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Identidades

Brasilio Sallum Jr.


Lilia Moritz Schwarcz
[:!.S:;:P UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Digna Vidal
Afrânio Catani
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IDENTIDADE COMO PROBLEMA

Kwame AnthonyAppiah"

Um dia desses,digitei ídenffty social scietzceno Google, e essaferramenta


de busca anunciou, toda orgulhosa, haver encontrado "aproximadamente
iao milhões de resultados" em cerca de um quarto de segundo. Acrescentei
a palavra proa/em e os resultados apontaram ainda 3o milhões de páginas.
Disso se conclui que, atualmente, se fala bastante a respeito de identidade,
uma vez que raça, gênero, orientação sexual, nacionalidade e religião, entre
tantos outros marcadores, são identidades; e parece que, por essesdados do
Google, um quarto se refere à identidade como problema. Essefato indica
que vem ocorrendo significativa mudança no modo como os anglófonos fa-
lam da vida social. E não só eles;basta digitar no Google "identidade social"
e se terá i,z5 milhão de páginas; "identidad social" alcança mais de 8 milhões
de páginas; "identité sociale" produz cerca de z6,5 milhões.
Há pouco mais de meio século, tais palavras dificilmente eram usadas
do modo como sãohoje para tratar dessascaracterísticassociaiscompar
tilhadas pelas pessoas.Em i95o, a identidade de alguém era aquilo que o
distinguia, não o que o ligava aos outros. Vejamos a diferença: um relatório
policial diria que "a vítima é do sexomasculino, negra, heterossexual,per-
tencentea uma determinada associaçãocatólica, massua idenfídadeperma-
nece descon/decida': Na época, predominava esse signiõcado de identidade.
Assim, neste texto, teorizarei um pouco acercada natureza dessasidentidades

Kwame Anthony Appiah é professor da Princeton University. Tradução de Lólio Lourenço de


Oliveira e revisão técnica de Ana Mana Sallum
r
i8 Identidades Identidade como Problema tg

sociais e sobre como pensamos nelas atualmente. Há três dimensões que chamar a atenção é precisamente que há rzormas associadas às identidades
acredito serem importantes. sociais, que denomino: normas de fdelzf@cação e }zormas de frafamento. As
Primeiramente, as identidades sociais dependem de rótulos para sua normas de identificação especificam a maneira como pessoasde determi-
existência - um velho í/zsíglzfproveniente da teoria sociológica rotuladora nada identidade devem se comportar; e as normas de tratamento, como se
de algumas décadas atrás. Isso porque as pessoasreagem aos outros e pen- deve ou não reagir e atuar sobre pessoas de certa identidade (mencionarei
sam sobre si mesmas por meio dessesrótulos. Vocês pensam nas pessoas as normas indiferentemente, dizendo o que as pessoasdevem ou não fazer,
como baíafzos ou bósnios ou bafísfas, e então reagem a eles como tais; vocês ou o que deve?"íamou não fazer). Resumo estesegundo ponto dizendo que
pensam em si mesmos como brasa/errose fazem (ou não) certas coisas por- a identidade é normativa.
que é isso que vocês pensam ser. Assim, este primeiro ponto é metafísico: o Não é necessárioque tais "devem" e "deveriam" sejam especificamente
nominalismo a respeito de identidades sociais é preferível ao realismo onto- morais. Que os homens não deveriam usar saias não é uma verdade moral.
lógico. Enfatizo que não quero dizer que identidades não sejam reais, o que De fato, não penso que haja qualquer verdade nisso. No entanto, vivo em
quero é dizer algo a respeito de como elas são reais. uma sociedade em que há uma norma nesse sentido: as pessoas nos Estados
O fato de os rótulos não poderem ser eliminados não significa que um Unidos não apenasesperamque os homens não usem saias,mas também
ou mais rótulos não possam estar em circulação ao mesmo tempo, nem im- esperamque não o façam porque reconhecem que os homens não devem
pede que eles sejam substituídos, uns pelos outros, ao longo do tempo. Ou fazê-lo.A norma cria a regularidade comportamental. Não é essaregulari-
seja,é preciso semprehaver algum rótulo. Assim, por exemplo, nos Estados dade que cria a expectativa de comportamento. As normas (como os crité-
Unidos, ÁÓríca/zvirou negro persolz oÍcoZor ou ÁÓrícan-amerícan. O desdo- rios de pertencimento) geralmentenão sãoaceitaspor todos, e muitas vezes
bramento dessesmuitos rótulos fundamenta por que faz sentido falar deles há curiosas disputas a respeito delas. Assim, faz parte de nossa compreensão
como rótulos em mudança no tempo para a mesma identidade. O fato de os dessasnormas o fato de elas serem contestáveis.
rótulos não poderem sereliminados não é porque há uma relaçãobiunívoca Eis aqui mais alguns exemplos de normas que tenho em mente. Negati-
entre rótulos e identidades. Podemos ter identidades com muitos rótulos vamente: homens heterossexuais não devem apaixonar-se uns pelos outros;
que vão se transformando com os anos. Em suma, pois, o primeiro ponto é negros e brancos não devem envergonhar suas respectivas etnias; judeus e
que as identidades sociais exigem rótulos. muçulmanos não devem comer carne de porco Positivamente: os homens
E importante que rótulos de identidades sociais sejam entendidos como devem abrir asportas para as mulheres; homens homossexuais devem reve
contestáveis em suasfronteiras. Não temos resposta pronta para a pergunta lar-se publicamente; os negros devem apoiar ações afirmativas; muçulma
sobre se o filho de um afro americano com uma esquimó criada no Alasca nos devem fazer o /zadgí'.A existência dessas normas não implica de imedia-
é realmente negro. Há quem negueque um transexual pós-operado tenha to que as apoiemos. Uma norma de que pessoasde certo tipo devem "fazer
realmente mudado de sexo. Questões desse tipo podem gerar infindáveis algo" significa apenas que é amplamente sabido que elas devem "fazer algo't
discussões. A aceitação da contestabilidade é outra razão pela qual o nomi- A terceira dimensão da identidade deriva da segunda: por existirem nor
nalismo parece ser a única opinião sensata a respeito de identidades. mas de identificação, pessoas que, pelos rótulos, se identificam como x agem
Dizer que os limites sãocontestáveisnão signiâca que não haja casos àsvezessegundoo próprio rótulo. Quero dizer com isso que uma razãopela
óbvios. Se,diante de toda evidência, considerar-se que Brad Pitt não é um qual elasagem como agemé que são motivadas pela ideia "tenho razão em
homem, teremos perdido todo o nosso sentido de semântica: pode haver 'fazer algo' porque sou um x'l
respostasclaras a perguntas a respeito da atribuição de conceitos com fron- Este último ponto nos instiga a encarar as ídenfídades como essência/-
teiras indistintas. Essa contestabilidade reconhecida, construída por nos- me?zfesuyerívas, uma vez que a importância delas advém do papel que de-
sa utilização das palavras, é sugestivamente semelhante à contestabilidade sempenham nos pensamentos e atos de seusportadores. Defendo, pois, um
essencialde muitos conceitos normativos, mostrada anos atrás por Walter modo de ver as identidades como nonzínaís, }zormafívas e su@efivas, traços
Bryce Gallie:. De fato, a segunda dimensão de identidade sobre a qual quero

