Sertão, sertões e outras ficções
By J. H. Romero
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Sertão, sertões e outras ficções - J. H. Romero
1. O sertão e a máquina do mundo
A gente do sertão que as terras anda
Um rio diz que tem miraculoso,
Que, por onde ele só, sem outro, vai,
Converte em pedra o pau que nele cai.
Luís de Camões, Os Lusíadas, pg. 395¹
Sertão: terra onde a razão se converte em mistério. No último canto de Os Lusíadas, os navegantes liderados por Vasco da Gama aportam à ilha de Tétis², que, para honrá-los, prepara um auspicioso banquete. A deusa-rainha invoca então Calíope, musa da poesia épica, e vaticina sobre os feitos gloriosos da empresa lusitana no Oriente. Ao final de seus vaticínios, Tétis convida Vasco da Gama para ver o que nenhuma ciência humana é capaz de construir: a máquina do mundo. Composta de muitos orbes, a máquina tem como centro a Terra, e obedece a uma mecânica divina, uniforme e perfeita. Tétis passa então a descrever o centro do globo, suas regiões, cidades, ilhas, mares e rios; nessa descrição, reminiscências e vaticínios se misturam para formar a alegoria de um mundo que se descortina defronte o olhar do descobridor lusitano. Nesse mundo há lugares que se escondem
e, segundo o verso camoniano, Até que venha o tempo de mostrar-se
.³
São duas as ocorrências da palavra sertão
no último canto d’Os Lusíadas. Em ambos os casos, a palavra refere-se a lugares distantes, onde vive uma gente que acredita no poder miraculoso de um rio que transforma pau em pedra. Sertão não seria somente o interior
, mas a terra escondida onde vivem povos com crenças particulares que atribuem sentidos mágicos à natureza.
Com efeito, para os cronistas portugueses, o sertão constituía parte do inexpugnável território de terras incógnitas, iluminando a esperança de ganhos e alimentando os mitos edênicos. A vastidão dessas terras pode ser expressa no assombro que demonstra a carta de Pero Vaz de Caminha ao afirmar que pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa
.⁴ Assombro que é prontamente substituído pela avidez primeva dos colonizadores: Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos
.⁵
Diferente de Camões, que afirma — na voz de Tétis — a crença da gente do sertão no rio miraculoso, para Caminha há uma notável ausência de crenças, o que seria suficiente para transformar a inocência em um caminho aberto para a fé cristã: Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença
.⁶
Por um lado, somos confrontados com a crença no rio que transforma pau em pedra. É bom lembrar que na ordem mitológica, Tétis é mãe de incontáveis rios e quando se refere ao tal rio miraculoso afirma: A gente do sertão que as terras anda/Um rio diz que tem miraculoso
.⁷ Ora, ninguém mais adequado do que a deusa-rainha para afirmar o poder transformador do rio, pelo contrário, desloca para a gente do sertão o peso semântico da crença (um rio diz que tem miraculoso
), o que gera ambiguidade e a possibilidade de negação em tal crença, movimento que acompanha a atribuição de juízos depreciativos de valor.
