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ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
Samuel da Silva
Samuel da Silva
Agradecimentos
Primeiramente, agradeço a Deus pelo dom da vida e por colocar em mim a paixão pela
música.
A minha família, por todo apoio e suporte enquanto me dedico à minha formação acadêmica.
A professora Dra. Márcia Taborda, pela orientação, atenção, companheirismo, paciência e por
acreditar no meu projeto.
Aos professores Dr. Fábio Adour e Dra. Regina Meirelles pelas preciosas sugestões dadas no
exame de qualificação.
A banca examinadora: Profa. Dr. Regina Meireles e Prof. Dr. Nicolas de Souza Barros.
A todos os colegas, alunos e professores do Programa de Pós-Graduação em Música da UFRJ
e demais envolvidos com a arte da música, com os quais, de alguma forma, aprendi valiosas
lições.
Aos amigos Victor Lobo de Almeida (In memoriam) e Gustavo Costa, que me incentivaram
nas primeiras caminhadas no estudo da música.
A Capes, pelo apoio financeiro nos 12 meses finais deste estudo.
E finalmente, ao violonista Paulo Bellinati pela grande colaboração dada a esta pesquisa.
VI
RESUMO:
ABSTRACT
The research approaches the guitar accompanist historical and musical journey in the context
of Brazilian popular music intending to develop a case study of the compact disc Afro-sambas
by the guitarist Paulo Bellinati with the singer Mônica Salmaso. It was put in evidence the
transit and active presence of the guitar in different social classes as well as the performers
who have dedicated themselves to the instrument since the first phonograph records were
highlighted; the record sources research allowed us to portray accompaniment characteristics
conducted by representative interpreters of popular music throughout the twentieth century.
To analyze the arrangements of the songs Labareda, Consolação e Canto de Xangô, we
adopted the methodology proposed by the musicologist Philip Tagg (1982 and 1999). The
arrangements profile showed that the compact disc can be considered the result of a cultural
mediation between the two main traditions of the instrument, the soloist guitar and the
accompanist one.
Listas de figuras.
Listas de Quadros
Lista de Gráficos:
Sumário
Introdução.......................................................................................................1
1.1.6- Guinga...............................................................................................................36
Considerações Finais...................................................................................................102
Referências Bibliográficas.........................................................................................107
XII
ANEXOS...................................................................................................................111
Introdução
Buarque, grupo Pau Brasil e a cantora Mônica Salmaso, com a qual em 1997 lançou o
disco Afro-sambas, foco do presente trabalho.
A primeira gravação dos Afro-sambas foi lançada em 1966. O disco de Baden e
Vinicius apresenta a fusão de elementos e sonoridades da temática religiosa do
candomblé com o samba. Insatisfeito com a qualidade sonora das gravações, em 1990,
10 anos após a morte de Vinicius de Moraes, Baden Powell regravou o disco e
acrescentou três faixas (Abertura, Labareda, Variações sobre Berimbau) às oito do
lançamento original. As palavras contidas no texto da contracapa afirmam que a ligação
de Baden com a Bahia, e, sobretudo com a África, “permitiram realizar uma espécie de
sincretismo e carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro-
brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal” (Moraes, 1966). O
álbum de Paulo Bellinati com Mônica Salmaso (Afro-sambas, GSP, 1997) constitui uma
releitura de obras de grande influência na MPB.
Considerando as limitações do violão diante da grande quantidade de
instrumentos presentes nos arranjos originais (atabaque, bongô, agogô, afoxé, baixo,
bateria, flauta, saxofone etc..) podemos considerar os arranjos de Bellinati como uma
valiosa referência para violonistas e arranjadores, na medida em que ele procura suprir a
densidade e diversidade sonora das versões originais por meio da criação de arranjos
que trazem uma exploração sistemática dos recursos do violão. Em vários momentos o
músico explora as potencialidades e meios de execução pouco comuns no uso do
instrumento como acompanhador. Isto pode ser explicado pela necessidade, em alguns
momentos, de que os arranjos violonísticos dessem conta de representar toda a grande
densidade sonora e timbrística presentes no disco original. Um bom exemplo dessa
utilização pode ser encontrado na canção Canto de Pedra Preta, onde Bellinati realiza o
acompanhamento com a utilização de recursos percussivos ao violão, remetendo ao
naipe de percussão utilizado na gravação original. Outros recursos técnico-musicais da
linguagem violonística explorados no disco são arpejos, campanellas, harmônicos, uso
de corda soltas, paralelismo1, pizzicatos, entre outros.
Outro ponto de interesse é o posicionamento do violonista como arranjador e
intérprete frente ao disco original. Através do estudo de caso, procuraremos analisar e
compreender o resultado das escolhas interpretativas e identificar como os elementos
1
Recurso idiomático ao violão resultado do deslocamento de fôrmas de mão esquerda pela escala do
instrumento
4
musicais na gravação original foram tratados na releitura. Foi possível notar que em
determinados momentos, o arranjador usufrui de uma maior liberdade de criação diante
da concepção original alterando aspectos formais, harmônicos, melódicos chegando até
mesmo a utilizar uma composição de sua autoria como base para o arranjo2.
No acompanhamento de canções é comum o uso do violão como um
instrumento rítmico-harmônico, responsável pela execução dos acordes e pela
estruturação rítmica característica de cada gênero musical. Essa forma de utilização da
textura homofônica é bastante consagrada na MPB sendo facilmente exemplificada pelo
violão de João Gilberto e a batida da bossa nova. Em sua releitura, Bellinati explora
outras texturas musicais nos acompanhamentos violonísticos como a contrapontística,
monofônica e harmonizações em blocos.
Ao observarmos os arranjos, podemos notar que eles foram construídos com os
cuidados e concepção de uma obra de câmara para duo. Diversos parâmetros musicais
se encontram em grande parte pré-determinados, havendo um espaço muito restrito para
possíveis intervenções na performance além das já previamente combinadas. Com esse
nível de planejamento, o violonista pode explorar de forma mais sistemática as diversas
possibilidades texturais, idiomáticas e técnicas que o violão oferece. O instrumento não
fica unicamente com a tarefa de realizar o acompanhamento rítmico-harmônico da
canção, mas divide e alterna com a voz o foco do discurso musical através de
contracantos, solos, dobramentos, efeitos percussivos entre outros.
A pesquisa partiu de um levantamento bibliográfico em torno da temática do
violão brasileiro, o acompanhamento na música popular brasileira, o universo dos três
discos integrais com o repertório dos afro-sambas, os violonistas Baden Powell e Paulo
Bellinati. Uma das dificuldades desta etapa foi a carência de trabalhos sobre o músico
Bellinati. Para colher informações que viabilizassem a construção de um pequeno perfil
biográfico-musical do violonista, buscou-se dados junto às seguintes fontes: sítio
eletrônico do violonista, depoimentos e entrevista extraída de programas radiofônicos
da série Violão brasileiro, produzido pelo violonista Fábio Zanon, um release
profissional fornecido por Bellinati e finalmente a entrevista pessoal realizada para este
trabalho a partir do questionário semi-estruturado com o propósito de elucidar questões
2
Na faixa 11 do disco Afro-Sambas (GSP, 1997) de Paulo Bellinati e Mônica Salmaso, o violonista
utiliza a canção de sua autoria Cordão de Ouro como introdução e arranjo para o acompanhamento da
canção.
5
3
Devido a baixa qualidade técnica da maioria das gravações destes músicos admitimos que em alguns
momentos não foi possível determinar a escuta e transcrição das obras destes violonistas com total
precisão.
6
Por fim, no capítulo III, nos debruçaremos sobre o acompanhamento no âmbito dos
Afro-sambas (1997). Primeiramente, apresentaremos alguns pontos, baseados na
entrevista, relativos à concepção de Bellinati sobre o acompanhamento de uma forma
mais abrangente e no que tange ao repertório do disco mais especificamente. Na seção
relativa às análises, inicialmente serão discutidos alguns pontos da metodologia
analítica baseada no modelo do musicólogo Phillip Tagg (1982 e 1999), posteriormente
aplicados nas canções Labareda, Consolação e Canto de Xangô, obras cujas partituras
nos foram cedidas pelo próprio arranjador.
popular, o autor destaca o fato de o arranjador popular gozar de uma maior liberdade
diante o original da obra. Contudo as maiores diferenças estariam camufladas na palavra
“original” que aparece em ambos os verbetes.
as observações que tivera feito a partir da prática de um dado professor às suas próprias
concepções musicais.
