visto em seus próprios
textos”.

51
UAB/Unimontes - 2º Período

Também são sagradas as coisas associadas ao totem como, por exemplo, os próprios ani-
mais e plantas que dão nome aos totens. Se são considerados sagrados, é proibido consumi-los
como alimento e, ao contrário, são considerados profanos se servem de alimento. Essa classifica-
ção vai mudar de acordo com o totem de cada clã. Geralmente não se pode comer do animal ou
planta que te serve de totem.
Por outro lado, os homens têm também sua parcela sagrada, uma vez que se confundem
com o próprio totem. São sagrados especialmente certos órgãos e tecidos do corpo, como o san-
gue e o cabelo.
O sagrado, segundo Durkheim, pode ser ambíguo. As forças religiosas são de dois tipos:
1 – Benéficas, guardiãs da ordem física e moral, da saúde, das qualidades prezadas pelo ho-
mem. Inspiram respeito, amor, reconhecimento. As coisas e pessoas próximas a elas são santas.
2 – Más e impuras – produtoras de desordem, causam morte e doença, a desgraça. Inspiram
o temor, o horror, provém das coisas impuras, da profanação das coisas sagradas, dos mortos,
dos gênios malignos.
Os seres profanos devem evitar relações com ambas. Apesar dos sentimentos diferentes que
causam, ambas são sagradas.

[...] entre as duas formas opostas não somente não há solução de continuida-
de, como também um mesmo objeto pode passar de uma a outra sem mudar
de natureza. Com o puro se faz o impuro, e reciprocamente. É na possibilida-
de destas transmutações que consiste a ambiguidade do sagrado (DURKHEIM,
1996, p. 452).

As potências benéficas e maléficas resultam da vida coletiva e a exprimem, representam a


sociedade, com atitudes diferentes em cada caso. As duas forças têm origem comum, a mesma
natureza. Por isso, são igualmente intensas e contagiosas e, portanto, interditas e sagradas.
Ambas refletem o estado afetivo no qual se encontra o grupo e podem se transformar uma
na outra na medida em que mude o estado afetivo.

Figura 30: Totens O que faz a santidade de uma coisa é como mostramos, o sentimento coletivo
Kwakiutl de que ela é objeto (DURKHEIM, 1996, p. 453).
Os dois polos da vida religiosa correspondem aos dois estados opostos porque
Fonte: Disponível
em<http://www.callipy-
passa toda vida social [...] A unidade e a diversidade da vida social é que produ-
gia600.com/allpictures/ zem, ao mesmo tempo, a unidade e a diversidade dos seres e das coisas sagra-
inside_passage/inside_ das (DURKHEIM, 1996, p. 454).
passage.htm> Acesso em
jan. 2009. A ambiguidade também está presente nos ritos. Tanto as práticas como as crenças não se
▼ classificam em gêneros separados. Correspondem a uma mesma necessidade: elevar o homem
acima de si mesmo, a uma vida superior.
As crenças exprimem essa vida em ter-
mos de representações, os ritos a orga-
nizam e regulam seu funcionamento.
Durkheim faz uma distinção entre
dois fatos semelhantes, mas de ordens
diferentes: a religião e a magia. A magia
também é composta de crenças e ritos,
cerimônias, coisas sagradas. Diferente
da religião, no entanto, a magia é uma
prática individual.
A religião supõe uma ação coleti-
va, um grupo social, uma igreja, cultos
e símbolos bem definidos. O religioso
liga, diferente da magia que isola. Daí a
definição de religião de Durkheim que
a caracteriza como um sistema “solidá-
rio” de crenças e práticas, à medida que
cumpre sua função de coesão social
(LALLEMENT, 2003, p.234)
Assim, a religião nada mais é que a
própria transfiguração da sociedade.