W B. GaUie, "Essentially Contested Concepts'; i956. Mulçumano que fez peregrinação a Moca(N. R.)
zo Identidades Idetttidade como Problema zl

que explicam por que hoje em dia costumamos nos referir a elas como so- ela poderá dar a largada em suavida com muitas possibilidades. Há inúme-
cialmente construídas.
ras opções, muitos momentos de escolha, grandes e pequenos, na constru
A meu ver, nem tudo que é importante na vida social o é por sersubjeti- ção de uma vida. E um liberal filosófico (que não é o mesmo que um liberal
vo desse modo. Escolho as identidades subjetivas por considerar seu papel económico) acredita que, no fim das contas, essas escolhas pertencem à pes
crucial em algo muito mais específico: a vida ética. soa de cuja vida se trata.
Para tratar da vida ética, primeiramente observemos quão ampla é Há aqui duas ideias importantes e distintas. Uma delas é constitutiva.
a gama de tipos de pessoasque se ajustam à rubrica geral que estabeleci. Cada vida possui aquilo que poderíamos, segundo Herder, chamar de uma
Meu relatorespondeà questãoa que me referi no início desteartigo se wcdfdú4. Essessão os padrões pelos quais se decidirá se ela é mais ou menos
bre o que são coisas "tais como" raça, gênero, orientação sexual, naciona- bem-sucedida. A medida da minha vida, por exemplo, depende constituti-
lidade, religião etc. Agora, podemos acrescentar,por exemplo, identidades vamente do quão bom é meu trabalho filosófico, porque me comprometi a
de profissionais liberais (advogado, médico, jornalista, filósofo); profissões ser um âlósofo. Isso será verdade para a maioria de nós, acadêmicos, no que
(artista, compositor, romancista); filiações, formais ou informais (íã de bei- concerne a nosso campo de estudos. Porém, é possível que alguém dê uma
sebol, amante de.jazz, membro do Partido Conservador, católico, maçom); contribuição filosófica importante acidentalmente como fez,por exemplo,
e outros rótulos menos consistentes (dândi, conservador, cosmopolita). Em Kenneth Arrow. O teorema de Arrow é um acréscimo à sua medida de êxito
cada um desses casos, há rótulos, normas e identificações subjetivas. pelo fato de ele ser economista de profissãos; fosse primordialmente um ma-
Seisso é que são identidades, a mim parece tolo querer ser a favor ou temático, pouco teria esseteorema acrescentado à sua vida, por ser,do pon-
contra elas.Apenas temos de lidar com elas.Para tanto, cabe perguntar: qual to de vista matemático, bastante desinteressante; e o que nele é de interesse
é a extensão do papel desempenhado por essasidentidades em nossa vida? matemático já era conhecido de Condorcet'
Para responder a essapergunta, não partirei da vida social propriamente Assim, o primeiro ponto fundamental é que cada um de nós tem um
dita, mas daquilo, como disse,que denomino "vida ética" dos indivíduos. E, papel no estabelecimento de nossa própria medida. É um papel: algumas
por ética, aqui me refiro ao sentido dado por Aristóteles em Ética a Nicõma coisassão um acréscimo ao êxito de qualquer vida em que ocorram, sejam
co: de reflexão sobre o que faz a vida humana ir bem, o que faz uma pessoa quais forem as escolhase os projetos que os agentespossam ter. Mas isso
ter ezzdaímo/zia.Palavra de Aristóteles que, como agora sabemos, melhor se signiâca que, em geral,cada um tem uma medida diferente de outra pessoa.
traduz não como "felicidade': mas como "florescência': Ética, nesse sentido, O segundo ponto é que minha vida é um trabalho meu, desde que eu dê
possui importantes ligações com moralidade, conforme acepçãode Ronald aos outros o devido crédito. Sem dúvida, todos nós poderíamos construir
Dworldn. Ética, diz ele,"abrangeconvicçõesa respeitode que tipo de vida vidas melhores,mas isso não justifica que se imponha uma vida melhor a
é bom ou ruim, e moralidade abrange princípios a respeito de como uma nós. Amigos atenciosos,sábiosbondosos e parentesaflitos têm o direito de
pessoa deve tratar as outras pessoas"s. nos oferecera;budae conselhossobre como proceder. Devem, porém, ser
Cadaum de nós tem uma vida para ser vivida. Encaramosmuitas exi- conselhos,e não coerção.E, assim como a coerção privada seráum erro nes-
gências morais, mas estas nos oferecem variadas opções. Não devemos ser sascircunstâncias, será um erro que governos, interessados na perfeição de
descortesesou cruéis, por exemplo, mas podemos viver de diversas manei- seuscidadãos, empreendam essacoerção.
ras evitando tais vícios. Também enfrentamos pressõesde circunstâncias Não há dúvida de que essesdois pontos estão ligados. Que eu determino
históricas e de dons físicos e mentais: nasci na família errada para ser o rei minha medida de vários modos signiâca que estou muitas vezesmais bem
da Suéciae tenho o corpo errado para a maternidade;sou desajeitadode-
mais para ter êxito como jogador profissional de básquete e sou também
4. Refere-sea Johann Gottfried von Herder(i744-l8o3), âlósofo, teólogo e poeta alemão, precursor
insuâcientemente musical para ser um concertista de piano. Mas ainda que
do romantismo germânico(N. R.)
uma pessoa leve em conta esseslimites morais, históricos, físicos e mentais, 5. Trata-sedo teorema da impossibi]idade de Arrow- que ]he valeu o Prêmio Nobel de Economia de
i97z. Grossomodo, diz que a soma das racionalidades individuais não produz uma racionalidade
3. R. Dworkin, Sovere@fzVirfue, 2000, p. 485, nota i. Observe seque a definição de Dworkin admite coletiva (N. R.).
que o ético pode incluir o moral. Pode ser melhor levar uma vida na qual você trate os outros 6. Made-Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, marquês de Condorcet(i743-i794), matemático e filósofo
como deveriam ser tratados.
francês (N. R.).
]