Inicialmente, a obra era destinada a uso próprio, mas para atender a demanda de
algumas pessoas que lhe importunavam para que lhes ensinassem os mistérios com que
já acompanhava algumas modinhas, resolveu dar à luz a referida coleção.
4
No Brasil, grande parte dos violonistas de prestígio no cenário musical publicaram seu método prático, a
exemplo de Américo Jacomino (Canhoto) e Aníbal Augusto Sardinha (Garoto).
14
Segundo Budasz (2004), a citação deixa claro que, para Nuno Marques Pereira
(1652-1728), a proliferação de canções profanas ao toque dos violeiros da época
relacionava-se diretamente a uma boa parte dos males que afligiam a colônia no início
do século XVIII. Contudo, o alarde apontava mais em direção ao repertório do que ao
instrumento em si, pois o próprio Pereira entoava cantigas devocionais acompanhando-
se à viola. A julgar pela temática que permeia grande parte da obra literária de Gregório
de Matos, o mesmo encarnava os piores medos de Pereira “e se sua língua ferina
granjeou-lhe inimigos e problemas no Brasil e em Portugal, ainda hoje suas
profanidades e obscenidades melindram muita gente.”(Ibid., p.7)
Ainda no que se refere ao caráter das canções, o pesquisador conta que, de
acordo com Pereira, um célebre músico e tocador de viola chamado João Furtado teria
caído morto, fulminado, após cantar a canção Para que nascestes, Rosa, se tão depressa
15
tido pelos estudiosos como o introdutor em Portugal não só do lundu, mas também da
modinha. Taborda (1995, p.30) afirma que no século XVIII, Caldas Barbosa
acompanhava-se à viola nos saraus da corte de D. Maria I em Lisboa. No século XX, na
grande maioria das publicações dedicadas à música popular onde nome de Caldas
Barbosa é mencionado, sua atuação estará sempre vinculada à modinha e ao lundu,
gêneros que teria praticado acompanhando-se de uma viola (Idem, 2011, p. 46).
A exemplo da obra de Gregório de Matos, alguns pesquisadores levantam
dúvidas sobre a dimensão musical da obra de Barbosa restringindo-a somente ao âmbito
poético. Em seu livro Domingos Caldas Barbosa: o poeta da viola, da modinha e do
lundu (1740-1800), Tinhorão (2004) procura expor várias indicações que atestam que
Caldas Barbosa interpretava à viola composições de sua autoria. Para Tinhorão, a
modinha Recado traz em seus versos fortes indícios da popularidade dos poemas de
Caldas, principalmente entre as jovens mulheres. A pergunta formulada por ele mesmo:
“E que modinhas cantou? lembrou-se das minhas?” serve como testemunho de que a
obra do poeta não se restringia somente ao âmbito poético, mas também musical.
Cantou algumas Modinhas?
E que Modinhas cantou?
Lembrou-se alguma das minhas?
Não, não; Nem de mim mais se lembrou. (BARBOSA apud TINHORÃO,
2004, p.73)
No final do século XIX, o instrumento marcou seu papel junto aos conjuntos de
choro e na consequente tarefa de abrasileirar as recém chegadas danças europeias
(valsas, polcas, xótis, mazurcas etc.). Desde os primórdios do gênero, juntamente com
o cavaquinho, ele estava presente na base de sustentação harmônica do grupo do
flautista Joaquin Antônio da Silva Callado, o Choro Carioca.
Uma importante fonte para pesquisa e melhor compreensão do ambiente social
dos chorões da velha guarda é a obra O Choro – Reminiscências dos chorões antigos
(1936) escrita pelo carteiro aposentado Alexandre Gonçalves Pinto, designado pela
alcunha de “Animal”. O discurso deste memorialista nos dá acesso a uma coletânea dos
perfis dos chorões da velha guarda e, sob sua ótica, pode-se colher preciosas
informações sobre a prática musical urbana do Rio de Janeiro no final do século XIX ao
18
Como já sugerido, sua escrita é uma trama polifônica e complexa que traz em
seu bojo numerosos elementos: ela mistura fragmentos da imprensa
carnavalesca da belle époque, elementos da oralidade, gírias, fragmentos de
conceitos e ideias de diferentes extratos sociais da época (incluindo temas
como nacionalidade, identidade e indústria cultural), referências a fatos
históricos, políticos e cotidianos, tudo isso unido por um único fio condutor:
a paixão de seu autor por uma música. (ARAGÃO, 2011, p.4)
Pelo primeiro perfil editado no livro, perfil do próprio “animal”, percebe-se que
Alexandre Gonçalves Pinto era um chorão acompanhador; e com o “pinho” e o cavaco
em suas mãos viveu uma odisseia pelos choros de diversos cantos da cidade
maravilhosa, a qual com saudosismo e paixão seria relembrada nas crônicas de sua obra.
De acordo com Aragão (2011, p. 4) o livro traz a descrição de mais de duzentos
“personagens”, de ambientes musicais da época, das festas, danças etc. Em
levantamento por nós realizado, encontramos cerca de 120 nomes de violonistas que se
prestavam ao oficio do acompanhamento. A maioria, ilustres desconhecidos que o autor
faz questão de imortalizar. Pela descrição de alguns perfis, observa-se qualidades
musicais de alguns violonistas como Lily S. Paulo descrita como exímia instrumentista
e musicista de grande valor: “violão nos dedos de Lily, não toca, chora e diz as mágoas
que sente”, além de ser considerada especialista nos acordes (PINTO, 1936, p.63).
Temos também o aposentado guarda municipal nascido nas proximidades de Santa
Rosa, Niterói-RJ, chamado Neco, que o autor aponta como sendo um dos veteranos
violonistas acompanhadores de choro.
quando está como acompanhador único. Outro fato que procurou-se privilegiar nas
escutas foi a escolha de fonogramas que o músico não acompanhasse a si próprio, pois
consideramos que a natureza deste tipo de performance envolve outros parâmetros
que merecem ser observados não contribuindo diretamente com o nosso objeto de
estudo.
O padrão das notas do baixo mais utilizado era o constituído pela fundamental e
quinta dos acordes presentes na condução harmônica. A harmonia era essencialmente
baseada em tríades do campo harmônico e ocasionalmente ocorria o emprego da sétima
nos acordes dominantes. Alguns lundus tocados por Eduardo das Neves se estruturavam
somente com acordes do I e V graus sobre os quais se aplicava a condução rítmica que
caracterizava a levada do gênero.
Na fig.1, observa-se uma transcrição do acompanhamento elaborado por
Eduardo Das Neves na gravação do lundu Isto é Bom5. Nos quatro compassos iniciais
que constituem a introdução a harmonia baseia-se nos acorde do I e V graus construída
5
Gravação feita em voz e violão por Eduardo das Neves pertencente ao acervo digital do Instituto
Moreira Sales.
23
sobre uma linha de baixo predominantemente rítmico formado por notas da tríade ou
tétrade. Do compasso 5 ao 8, temos um modelo de acompanhamento que será
conduzido pela maior parte da canção com o baixo mantendo um padrão baseado em
notas do acorde no ritmo em semínimas tocados sobre a levada do lundu.
6
Apesar de canhoto, o Método de Prático de Violão de Américo Jacomino foi elaborado para pessoas
destras.
24
Ricciardi, também conhecido como Paraguassu e Francisco Alves. Sua valsa Acordes
do violão tornou-se sua obra de maior prestígio, sendo regravada posteriormente sob o
título de Abismo de Rosas.
Em fevereiro de 1927 ele participou do concurso O que é nosso, realizado no
teatro lírico do Rio de Janeiro. Como vencedor, recebeu o titulo “o rei do violão”. Além
dele participaram do concurso Manuel de Lima, violonista cego integrante do conjunto
regional Turunas da Mauricéia, e a violonista Carioca Ivonne Rabello. Taborda (2011,
p.96) observa que o perfil dos concorrentes de Jacomino apontam para o panorama do
nível técnico do violão carioca da época. Com aproximadamente 11 anos de idade,
Ivonne Rebello foi a única a apresentar alguma obra do repertório tradicional de
concerto tocando em um violão feito exclusivamente para ela, com as dimensões
reduzidas. A violonista ficou em segundo lugar recebendo o Prêmio Quincas Laranjeira.