52
Ciências Sociais - Antropologia II

3.6 Noção de pessoa e a dádiva ou


dom em Marcel Mauss
Marcel Mauss, sobrinho e colaborador de Durkheim, deu continuidade às ideias da Escola So-
ciológica Francesa, examinando a contribuição para a discussão dos fundamentos simbólicos das
sociedades. Escreveu dois artigos importantes intitulados: “A noção de pessoa, a noção de eu” e
“Técnicas corporais”, fazendo, segundo ele, a “história social” dessas noções, evidenciando o longo
processo pelo qual ela foi sendo construída coletivamente. Mauss evidencia que a pessoa é fato
moral e que todo fato moral é fato de educação, portanto, a própria noção de moral, bem como as
suas diferentes manifestações são adquiridas por aprendizagens. O autor afirma que todo ato edu-
cativo é técnica corporal, e que as técnicas corporais são “sistemas de montagens simbólicas”.
Conclui, indicando que a noção de pessoa, sendo construída socialmente através de toda
uma pedagogia técnica e simbólica que institui o sentido do corpo e de sua individualidade para
o sujeito, é uma das formas fundamentais do pensamento e da ação dos indivíduos, sendo, por-
tanto, uma representação coletiva, uma categoria do entendimento; e, como toda categoria do
entendimento, ela não é inata.
Mauss afirma que existem duas formas a partir das quais os sujeitos individuais e sociais or-
ganizam suas relações. Por um lado, a perspectiva do contrato ou mercantil e, por outro, a pers-
pectiva da dádiva, dom ou reciprocidade. Cada uma é marcada por vínculos sociais de naturezas
diferentes. A primeira perspectiva se institui entre “indivíduos” de relações impessoais; a segun-
da se institui entre “pessoas” morais, ou seja, famílias, grupos sociais, como aqueles que trazem
consigo ou representam, além de si, uma série de relações, coletividades que se obrigam mutua-
mente. Nesse caso, prevalecem as relações na perspectiva do dom.
Em seus estudos sobre os sistemas das prestações econômicas entre os diversos grupos que
compõem as sociedades ditas primitivas, Mauss se interessou pelas trocas e contratos que se fa-
zem sobre a forma de presentes, em teoria voluntária, na verdade obrigatoriamente, dados e re-
tribuídos. A partir desse ponto, é que Mauss formula sua teoria sobre a dádiva.
A dádiva seria a circularidade e reversibilidade induzidas pela tríplice obrigação de dar, rece-
ber e retribuir.

[...] pois, a prestação total não implica somente a obrigação de retribuir os pre-
sentes recebidos, mas supõe duas outras igualmente importantes: obrigação
de dar, de um lado, obrigação de receber, de outro (MAUSS, 2003, p. 201)

Godbout (1999) cita, a partir de Mauss, os dois exemplos de dádiva: o Potlatch – tal como
estudou Franz Boas entre os índios da região noroeste americana –, e o Kula – descrito por Mali-
nowski em Os Argonautas do Pacífico Ocidental.
No sistema da dádiva, as relações estabelecidas pelos sujeitos através das quais bens e ser-
viços são trocados, não tem como fim o bem ou serviço recebido, mas unicamente o estabeleci-
mento e manutenção do vínculo caracterizado pelo ciclo que inclui a tríplice obrigação de dar,
receber e contribuir.

Referências
DURKHEIM, E. Da Divisão do Trabalho Social. IN: COMTE e DURKHEIM. São Paulo: Abril Cultural,
1973. (Coleção Os Pensadores)

______. As Regras do Método Sociológico. IN: COMTE E DURKHEIM. São Paulo: Abril Cultural,
1973b. (Coleção Os Pensadores)

DURKHEIM, E; MAUSS, M. Algumas formas primitivas de classificação. In: DURKHEIM, Émile. Émile
Durkheim. São Paulo: Ática, 1978. (Coleção Grandes Cientistas Sociais).

53
UAB/Unimontes - 2º Período

DURKHEIM. E. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

OLIVEIRA. Luís R. C. As categorias do entendimento humano e a noção de tempo e espaço entre


os Nuer. Série Antropológica 187. Brasília: Ed. UnB, 1993.

GODBOUT, Jacques T. O Espírito da Dádiva. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 1999.

LALLEMENT, M. (2003). História das Ideias Sociológicas. Das origens a Max Weber. Petrópolis-
-RJ: Vozes.

LEVI-STRAUSS. Introdução à obra de Marcel Mauss. IN: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropolo-
gia. São Paulo: Cosac Naify Edições, 2003.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify Edições, 2003.

MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981.

MERCIER, Paul. História da Antropologia. Rio de Janeiro: Eldorado, [1974?].