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situado para saber como dirigir minha própria vida. Mas isso é um fato con religiosas, por exemplo, realizam isso de maneira óbvia: ajudam a constituir
tangente,importante, é verdade, mas ainda assim contingente. Mesmo que comunidades de pessoasque podem apoiar-se umas às outras na busca de
você conheça o bastante sobre minha medida para fazer um juízo quanto ao metas que compartilham como membros daquela religião.
que devo fazer, seu papel é aconselhar-me, não tomar a decisão por mim. Por que dispomos de tão diversa esfera de identidades e relaçõessociais?
Assim, minha individualidade não se produz em um vácuo, antesé molda Uma resposta etiológica tratará de nossa evolução como espécie social e do
da pelas formas sociais disponíveis, e, evidentemente, por nossasinterações fato de sermos evolucionariamente destinados ao jogo social de construir
com os outros. a coalizão na busca de alimento, parceiros e proteção. Por isso é que temos
O terceiro capítulo de On l,íberfy [Sobrea ],íbe7dade]("Sobre a ]ndivi- solidariedades e antagonismos do tipo ílz-groz4pe ouf-group, que os psicó
dualidade como um dos Elementos do Bem-estar") é a formulação inglesa logos sociais têm explorado nos últimos cinquenta anos. A essaresposta
clássicadessanoção de individualidades. Porém, como John Stuart Mill ali psicológico-evolucionária, podemos acrescentar uma resposta económica.
reconheceucom franqueza, seu próprio pensamento a respeito desseste- A diferenciação da economia moderna Criou a necessidadede as pessoas
masfoi profundamente moldado por um ensaio de Wilhelm von Humboldt, associarem aptidões e treinamentos de novas maneiras. Outrora, havia ape
escritonos anosde i79o, no livro que hoje conhecemoscomo .17ze l,fmífs nas alguns poucos tipos de trabalho: governante, sacerdote,bardo, escriba,
of SfafeAcfíon [Os [,ímffes da Anão do Esfado]. No capítulo "Do Homem agricultor, soldado, caçador,ferreiro. Hoje, o United StatesDepartment of
Individual e dos Fins Supremosde SuaExistência'! Humboldt escreveuque Labor relaciona milhares de proâssões em seu manual de ocupaçõesP.Há
é "mediante uma união [...], baseadanas vontades e capacidadesde seus muitas respostas objetivas semelhantes, relativas às origens da diversidade
membros, que cada um se habilita a participar dos ricos recursos coletivos daidentidade.
dos outros"'. Os liberais compreendem que temos necessidadede outras No entanto,há também uma respostaética não do ponto de vista do
pessoas:o respeito à individualidade não é aprovação do individualismo. SítznesweZf
(mundo dos sentidos), mas do Mersfa?zdeswelf
(mundo do enten-
Pode-seobjetar que eu estejacompreendendo aqui muitas coisas como dimento), para empregar a terminologia kantiana. Porque a psicologia que
identidade, até mesmo algumas que normalmente não pensamoscomo a evoluçãoproduziu em nós indica que existe um modo pelo qual o mundo
identidades sociais. Creio, porém, que o fato de fazê-lo é, na verdade, uma se mostra por dentro, do ponto de vista de uma criatura com aquela psico-
vantagem, por serem essasoutras identidades tão importantes em nossa logia. E, dessaperspectiva,há outra respostaigualmente persuasiva:usamos
vida ética quanto as identidades sociais usuais. E considero relevante colo- identidades para construir nossa vida; nós a construímos como homens e
car as identidades sociais sobre as quais normalmente falamos no contexto como mulheres, como ganensese como brasileiros, como cristãos e como
de todas essasoutras porque elascompartilham, do ponto de vista ético, do judeus; nói a construímos como âlósofos e como romancistas, como pais
traço comum que as pessoasutilizam ao buscar a ezzdafmo/zía,desenvolven- e como filhas. As identidades são um recurso essencial nesse processo.A
do uma concepção de o que é, para sua vida, ir bem e tentando, então, viver moralidade - que, como já disse, significa para mim a forma como devemos
de acordo com essa concepção. tratar uns aos outros - é também parte do andaime sobre o qual erguemos
Essasduas contribuições são distintas. Uma identidade pode vir com essaconstrução. Há então diversos projetos que empreendemos volunta-
metas constitutivas, cuja adoção por nós estabelecepadrões para o êxito ou riamente, tais como aprender a ser um cozinheiro realmente bom, ou jogar
fracasso de nossos projetos. Assim acontece, por exemplo, com a identidade brídge, ou tocar violão ou, de maneira mais sublime, propor-se a escrever
"romancista':Ela proporciona modos de definir uma concepçãode o que grandes obras de ficção.
é, para minha vida, ir bem, e assim ajuda a estabelecerminha medida. Mas As identidades são tão variadas e extensasporque, no mundo moderno, as
uma identidade pode também ajudar-me a viver de acordo com uma con- pessoasprecisam de um enorme rol de ferramentas para construir sua vida. A
cepção,proporcionando-me os meios para leva-la a cabo. As identidades gama suficiente de opções para cada um de nós não é a mesma para todos nós.
De fato, as pessoasestão construindo novas identidades o tempo todo: gay tem
7- J. S. Mill, On l,íberfy, i978.
basicamente uns quarenta anos; punk é mais jovem.
8. W von Humboldt, 7he l,ímífs o$SfafeActíofz, 1969,p. g. Esseensaio de Humboldt, embora escrito
entre i791 e 1792, só foi publicado pela primeira vez de forma completa em t85z. Ver "Introdução':
p.vn United StatesDepartment ofLabor, Occupafíofza/OzzfZook
Harzdbook, zoi4
