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O Método em Marx e o Estudo da Violência Estrutural

José Fernando Siqueira da Silva[1]


jfernandoss@franca.unesp.br

RESUMO

O ensaio teórico ora apresentado tem como principal objetivo indicar e desenvolver alguns
eixos centrais para a realização de estudos na área da violência - aqui priorizada na sua
forma estrutural -, tendo como referência a dialética marxiana. Em outras palavras, como
discutir, a luz do método em Marx, a violência estrutural? Qual a utilidade e a importância
disso para o Serviço Social?

RESUMEN

El ensayo teórico ora presentado tiene como principal objetivo indicar y desarrollar algunos
de los ejes centrales para la realización de estudios en la área de la violencia – aquí
priorizada en su forma estructural –, teniendo como referencia la dialéctica marxiana. En
otras palabras, ¿como discutir con base en el método en Marx, la violencia estructural?
¿Cuál la utilidad y la importancia de eso para el Trabajo Social?

“Em toda a ciência o difícil é o começo”


Karl Marx

O estudo e a delimitação de temas capazes de orientar a explicação da


sociedade brasileira contemporânea e o seu alto grau de complexidade, é um desafio
permanente imposto à academia. No caso das Ciências Humanas e Sociais ou das “Ciências
Sociais Aplicadas”, a indicação desses eixos centrais envolve necessariamente a esfera da
vida cotidiana (HELLER, 1989) e os desafios concretos que a contemporaneidade impõe
aos seres sociais. Para tanto, é fundamental delimitar temas de estudo que tenham uma
existência material e concreta e, sobretudo, que sejam do interesse da população que
participa da produção social muito embora não seja beneficiada pela riqueza por ela gerada.

A violência se encontra entre os assuntos de maior relevância social nos dias


de hoje. No entanto, como será tratado a seguir, trata-se de um tema multifacetado e
abordado por diferentes orientações teóricas que priorizam determinadas formas de
violência e oferecem óticas e leituras comprometidas com as bases sociais e classistas que
as sustentam. Abordaremos nesse ensaio teórico uma forma particular de violência que,
embora seja atualíssima e cotidianamente observada e sentida pela imensa maioria da
população, não é apreendida e reconhecida como tal: a violência estrutural.

Uma primeira dificuldade quando se trata da violência é sua grande


diversidade, fato que exige uma adequada e precisa delimitação empírica da mesma. A
violência se impõe como um fenômeno que apresenta uma dinâmica complexa,
diversificada, concreta e material. Ou seja, ela possui uma lógica que não é criada
abstratamente pela razão humana ainda que possa e deva ser compreendida, descrita e
analisada com o apoio do pensamento humano. Portanto, a razão não é absoluta e não
constrói isoladamente a realidade, mas a reconstrói com o auxílio do pensamento crítico.
Isso não significa que os homens deixam se ser sujeitos históricos construtores de suas
próprias vidas, mas que fazem história limitados pelas condições de sua época e pelos
desafios concretos que encontram em uma determinada realidade. Assim sendo, não
dominam plenamente os resultados dos processos históricos – socialmente determinados
também através de embates envolvendo interesses antagônicos –, embora ofereçam uma
contribuição individual e coletiva para que a humanidade tome um ou outro rumo. Como
lembra Lukács,

“os homens fazem certamente sua própria história, mas


os resultados do decurso histórico são diversos e
freqüentemente opostos aos objetivos visados pelos
inelimináveis atos de vontade dos homens
individuais”.(LUKÁCS, 1979a: 64)
Toda violência supõe o uso da força para alcançar determinados objetivos
(SÁNCHEZ VAZQUEZ, 1990). Entretanto, diferentes formas de violência com suas
respectivas intencionalidades supõem usos diversos da força, ainda que a violência sempre
necessite de justificadores e de atores que participem direta e indiretamente, com maior ou
menor intensidade, do aprofundamento de seu circuito reprodutivo. Falar de sujeitos que
fazem parte de processos violentos e que os endossam significa, ao mesmo tempo, indicar
que existe uma ação que visa oprimir algo ou alguém impondo a lógica dos que violentam
aos violentados. Há, portanto, um grau de consciência dos sujeitos, dos grupos e das classes
sociais que praticam a violência (mesmo que não a assumam como tal), ainda que
possamos discutir a diversidade e os níveis de consciência dos atores que fazem parte do
processo violento.

