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INTRODUÇÃO
*Do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP — Av. Dr. Arnaldo,
715 — 01255 — São Paulo, SP — Brasil.
adequados para que desenvolva suas estru- víduo com o meio em que vive. Há, na
turas cognitivas por meio de processo realidade, um número muito grande de
espontâneo e de interação com o meio em neurônios livres aptos a gravarem infor-
que vive. Este desenvolvimento psicossocial mações não-genéticas e estocá-las em sua
e cognitivo da infância desempenha impor- organização estrutural. O cérebro processa,
tante papel no futuro comportamental do através das sinapses neuronais, cerca de
indivíduo na comunidade biótica em que vai cinco mil conjuntos de sinais por segundo.
viver. O acervo de conhecimentos adqui- Essas sinapses, que transferem tensões ou
ridos é progressivo, cumulativo e sua aqui- cargas elétricas, comportam-se semelhante-
sição obedece a norma seqüencial e a um mente aos circuitos electrônicos podendo ser
ritmo que é determinado pela densidade e abertas ou fechadas conforme os fluxos de
qualidade dos estímulos recebidos. informações. Há, portanto, à disposição do
indivíduo, um grande acervo anátomo-fun-
Toda criança possui uma base informa- cional qualificado para receber informações
cional que a torna apta a receber as infor- do meio ambiente do qual o indivíduo de-
mações biológicas: genéticas ou neuronais. penderá para formar o seu acervo cogni-
As primeiras constituem "o plano básico tivo.
de construção do indivíduo" e que, de
certo modo, predispõem ou pré-determinam Ademais dessas informações adquiridas
o seu comportamento frente aos estímulos pelos neurônios, poderíamos lembrar que
que receberá. ainda existem outras extra-somáticas que se
processam através de símbolos criados pelo
A par das informações genéticas, o indi- próprio homem que, desta forma, poderá
víduo também traz ou recebe informações guardar informações fora dos próprios
ao nível neuronal (informações neuronais neurônios. As informações extra-somáticas
programadas e programáveis). O cérebro aumentam significantemente a capacidade
contém cerca de dez bilhões de neurônios informacional do homem.
e, como cada neurônio tem de mil a dez
mil sinapses, conta o ser humano, na rea- É de se ver que a massa de informações
lidade, com dez a cem trilhões de sinapses neuronais programáveis, embora tenha sua
programáveis. Percebe-se, por aí, a alta base na herança biológica, vai depender,
habilidade que tem o homem em armazenar evidentemente, dos estímulos que a criança
informações em nível neuronal, uma vez que recebe do meio em que vive.
dispõe de maior número de neurônios pro-
gramáveis que os demais animais. O relacionamento com o meio propicia
como um todo, acúmulo concatenado de
As "informações neuronais programadas" conhecimentos e habilidades novos, adqui-
já são parte do indivíduo por ocasião do ridos através da linguagem, da atividade
seu nascimento. É o que explica, por motora, do inter-relacionamento social e da
exemplo, o instinto e os reflexos neuro- aprendizagem.
-musculares e respiratórios, do ato de mamar
e tantos outros. Estas informações neuro- O processo do conhecimento é, na rea-
nais, já programadas, possibilitam, na rea- lidade, o resultado do relacionamento do
lidade, a fase inicial de acomodação do sujeito com o evento, com o fato, com o
ser vivo na sua interface com o meio am- objeto que o meio se lhe apresenta, resul-
biente. tando daí a aquisição de uma representação
intelectual daquele evento ou objeto, que
Os neurônios possuem também capacidade em seguida passa a pertencer ao seu acervo
aberta para incorporarem novas informações próprio.
recebidas após o nascimento (informações
neuronais programáveis). Esta incorporação As sucessivas interações que ocorrem
irá depender do grau de interação do indi- somam-se umas às outras para constituirem
o ''processo cognitivo". A "aquisição" desses idêntica para todos os indivíduos. Esta
conhecimentos é conseguida através do que seqüência tem caráter somatório.