No caso de Caminha, a gente do grande sertão constitui um caso de berberia, qualificando o que considera um aspecto da barbárie que impede o entendimento entre os povos e abre espaço para um caminho inesperado, como afirma Raymundo Faoro: a inocência é o caminho do cristianismo
.⁸
Tais aspectos consumaram uma visão edênica do novo território
. Não faltaram à descrição de Caminha e dos cronistas, como Américo Vespúcio e Pero de Magalhães Gandavo, os chamados motivos edênicos
, estudados por Sergio Buarque de Holanda em seu livro Visão do Paraíso, que conferem uma realidade física e histórica ao mito do Paraíso Perdido, que tanto aguçou as fantasias e expectativas dos leitores bíblicos do Gênesis. Sergio Buarque nos mostra que a sedução pelo tema paradisíaco não foi menor nos portugueses:
A crença na realidade física e atual do Éden parecia então inabalável. […] aquela crença não se fazia sentir apenas em livros de devoção ou recreio, mas ainda nas descrições de viagens, reais e fictícias, como as de Mandeville, e sobretudo nas obras dos cosmógrafos e cartógrafos. Do desejo explicável de atribuir-se, nas cartas geográficas, uma posição eminente ao Paraíso Terreal, representado de ordinário no Oriente, de acordo com o texto do Gênesis
, é bem significativo o modelo do mapa-múndi mais correntemente usado. Modelo este em que, no hemisfério conhecido, Europa e África ocupam sempre a metade inferior, ao passo que a Ásia se situa acima dos demais continentes.⁹
A crença na existência de um Paraíso Terreal transbordou para diversas áreas do conhecimento e revelou visões de cosmos orientadas por sentimentos e ideais cristãos. Contudo, há uma discrepância sensível entre a descrição da máquina do mundo
do poema camoniano e o modelo de mapa-múndi referido por Sérgio Buarque como mais correntemente usado. No primeiro, a Europa ganha uma posição geográfica de destaque:
Vês Europa cristã, mais alta e clara
Que as outras em polícia e fortaleza.
Vês África, dos bens do mundo avara,
Inculta e toda cheia de bruteza,
Co Cabo que até’qui se vos negara,
Que assentou pera o Austro a natureza.
Olha essa terra toda, que se habita
Dessa gente sem lei, quase infinita.¹⁰
Nessa cosmovisão, o cristianismo é adotado como princípio de organização. Há dois mundos distintos, o primeiro é um mundo civilizado, mais alto e mais claro. O segundo é um mundo bárbaro
, o mundo do gentio (palavra tão recorrente em todo o poema camoniano e nos textos dos cronistas quinhentistas) inculto, pois não cristão e não civilizado, não raro essas duas qualidades aparecem como sinônimas. No caso dos mapas mais conhecidos no século XVI, nos quais a Ásia se situa acima dos demais continentes, temos o caso do Typus Orbis Universalis de Sebastian Münster (Figura 1). Nesse mapa, o continente asiático ganhou uma posição de destaque em relação à Europa e à África. Porém, o elemento mais valioso do mapa é a presença de seres fantásticos que povoam o imaginário das viagens ultramarinas, como também modelam as representações de povos desconhecidos.
Figura 1 — Typus Orbis Universalis, de Sebastian Münster (1552)
Fonte: acervo da Biblioteca Digital Luso-Brasileira.¹¹
Tanto nas representações cartográficas dos séculos XVI e XVII como na cosmovisão da máquina do mundo
temos a presença dilatada do fantástico delineando os contornos dos territórios desconhecidos. O sertão, como parte das terras incógnitas, não deixa de apresentar esses elementos fantásticos, constituindo-se, por vezes, um eldorado de pedras e metais preciosos, ou uma terra povoada por seres míticos e elementos que representam perigos diversos a qualquer empresa exploratória: sertão é o terreno do desconhecido que urge transformar em espaço de civilização¹².
2. A geografia fantástica
do desconhecido
¹³
Nas representações cartográficas do Brasil no século XVI, temos a impressão indelével de que o sertão é o terreno vasto e inóspito do desconhecido. Afora a faixa litorânea conhecida e representada nos mapas de forma ordenada através de descrições verbais, se apresentava um enorme espaço que os cartógrafos procuravam preencher com os traços da fantasia, muitas vezes apresentando elementos herdados da teratologia medieval, mostrando que essas representações estavam prenhes de significações políticas e culturais.