Mas, o que significa violência estrutural? Trata-se do uso da força, não


necessariamente física (ainda que não se abdique dela quando necessário), capaz de impor
simultaneamente regras, valores e propostas, quase sempre consideradas naturais, normais e
necessárias, que fazem parte da essência da ordem burguesa, ou seja, formam sua natureza.
A violência estrutural se materializa envolvendo, ao mesmo tempo, a base econômica por
onde se organiza o modelo societário (a estrutura) e sua sustentação ideológica (a
superestrutura). Claro que isso não significa ressaltar uma dominação mecânica entre a
economia e a superestrutura ideológica (a política, a cultura, entre outras). Significa, sim,
que para viver os homens necessitam, em primeiro lugar, satisfazer suas necessidades
básicas (comer, beber, vestir, etc...). Junto disto é preciso frisar que a “questão social”,
espaço privilegiado de intervenção profissional do assistente social, possui uma
historicidade marcada por um determinado modelo societário que busca a máxima
mercantilização das relações humanas. Assim sendo, a economia não pode ser
desconsiderada nesse contexto, o que não significa atribuir-lhe um papel único e mecânico
ao influir na vida do ser social. Como afirma Lukács (1979a: 41), ao fazer comentários
sobre a formação da consciência em Marx,

“o mundo das formas de consciência e seus conteúdos


não é visto como um produto direto da estrutura
econômica, mas da totalidade do ser social. A
determinação da consciência pelo ser social, portanto,
é entendida em seu sentido mais geral. Só o marxismo
vulgar (desde a época da Segunda Internacional até o
período stalinista e suas conseqüências) é que
transformou essa determinação numa declarada e
direta relação causal entre economia – ou mesmo entre
alguns momentos dessa – e ideologia.”

A violência estrutural é formada por um conjunto de ações que se produzem


e se reproduzem na esfera da vida cotidiana, mas que freqüentemente não são consideradas
ações violentas. A reprodução desse modelo societário repõe, ao mesmo tempo, novas
contradições e a possibilidade histórica de sua superação. A violência estrutural compõe
esse processo e se reproduz junto com ele. Sua superação está condicionada a negação da
sociedade capitalista ou, mais do que isso, está imbricada com a materialização de um
modelo societário que supere os limites impostos pela lógica do capital ao mundo do
trabalho. Ela supõe inevitavelmente alterações radicais nas propostas neoliberais que
diminuem e subestimam, sensivelmente, o papel do Estado na sociedade. Trata-se de um
Estado tipicamente latino-americano e terceiro-mundista com uma política econômica que
propicia uma imensa transferência de recursos para os grandes grupos econômicos –
também através de uma densa arrecadação financeira dos Estados Nacionais -, Estados
esses fortes na defesa do capital transnacional, mas débeis e pontuais com as políticas
sociais.

A partir disso caberia uma questão: é possível, a partir de Marx e de sua


diversificada tradição, propor estudos sobre formas de violência que não assumem uma
orientação revolucionária? Mais claramente, existe a possibilidade de se oferecer uma
leitura original, coerente e fiel com a ótica marxiana, ao se tratar dos fenômenos
relacionados com uma forma de violência contra-revolucionária? Segundo nossa opinião
sim, ainda que esse processo não seja simples e careça de alguns cuidados que devem evitar
uma análise mecânica e inadequada.

O tema da violência foi tradicionalmente desenvolvido pelos grupos de


esquerda através de estudos e de experiências concretas sobre os processos revolucionários.
Esse tratamento teórico-prático, entretanto, jamais foi linear e homogêneo. Transitou de
uma concepção do próprio Marx y Engels (PAULO NETTO, 1981) em que a violência faz
parte dos processos revolucionários, mas não deve jamais se confundir com eles (faz o
papel de “parteira da história”), passou por uma identificação entre violência e revolução
(SOREL, 1992), fez parte da luta dos povos do terceiro mundo contra a opressão colonial
(FANON, 1979) ou foi, ainda, recuperado nos estudos sobre a relação entre práxis e
violência (esta última concepção mais próxima das orientações marxianas) [2]. Todos eles,
em sua diversidade, têm um ponto central comum: a violência sempre está relacionada com
uma perspectiva revolucionária, ou seja, está comprometida com a superação da sociedade
capitalista e com a construção do socialismo.