se chama de processo de adaptação que
nada mais é que o resultado do equilíbrio Por outro lado, existe um ritmo nesta
harmônico da criança com o meio em que ordenação, ritmo este variável de acordo
vive. A adaptação é conseguida através da com a densidade de estimulações que o
"assimilação" e da "acomodação". A pri- ambiente oferece. Quanto mais freqüentes,
meira se processa quando o organismo modi- quanto mais adequadas forem estas estimu-
fica o objeto ou o fato externo para melhor lações, mais acelerado será o ritmo do de-
incorporá-lo às suas estruturas cognitivas senvolvimento. Pré-escolares que cresceram
em formação, e a segunda, quando o próprio em ambientes carentes de estímulos não
organismo se modifica no sentido de aco- apresentam facilidade para a aprendizagem
modar-se à nova situação. Esses processos uma vez que não possuem estruturas opera-
vão constituir a base do desenvolvimento da cionais aptas a equacionarem novos eventos
criança sem contudo atritarem as estruturas e seqüências.
pré-formadas. Quanto maior o contingente Daí se compreender a importância do
assimilado e acomodado maior será a capa- atendimento ao pré-escolar nessa fase de
cidade de assimilação e de acomodação a desenvolvimento, no sentido de complementar
novos contingentes. As operações cognitivas os estímulos que a criança recebe do meio
dão os alicerces para o raciocínio da familiar e comunitário em que vive. As
criança e, como diz Piaget, nada mais são crianças que advêm de meios menos favore-
que "uma reconstrução endógena de dados cidos apresentam, por exemplo, um voca-
exógenos fornecidos pela experiência" 6 . bulário pobre além de não possuírem agi-
lidade lingüística suficiente para manifes-
O processo de aprendizagem posterior
tarem seu pensamento ou sua vontade. Os
utiliza o sistema de estruturas pré-formadas vocábulos simples são complementados por
com o desenvolvimento; de onde se conclui gestos na ausência de maior facilidade
que ele depende deste mesmo desenvolvi- lingüística. Essas crianças apresentam um
mento. A aprendizagem por si mesma não código de linguagem bastante diferente das
dá origem a novas estruturas embora possa de classe média ou alta; os próprios vocá-
modificá-las em sua interação 2 . A inteli- bulos muitas vezes têm significados dife-
gência, que também pressupõe uma estru- rentes e muitos deles são inteiramente des-
tura preestabelecida, não dispensa um pro- conhecidos pois não estão presentes nos
cesso de troca com o meio. Este a exercita diálogos que ocorrem em seus próprios
lares. Quanto mais estimulante for o
e potencializa progressivamente através de
ambiente, mais rapidamente se desenvolve a
novas experiências da criança com o mundo
capacidade intelectual da criança.
externo em que vive. É a capacidade de
se equacionar, frente a novas experiências, O educador, o orientador, portanto, têm
os conhecimentos incorporados em expe- que providenciar aos pré-escolares, mais
riências anteriores. que o ensino, os procedimentos adequados
que garantam o desenvolvimento integral da
O desenvolvimento da criança nesse criança. Esses procedimentos devem ativar
aspecto foi profundamente estudado por as estruturas pré-operacionais a fim de que
Piaget e suas lições clássicas permanecem o exercício permanente da razão permita
até hoje como diretrizes que têm servido tornar suas estruturas verdadeiramente ope-
de base às pesquisas posteriores nesta área. racionais.
Sabe-se que o desenvolvimento da criança Neste processo, em que as experiências
se processa por etapas cuja instalação se somam, fácil é pois reconhecer a impor-
obedece a uma certa ordem seqüencial tância da fase pré-escolar no processo evolu-
tivo da criança. Aquelas que coabitam lares pode-se estimar que não mais do que 5%
pobres, plenos de privações, carentes de dos pré-escolares de 2 a 6 anos de idade
estímulos, de diálogos, não têm as mesmas são atendidos por instituições oficiais ou
chances para se desenvolverem que aquelas particulares do Brasil.
das classes mais privilegiadas; sua cognição
Vários serviços, tais como creches,
é modesta, seu vocabulário é limitado, sua
parques infantis, escola de educação pré-
sociabilidade incipiente e sua atividade não
-escolar e outras, atendem no país ao pré-
encontra eco. É a privação cultural.