Como terceiro colocado, Manuel de Lima ficaria com o Prêmio Levino da Conceição,
chamando a atenção principalmente pelo aspecto exótico de sua performance por tocar
com o violão repousado sobre ambas as pernas.
Nasceu em campinas (SP) no ano de 1900 e veio a falecer na cidade de Niterói (RJ)
em 1980. Atuou como violonista, compositor e diretor artístico. Rogério Guimarães
gravou seu primeiro disco pela Odeon em 1926 contendo a valsa Marta e o fox-trot
Marrinetti, ambos de sua autoria. Rogério Guimarães chegou a assumir, em 1929, a
26
direção artística da gravadora Victor. Durante os três anos em que ocupou o cargo
admitiu o primeiro sucesso comercial da Victor, a novata Carmem Miranda. O
violonista acompanhou cantores representativos da época como Francisco Alves,
Vicente Celestino e Gastão Fomenti, entre outros. Rogério Guimarães teve uma atuação
marcante nas rádios e gravações e seu nome está entre um seleto grupo de violonistas da
primeira metade do século XX que alcançaram maturidade, desenvoltura e apuro
técnico no instrumento (Taborda, 2011, p. 102). Ao apresentar-se como solista era
conhecido como Rogério Guimarães, quando tocava com o conjunto no qual era líder, O
Regional de Rogério Guimarães, identificava-se também pela alcunha de Canhoto.
Primeiramente, na busca por registros fonográficos no sítio eletrônico do
Instituto Moreira Sales em que Guimarães unicamente acompanhasse um cantor
mostrou-se escassa. Ao observar a indicação expressa nas fichas que acompanham cada
gravação, nota-se que, quando há presença de um cantor como intérprete o
acompanhamento era majoritariamente feito por um conjunto ou com a presença de
mais um violão, transcendendo o recorte aqui proposto. Porém, ao ouvir algumas
gravações que indicam um segundo violão acompanhante, percebeu-se apenas um
instrumento presente, o que nos levou a crer que houvera um equívoco na elaboração da
ficha catalográfica das mesmas. A partir de então, tivemos um volume de gravações
mais significativo para que pudéssemos examinar com mais acuidade sua forma de
tocar. O violonista Gilson Antunes comenta algumas características do estilo musical de
Guimarães no qual destaca:
Ao se escutarem algumas gravações deste violonista, percebe-se que possuía
uma técnica diversa da de Jacomino. Isso é perceptível por meio dos poucos
recursos violonísticos utilizados (pouco ou nada de trêmulos, pizzicati,
harmônicos e demais efeitos timbrísticos)7, além de gravar quase que
integralmente com acompanhamento de outro violonista, ao contrário de
Jacomino. Do mesmo modo, não é possível perceber que seja um violonista
canhoto que esteja tocando e suas peças são bastante passíveis de serem
interpretadas a partir da maneira tradicional de pinçar as cordas. Acrescente-
se a isto o fato de sua valsa Gotas de Lágrimas ainda permanecer no
repertório de violonistas mais antigos. (ANTUNES, 2002, p.158)
7
Apesar de Antunes considerar, em comparação à Jacomino, o estilo de Guimarães mais escasso, em
relação aos recursos violonísticos utilizados, observaremos que no âmbito do acompanhamento sua
técnica se sobressai.
27
utilizado nos acompanhamentos por Rogério Guimarães não era uniforme, mas variava
de acordo com a canção. Apesar do destaque dado aos baixos ser uma constante em boa
parte de seus arranjos, em determinados momentos percebeu-se que ele opta por dar um
caráter mais homogêneo e estático ao arranjo dando ao baixo uma função
exclusivamente de suporte harmônico com poucas movimentações e sem destaque
dinâmico. A condução rítmica dos acordes, além de seguir o padrão característico de
cada gênero, pode apresentar-se sendo intercalada por momentos em que o
acompanhamento é realizado com acordes arpejados.
Os acordes são executados por toda a extensão do braço do violão, em inversões
e com omissões das vozes que contribuem para um colorido timbrístico e densidades
contrastantes. Com relação ao comportamento do violão nos registros sonoros
observados, nota-se uma importante contribuição estilística dada por Rogério
Guimarães no que tange à utilização de elementos técnico-instrumentais característicos
da linguagem do violão solista dialogando de forma bastante significativa com recursos
típicos já consolidadas na linguagem empregada em acompanhamentos.
Essa confluência com a linguagem do violão solista é deflagrada nas seções
introdutórias das canções e nos demais momentos instrumentais, geralmente o
intermezzo e a coda, onde o violão apresenta uma textura de melodia acompanhada se
diferenciando do restante do arranjo onde o instrumento sai de sua posição de destaque
adquirida na ausência da voz. Nestes momentos observa-se o apuro técnico e
virtuosismo do músico caracterizado pela ampla exploração da tessitura do violão, em
especial a região aguda, e pela realização de rápidas passagens escalares intercalando
acordes.
No acompanhamento da canção Anoitecer (fig.3) pode-se observar alguns
elementos identitários do estilo de Rogério Guimarães como a exploração do
instrumento em toda extensão, em especial a aguda, além do emprego de baixarias e
arpejos intercalados com a condução rítmica da canção. Nos seis primeiros compassos o
violão se comporta a maneira de um violão solista, como era de praxe em introduções,
interlúdios e codas das canções.
28
uma gama de matizes tímbricas que foram consolidadas pelas escolas do violão
concertista, tipificadas pelo uso do violão de seis cordas de nylon utilizando as unhas
para o ferir das cordas pela mão direita, e pela tradição do violão flamenco com a
utilização de rasgueos e escalas tocadas energicamente com apoio. No choro Carinhoso,
do compositor Pixinguinha, gravado no disco Baden, Márcia, Originais do Samba –
Show/recital (PHILIPS, São Paulo, 1968) observa-se que a função do acompanhamento
não é essencialmente a de apenas fornecer o suporte harmônico à melodia. O violão
divide com a flauta o protagonismo da performance com diversas intervenções
melódicas em forma de contracanto, em terça ou uníssono com a melodia, passagens
escalares virtuosísticas entre acordes e além dos já consagrados baixos melódicos. No
mesmo álbum, observa-se na faixa n° 4, o choro Naquele tempo, do mesmo compositor.
Após um solo na introdução o violão é conduzido na primeira seção da obra a maneira
de um instrumento melódico juntamente com a melodia vocalizada pela cantora,
resultando no trecho um arranjo com uma textura contrapontística8. Em seus
acompanhamentos observa-se que o estilo interpretativo de Baden é fundamentado na
sua capacidade de síntese de elementos musicais oriundos de meios diversos como a
música brasileira, o jazz, além de procedimentos técnico-musicais típicos do violão
solista.
Temos, na figura abaixo, um exemplo musical formulado por Faria (1995, p. 44)
extraído de seu livro The Brasilian Guitar Book - samba, bossa nova and others styles.
O exemplo sugere um padrão de variação da levada do samba aplicado ao estilo
violonístico de Baden Powell.9 Dos elementos que caracterizam o estilo de Baden pode-
se destacar a densidade rítmica e a harmonização em blocos de quartas que remetem a
procedimentos jazzísticos.
8
O procedimento textural habitualmente mais consagrado na música popular em geral é a melodia
acompanhada, exemplificada por um instrumento harmônico acompanhando a voz ou um instrumento
solista qualquer.
9
Devido ao alto grau de similaridade rítmico-harmônica, pode-se deduzir que o exemplo acima foi
transcrito quase integralmente de um trecho da segunda seção da peça instrumental O Astronauta de
Baden Powell.
32
10
Borges (2009, p. 115) aponta alguns indícios referentes à fase acompanhadora no choro presente na
obra solista do mesmo como o baixo cantante, o destaque dado aos baixos pelo toque com apoio pelo
polegar e o forte apelo improvisador tão característico ao choro.