É publicamente conhecido que em países como o Brasil os assistentes


sociais são predominantemente demandados por diferentes esperas do Estado (ainda que
não somente por ele), participando ativamente da reprodução indireta da força de trabalho
ou, simplesmente, atuando com “usuários terminais” absolutamente descartados pelo
capital. Essas ações freqüentemente estão relacionadas com a assistência social direcionada
às crianças, aos adultos e aos idosos mais pobres, setores esses que fazem parte dos
seguimentos desprestigiados pelo capitalismo[3]. A existência delas já expressa, em si,
distorções e desequilíbrios sociais o que justifica a materialização de políticas assistenciais
que em tese deveriam atender as demandas dos setores subalternos. O que se observa, no
entanto, é que essas ações são freqüentemente fragmentadas e pontuais, embora não deixem
de considerar, a seu modo, algumas necessidade sociais dos pobres. Ora, é justamente no
caráter intrinsecamente contraditório das políticas sociais (particularmente a assistencial),
na gestão e na operacionalização das mesmas, que o assistente social atua
profissionalmente. O profissional se depara com uma realidade repleta de contradições, que
exige dele muita preparação e capacidade para que o seu trabalho seja edificado em um
contexto que permita uma apropriação crítica desse cenário necessariamente contraditório,
atitude essa crucial para movimentos de contra-violência. Nesse sentido, é possível pensar
em um desdobramento particular da violência estrutural que tende a se produzir e
reproduzir, na situação considerada, através da negação absoluta ou, pelo menos, sensível
diminuição da quantidade e da qualidade dos serviços prestados. Portanto, a violência
estrutural também potencializa seu circuito reprodutivo, respingando-se na área social
seja através do “simples” atendimento cotidiano dos usuários – também feito pelo
assistente social com apoio da instrumentalidade profissional (GUERRA, 1995) –, até a
gestão e a materialização de projetos e de programas sociais dos mais variados tipos. Na
divisão social e técnica do mundo do trabalho (IAMAMOTO, 1985), os assistentes sociais
lidam com esse complexo e pantanoso cenário intervindo, de uma forma ou de outra, sobre
ele. Isso impõe a necessidade imperial desses profissionais pensarem criticamente sobre os
espaços cotidianamente ocupados pela trama da violência no seu próprio exercício
profissional, que interage com a gestão de projetos e de programas sociais fortemente
influenciados por elementos situados para além dos marcos da profissão (a política macro-
econômica, determinações envolvendo diretorias de empresas privadas ou diferentes
instâncias de governo, por exemplo).

Marilda Iamamoto, ao tratar do trabalho profissional do assistente social[4],


faz a seguinte observação sobre o significado da competência no exercício profissional:

“Esse discurso é competente quando é crítico, ou seja,


quando vai à raiz e desvenda a trama submersa dos
conhecimentos que explica as estratégias de ação. Essa
crítica não é apenas mera recusa ou mera denúncia do
instituído, do dado. Supõe um diálogo íntimo com as
fontes inspiradoras do conhecimento e busca elucidar
seus vínculos sócio-históricos, localizando as
perspectivas e os pontos de vista das classes através
dos quais são construídos discursos; suas bases
históricas, a maneira de pensar e interpretar a vida
social das classes (ou segmentos de classe) que
apresentam esse discurso como dotado de
universalidade, identificando novas lacunas e
omissões.” (IAMAMOTO, 1994:183-184)

Assim, para que seja possível reconstruir, no pensamento, como “concreto


pensado”, a dinâmica dessa forma de violência nos tempos atuais, é fundamental que os
trabalhadores sociais se debrucem sobre a realidade vivida e, ao mesmo tempo, tenham
uma boa capacidade de apropriação crítica da mesma. Reivindica-se aqui a práxis
marxiana, ou seja, a unidade diversa entre a teoria e a prática. Somente nesse nível é
possível elaborar e materializar ações com uma teleologia oposta a violência estrutural,
indicando mecanismos de resistência e de contra-violência também no exercício
profissional do assistente social.