-escolar. Entretanto, o que se pode concluir
Essas crianças, ao atingirem a idade é que as instituições, embora persigam os
escolar, entram nessa estrutura de ensino seus objetivos iniciais, não conseguem
sem as condições mínimas para acompanha- atender a fração significativa da população
rem o currículo escolar do 1° grau, currículo pré-escolar, pois que 95% dos pré-escolares
este organizado para as classes média e nessa faixa etária não recebem nenhum
alta do país. atendimento complementar que assista ao
seu desenvolvimento. Deve-se notar ainda
Considerando que das crianças matricula- que a maioria (51%) das classes pré-esco-
das na primeira série do 1.° grau, mais de lares no Brasil, é de iniciativa particular e,
60% provém de famílias de baixo nível portanto, não se destinam ao atendimento
sócio-econômico, e que essas crianças são das classes de nível sócio-econômico mais
portadoras de carências alimentares e cultu- baixo, isto é, as que mais necessitam de
rais que condicionam atraso no seu desenvol- assistência 1.
vimento físico e mental de, em média, dois
anos, impõe-se a busca de soluções formais, De alguns anos para cá as autoridades
institucionalizadas, e também não formais, nacionais relacionadas com a educação vêm
conjunturais, para se ampliar o atendimento desenvolvendo esforço no sentido de au-
ao pré-escolar como meio, inclusive, de mentar a oportunidade do pré-escolar se
aumentar a rentabilidade do ensino do 1.° engajar no sistema de atendimento. O nú-
grau. mero de matrículas de pré-escolar vem
aumentando gradativamente. O ritmo anual
Os pré-escolares do Brasil constituem o de aumento de matrículas em relação a
grupo populacional mais carente de atendi-
população pré-escolar está em torno de
mento, embora represente uma parcela
0,25% e, nestas condições, para que se
importante na estrutura etária do país. atinja, por exemplo, 70% dos pré-escolares
De acordo com as estimativas do Minis- existentes no Brasil, levar-se-ia cerca de
tério de Educação e Cultura (MEC) 5 , o Bra- 260 anos.
sil contava em 1978 com 21.000.000 crianças Tendo em vista que o atendimento global
pré-escolares. E destas, cerca de 17.000.000 e precoce ao pré-escolar repercute, favora-
na faixa etária de 2 a 7 anos de idade. velmente, sobre o rendimento pedagógico 7
Deste contigente, apenas 600.000 pré-esco- e sobre os custos do sistema educacional,
lares eram atendidos por instituições especia- minimizando a elevada taxa de repetência
lizadas. Em que pese a imprecisão das esta- nas primeiras séries do 1.° grau e a acen-
tísticas oferecidas pelos órgãos oficiais, tuada evasão e o absenteísmo escolar —
considerando os recursos disponíveis para da mãe do pré-escolar e utiliza, ao máximo,
a ampliação deste atendimento — impunha- os recursos preexistentes na comunidade.
-se desde logo a busca de soluções comple- Todo programa CEAPE conta com um sis-
mentares compatíveis com a realidade na- tema testado de avaliação de eficiência e
cional e que, embora não satisfazendo todas de eficácia.
as exigências pedagógicas instituídas no
Sistemas menos sofisticados, como o
país, propiciariam maior cobertura ofere-
CEAPE, por serem mais econômicos, pode-
cendo à criança, na época certa, a oportu-
rão garantir maior cobertura assistencial aos
nidade de acelerar o seu desenvolvimento
pré-escolares. Muitos programas que seguem
integral.
a filosofia e a metodologia do CEAPE estão
E 1972, o Departamento de Nutrição sendo implantados em vários pontos do
da Faculdade de Saúde Pública da USP território nacional. São programas que ofe-
planejou o programa CEAPE (Centro de recem, além da suplementação alimentar, um
Educação e Alimentação do Pré-Escolar) 3,4 ambiente estimulante que propicia à criança
de baixo custo, capaz de ampliar o atendi- oportunidade para organizar seu próprio
mento aos pré-escolares, urna vez que é sistema de pensamento e manifestar suas
compatível com a infra-estrutura e recursos idéias através de um vocabulário progres-
existentes no país. Este programa tem como sivamente desenvolvido.
objetivo dar atendimento integral aos pré-
Considerando-se que o programa CEAPE,
-escolares, principalmente àqueles das po- implantado e avaliado, mostrou-se eficiente
pulações de baixa renda, fornecendo-lhes e eficaz, conclui-se pela oportunidade e
suplementação alimentar ao mesmo tempo pertinência da implantação de programas
que um programa específico de recreação com esta filosofia que, sem prejudicar o
orientada com o propósito de estimular o desenvolvimento dos programas convencio-
nais, proporcionarão em caráter conjuntural
desenvolvimento físico, psicomotor, intelec- e supletivo, o atendimento integral, abran-
tual, social e emocional dessas crianças. gente e de baixo custo aos pré-escolares
Este programa inclui a participação ativa do país.
GANDRA, Y. R. [The preschool child of 2 to 6 years of age and the assistance given
him]. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 15(suppl.):3-8, 1981.