MINAYO, Maria Cecília de S. O conceito de representações sociais dentro da sociologia clássica.


IN: GARESCHI, Pedrinho (org.) Textos em Representações Sociais. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1995.

PEIRANO, Mariza G. S. os antropólogos e suas linhagens (a procura de um diálogo com Fábio


Wanderley reis). Brasília: UNB, 1990. (Série Antropologia, 102) Disponível em <http://www.unb.
br/ics/dan/Serie102empdf.pdf> Acesso em fev. 2009.

54
Ciências Sociais - Antropologia II

Resumo
Unidade 1
Na Unidade 1, foram apresentadas as principais ideias dos autores da antropologia evolu-
cionista clássica: Morgan, Tylor e Frazer. Apresentaram-se, também, as principais reações de Franz
Boas ao evolucionismo e sua proposta para a consolidação da moderna antropologia. Dentre os
principais pontos comentados na Unidade 1, destacam-se:

• O evolucionismo cultural emergiu e se consolidou na segunda metade do século XIX.


• Os autores evolucionistas procuraram explicar o processo de evolução da humanidade
como um todo. Tentava-se compreender os estágios de evolução.
• Para os teóricos evolucionistas, na antropologia clássica, todas as sociedades humanas evo-
luíram e evoluiriam passando pelos mesmos estágios evolutivos.
• A evolução seria necessária e obrigatória para todas as sociedades, portanto, a evolução se-
ria unilinear, partindo de um estágio primitivo até atingir o estágio de civilização.
• Morgan defendeu o argumento de que todas as sociedades passaram ou passariam por três
estágios evolutivos: selvageria, barbárie e civilização.
• Os evolucionistas defenderam que as semelhanças ou similaridades culturais poderiam ser
explicadas a partir da existência de leis uniformes, determinando a evolução em todas as
sociedades humanas.
• O método comparativo foi defendido pelos evolucionistas como uma estratégia para se es-
tabelecer a existência de leis gerais regendo a evolução cultural.
• Edward Brunett Tylor, um dos principais autores da perspectiva evolucionista, foi o primeiro
a formular de forma clara e sistemática o conceito de cultura.
• Para Tylor, “cultura, ou civilização, tomada em seu sentido amplo, etnográfico, é aquele todo
complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costumes e quaisquer outras
capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade” (TYLOR, 1958
[1871]).
• A contribuição importante de Tylor foi destacar que cultura é tudo aquilo que o homem
adquire como membro da sociedade. Ressaltando, portanto, que cultura depende de um
aprendizado e não é algo transmitido geneticamente.
• James Frazer, outro autor evolucionista, propôs que a evolução do pensamento humano
perpassaria três estágios: magia, religião e ciência.
• No final do século XIX e início do século XX, a perspectiva evolucionista sofre severas críti-
cas.
• Um dos principais críticos dos esquemas evolucionistas foi Franz Boas, que começa critican-
do o método comparativo como forma de se estabelecer leis gerais de evolução e, em se-
guida, questiona fortemente a teoria geral da evolução.
• Franz Boas, que foi por vezes considerado fundador da antropologia moderna, defendeu
que a antropologia deveria, antes de se dedicar a generalizações teóricas, coletar e sistema-
tizar dados detalhados de culturas particulares.
• F. Boas defende o método histórico, ou como ficou conhecido, “particularismo histórico”.
• F. Boas foi também um dos principais críticos do racismo, opondo aos antropólogos evolu-
cionistas que defendiam a ideia de que cada raça tinha um potencial inato para o desenvol-
vimento cultural.

Unidade 2
Na Unidade 2, exploramos algumas questões e abordagens da perspectiva da antropologia
americana em sua fase clássica, sobretudo, do que ficou conhecido como o culturalismo ameri-
cano ou escola de cultura e personalidade. Abordamos, ainda, a perspectiva funcionalista na an-
tropologia a partir de Malinowski. Sobretudo, pontuamos algumas questões da teoria funcional
e a importância do trabalho de campo na antropologia atribuída por esse autor. Seguem algu-
mas questões resumidas que discutimos.