11
O álbum traz as seguintes faixas: 1 - Faxineira das canções (Joyce) / Camarim (Cartola e Hermínio
Bello de Carvalho) Refém da solidão (Baden Powell - Paulo César Pinheiro) 2 - Todo o sentimento
(Chico Buarque Cristóvão Bastos) 3 - Janelas abertas (Tom Jobim, Vincius de Moraes) / Canção da
manhã feliz (Luiz Reis Haroldo Barbosa) / Bom dia (Herivelto Martins-Aldo Cabral) 4 - Doce de coco
(Hermínio Bello de Carvalho, Jacob do Bandolim) 5 - Modinha (Tom Jobim, Vinicius de Moraes) 6 - No
rancho fundo (Ary Barroso, Lamartine Babo) 7 - Violão (Vitório Júnior, Wilson Ferreira) / Violão vadio
34
Não é possível descrever o tipo de toque executado por ele. Para lograr uma
sonoridade semelhante à de Rabello, convém escutar suas gravações mais do
que analisar uma transcrição de uma música por ele tocada. Rabello utilizava
inúmeras técnicas de diferentes gêneros e estilos musicais. Afora o
conhecimento aprofundado do choro e do conjunto de técnicas aplicadas a
esse gênero, Rabello conhecia técnicas flamencas e o repertório erudito, o
que culminou em seu estilo extremamente peculiar.
A maneira de execução da “baixaria” também é um [sic] característica
relevante na constituição técnica de Rabello. A precisão e a potência do toque
do polegar direito guarnecem uma sonoridade típica de sua interpretação
violonística. Tal característica, de ordem técnica é aplicada tanto nos
acompanhamentos quanto em sua obra solista. (BORGES, 2009, p.104)
(Baden Powell-Paulo César Pinheiro) 8 - Chão de estrelas (Silvio Caldas, Orestes Barbosa) / Consolação
(Baden Powell-Vinicius de Moraes).
12
O referido LP traz as seguintes obras: 1 – Modinha (Tom Jobim, Vinicius de Moraes) 2 - Retrato em
preto e branco (Chico Buarque, Tom Jobim) 3 – Molambo (Jayme Florence, Augusto Mesquita) 4 -
Tristeza do Jeca (Angelino de Oliveira) 5 - Da cor do pecado (Bororó) 6 - No rancho fundo (Ary Barroso,
Lamartine Babo) 7 - Último desejo (Noel Rosa) 8 - O mundo é um moinho (Cartola) 9 - As rosas não
falam (Cartola) 10 - Autonomia(Cartola) 11 - Prelúdio nº 3 /Prelúdio da solidão (Vila Lobos, Hermínio
Bello de Carvalho) 12 - Três apitos (Noel Rosa) 13 - Caminhemos (Herivelto Martins) / Segredo
(Herivelto Martins-Marino Pinto) 14 - Negue (E. de Almeida Passos, Adelino Moreira) 15 - Na Baixa do
Sapateiro (Ary Barroso) 16 - Vereda tropical (Gonzago Curiel) 17 - Balada do louco (Arnaldo Baptista,
Rita Lee).
35
13
Refere-se ao coral Jesus, bleibet meine Freude from the Cantata Herz und Mund und Tat und Leben -
mov. X, BWV 147 de Johann Sebastian Bach (1685 - 1750).
36
1.1.6- Guinga
tarefa de transpor suas músicas (sem capotasto)14, não apenas nas peças instrumentais,
mas também nos acompanhamentos das canções.
14
O capotasto é um acessório utilizado ao violão que tem como principal função a de pressionar as cordas
como uma “pestana fixa”. Quanto maior o distanciamento em relação em relação às primeiras casas, mais
agudo se torna o violão. Portanto, em determinadas obras, o capotasto facilita a transposição fazendo com
que o violonista possa tocar com a mesma digitação e fôrma dos dedos.
38
15
Várias composições de Guinga foram concebidas primeiramente como peças instrumentais e
posteriormente dadas aos letristas, fato que explica essa autonomia e possibilidade de termos performance
em versões para violão solo.
16
Intervalos harmônicos de 2ª menores ou maiores tocados ao violão em cordas paralelas em escalas ou
acordes.
17
Tradicionalmente, a abordagem prática utilizada por violonistas para realização de uma leitura de cifras
adere a um conceito prático. Ao deparar-se com um determinado acorde (ex. C7M), o músico relaciona a
sua estrutura (Maior com 7ª maior) com algumas fôrmas de mão esquerda pré-estabelecidas que, ao serem
deslocadas pelo braço do instrumento, transpõem o acorde para quaisquer outras fundamentais. Esse
recurso técnico do violão facilita a leitura de harmonias mais complexas, pois ao invés de cuidar do
39
a figura 7, observamos que Guinga escreve o acorde de Dó maior com sétima maior e
terça no baixo (C7M/E) com o intervalo de segunda menor entre as notas si e dó (5ª
justa e 6ª menor). Esse efeito de Campanella é empregado largamente em sua obra e
requer um cuidado com a digitação e a disposição de cada nota. O mesmo recurso é
utilizado no acorde posterior, de Si maior com sétima e nona menor com 3ª no baixo
(B7(b9)/D#), onde a Campanella permanece entre as mesmas notas.
deslocamento de cada nota, o acorde é pensado como um bloco indivisível. Apesar de facilitar a
execução, o procedimento limita as possibilidades de variação de escrita das vozes de um mesmo acorde.
18
Os dois songbooks que serviram de base para a pesquisa foram “Noturno Copacabana (2006)” e “A
Música de Guinga (2003)” ambos lançados pela editora Gryphus.
19
Pode-se verificar a presença desses acordes característicos do compositor nos arranjos por ele tocados
ao violão nas gravações de Chega de saudade, gravada no álbum Antônio Carlos Jobim Songbook, Vol. 3
– lumiar discos- 2009, e Mané fogueteiro do disco A música brasileira deste século por seus autores e
intérpretes vol. 6 CD 009.
40
Observamos na canção Choro Réquiem que a mesma fôrma dos dedos, intervalo
de terça maior, se move em outras regiões do braço do violão com a utilização do
mesmo grupo de cordas soltas (sol e si). Procedimento idiomático semelhante é
encontrado no Estudo N°11, de Heitor Villa lobos.
Neste capítulo foi possível observar a trajetória do violão pelas mais diversas
classes sociais juntamente com os principais protagonistas da nossa música popular. Ao
investigar o perfil do comportamento de alguns violonistas de relevo do nosso
cancioneiro popular, foi possível perceber que houve um processo de trocas culturais
entre a linguagem do violão solo e o de acompanhamento que de forma progressiva foi
sendo consolidada. O papel destes músicos personifica a figura do mediador conforme
apontado por Peter Burke (2010), cabendo a eles a função de agenciamento entre as
diferentes tradições e colaborando para a diluição de suas fronteiras.
41
20
Entrevista concedida em 26/09/2013 em sua residência na cidade de São Paulo.
42
uruguaio Isaias Sávio21 (1900 – 1977). Segundo Bellinati, Além do estudo pautado
pelos fundamentos da técnica e execução violonísticas presentes no próprio método de
Sávio, o conteúdo abordado nas aulas do mestre uruguaio era baseado no aprendizado
de inúmeras peças do repertório canônico internacional e nacional do instrumento.
Dentre as obras estudadas o violonista destaca a dos compositores como Girolamo
Frescobaldi (1583 – 1643), Domenico Scarlatti (1865 - 1757), Isaac Albéniz (1860 –
1909), Enrique Granados (1867 — 1916), Augustín Barrios (1885 – 1944), Heitor Villa-
Lobos (1887 – 1959), Federico Moreno Torroba (1891 – 1982) e muito do repertório
popularizado pelo intérprete espanhol Andrés Segóvia (1893 – 1987). O mestre
Uruguaio admirava a forma como ele tocava a sua peça Cenas Brasileiras e, antevendo
a vocação do aluno para interpretação da música brasileira, sugeriu que se dedicasse a
outros compositores brasileiros como Valdemar Henrique, Hekel Tavares e que
executasse alguns arranjos de música popular e folclórica.