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Sustento que as identidades estão entre as mais importantes ferramentas Recentemente,os filósofos muito têm escrito sobre como asidentidades
socialmentemantidas e transmitidas para construir uma vida. A construção sociais figuram de modo público, prática e epistemicamente, o que, em lin-
de uma vida tem muitas dimensões.Algumas sãoprofundamente pessoais, guagem hegeliana, é rotulado como "política do reconhecimento': Obvia-
moldando os atosexclusivamentenossosou em parceriacom nossosínti- mente, as reaçõesde outras pessoastêm papel preponderante na moldagem
mos, mas epistemicamente cerradas para desconhecidos.Sãoprivadas no do sentimento de alguém sobre quem ele próprio é. Como assinala Charles
sentido de que não são da conta de ninguém mais. A maioria de nós man Taylor, esseprocesso começa na vida privada: "No nível íntimo, podemos
tém pelo menos um relacionamentosério. Como esserelacionamentovai ver quanto uma identidade original necessitae é vulnerável ao reconhe
é da conta de cada um, da conta do parceiro ou parceira, talvez da família cimento oferecido ou negado por outras pessoasimportantes:' Os relaciona-
e dos amigos. Fora isso, ninguém tem direito à informação sobre o anda- mentos, diz ele, "são cruciais porque sãoprovas importantes da identidade
mento dessa relação. Outras notícias são intrinsecamente públicas; elas são gerada internamente":'. Mas esse é apenas o começo. Nossas identidades
conhecidas de todos, e somos conhecidos por elas.Não há razão para ser um não dependem apenasde interações na vida íntima. A lei, a escola,a Igreja, o
democrata, a menos que você deseje ser computado como tal, agir como um trabalho e muitas outras instituições também nos moldam. Mais adiante,re-
democrata, ser visitado por colegasdemocratas, contestar as reivindicações tomarei a questão de por que grande parte de nossa identidade é essencial às
de republicanos e opor-se a seusvotos. Portanto, as identidades diferem à interações públicas com pessoaspara além de nossos íntimos, e então insis-
medida que secomprometem mais no âmbito privado ou público. tirei em que há aspectos de nossa identidade que também são mais privados.
Há pelo menos duas dimensões importantes da identidade, que exibem Antes, porém, quero assinalar que um modo essencialpelo qual nossas
um espectro público-privado. Uma delas, como já vimos, é epistêmica. identidades moldam nossa experiência subjetiva é por meio da psicologia
Nessecaso,a privacidade é somente uma questão da regulação do conhe- da estima, por meio dos sentimentos gerados em nós pelo respeito e despre-
cimento. Minha identidade homossexualpode ser essencialpara minha zo dos outros. Tanto o respeito quanto o desprezo podem ocorrer mediados
vida. Mas, se estou no armário, estou protegendo essaidentidade tanto ou não pela identidade. Você pode desprezar-me porque fui desonesto. Isso
quanto sua importância da maioria das outras pessoas;é uma questão não diz respeito à identidade: seu respeito diminuído por mim não é um
de grau, porque o círculo de conhecimento pode ser maior ou menor. Po- respeito diminuído mediado pela identidade de um desonesto.Você está
rém, mesmo que eu esteja fora do armário, o modo como expressominha reagindo ao fato de ter havido desonestidade, e não a uma suposta identida-
sexualidadenão é da conta nem do Estado nem da sociedade.Possoser de desonesta. De outro lado, se você me olha com desprezo por eu ser um ci-
solicitado a, sensatamente,manter dissimulado meu comportamento se- gano,julgando-me pelo fato de algum outro cigano ter sido desonesto com
xual, porque os atos sexuaisde outros podem nos atingir de tal modo que você, então'a identidade tem papel indiscutível para explicar sua reação a
temos o direito de não nos deixar expor sem consentimento. E, decerto, o mim. Minha atitude em relação a você, que, até onde eu sei, não foi desones
que faço em privacidade epistêmica pode estar sujeito à regulamentação to com ninguém, é mediada pelo fato de você compartilhar da identidade
por outras razões.Porém,ser um assuntoprivado significa que tem a ver com alguém desonesto. Agora, é certo que, se sou cigano e vejo outro cigano
com coisas da minha vida, a cujo respeito - pelo menos enquanto forem sendo desonesto,posso sentir-me envergonhado. Assim, algumas de nossas
mantidas fora da visão pública - cabea mim decidir. Podemosdizer que atitudes negativas relativamente a nós mesmos também são mediadas pela
são assuntos praticamente privados. identidade.
A maioria daspessoasconsidera que as i.dentidadesreligiosasdevem ser O mesmo se dá com as atitudes positivas, como o respeito. Não só posso
epistemicamente públicas, mas praticamente privadas. Os outros podem ter sentir-me enaltecido privadamente pelos feitos de outros de minha iden
conhecimento a respeito, mas não têm o direito de determinar como deve- tidade orgulhar-me de seus feitos - como posso também experimentar
mos agir sobre elas. Os sadomasoquistas, creio, tendem a manter suaspráti- estima social por isso. (Essaestima nem sempre é positiva, como quando
cassexuais epistemicamente privadas e julgam que elas devam ser também alguém diz: "Realmenteadmiro o modo como vocês,judeus, mantêm-se
praticamente privadas. Uma vez que a regulamentação exige conhecimento, unidos':)
desde que uma dimensão da identidade seja, de forma legítima, praticamen-
te pública, isso exige que se aceite que ela não seja epistemicamente privada. 10 C. Taylor, À4uifíczzlfurarísm, 1994, p. 36; A. Honneth, 7;zeSfrzzggiejor RecognÍfíon, 1995
z6 Identidades Identidade como Problema z7