Ainda que a violência não seja um tema central na obra de Marx/Engels e


em sua tradição (incluindo a violência estrutural), certamente os estudos marxianos e
marxistas oferecem um importante capital cultural para investigar as múltiplas
manifestações desse tema em tempos de pós-reestruturação produtiva e de profundas
transformações no mundo do trabalho. Nos estudos de Marx são nítidas as indicações da
violência do capital contra o mundo do labor, ainda que sua principal preocupação tenha
sido desvelar a complexidade da sociedade burguesa apontando suas características
fundamentais, sua reprodução em escala ampliada, seus limites e os caminhos para sua
superação. As discussões do jovem Marx sobre os processos de auto-alienação humana e
sobre a negação do homem humano-genérico no mundo do trabalho capitalista (o que não
significa negar o trabalho como categoria ontológica central, mas, sim, o trabalho alienado),
já estão presentes, por exemplo, nos manuscritos econômico-filosóficos (1844).

“O trabalho produz maravilhas para os ricos, mas


produz desnudez para o trabalhador. Produz palácios,
mas cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas
mutilação para o trabalhador. Substitui o trabalho por
máquinas, mas joga uma parte dos trabalhadores de
volta ao trabalho bárbaro e faz da outra parte
máquinas. Produz espírito, mas produz idiotia,
cretinismo para o trabalhador”. (MARX apud
FERNANDES, 1989:152)

Os apontamentos dos manuscritos de 1844 são criticamente retomados, em


escala ampliada, nas principais formulações de Marx em “O Capital".[5] Agora, a
exploração adquire uma forma muito mais concreta e historicamente situada.

“Suponha que a jornada de trabalho constitua-se de 6


horas de trabalho necessário e 6 horas de mais-
trabalho. Assim, o trabalhador livre fornece
semanalmente ao capitalista 6 X 6 ou 36 horas de
mais-trabalho. É o mesmo se ele trabalhasse 3 dias por
semana para si e 3 dias por semana gratuitamente para
o capitalista. Isso não é, porém, visível. O mais-
trabalho e o trabalho necessário confundem-se um com
o outro (…) A produção capitalista, que é
essencialmente produção de mais-valia, absorve de
mais-trabalho, produz, portanto, com o prolongamento
da jornada de trabalho não apenas a atrofia das força
de trabalho, a qual é roubada de suas condições
normais, morais e físicas, de desenvolvimento e
atividade. Ela produz a exaustão prematura e o
aniquilamento da própria força de trabalho. Ela
prolonga o tempo de produção do trabalhador num
prazo determinado mediante o encurtamento de seu
tempo de vida.” (MARX, 1983: 191-212)

Engels, por sua vez, fez um estudo e escreveu um livro especialmente


importante: “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra” (ENGELS, 1988). Nessa
obra de profunda sensibilidade e de minuciosas descrições e dados sobre a situação dos
trabalhadores ingleses na segunda metade do século XIX, o autor denuncia a violência
estrutural que começa no mundo do trabalho e se desenvolve na vida cotidiana não
preservando homens, mulheres e crianças.

“Regra geral, as casas dos trabalhadores estão mal


implantadas, mal construídas, mal conservadas, mal
arejadas, úmidas e insalubres; nelas, os habitantes
estão confinados a um espaço mínimo e, na maior
parte dos casos, num cômodo dorme pelo menos uma
família inteira. A disposição interior das casas é
miserável; chega-se num certo grau à ausência total
dos móveis indispensáveis. As roupas dos
trabalhadores também são, regra geral, medíocres e
estão freqüentemente esfarrapadas. A comida é
geralmente má, muitas vezes imprópria para consumo,
em muitos casos, pelo menos em certos períodos,
insuficiente e, no extremo, há pessoas que morrem de
fome (…) No melhor dos casos, uma existência
momentânea suportável: para um trabalho duro, bom
alojamento e comida menos má (do ponto de vista do
operário, evidentemente, tudo isto é bom e suportável);
no pior dos casos uma miséria cruel pode ir até a
ausência do fogo e casa e à morte pela fome; mas a
média é muito mais próxima do pior do que do melhor
dos casos.” (ENGELS, 1988:88)