Sua trajetória e aperfeiçoamento como intérprete do repertório popular, se deu
paralelamente ao estudo formal no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, e
se confunde com o início de sua atividade profissional de tocar em conjunto de bailes e
acompanhar cantores ao violão e guitarra desde os 15 anos. Ao ser contratado por um
grupo de baile de maior projeção ele entrou em contato com o repertório jazzístico que
o levou a buscar referências por meio da audição dos discos do Guitarrista Wes
Montgomery e, de forma autodidata, a estudar os livros da prestigiada faculdade de
música norte americana Berklee College of Music22, que lhe proporcionaram uma base
teórica e técnica para a improvisação guitarrística. A partir do seguinte relato de
Bellinati, observa-se que, até então, para ele havia uma diferenciação entre as formas de
abordar os universos da música de concerto e popular.
21
Violonista, compositor e pedagogo uruguaio que se radicou na cidade de São Paulo. Em sua notória
carreira pedagógica foi professor de importantes violonistas do cenário brasileiro como Antônio Carlos
Barbosa Lima, Maria Lívia São Marcos, Marco Pereira, Henrique Pinto e outros.
22
Bellinati parece referir-se às publicações do Método moderno Para Guitarra do professor William
Leavitt.
43
Outra atividade profissional exercida nesta época que contribuiu para o seu
contato com a diversidade do folclore das mais variadas localidades do país foi o
trabalho como músico de um navio. Assim teve a oportunidade de conhecer boa parte
do litoral brasileiro das regiões norte e nordeste do país. Durante todo percurso da
viagem, em média de 26 dias, a tripulação ficava três dias nos portos de cidades como
Belém, Recife, Fortaleza, Salvador e outras mais. Nas viagens procurava inteirar-se dos
principais pontos turísticos e teatros, além de presenciar vários grupos folclóricos
típicos destas cidades que se apresentavam aos turistas.
Mesmo tendo se formado no conservatório, decidiu que seria essencial dar
continuidade aos seus estudos e buscar aperfeiçoamento musical no exterior e, em 1975,
foi à Europa em busca de um bom instrumento e de uma escola de música para estudar.
Tendo passado por várias cidades chega a Genebra, na Suíça, e conhece a violonista
Maria Lívia São Marcos, que lhe concede uma bolsa de estudos no Conservatório da
cidade onde consolidou sua formação musical e expandiu seus conhecimentos
estudando harmonia, orquestração, composição, acústica e música antiga. Neste período
exerceu atividades didáticas no Conservatório de Lausanne. Bellinati estudou ainda com
Oscar Cáceres e Abel Carlevaro (1976) na França, onde participou do Festival
International d'Annecy e do IV ème Rencontre Internationale de La Guitare em Castres.
É na Suíça que a sua “veia composicional” aflora e concebe suas primeiras obras
para conjunto instrumental típico de jazz, inspiradas na temática musical popular
brasileira. Ao perceber a enorme receptividade com que publico estrangeiro tratou suas
primeiras obras ele, compreendeu que tinha ali algo especial a que se deveria se dedicar
com afinco.
Bellinati afirma ter ido à Suíça com objetivo de formar-se um concertista e lá
começou a realizar apresentações de violão solo. O conservatório em que estudava
adotava uma abordagem musical completamente voltada à interpretação da música
tradicional de concerto europeia e, curiosamente, neste período resolveu adquirir uma
guitarra elétrica e um amplificador. Mais tarde compreendeu que deveria direcionar sua
carreira para as atividades de compositor e violonista/guitarrista de música popular.
Quando voltou ao Brasil, em 1981, deu inicio à pesquisa sobre a obra de outro
compositor paulistano com o qual se identificava, Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto23.
23
Não se pode deixar de mencionar a significativa contribuição de cunho musicológico de Paulo Bellinati
a historiografia do violão brasileiro pelo trabalho de pesquisa, transcrição, publicação e gravação da obra
44
Na obra de Garoto, ele percebeu que teria que unir suas experiências musicais mais
diversas para lidar com um tipo de repertório de música popular de maiores
sofisticações e toda sua a experiência musical adquirida teria que vir à tona. Neste
mesmo ano passou a integrar o conjunto instrumental Pau Brasil, do qual é membro até
os dias atuais, tocando ao lado de músicos como o maestro Nelson Ayres, o produtor e
contrabaixista Rodolfo Stroeter e o saxofonista e regente Roberto Sion. Gravou dez
discos com o grupo Pau Brasil, outra dezena de discos solo, e mais de uma centena de
participações em gravações de diversos artistas brasileiros e estrangeiros.
Trabalhou ao lado de importantes nomes da música como Steve Swallow, Carla
Bley, Renaud Garcia-Fons, Jean-Louis Matinier, Lucilla Galeazzi, Antonio Placer, Edu
Lobo, Chico Buarque, Mônica Salmaso, MPB-4, Naná Vasconcelos, César Camargo
Mariano, João Bosco, Leila Pinheiro e Gal Costa.
Seus arranjos e composições já foram prestigiados pelos maiores violonistas da
atualidade como João Luiz e Douglas Lora (Brazil Guitar Duo), John Williams,
Shinichi Fukuda, Fábio Zanon, Los Angeles Guitar Quartet, Quaternaglia, Cristina
Azuma, Carlos Barbosa Lima, Badi Assad, Duo Assad, entre outros. Sua obra se
destaca pela intensa relação com a música popular brasileira, como temas que utilizam
matrizes como samba, choro, valsa, tango, maracatu, baião, toada, seresta, lundu,
modinha, frevo, embolada, etc. outra marca de seu perfil é a diversidade de
instrumentos de corda para os quais escreve e toca além do violão (solo, duo, trio,
quarteto) como viola caipira, cavaquinho, guitarra e contrabaixo.
Entre os projetos realizados nos anos de 2007-2008 estão o “Paulo Bellinati
Trio”, um trio de violões com Israel de Almeida - 7 cordas- e Daniel Murray - violão de
6 cordas, e o encontro do grupo Pau Brasil com a cantora Mônica Salmaso em tournée
nacional durante todo o ano de 2008 – (o cd e o DVD Noites de Gala, Samba na Rua,
lançados em 2007 e 2008 respectivamente pela gravadora Biscoito Fino). Compôs três
movimentos do Concerto Antropofágico, obra encomendada pela Orquestra Sinfônica
do Estado de São Paulo (OSESP) ao grupo Pau Brasil, que na sua primeira audição em
18 de dezembro de 2008 na Sala São Paulo, a OSESP teve como solista o próprio Grupo
Pau Brasil e a participação especial da cantora Mônica Salmaso.
de Garoto. Que depois de aproximadamente uma década de pesquisa, lançaria o disco e publicações de
um livro de partituras.
45
Com relação à viagem de Baden à Bahia, Dreyfus afirma que ao ser apresentado
ao capoeirista Canjiquinha, o músico teve a oportunidade de se aprofundar na cultura
afro-brasileira. “Canjiquinha o levou aos terreiros de candomblé e às rodas de capoeira
sem que se tratasse de uma “viagem de estudos” ou de uma “pesquisa”, como reza a
lenda. A jornalista Dreyfus ressalta que embora o violonista tenha adquirido um grande
conhecimento do candomblé seu maior deleite tenha ficado por conta do lado musical
das manifestações que presenciara. Desse modo o aprendizado esboçado pela audição
do disco enviado por Coqueijo adquire maior consistência ao assimilar os elementos
musicais afro-baianos.
Castro (1990, p. 306) em sua obra a respeito da história da bossa nova, conta que
o ciclo de composições fora resultado do “retiro etílico-musical” de quase noventa dias
que Baden e Vinicius passaram trancados no parque Guinle do qual sairiam com 25
canções e uma nova carreira pela frente. De acordo com o mesmo “Baden conseguiu dar
um clima tão baiano aos Afro-sambas sem nunca ter indo a Bahia”. Sendo assim a
inspiração seria fruto unicamente do disco de folclore baiano que o poeta recebera de
seu amigo Carlos Coqueijo de onde constavam sambas-de-roda, pontos de candomblé e
partes de berimbau. Para ele, Baden só iria à Bahia, pra valer, muito tempo depois em
1968, quando passaria seis meses por lá e voltaria com “Lapinha”.24
Outro acontecimento que teria contribuído para a inspiração do ciclo de
composições foram as aulas com o compositor Moacir Santos.