Infelizmente, vivemos em sociedades que têm tratado muitas pessoas trate a cor de minha peleou minha sexualidadecomo essenciaispara minha
com desprezopor serem, digamos, mulheres, homossexuais, negros, judeus. vida social. Muito embora minha "raça" ou minha sexualidade possam ser
Como nossas identidades são moldadas "dialogicamente': segundo Taylor, elementos da minha individualidade, alguém que insista em que eu organize
as pessoas com essas características as têm considerado essenciais o mais minha vida em torno desseselementos não é um defensor da individualida-
das vezes negativamente essenciais às suas identidades. A política do re- de. Insisto na privacidade prática de minha identidade: na necessidadede
conhecimento começa quando se percebe que isso é errado. Uma forma deixar para mim sua expressão.
de remediar, buscadapelos detentores dessasidentidades, implica ver es O envolvimento da identidade na política formal significa que muitas
sasidentidades coletivas não como fontes de limitação e insulto, mas como identidades são tanto epistêmicaquanto praticamente públicas. As pessoas
partes valiosas de quem eles são. E, uma vez que uma ética moderna da querem que suasidentidades sejam conhecidas - em parte graças às demandas
autenticidade (que provém aproximadamente do romantismo) requer que de autenticidade -, mas também esperam que o exercício de suas identidades
exprimamos quem somos essencialmente,os detentoresdessasidentidades tenha lugar no contexto de estranhos, que reagem a elas (as identidades pos
avançam ao exigir que a sociedade os reconheça como mulheres, homosse tas na política formal) em virtude de suaspróprias identidades.
xuais, negros, católicos e façam o trabalho cultural necessáriopara resistir Essetipo de política é realmente uma característicaprofunda da vida
aos estereótipos, desafiar os insultos e eliminar as restrições. democrática moderna. Identificamo-nos com pessoase partidos por varia-
Mas vale insistir que o dano causado por práticas anteriores de exclusão das razões psicológicas, entre as quais identificações do tipo pré-político, e,
não foi simplesmente a negação da estima e a corrosão do autorrespeito. por isso, estamosmais inclinados a apoiar todas as políticas de tal pessoa
Todas as velhas formas de desprezo levam não só à negação do respeito, mas ou partido. Em parte,isso ocorreporque pessoassensatastêm coisasmais
mantêm as pessoas fora de empregos, educação, dinheiro e poder. importantes a fazer do que descobrir, por si mesmas, qual deve ser o equi-
Todo tipo de coisa tem sido sugerido para reverter essahistória de des líbrio adequado entre, digamos, imposto de consumo e imposto de renda,
prezo: leis contra discursos de ódio ou assédioverbal no local de trabalho, mas também porque pessoassuâcientemente semelhantes a você podem
ensino público em prol da tolerância, louvor público dosheróis dos opri- realmente escolher políticas, quando de fato pensam sobre elas, como as
midos. São formas de política pública de reconhecimento.Mas é impor- que você escolheria se tivessetempo para isso. Aqui, pois, como em muitos
tante reconhecer que, enquanto membros de grupos que experimentaram lugares na vida, é sensatoque se pratique uma divisão cognitiva do traba-
exclusão ou desprezo históricos realmente precisam de novas práticas se lho. Isso costumava funcionar mediante a criação de identidades políticas
dais para ílorescerem,o que eles buscam é também uma redistribuição esquerda, direita, liberal ou Liberal, democrata, republicano, democrata
de educação,dinheiro e poder. Quando os negros e as mulheres dos Es- cristão, socialista e marxista. Porém, em muitas das democracias ricas, as
tados Unidos lutaram pelo voto, frequentementeo fizeram como negros filiações a partidos são menos vigorosas do que costumavam ser, e outras
e como mulheres.Não estavam,porém, exigindo reconhecimentode sua identidades vêm ganhando mais peso político. Penso que isso se dá porque
identidade, exigiam, sim, o direito ao voto. Do mesmo modo, quando os muitas das filiações partidárias mais antigas tinham por base a classesocial,
movimentos de gays e lésbicas dos Estados Unidos lutam por reconheci- e a deânição de classerelacionada com o trabalho tem perdido importância
mento, eleso fazem exigindo direitos - como de servir abertamenteao para a identificação das pessoas. De modo bem profundo, um novo tipo de
Exército ou de casar-se que seriam bem-vindos, ainda que viessem sem política de identidade, baseada na preponderância cada vez menor da classe
reconhecimento. Nem todas as reivindicações políticas feitas em nome da social - sua importância decrescentecomo identificação subjetiva -, tem
identidade de certo grupo são predominantementereivindicaçõesde re- aumentado no Ocidente a partir da década de ig6o.
conhecimento. Na maior parte do restante do mundo, asidentidades políticas mais impor-
Na vida social, também, é igualmente importante não avançar demais na tantes jamais se basearam na classe social. Eram étnicas, etnorregionais, reli-
luta por uma política de reconhecimento. Seesteacarretaproclamar a iden- giosas,baseadasem castasou em uma identidade nacional.A nacionalidade
tidade de alguém na vida social, então o desenvolvimento de normas enér- também foi extremamenteimportante no Ocidente nos últimos dois séculos,
gicasde identificação pode tornar-se não libertador, masopressivo. Há um assim como a religião, especialmente em paísescomo Grã-Bretanha, Alemanha,
tipo de política de identidade que não só permite, mas também elege que eu Suíçae EstadosUnidos, que possuemsignificativo número tanto de católicos