Seguindo a lógica de nossa argumentação podemos dizer que a violência,


aqui caracterizada como estrutural, não se resume, jamais, a um ato isolado ou acidental.
Trata-se de um elemento constituinte da lógica reprodutiva do capital, hoje endossada e
realimentada pela profunda reestruturação produtiva que assolou o planeta, particularmente
os países ditos “emergentes”, na década de 90 do século XX. Claro que a forma imediata
pela qual a violência se manifesta e aparece, não deixa de ser importante e não retira a
responsabilidade dos sujeitos que contribuem com a sua reprodução. Também é verdade
que não existe una relação mecânica e direta entre a violência estrutural e outras formas de
violência reproduzidas nos espaços urbanos (por exemplo os assassinatos e a criminalidade
ou ainda, mais especificamente, os fenômenos relacionados com a violência doméstica
normalmente cometida por pais ou mães contra seus filhos). Ainda que não seja possível
desconsiderar atitudes individuais absolutamente condenáveis e, até, comportamentos
insanos que também expressam graves enfermidades psicológicas, os atos são realizados
em determinadas condições e jamais se limitam a gestos, atitudes e procedimentos
unicamente pessoais. Tudo isso, portanto, não pode ser analisado sem considerar um
complexo processo que possui uma historicidade, ou seja, que se produz e se reproduz em
um determinado momento histórico a partir de suas condições, relacionando-se com
diferentes elementos que dinamizam a ação violenta e oferecem subsídios para sua
reprodução envolvendo atitudes, características e gestos também situados na esfera
individual da vida social. Em outras palavras, é preciso perguntar: Quais são os setores
envolvidos na ação violenta? Quais são seus objetivos? Como e porque a praticam? Quais
são as condições que orientam essa ação? Quais são seus principais atores? Que tipo de
envolvimento tais atores possuem com esse processo?

Considerando isso, algumas pistas são cruciais para os estudos que se


propõem a recuperar o legado marxiano ao analisar a violência inerente às relações
capitalistas (particularmente aquelas investigações mais diretamente relacionadas com o
que denominamos de violência estrutural):

1. para reconstruir a violência como “concreto pensado” é preciso revelar suas


particularidades como um fenômeno inicialmente parcial, confuso e caótico que se objetiva
em um determinado momento histórico: a sociedade capitalista madura do início do século
XXI, considerando as atuais contradições entre o capital e o mundo do trabalho que são
produzidas e reproduzidas nesse período com suas especificidades regionais e locais.
Como lembra Marx,

“O método que consiste em elevar-se do abstrato ao


concreto não é senão a maneira de proceder do
pensamento para se apropriar do concreto, para
reproduzi-lo como concreto pensado. Mas este não é
de modo nenhum o processo da gênese do próprio
concreto” (MARX, apud LUKÁCS, 1979:38).

A violência não é um fenômeno pontual e localizado, ainda que assim


apareça imediatamente e que essa dimensão singular e imediata seja importante e sirva
como ponto de partida para estudos mais profundos e reveladores. Cabe ao investigador,
portanto, reconstruir mentalmente – o mais fielmente possível – a totalidade do movimento
de uma determinada realidade complexa e contraditória que, por sua vez, possui uma
dinâmica própria que não é abstratamente criada. Marx distingue nitidamente a ontologia
da gnosiologia, ainda que considere necessária a unidade entre elas[6]. É preciso, na esteira
dessa argumentação, observar as suas múltiplas manifestações na era da “pós-
modernidade”, imediatamente visualizadas sob o rótulo genérico da violência urbana.[7]
Claro que essa dimensão não pode ser desprezada; mas também não pode ser absolutizada.
É sob essa ideologia que generaliza a parte de um processo como sendo o processo por
inteiro, que a violência estrutural é desconsiderada ou, na melhor das hipóteses, amenizada
como uma “dívida social”;