É preciso, contudo, compreender os mapas desse período como a articulação entre a geografia descritiva e uma geografia do imaginário influenciada pela cartografia e pelo imaginário teratológico do Medievo. As representações do espaço devem ser vistas de forma combinada, palavra e imagem não se excluem e, mesmo sob tensão, formam o quadro de um cosmos em construção pela força descritiva da palavra e pelo poder visual e figurativo da imagem. Como afirma Alfred Hiatt, a imagem ilustrada do mundo não pode ser dissociada da representação descritiva.¹⁴
Além disso, os mapas apresentam encruzilhadas de múltiplas significações; espécie de prisma em que diversos discursos se encontram. Por esse motivo, Paulo Miceli procura compreender os mapas produzidos durante o largo período da colonização do Brasil, tendo em vista as várias espessuras
que apresentam, sejam culturais, artísticas, psicológicas e políticas. O que está em jogo é uma concepção artística
e um conhecimento dos universos psicológicos, culturais e intelectuais dos desenhadores do mundo e seus ambientes, pois os monumentos cartográficos, além da importância histórica intrínseca e de seus atributos estéticos, são valiosos reveladores de sistemas culturais e políticos
.¹⁵
Esses desenhadores de mundos tiveram grande importância no processo de formação histórico e social do Brasil. Além disso, os mapas revelavam também os olhares do eu e as representações do outro no processo de constituição histórica de uma relação antropológica antitética entre civilização e barbárie.¹⁶ Interessa, particularmente, como os sertões brasileiros, o grande Brasil profundo e incógnito, é representado por esses monumentos cartográficos
, constituindo as primeiras representações, combinadas com as crônicas quinhentistas, que temos do processo incipiente de colonização, portanto, do encontro do agente civilizador com um mundo desconhecido que poderia ser tanto um paraíso de riquezas infinitas como um inferno mítico de experiências malogradas.
O período de expansão europeia coincidiu com a descoberta de novas técnicas de reprodução das gravuras, permitindo o conhecimento
do Novo Mundo de acordo com as crônicas e representações cartográficas do extenso território que muito atiçou a imaginação cortesã.
Os mapas, que antes eram manuscritos ou produzidos por meio da técnica da xilogravura, agora seriam impressos em chapas de cobre, o que promoveu a reprodução abundante de atlas por toda a Europa
.¹⁷ Esse processo acentuou-se profundamente no século XVII, com o progressivo conhecimento das novas terras
e o aperfeiçoamento das técnicas cartográficas:
Em linhas gerais, é possível afirmar que o crescimento da produção cartográfica europeia foi acompanhado por uma tendência crescente de se representar, integralmente, os territórios do Novo Mundo, com seus países e continentes. No que se refere ao Brasil, pode-se dizer que o desenho particularizado de algumas regiões obedeceu a processos relativamente autônomos, deflagrados em períodos diversos, desde o século XVI. Essa espécie de fragmentação foi consequência das lutas que acompanharam o largo movimento da conquista e colonização, seja no enfrentamento que Portugal teve de assumir diante das forças de nações rivais, seja no avanço em direção ao interior do território, cenário da violenta luta contra os antigos habitantes da terra.¹⁸
A tendência crescente em representar o vasto território foi resultado de uma busca por organização e síntese dos novos espaços que a experiência civilizadora descortinou. Essa busca estendeu-se desde as áreas povoadas pelo colonizador europeu até os terrenos mais recônditos do conhecimento e da experiência descritiva do colonizador. O mapa quinhentista procurou revelar os novos domínios da civilização e ao mesmo tempo abriu espaço para a representação idealizada dos povos considerados primitivos.
Isso demonstra que as lutas no processo de conquista e colonização também foram travadas no campo simbólico das representações, luta entre a descrição e a fantasia, entre experiência e imaginário. Batalhas decisivas não somente no processo de composição dos caracteres que plasmaram as formas violentamente históricas da colonização, mas no processo simbólico de construção e representação dos discursos que relacionam conceitos antitéticos: civilização versus sertão; europeu versus primitivo; eu versus outro.