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como de protestantes,e grande ramiõcação destesúltimos. Raça também tem do em termos de padrões de comportamento a que todos, em princípio, po-
sido uma preocupação política fundamental das sociedades europeias e de suas dem seconformar é entendido por muitos como não essencial.Denomino
descendentes- na Australásia, na África do Sul e no Novo Mundo. essasnormas de normas comportamentais gerais. Porém, de todo aquele
Tais identidades engajam-se na política por duas razões. Uma delas é que que se identifica como membro de um grupo etnorracial que leva sua par
suasnormas constitutivas denotam que pessoascom determinada identida ticipação a sério como razõesfundamentais para sentir e reagir - espera-se
de compartilham objetivos que o Estado pode promover ou retardar. Não que seconforme às normas de solidariedade. Ao contrário do que se dá com
surpreende que mulheres atuem juntas na vida política, uma vez que suas as normas comportamentais gerais, sem solidariedade não há etnicidade.
opções são moldadas pelo sexismo das instituições públicas; ou que pessoas Com o que se parecem as normas de solidariedade? Em primeiro lugar,
negras atuem juntas em sociedadesmarcadas pelo racismo antinegros; ou elas têm determinada forma em que figura algum rótulo do grupo. Assim,
que homossexuais assim o façam em sociedades permeadas pela homofobia. normasde solidariedade para a identidade x são normas que dizem o que
A conexão entre identidade e política constitui-se, nesse caso, de normas de você deveria fazer com, fazer para e fazer por outros xs. Para que sejam de
identificação; é uma conexão interna, pode-se dizer. solidariedade,aquilo que você faz tem como objetivo ou promover os in-
Mas as pessoastambém atuam com base em identidades por razões mais teressesdos xs com quem, para quem e por quem você atua ou proteger o
puramente estratégicas.A política democrática requer a formação de coali- grupo em geral, muitas vezesprotegendo seu bom nome. Assim, as normas
zões em larga escala por meio de sociedades de pessoasque nem sequer se de solidariedade típicas para grupos etnorraciais exigem preferência pelos
conhecem. Quando menos, tais coalizões são necessárias na busca de uma companheiros xs, que exigem ação com outros xs para garantir os interesses
gama de recursos,tanto simbólicos quanto materiais, que os Estadosmo dos xs, além de que se evitem comportamentos que desmereçamos xs aos
demos distribuem. Essafunção estratégicaé de particular importância em olhosdosoutros.
contextos de escassez,nos quais trabalhar com alguns e contra outros é o Devo dizer que uma identidade está mobilizada para a solidariedade em
único meio de obter recursos. Não foi de surpreender que identidades étni- uma sociedadequando suas normas de identidade incluem normas de so-
cas e religiosas ganhassem proeminência nos Bálcãs assim que a economia lidariedade amplamente aprovadas dessetipo. As identidades etnorraciais
iugoslava entrou em colapso. Tais conexões entre identidade e política são, são sempre mobilizadas para a solidariedade, não importa que outra coisa
em sentido obviamente semelhante, externas: a identidade estaria ali à espe- elas sejam ou façam. À medida que uma identidade etnorracial vai deixando
ra de ser mobilizada na perseguição de metas, as quais não têm muito a ver de ser claramente governada por normas de solidariedade, ela deixa de ser
com a particularidade da identidade ou com as suasnormas. uma identidade etnorracial importante. E isso faz que etnicidade e raça se
As identidades etnorraciais nem sempre são definidas por normas de jam recursos cujos portadores podem utiliza-los para a construção da coali-
comportamento características. São essencialmente contrastantes e esse zão estratégica da vida política.
é um dos importantes achados da antropologia moderna -, exigem uma Na maioria das sociedades,grande parte das identidades religiosas tam-
fronteira com outras etnicidades para que se estabeleçasua importância. bém se mobiliza para a solidariedade.Isso porque a associaçãoreligiosa
Acima de tudo, ser iorubá, digamos, é não ser ibo ou hauçá;ser hútu é não quase semprerequer mais do que crença. Claro que se pode ter crençasre-
ser tútsi; ser basco é não ser francês nem espanhol. Claro que há formas dis ligiosas sem ter uma identidade religiosa. Essa é a situação de muitos ateus
tintas de comportamento associadasà etnicidade: culinária, modos de falar metafísicos do Ocidente moderno. Mas uma identidade religiosa, ainda que
e vestir e até mesmo filiações religiosas. Porém, comumente se entende que seuscritérios de filiação sejam puramente de credo, terá normas de compor-
o abandono de qualquer uma delasnão acarreta o abandono da etnicidade tamento associadas a ela, e estas, em geral, incluirão normas de solidarieda-
de alguém. Nos Estados Unidos, o judaísmo é uma identidade etnorracial de. Não obstante,o papel das identidades religiosas na vida social e política
porque podem ser abandonadas a lei e a tradição judaicas sem que se perca nem sempre é substancial: as normas da solidariedade religiosa podem ser
aquelaidentidade; e hispânico é uma identidade etnorracial porque ela se bastante frágeis. Assim, a meu ver, não é um traço constitutivo das identida
mantém mesmo que não sefde espanhol. des religiosas sua mobilização para a solidariedade.
Assim, embora haja normas específicasde identiâcação, aquilo que os Algumas identidades vêm com um programa: o romancista, que mencio
membros de um grupo etnorracial devem fazer - e que pode ser especifica- nei anteriormente,vem com algumascoisasa seremfeitas. Essaé uma profis-
3o Identidades Identidade como Problema 3t