2. a violência estrutural que é objeto de nossa preocupação, supõe um determinado uso da


força que freqüentemente não se apresenta como nos casos retratados e publicizados na
esfera da vida cotidiana. A principal característica dessa forma de violência é a sua sutileza
e discrição, uma vez que seu circuito reprodutivo supõe um aliado central: o processo
permanente de naturalização de gestos e de procedimentos, quase sempre considerados
necessários, adequados e normais. Cobertos pelo manto da pseudo-racionalidade técnica e
científica e pelo “moderno” discurso da solidariedade, as múltiplas expressões da violência
estrutural se desenvolvem através da absoluta aceitação da esfera da vida cotidiana
(HELLER, 1989), sustentada na naturalização da pobreza e da desigualdade social. Nesse
caso a administração da miséria passa por mecanismos que endossam a absoluta
solidariedade entre classes sociais antagônicas, particularmente contando com um discurso
assistencial típico da “modernidade”: a focalização, a “filantropia empresarial” (fortemente
sustentada na “responsabilidade social” das empresas) e a conseqüente redução e negação
do conceito de cidadania e dos direitos sociais (reforçada pela tímida e fraca intervenção
estatal nas políticas sociais). MONTAÑO (2002), ao analisar as ações sociais do terceiro
setor, lembra que

“O agente ‘voluntário’, para quem foi dedicado


internacionalmente o ano de 2001, é induzido a crer
que sua atividade é criadora; porém ele apenas
manipula, ocupa-se, preocupa-se com o já existente.
Tem uma prática apenas reprodutora, sem criar nada
de novo, portanto, sem transformar (...) Com isto, ele
apenas opera, manipula os instrumentos, os parelhos,
porém sem sequer conhecer a estrutura e a sua
dinâmica, nem sequer a realidade para além da
fenomenicidade, da pseudoconcreticidade. Tem um
conhecimento do instrumental, operativo, não crítico
nem fundamental. Com isso, na verdade, ele que é
instrumentalizado, manipulado, refuncionalizado para
a reprodução do sistema que não conhece e considera
como dado, estruturalmente inalterável”.
(MONTAÑO, 2002: 242-243)

Ainda que essas ações levem em consideração reivindicações históricas da


“classe que vive do trabalho” (ANTUNES, 1999 e 2000), suas respostas recolocam
alternativas criativas e inovadoras, mas incapazes de até mesmo lidarem com a noção de
universalidade das políticas sociais e dos direitos sociais (aceitáveis, sob determinadas
condições históricas, pelo Welfare State também decadente na Europa);

3. A violência atravessa as ações profissionais e carece delas para se aprofundar ou não.


Longe de qualquer messianismo o papel do profissional nesse processo é importante para
que o circuito da violência encontre, na situação em que ocorre a intervenção profissional,
obstáculos para sua produção e reprodução; ou, ao contrário, se aprofunde com o apoio do
próprio exercício profissional. Quando o assistente social adota uma posição crítico-
criadora, ele contribui para a negação da violência estrutural em duas direções básicas: a)
não permite, pelo menos conscientemente e claramente, que a violência se desenvolva com
tranqüilidade através de sua ação; b) cria as condições para elaborar e por em prática
propostas não violentas. É importante valorizar uma ação mais articulada e ampla entre
diferentes profissionais, ainda que seja igualmente importante reconhecer os limites
inevitáveis desse nível de atuação, evitando uma postura ingênua sobre o papel
desenvolvido pelas profissões no combate ao circuito reprodutivo da violência estrutural.
IAMAMOTO (2000), ao tratar da intervenção profissional do assistente social salienta que