• O culturalismo americano em sua fase clássica, ou Escola de Cultura e Personalidade, como


ficou conhecido, preocupou-se, centralmente, em compreender como os indivíduos incor-
poram e vivem sua cultura.
55
UAB/Unimontes - 2º Período

• Os autores do culturalismo americano, como Margaret Mead e Ruth Benedict, se preocupa-


ram em estudar as relações entre fatores psicológicos, como personalidade, caráter, emo-
ções e as condições culturais, como processos de socialização e educação. Procuravam, en-
tão, correlacionar personalidade e cultura. Assim, a pluralidade das culturas correspondia a
uma pluralidade dos tipos de personalidade.
• Com o funcionalismo de Malinowski, a sociedade é estudada como um sistema coerente
e integrado de relações sociais. O sentido de um costume, hábito social ou instituição tem
que ser compreendido nos termos do sistema do qual provém.
• A análise funcional objetiva explicar os fatos antropológicos pela função e papel que de-
sempenham no sistema da cultura, na maneira que se ligam uns aos outros no interior des-
se sistema. A cultura deve ser vista como uma totalidade e cada aspecto dela é importante
para a manutenção do todo.
• Para Malinowski, o indivíduo é o fundamento das sociedades. E a cultura atenderia as neces-
sidades básicas, primárias ou biológicas dos indivíduos.
• Malinowski estabelece um novo padrão para a pesquisa etnográfica: a “observação partici-
pante”.

Unidade 3
Na Unidade 3, discutimos a perspectiva de Marcel Mauss e Durkheim, considerados os pri-
meiros teóricos das Ciências Sociais. Foram discutidas as principais questões teóricas desenvolvi-
das por eles, principalmente a elaboração sobre representação coletiva, fato social total e a ideia
de Marcel Mauss sobre a troca e a reciprocidade como fundamento da vida social.

• Durkheim defende as especificidades do social e a necessidade do desenvolvimento de


modo de investigação e teorias próprias para o estudo dos fenômenos sociais. Para esse au-
tor, a Sociologia deveria estudas os “fatos sociais”.
• A questão era mostrar que o social só poderia ser explicado pelo social. Ou seja, as grandes
questões da época, como a diversidade das culturas e a desagregação e aparente caos ins-
talado na sociedade do fim do séc. XIX, não seriam explicadas por argumentos biológicos,
como a diferença das raças, ou ainda históricos, como os diferentes estágios de evolução
dos povos, ou explicações geográficas, ou explicações psicológicas para as transformações
do mundo moderno. Afinal a sociedade não é a simples soma dos indivíduos, é algo mais.
• Indo além de Durkheim, Marcel Mauss propõe a pesquisa de fenômenos sociais totais. As-
sim, os processos socioculturais deveriam ser abordados como constituindo toda uma di-
mensão que envolve ao mesmo tempo os aspectos políticos, econômicos, rituais, cerimo-
niais, jurídicos, psicológicos, sociais, religiosos, estéticos, morfológicos. Mauss interessava-se
nos estudos em sociedades não europeias.

56
Ciências Sociais - Antropologia II

Referências
Básicas

BENEDICT, Ruth. Padrões de Cultura. Lisboa: Livros do Brasil, 1934. Introdução.

CASTRO, Celso (org.) Evolucionismo Cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed. 2005.

DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

FRAZER, James. O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982. Cap. 1 – “O rei do
bosque”, cap. 2 – “Os reis sacerdotes” e cap. 3 – “A magia simpática”.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Editora Abril Cultural,
Coleção Os Pensadores, 1977. “Introdução” e Cap. III – “Características essenciais do Kula”.

MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades primitivas”. In So-
ciologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, vol. 2, 1974.

complementares

BENEDICT, Ruth. O Crisântemo e a Espada. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.

BOAS, Franz. Race, Language and Culture. New York: Macmillan Company, 1976.

DURKHEIM, Émile e MAUSS, Marcel. “Algumas Formas Primitivas de Classificação”. In Émile


Durkheim. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1978.

MEAD, Margaret. Sexo e Temperamento. São Paulo: Editora Perspectiva, 1969. Introdução e cap.
6 e 17.

MORGAN, Lewis. A Sociedade Primitiva. São Paulo. Martins Fontes, 1974.