são exemplar. As identidades profissionais que são essencialmente profissões dam tanto asatividades dos portadores dos rótulos como asdos que reagem
institucionalizadas vêm com estruturas de carreira que indicam um padrão a estes.A aplicaçãodos rótulos e o conteúdo das normas são comumente
a ser atingido no decorrer de toda uma vida. Monitor, assistente,professor, contestados,embora sejacomum também haver exemplares incontestados
primeiros artigos,talvez um ou dois livros, professorassociado,estabilidade e normas quase universalmente aceitas.
etc. Muitas vezes,há ritos fundamentais de passagem- conseguir estabilidade, Temos grande quantidade de identidades porque elas são úteis para
tornar-se sócio, fazer exameda ordem ou do conselhoproâssional, obter a a construção da vida, mesmo que o sejam de maneiras diferentes. Algu-
primeira estrela em seu uniforme que deixam marcas no caminho. Porém, masajudam a determinar a medida de nossasvidas: o que representapara
embora essasidentidades programáticas sejam atualmente - como sugerem nossasvidas ir bem. Uma patriota norte-americana tem uma vida que vai
os exemplos dados um elemento importante da vida ética das pessoas, não melhor se o país for melhor, e pior em caso oposto. Essa é sua escolha.
é frequente que se mobilizem para a solidariedade.Resultadaí que muitas Não é fiorque ela é não norte-americana - o que pode ter sido determi-
vezestambém não é importante que os portadoresdessasidentidades sejam nado pelo nascimento -, mas porque escolheu que fosse assim, uma vez
apreciados por outros, mediante aros de reconhecimento, fora dos contextos que ela se identifica como norte-americana. Outras identidades - como
em que orientam a vida prática. Claro que os soldadosuniformizados e em as de profissões e suas primas institucionalizadas, as procissões liberais -
serviço reconhecem e apreciam suasidentidades e seuspostos militares - essa oferecem projetos e metas. Identidades-padrão, as que recebemos de nos-
é uma das razões para usarem uniformes -, mas, embora tenhamos meios de sas famílias, imputadas ou não, estritamente falando, são essenciaispara
dizer quem está no Exército(pelo corte do cabelo ou postura), não se espera a moldagem de nossas escolhas e nossos planos. Nossas identidades por
que os civis tratemos os militares de modo diferente de qualquer outra pessoa. filiação, estruturadas socialmente e proporcionadas pelas contribuições
Analogamente, embora seja agradável ser reconhecido por nossa identidade conceituais, institucionais e materiais de outros, agregam-se às nossas
profissional - como romancista, âlósoío ou poeta, digamos -, o prazer pro- identidades-padrão à medida que crescemos.
vém da ligação existenteentre essereconhecimento e o êxito ou a reputação Nossaconstruçãode vida é tanto privada quanto pública. Algumas iden
no desempenho profissional. O reconhecimento é importante, na maior parte tidades desempenham seu papel principalmente em nossas vidas íntimas,
das vezes,para identidades que se mobilizam para a solidariedade. É fácil per em esferasde privacidade epistêmica e prática, as quais temos o direito de
ceber por quê. Se uma identidade semobMza para a solidariedade, será então impedir que os outros conheçam ou que nelasinterõram. Assim se dá com
necessárioque seu companheiro x seja capaz de dirigir-se a você como x. Ao passatempos:ninguém tem o direito de saberse sou romancista posso es-
mesmo tempo, os não xs terão opinião a respeito dos xs e pensarão, sentirão e crever anonimamente, se assim o desejar.Ninguém tem o direito de regula-
reagirão a eles de diferentes maneiras. mentar como escrevo meus romances. Porém, ser romancista é parte impor-
Essaé uma razão por que identidades homólogas em sociedades diferen tante de quem sou; e há coisas que os romancistas deveriam fazer escrever
tes podem deslocar-se ao longo do eixo público-privado. "Intelectual': nos romances, mas também mais coisas e coisasque as pessoasesperamdos
Estados Unidos, pode ser qualificado pelo adjetivo "público': exatamente romancistas. E há as identidades públicas. Aquelas para as quais a maioria
porque, nessepaís, ela não é uma identidade mobilizada para a solidarie- de nós exige reconhecimento: religião, raça e gênero, por exemplo. Nestas,
dade. As pessoas,de modo geral, não operam nem reagemumas às outras atuamos em púbico e esperamosque os outros atuem nas suas e também
como intelectuais; nem os não intelectuais, de modo geral reconhecem nor regam asnossas.
mas a respeito de como os intelectuais devemos ser tratados. Na França, ao Em qual ponto do espectropúblico-privado uma identidade se encon-
contrário, intelectual é uma identidade pública mobilizada para a sonda tra é algo que, em geral, não está embutido nas identidades. As identida-
riedade e reconhecida pelos outros como tal. Ser intelectual é desejar ser des religiosaspodem viver em sua maior parte na vida privada, mas podem
reconhecido como tal. Nos Estados Unidos, os acadêmicos frequentemente mobilizar para a solidariedade em certas ocasiões.Uma identidade católica
desejampermanecer no armário, o que, como sugerea ética do oufífzg,sem que viveu durante muito tempo na vida privada pode vir a público por estar
dúvida nenhuma, é um direito deles. associada a normas a respeito do aborto, digamos que o Estado pode se
As identidades sociais,como afirmei no início, sãonominais, normativas lapar ou manter. Nessecaso, a vida pública da identidade está ligada interna-
e subjetivas. Funcionam mediante rótulos, associadosa normas que mol- mente com suasnormas. Pode,porém, vir a público às vezespor ter normas
n" 3z Identidades