“É uma ação de um sujeito profissional que tem


competência para propor, para negociar com a
instituição os seus projetos, para defender o seu campo
de trabalho, suas qualificações e funções profissionais.
Requer, pois, ir além das rotinas institucionais e buscar
apreender o movimento da realidade para detectar
tendências e possibilidades nela presentes passíveis de
serem impulsionadas pelo profissional. (...) as
possibilidades estão dadas na realidade, mas não são
automaticamente transformadas em alternativas
profissionais. Cabe aos profissionais apropriarem-se
dessas possibilidades e, como sujeitos, desenvolvê-las
transformando-as em projetos e frentes de trabalho”.
(IAMAMOTO, 2000:21)

Portanto, o ponto de partida para formular, estabelecer e concretizar


propostas de contra-violência precisa considerar os desafios concretos da vida cotidiana
impostos ao profissional (entre eles os assistentes sociais), sem atribuir um peso excessivo
a esta esfera e sem acreditar em soluções isoladas e pontuais. O combate efetivo da
violência estrutural não abdica da esfera individual e mais localizada, mas carece de
propostas sintetizadas e organizadas coletivamente tendo a clareza de que o modelo
societário capitalista e seus perversos desdobramentos devem ser combatidos com firmeza.
Esse combate supõe a superação da ordem burguesa e a afirmação de um socialismo,
crítico, atualizado, renovado e fiel à Marx[8];

4. é necessário reivindicar uma formação profissional plural, mas não eclética. Isso
significa que todo capital cultural acumulado deve ser sempre submetido à crítica
permanente e radical do método dialético. O estudo de autores antagônicos e diversificados
é uma atitude intelectual necessária, mas deve ocorrer criticamente; ou seja, o problema não
está na leitura e na compreensão de tendências teóricas diferentes (postura intelectual
importante para a produção do conhecimento), mas na forma como essa incorporação
ocorre. Negar o debate crítico significa negar a possibilidade de um pensamento produtivo
e construtor de alternativas libertárias.

“Com isso, quero dizer que, no terreno da ciência,


natural ou social, o pluralismo não pode implicar o
ecletismo ou relativismo. Fundamental, vejam bem,
parece-me ser, também aqui, a necessidade do debate
de idéias. É através da troca de idéias, da discussão
com o diferente, que podemos afinar nossas verdades,
fazer com que a teoria se aproxime o mais possível do
real. Não há ciência que esgote o real, pois a ciência é
sempre aproximativa. Então, é absolutamente
necessário o debate de idéias, no sentido de esclarecer
nossas posições em relação a aproximação a uma
verdade cada vez mais abrangente”. (COUTINHO,
1991:13)
Portanto, reivindicar o pluralismo na formação profissional não significa
defender uma convivência harmoniosa entre óticas antagônicas, mas ao contrário, significa
estabelecer a crítica como regra central para esse processo e ter claro que por detrás de
diferentes posições existem visões sociais de mundo sustentadas em interesses de classes
sociais antagônicas (LÖWY, 1988);

5. Não é suficiente criticar e denunciar a violência. É preciso negá-la materialmente, ou


seja, praticamente. Tal processo deve relacionar simultânea e articuladamente a dimensão
individual e coletiva do ser social. Somente assim é possível tratar a violência estrutural
como uma categoria de análise. A categoria não pode ser compreendida como uma
construção unicamente teórica coordenada pela razão humana e sistematizada em títulos
conceituais. Ela é uma reconstrução de elementos que fazem parte da estrutura da realidade
(feita logicamente com o apoio do pensamento); portanto, apresenta uma dinâmica própria
e exprime “formas de vida e determinações de existência” (MARX apud FERNANDES,
1989:415). A práxis humana está necessariamente sustentada na unidade-diversa entre a
teoria e a prática e entre a realidade e o pensamento.

Estas são algumas das principais pistas para que sejam elaborados estudos e
propostas de intervenção capazes de lidarem criticamente com as múltiplas expressões da
violência - aqui particularizada na sua forma estrutural - a partir do método marxiano.
Acreditamos que Marx e sua tradição são úteis e necessários para uma discussão séria sobre
o mundo capitalista e sua lógica reprodutiva. Os assistentes sociais não podem abdicar de
esse rico capital cultural para estabelecer os caminhos necessários visando uma intervenção
profissional efetivamente comprometida com a liberdade e a igualdade social.

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