24
De acordo com Castro (1990, p. 306), daquele “retiro etílico-musical” nasceram, entre outras,
Consolação, Samba em prelúdio, Só por amor, Labareda, O Astronauta, Samba do Veloso, em
homenagem ao bar da rua Montenegro, Berimbau e quase todos os afro-sambas, Inclusive os “ Cantos”:
o de Ossanha, o de Xangô, e o de Iemanjá.
49
1. Canto de Ossanha
2. Canto de Xangô
3. Bocoché
4. Canto de Iemanjá
5. Tempo de amor
6. Canto do Caboclo Pedra-Preta
7. Tristeza e solidão
8. Lamento de Exu
Ao observar o conjunto de composições o poeta as denominou de afro-sambas.
Moraes (2006) afirma que por serem demasiadamente conhecidas as canções Berimbau
e Samba da Benção não entraram na série que constituiu o disco, embora tenham a
estrutura e temática que a ela pertença. Para Powell as composições se tratariam de uma
50
vertente estilística dentro do samba assim como o “samba lento, o samba canção, o
samba de carnaval, o samba-choro, o samba-lamento. Esse último ligado ao afro-samba,
que tem aquela escuridão do afro, o lamento. Ficou esse estigma, mas nossos afro-
sambas não inventaram nada.” (Folha de São Paulo, Ilustrada 1999, p.14). Outro
trabalho que também contribui para consolidar o estilo foi o LP Coisas (1965) de
Moacir Santos no qual relata: “O afro-samba nasceu de mim e Baden, com aquele
modalismo todo. Desde os anos 40 eu fazia música assim” (SANTOS apud Folha,
Ilustrada, 1992, p. 8).
Há outras composições que por suas características musicais ou por abordarem a
temática do candomblé em suas letras poderíamos chamá-las de Afro-sambas como
Sorongaio (Baden Powell), Consolação (Baden Powell/Vinicius de Moraes) e
Candomblé (Baden Powell), além de A Benção Bahia, Tatamirô e Canto de Oxum da
dupla Vinicius/Toquinho, Ginga Muxique (Maurício Tapajós/ Hermínio Bello de
Carvalho), entre outras.
No texto escrito na contracapa o poeta declara que Baden Powell realizou um
novo sincretismo que o fez “carioquizar” dentro do espírito do samba moderno,
o candomblé afro brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal.
Os arranjos e regência foram realizados pelo maestro César Guerra-Peixe
(1914-1993) que forneceu uma vestimenta à seção rítmica que
indubitavelmente remete ao ambiente dos terreiros pretendido pelos autores.
Junto a instrumentos de uso mais consagrado como o Sax, Flauta, violão,
contrabaixo e bateria os arranjos exploram de forma bastante densa o uso de
ataques, bongôs, pandeiro, agogô e afoxé. Ao vocal temos Vinicius de Moraes,
a participação do grupo feminino Quarteto em Cy e um Coro misto.
As fontes que serviram de inspiração poética para a construção das letras são
baseadas na tradição mitológica do candomblé. Para os povos africanos iorubás e os
seguidores de sua religião nas Américas, os orixás são deuses que receberam a
incumbência de criar e governar o mundo ficando cada um responsável por algum
aspecto da natureza e certas dimensões da vida em sociedade e da condição humana
(PRANDI, 2001, p. 20). Os ritmos são também chamados de “pontos”; as cantigas e as
danças desses rituais representam um meio de chamada e comunicação com as
divindades religiosas. (KUEHN, 2002, p. 3).
Para ilustrar o aspecto literário tão peculiar e a alusão ao universo mitológico do
candomblé observaremos a letra de Canto de Ossanha. Severiano e Mello (1998, p. 98)
51
colocam a canção como uma das melhores e mais conhecidas dos afro-sambas devendo
muito de seu sucesso a interpretação empolgante de Elis Regina nas diversas
performances que o apresentou no programa musical da TV Record chamado O Fino da
Bossa. Ao se referir à canção na contracapa do LP o Poeta a exalta ao dizer que, nela,
Baden atingiu o “máximo de profundidade em sua carreira de compositor.” Na canção
observa-se a alusão ao Orixá Ossain, conhecido por sua relação com as plantas, as matas
e florestas, as ervas medicinais e o curandeirismo.
Kuehn (2002) aponta para o conteúdo dialético dos primeiros versos criando um
movimento pendular baseado nas ações entre o “dizer” e o “fazer” que, por sua vez, é
representado no jogo musical responsório entre o canto do solista e o coro do Quarteto
em Cy. Na obra Mitologia dos Orixás, Prandi (2006) reuniu uma série de mitos do
candomblé entre os quais um nos parece estar em consonância com os atributos do orixá
apresentados pelo Poeta em Canto de Ossanha.
52
Ao que parece, o resultado sonoro não agradou a Baden Powell e o fez realizar
uma regravação do disco em 1990, dez anos após a morte de Vinicius de Moraes. Desta
vez o violonista assumiu o vocal, regência, arranjos e ainda participou da seção rítmica
tocando percussão. Como na versão anterior, o Quarteto em Cy participou deste projeto.
Quando o Cd saiu em novembro de 1990, apenas três mil cópias foram lançadas
em um formato de disco comemorativo. Seis meses mais tarde o disco foi
comercializado na Europa e no Japão pelo selo JSL. A nova versão agora contava com
11 faixas. Powell incluiu Labareda e duas faixas instrumentais: A Abertura, uma
espécie de medley onde violonista incorpora temas de vários afro-sambas como Canto
de Iemanjá, Tristeza e Solidão, Berimbau, Consolação, e "Variações sobre Berimbau"
somada as oito faixas do antigo LP.
25
As informações sobre a cantora foram baseadas no conteúdo exposto em seu site pessoal disponível
em: <http://www.monicasalmaso.mus.br/new/Paginas/PORTUGUES%20anterior.asp>, acessado em
31/09/2013.
55
Sharp – 1997 como revelação na categoria MPB e com a vitória do premio Visa MPB
edição vocal. A discografia da cantora conta com sete trabalhos: Afro-sambas (1997)
Trampolim (1998), Voadeira (1999), Iaiá (2004), Noites de Gala, Samba na Rua -
2007, Nem Um ai (2008), Noites de Gala - ao vivo (2009), Alma Lírica Brasileira
(2011), trabalho na formação trio em conjunto com Nelson Ayres e Teco Cardoso.
Uma característica digna de nota é que toda a discografia da cantora é pautada
pela ausência de canções estrangeiras visitando, até então, exclusivamente compositores
brasileiros das mais diversas gerações desde o início do século XX. Chico Buarque,
Baden Powell, Dorival Caymmi, Maurício Carrilho, Paulo César Pinheiro, Jair do
Cavaquinho, Xangô da Mangueira, Zagaia, Silvio Caldas, Carusinho, Rodolfo Stroeter,
Joyce, Vanessa da Mata, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, José Miguel Wisnik, Tom
Zé, Heitor Villa-Lobos figuram entre os nomes gravados por ela. O ecletismo estilístico
do repertório de seus discos abarcou até mesmo canções do domínio público como
Canto dos Escravos, O minha Gente e Determinei.26
A maneira particular como se apropria das canções recriando o arranjo com
modernidade e sofisticação é uma marca evidente em todos os seus trabalhos. Muitas
vezes a concepção de arranjo adotada coloca sua voz dentro de uma perspectiva
camerística onde, mesmo sendo a interprete da letra da canção, ela não está sempre
como única protagonista, constituindo uma textura onde os instrumentos não estão
exclusivamente com a função de dar-lhe suporte, mas de diálogo. O consagrado suporte
rítmico-harmônico dado pelo violão ou piano pode ser substituído por texturas em que a
voz realiza contrapontos com outro instrumento melódico ou de percussão, criando um
ambiente sonoro rarefeito quase à capella. Pode-se dizer que uma característica de sua
discografia quanto à instrumentação é a utilização de diversas e variadas formas de
exploração de texturas e técnicas de execução. Nota-se desde formações mais
convencionais ao cancioneiro popular como os duos com o piano e violão, este último
presente em todo o seu disco inaugural, ou combinações mais ousadas como o quinteto
de clarinetas presente na gravação da canção Cidade Lagoa (Sebastião Fonseca/Cícero
Nunes) onde a primeira exposição da canção é marcada unicamente pelo contraponto
entre a voz e uma clarineta. Quanto à exploração variada de técnicas de execução
instrumental aplicados em seus arranjos poderíamos exemplificar com o arranjo de
26
As três faixa são parte do Lp Trampolim (2008). Em Iaiá, Mônica rende homenagem a Clementina de
Jesus, com a canção “Moro na Roça”.