A luta aparente entre os dois mundos é na verdade a luta contínua do eu contra a representação idealizada do mundo do outro. Representações em conflito latente e que procuravam afirmar a soberania do eu, formando o que poderíamos chamar de instabilidade mimética. Tal instabilidade é responsável por diversos níveis de representação do outro e se opera no terreno movediço da idealização e do rebaixamento, impedindo o reconhecimento e a valorização, enquanto princípios responsáveis pela instauração de novas relações de alteridade.
Na imagética medieval, a representação do outro era instaurada pelo medo do longínquo e, sobretudo, do desconhecido, conferindo-lhe a imagem disforme, a monstruosidade configuradora e a perda sensível de humanidade. A palavra bárbaro
designava o espaço reservado a todos aqueles que não compartilhavam os mesmos códigos simbólicos, ou simplesmente aqueles que não falavam corretamente. No mundo cristão, como bem observa Todorov, em O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações, a palavra bárbaro
não nomeava somente os que não falavam a língua de Cultura, mas todos os estrangeiros provenientes das regiões mais distantes do Império Romano, e que representavam uma profunda ameaça, pois eram conhecidos pela crueldade e desumanidade. Barbárie e civilização seriam representadas, portanto, como gestos de negação e reconhecimento da humanidade do outro. ¹⁹
No período medieval, a relação entre civilização e barbárie, bem como a representação dos povos não civilizados, atingiu um novo capítulo na história humana. O imaginário social pintou com as cores do exótico todos os traços culturais contrastantes, bestiários e alegorias apresentavam imagens disformes de povos distantes: animais monstruosos, indivíduos metade homens, metade animais, com partes do corpo extremamente desproporcionais e seres mitológicos como ciclopes revelavam imagens que constituíam representações hiperbólicas do outro, sempre projetado de forma ameaçadora à estabilidade dos povos civilizados. Essas representações atingem um ponto culminante com a colonização do Mundus novus, permitindo uma ampliação metafórica do universo do desconhecido
, representações que funcionariam ideologicamente para exercer o pleno domínio desses povos. Dessa forma, a barbárie seria a face disforme da civilização, incapaz de reconhecer uma humanidade outra que não seja àquela ao alcance de suas fronteiras.
Figura 2 — Das Buch der Cronicken ou Schedelsche Weltchronic, Hartmann Schedel, Nuremberg (1493)
Fonte: Miceli, (2012, p. 73).²⁰
É dessa forma que a literatura versada na construção de lugares utópicos, ganha novo colorido e novas dimensões. Tomemos, como exemplo, o trecho citado por Carlo Ginzburg, do texto anônimo intitulado Capitolo, qual narra tutto l’essere d’um mondo nuovo, trovato nel mar Oceano, cosa bela, et dilettevole:
Uma montanha de queijo ralado
Se vê sozinha em meio da planura,
E um caldeirão puseram-lhe no cimo…
Um rio de leite nasce de uma grota
E corre pelo meio do país,
Seus taludes são feitos de ricota…
Ao rei do lugar chamam Bugalosso;
Por ser o mais poltrão, foi feito rei;
Qual um grande paiol, é grão e grosso
E do seu cu maná lhe vai manando
E quando cospe cospe marzipã;
Tem peixes, não piolhos, na cabeça.²¹
Nesse mundo de abastança e exagero podemos ver uma variação sobre o antigo tema do país da Cocanha
,²² porém, esse mundo que era vislumbrado nas antigas narrativas encontrava agora terra firme para fazer florescer um novo horizonte de imaginação fabulosa. Dessa forma, as descobertas marítimas tornaram inevitável que a geografia fabulosa da Antiguidade e da Idade Média se desdobrasse em novos reinos de assombrosa maravilha
.²³
Aliada ao pouco conhecimento do novo território, a curiosidade fabulosa pelas novas descobertas forjou um mundo retratado por um misticismo que sempre apontava para uma ética idealizadora. É dessa maneira que o desconhecido tomou facilmente a des-forma como ponto de partida, pois, assim moldar-se-ia o rosto do inimigo a ser combatido e escravizado.
Temos pinturas que