57
Ciências Sociais - Antropologia II

Atividades de
Aprendizagem – AA
1) Sobre as linhas gerais da perspectiva evolucionista na antropologia, é INCORRETA a afirmativa
que se faz na alternativa:
a. O conceito de evolução e a ideia evolucionista de progresso tornaram-se o esquema por
meio do qual tencionava-se explicar a linha evolutiva das sociedades humanas.
b. b) Na perspectiva evolucionista, a humanidade era percebida como um todo, mas com es-
tágios evolutivos diferentes. Toda cultura deveria passar pela mesma sucessão de fases de
desenvolvimento na sua marcha evolutiva.
c. O postulado central no pensamento teórico da antropologia evolucionista era que a socie-
dade humana em todas as partes teria se desenvolvido em estágios sucessivos e obrigató-
rios, numa trajetória unilinear ascendente.
d. Para os evolucionistas, na antropologia não poderia postular a existência de leis uniformes
da evolução, já que não há uma igualdade geral da natureza humana. Portanto, não se pode
dizer que há um único caminho da evolução da humanidade.

2) Associe os autores às suas principais ideias evolucionistas.

a. Morgan ( ) procurou mostrar que a cultura depende de um processo de aprendizado,


portanto, não é inata.
b. Frazer ( ) afirmou que o pensamento humano evolui da magia, passando pela religião
até culminar na ciência.
c. Tylor ( ) postulou a existência de três estágios de evolução: selvageria, barbárie e
civilização.

3) Os difusionistas defendiam a teoria de que os traços culturais de povos que conhecemos atu-
almente seriam resultado da difusão de traços culturais ao longo da história a partir de um ponto
geográfico comum.
a. ( ) Verdadeiro.
b. ( ) Falso.

4) Como a ideia do particularismo histórico, proposta por Franz Boas, se contrapunha às ideias
evolucionistas?

5) Eram pressupostos da Escola de Cultura e Personalidade, EXCETO


a. ( ) Por privilegiar a influência da cultura na formação da personalidade, os estudiosos desta
escola tendiam a ignorar as contribuições da Psicologia e Psicanálise.
b. ( ) Cada cultura determina o tipo de comportamento compartilhado por seus membros.
c. ( ) A cultura só pode existir e ser compreendida a partir dos indivíduos.
d. ( ) A pluralidade das culturas produz uma pluralidade de tipos de personalidade.

6) Associe os temas da primeira coluna com os tipos de resultado na segunda coluna.

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UAB/Unimontes - 2º Período

a. Padrões culturais ( ) Estudos descrevendo em detalhes o comportamento e caracterís-


ticas de povos de diferentes culturas para demonstrar que cada cultura
tinha uma “personalidade” que era estimulada em cada indivíduo.
b. Educação e perso- ( ) Estudos que se preocupavam com a maneira como o indivíduo rece-
nalidade be sua cultura, os processos de transmissão cultural e de socialização e
as consequências disto na formação da personalidade.
c. Mudança cultural ( ) Estudos do contato entre culturas, valorizando o sincretismo e o
processo de mudança em si.
d. Raça e cultura ( ) Estudos sobre crescimento e desenvolvimento racial e físico e sobre
a influência ambiental na variabilidade do tipo físico humano.

7) Sobre a relação indivíduo e cultura, os pesquisadores Kardiner e Linton afirmavam que a per-
sonalidade básica é totalmente marcada pela cultura, determinando definitivamente o modo de
vida dos indivíduos.
a. ( ) Verdadeiro.
b. ( ) Falso.

8) Durkheim estudava as formas de classificação das sociedades “primitivas” para mostrar que es-
tas não tinham lógica ou razão.
a. ( ) Verdadeiro.
b. ( ) Falso.

9) Como os totens, elemento chave das crenças totêmicas estudados por Durkheim, se encaixam
em suas teorias sobre as representações coletivas?

10) São características das representações coletivas, EXCETO


a. ( ) São imagens da realidade produzidas e compartilhadas pelos indivíduos de cada socie-
dade, mas nem sempre refletem a organização social do grupo em que foram produzidas.
b. ( ) Não são dadas a priori, surgem ligadas aos fatos sociais.
c. ( ) São elas próprias fatos sociais passíveis de observação e interpretação.
d. ( ) São exteriores aos indivíduos e possuem vida independente.
e. ( ) Exercem poder sobre os indivíduos para atuarem em determinado sentido.

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