56
Assum Branco27 (José Miguel Wisnik) onde a canto quase à capela do início da canção é
acompanhado pela percussão feita ao violão por Bellinati juntamente com notas pedais e
contracantos realizados pelo violoncelo e o contrabaixo acústico tocado com arco.
A proposta dos arranjos somada à alta qualidade e o apuro de sua técnica vocal
faz com que muitos críticos coloquem seu trabalho um pouco distante do que
poderíamos chamar de “popular”, ocupando uma zona fronteiriça e realizando um
diálogo com o “erudito”. Esse hibridismo pode ser notado já na manchete Mônica leva
Mpb ao erudito matéria publicada no Jornal do Estado - Curitiba28. Observa-se que, ao
comentar sobre o repertório do então lançamento do disco, o autor deixa transparecer
sua admiração pela cantora e admite a importância de seu trabalho diferenciado.
É um trabalho difícil, uma vez que a música brasileira vem sempre numa
obrigatoriedade insana, associada à indolência, à malemolência, ao deixa
disso. Pode ser, mas por trás dessas coisas há toda uma complexidade
rítmica, harmônica e dos arranjos em geral. Por isso mesmo as
engraçadíssimas Cidade Lagoa, de Sebastião Fonseca e Cícero Nunes, e
cabrochinha, de Mauricio Carrilho e Paulo César Pinheiro, são cantadas com
um cuidado extremamente estudado, como quem bota os pingos nos is. Por
isso, a bela Vingança, Francisco Mattoso e José Maria de Abreu, é
praticamente uma ópera. Por isso Sinhazinha, de Chico Buarque, Com um
piano completamente dissonante e moderno. Porque Mônica Salmaso, neste
Iaiá faz um trabalho de formiguinha, tentando sozinha elevar a música
brasileira ao patamar erudito do qual, desde a década de 90, quiçá de antes,
vem despencando. (Jornal do estado – Curitiba 04 abr. 04)
Como produtor, Eduardo Gudin apostou nos talentos desta cantora para que
juntamente com o violonista Paulo Bellinati, com uma carreira musical já consolidada,
revisitassem a obra de Baden de Vinicius gravada em 1966 e 1990.
A ideia de lançar o disco partiu de um convite feito a ela por Eduardo Gudin. O
projeto constituiria o 1º disco solo da cantora que seria lançado pela gravadora Velas.
De início, ela julgou prematura a ideia por não ter um trabalho preparado para que
pudesse constituir em disco, até que, em uma ocasião, o produtor lhe apresenta como
proposta de repertório os Afro-sambas.
[..] Aí um dia ele sugeriu. “Você conhece os Afro-sambas?” Eu conhecia os
mais conhecidos. Mas eu não sabia que eles eram uma fase da produção do
Baden com o Vinicius, com uma temática fechada. Então, ouvi o primeiro
disco que eles – o Baden, o Vinicius e o Quarteto em Cy – fizeram, que é
o Afro-sambas, que tem oito faixas. Aí eu chapei, né?! “Pô, isso é muito
legal!” Isso foi gravado em 1966, 67, e nunca ninguém havia gravado a
27
A referida canção é a 7ª faixa do CD Iaiá (2004) da cantora.
28
A cantora disponibiliza em seu site, seção Impressa, varias críticas e matérias de jornais publicados.
Disponível em: http://www.monicasalmaso.mus.br/new/Paginas/Press%20BRASIL%20iaia.html> acesso
de 31/09/2013.
57
íntegra de novo. Ficou. O “Canto de Ossanha” a Elis fez e ficou famoso com
ela. O “Berimbau”, “Consolação’, mas havia lá outros que são jóias e que
estavam… Ficaram lá na gaveta da editora e nunca mais ninguém pegou. E
aquilo ali “euzinha” podia fazer, então, pô, falei, “Já! Eu quero
imediatamente isso. Rápido! Antes que alguém faça isso.” [ri] Fiquei super a
fim. Aí o Gudin sugeriu que a gente convidasse o Bellinati, porque ele tem o
trabalho do Garoto, e o Gudin adora o jeito que o Bellinati toca. Daí eu
conheci o Bellinati nessas. “Ó, essa aqui é a cantora, esse aqui é o trabalho.
Quer fazer?” E ele falou, “Ah! Topei.” E a gente começou a ensaiar
29
(SALMASO, 2003).
Com relação às versões anteriores, esta releitura se mostra bem distinta por
vários aspectos bem fundamentais dentro os quais o mais obvio é a instrumentação.
Gravado unicamente no formato voz e violão, o cd não traz a forte referência em seus
arranjos ao ambiente musical dos cultos afro-brasileiros do candomblé fortemente
caracterizado nos arranjos gravados em 1966 e 1990. A presença de elementos
marcantes como instrumentos de percussão, coro, a rítmica do violão de Baden e o
coloquialismo do canto de Vinicius de Moraes são substituídos por um violão e voz
com parâmetros que remetem a uma sonoridade polida, resultado de uma alta
preocupação com o acabamento e “limpeza” sonora típica das tradições do bel canto e
do violão de concerto. O tratamento dado aos arranjos nas gravações coloca o álbum em
relação direta com trabalhos, sob a mesma formação, que o antecederam como as
parcerias de Raphael Rabello com Elizeth Cardoso e Ney Matogrosso.30 Neles o violão
ocupa um papel de protagonista ocupando uma posição especial junto aos intérpretes
cantores.
De acordo com Bellinati, as ambições artísticas e conceituais do duo não
estavam em consonância com a proposta do produtor e da gravadora que primavam por
uma estética de maior apelo ao público.
29
Entrevista com a cantora disponível em: <http://gafieiras.com.br/entrevistas/monica-salmaso/8>
acessado em 06/10/2013.
30
Em entrevista pessoal concedida para esta pesquisa, Bellinati (2013) afirma que um disco que o
influenciou bastante quando estava fazendo seu trabalho foi o Cry me river da cantora Julie London com
o guitarrista Barney Kessel.
58
Desta forma eles ficaram sem o suporte da gravadora e decidiram levar a diante
o projeto de forma independente. Como alternativa, Bellinati sugeriu que realizassem o
cd pela gravadora/editora americana Guitar Solo Publications (GSP), que já havia
produzido outros trabalhos do violonista como o cd The Guitar Works of Garoto. O
violonista propôs um cd com uma alta qualidade de violão que o justificasse ser
incluído em seu catalogo discográfico. As gravações foram feitas aqui no Brasil em
1995 e no ano seguinte foram enviadas para mixagem e masterização em Los Angeles.
Após a finalização houve o lançamento nos EUA em 2007 e, no mesmo ano, foi lançado
no Brasil pela Atração fonográfica. Das oito faixas que constituem a edição de 1966
foram acrescidas Consolação, Labareda e Cordão de Ouro/ Berimbau, que se dispõem
da seguinte maneira.
1. Consolação
2. Labareda
3. Tristeza e solidão
4. Canto de Ossanha
5. Canto de Xangô
6. Bocoché
7. Canto de Iemanjá
8. Tempo de amor (Samba do Veloso)
9. Canto de Pedra-Preta
10. Lamento de Exu
11. Cordão de ouro / Berimbau
31
A entrevista se encontra integralmente transcrita nos anexos desta dissertação.
61
sua famosa “batida”, que são aplicados a toda canção e não raro a um disco todo. Fato
este que não vai de encontro ao seu estilo por acreditar ser o contraste musical um dos
principais responsáveis por tornar a interpretação de uma obra mais interessante; e por
ser um músico que possui um “arsenal muito maior de ferramentas” como compositor,
arranjador, orquestrador que foram usadas a seu favor na constituição do disco.