de solidariedade que fazem dela a base natural para a perseguição de metas


que todos têm: compartilhamento de dinheiro, poder e estima socialmente
disponível - a conexãocom suasnormas aqui seráexterna.
Quão importante é o reconhecimentopara uma identidade - quanto
desejamos ser publicamente reconhecidos e estimados sob seu rótulo de /
pende de quanto consideramos que ela deve ser epistêmica e praticamente IDENTIDADES PROBLEMÁTICAS
pública, e, frequentemente,isso dependede ter havido histórico de não re-
conhecimento, um passado social em que o desprezo assomava.
No entanto, de que maneira uma identidade figurará em todos essesmo GabrieZCohfz'F
dos não está gravado em pedra, evidentemente. As identidades oscilam para
dentro e para fora da visão pública, alteram aspróprias normas, empenham-
se pela solidariedade por algum tempo, depois desistem. Em suma, elas são
históricas e orgânicas. Talvez, por isso, sejam tão variadas. A história de vida
produz diversidade:observemos a gama de organismos e de culturas. Hoje
em dia, estamos preocupados com a extinção de espécies e de culturas. Por
isso, talvez valha a pena lembrar que novas espécies e novas culturas - e no-
vas identidades também estão sendo geradas a cada momento. A iniciativa de organizar conferência sobre "identidades" e a própria formu
lação do tema das palestras iniciais, ao enfatizar sua dimensão de pro.bZema,
indicam algo digno de nota. A saber,que se propõe aqui algo mais do que
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
um con)unto de defesasdo direito à identidade, no registro social ou pes-
soal, ou de alguma das suas formas efetivas. Está em jogo algo mais fundo:
DwoRKIN, Ronald. SoverezgrzVírtue; 7he 77zeoryand Pracfice adequa/ít7. Cambridge, Har
um esforço de reflexão sobre o alcance e o significado dessadimensão da
vard University Press,zooo.
vida social que ganhou notoriedade e espaço em décadas recentes. Como sa-
GALÃ n, Wâlter Bryce. "Essentiany Contested Concepts': ProceedingsoÜthe Árísfofe/ían Sa
bemos, isso se deu basicamente a partir da emergência dos movimentos em
cjef7,vol. 56,pp. t67-i98, i956.
defesa de direitos; o que, de resto, explica a conotação virtuosa que tende-
HloNNETm, Anel. 77zeSírzzggZelorRecogrzítíon; 77zeÀÍoraZ Grammar os Sacia/ Cola/7ícfs.Cam
mos a emprestar ao termo, deixando em segundo plano o fato de que, afinal,
bridge, MiT Press, 1995
o movimento da juventude nazista,a HítZedzzgend,
também tinha caráter
HuMBOLDT,Wilhelm von. 77zel,imifs ofSfafe Àcfíotz.Org. JohnWyon Burrow. Cambridge,
identitário. O importante, no nosso caso, é que isso revela um amadureci-
Cambridge University Press, i96g(ed. bus.: Os Lfmifes da Anão do l?soado.Rio de Janei-
mento do tema, cada vez mais aberto à reflexão e à crítica.
ro,Topbooks,i994).
'Por que justo a mim acontece ser como eu?': pergunta Felipe, numa das
Mn.L, John Stuart. O?zl,iberf7. Ed. Elizabeth Rapaport. Indianapolis, Hackett, i978(ed.
tiras de Quino sobreMafalda. O risco de algum "essencialismo"subjacente
bus.: Sobrea Liberdade. 2. ed. Petrópolis, Vozes, i99i(Clássicos do Pensamento Políti-
à formulação é amenizado pela interrogação sobre a causa do infortúnio,
C0,22)
e parte da graça dessa pequena obra-prima está em que, ao problematizar
TAYI.OR,Charles. i\4ulficaZfzzríz/ísm;
Examíning fhe Po/iffcsoÍ Recog?zífjofz.
Org. Amy Gut-
assim sua identidade, Felipe revela já a ter embora fraturada, ferida, como
mann. Princeton, Princeton University Press,i994-
tentarei retomar mais adiante. Antes de chegar a isso, convém formular, em
UNiTED STATUSDEPARTMENT op LABOR. Occzipafzona/ OufZook lia?zdbook. 'bVashington,
primeira aproximação, o que entenderei aqui por identidade social. Des-
United StatesBureauof Labor Statistics,8 jan. zol4- Disponívelem: <http://www.bls.
gov/ooh>. Acesso em: 29 ago. 2014.
Gabriel Cohn é professor emérito da Faculdade de Filsofia, Letras e Ciências Humanas da Uni
versidade de São Paulo(usp) e professor visitante sênior da Capes na Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp).

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