[...] Ser acompanhador não está nos livros. Eu estou tocando com o Israel de
Almeida que é um violonista “sete cordas” importante aqui de São Paulo,
toca sete cordas em grupo de choro faz sessenta anos. O cara tem um metier.
É uma vivência. Não dá pra ensinar isso que ele sabe. Como é que sai um
acompanhamento daquele assim, instantâneo, em qualquer tom e qualquer
música? É muita vivencia. São muitas horas de voo. (BELLINATI, 2013)
Quer aprender a tocar bossa nova, tem que comprar todos os discos do João
Gilberto e tirar todos os acompanhamentos que estão lá. Assim simples.
Analisar e entender como o João Gilberto tocava. Ai você vai ter uma mão
direita de bossa nova mais ou menos legal. [..] É assim. Tem que ouvir muito.
É assim que os jazzistas aprenderam e que os músicos populares aprendem.
Os caras aprendem ouvindo muito, vivendo, é preciso tocar, ouvindo demais.
Tem que ouvir bastante. (BELLINATI, 2013)
No caso do Afro-sambas, violão e voz com esse grau de escrita, tinha uma
negociação com a tonalidade. Não dava pra fazer um arranjo em Ré bemol
por exemplo. Você mata o violão. Você não sai do 3ª compasso. Então tinha
uma coisa de negociar com a voz da Mônica, com a tessitura dela pra
escolher as tonalidades que fizessem o instrumento render. Isso veio um
pouco da viola caipira. Os caras tocam o “cebolão”, o “rio abaixo”;32 ou em
ré ou mi e pronto. Tem que ser naquele tom. Se for em Mi bemol não vai
acontecer coisa nenhuma. O instrumento não vai soar. Então a voz, meio que
se encaixa. Nas duplas sertanejas, por exemplo, o cara tem a viola, o
“cebolão”, e todas as músicas eram feitas daquele jeito, naquela tessitura e eu
trouxe um pouco desta informação também. Tem cantor que é muito estrito
“– não, eu canto só em si bemol, eu canto só em ré bemol, lá bemol, eu canto
essa música em lá bemol-”. Vamos tentar lá ou sol, não é. O violão vai render
muito e a música vai ficar mais bonita. (BELLINATI, 2013)
Lima Junior (2003, p. 44) explica que a incidência de certas tonalidades nas
escolhas dos compositores demonstra que há uma preferência por aquelas nas quais as
funções harmônicas principais utilizem o maior número possível de cordas soltas como
as que têm como fundamental as notas mi (Mi maior ou Mi menor), lá (Lá maior ou Lá
menor) e ré (Ré maior ou Ré menor)33 que acabam por facilitar o emprego de vários
recursos composicionais sem impor ao executante um grau exagerado de dificuldade.
32
Tratam-se de duas possibilidades distintas de afinação das cordas da viola. No modo “cebolão em mi”
as cordas ficam na seguinte maneira: 1ª mi, 2ª si, 3ª sol sustenido, 4ª mi e 5ª si, podendo apresentar uma
variante em ré com todas as cordas um tom abaixo. Na afinação “rio acima” as alturas são 1ª ré, 2ª si, 3ª
sol, 4ª ré, 5ª sol.
33
Lima Junior (Ibid., p. 44) lembra-nos que Villa-Lobos ao compor os 12 Estudos, mesmo estando
inserido em um contexto estético de maiores liberdades, privilegiou o uso, no violão, das tonalidades de
Mi menor (Estudos I, VI e XI), Lá maior (Estudo II), Ré maior (Estudos III); Sol maior (Estudo IV), Dó
maior (Estudo V), Mi maior (Estudo VII), Si menor (Estudo X), Lá menor (Estudo XII), e as tonalidades
de Dó sustenido menor para o estudo VII e Fá sustenido menor para o IX.
64
Esta tendência pode ser verificada na canção Canto de Iemanjá onde o violonista
constrói o arranjo na tonalidade de Si maior e faz uso do recurso de scordatura
alterando a afinação convencional da sexta corda de mi para si (4ª justa abaixo) e da
quinta corda de lá para fá sustenido (3ª menor abaixo) obtendo assim, respectivamente,
as notas da fundamental e 5ª justa dos acordes das funções Tônica e Dominante do tom
podendo ser tocadas em cordas soltas. Há uma transposição realizada no arranjo de
Berimbau que demostra que a questão da escolha da tonalidade teve primazia sobre
outros aspectos musicais como a própria estrutura da melodia da canção. O violonista
toca a seção A da canção em Ré menor (eólio/dórico) e na seção B em vez de modular
para o relativo maior (Fá maior), como previsto no arranjo original, opta por Si bemol
maior. A escolha desta tonalidade se deu em razão da necessidade de ajustes aos limites
da tessitura da voz da cantora, que passa a entoar a melodia uma 5ª justa abaixo, e com a
finalidade de manter todo arcabouço da seção A do arranjo de Berimbau, que faz uso
integral da peça instrumental Cordão de Ouro com a scordatura da 6ª corda em ré.
34
Phillip Tagg nasceu no ano de 1944 na cidade de Northamptonshire (Reino Unido). Já atuou como
professor de musicologia em importantes universidades como Gotemburgo (Suécia), Universidade de
Liverpool (Inglaterra) e Universidade de Montreal (Canadá); trabalhou e produziu uma significativa
bibliografia voltada para o estudo da música popular. Ele mantem um site <http://tagg.org/index.html>
onde encontram-se disponíveis informações pessoais, bibliográficas, curriculares, textos publicados entre
outros.
66
ambiente para o outro. No entanto, pode ser visualizada nos movimentos de certos
animais representados por meio de estruturas rítmicas que remetem a “galopes” de
cavalos; obras que mimetizam o movimento de insetos como o Voo da Mosca (Jacob do
bandolim, voo do besouro (Nicolai Korsakov), As abelhas (Agustín Barrios) ou até
mesmo objetos e elementos da natureza como o sopro do vento ou o movimento das
ondas do mar.
Tagg (1999, p.26) adverte-nos para a natureza flexível destas classificações e o
caráter composto das anáfones, não sendo possível posicioná-las em categorizações
estanques, pois nenhuma é necessariamente apenas sônica, tátil ou cinética e a sua
classificação admite um certo grau de hermenêutica fruto da subjetividade relativa ao
universo e experiências musicais do ouvinte.36
Na realidade, é frequentemente impossível isolar o significado de qualquer
estrutura musical a somente um destes aspectos - anafônico e gestual ou tátil
e cinético, social (através de sinédoque de gênero) ou sintática. Não existe
nunca uma maneira 100% segura de dizer que esta ou aquela explicação é
definitivamente a verdade. Tudo que se pode fazer é sugerir explicações
prováveis ou menos prováveis para os aspectos semióticos dos sons musicais.
Penso que muito deste tipo de análise precisa ser feita sob circunstâncias
culturais particulares antes que possamos tirar conclusões gerais sobre como
a música funciona em bases genéricas. (TAGG apud ULHÔA, 1999b, p. 95)
37
Ver o trabalho publicado do musicólogo intitulado Fernando the Flute (2000). New York: Mass Media
Music Scholars’ Press (144 pp.) ISBN 0-9701684-1-1.
70
38
Por conter uma gama de musemas muito maior, na representação da análise de Fernando, Tagg (2000)
utiliza um “quadro musemático” bem mais complexo do que encontrado em Magalhães (2000).
71
39
Os gráficos serão visualizados na seção subsequente deste mesmo capítulo preliminarmente a cada
análise.
72
Claro, a Labareda é uma canção que precisa ter muita técnica pra tocar, é
muito difícil. Tem uma coisa visual. A labareda original é fogo, a labareda
pulando - “O labareda me chamou”- o negócio está pulando ali na sua frente
e eu falei: o que eu vou fazer? A gravação original é paupérrima neste
quesito! Dois acordes. E tem muito pouco do violão do Baden, mais para um
terreiro, é um negócio bem rústico, bem simples. E foi nesta música mais
rústica, mais simples que eu consegui elaborar o acompanhamento mais
complicado. Porque eu fui nesta coisa descritiva, do visual, criar um arranjo
que mostra, que descreve visualmente. A labareda tá lá no violão, tá aceso.
(BELLINATI, 2013)
O musema aqui presentado possui grande similaridade com o anterior a não ser
pelo fato de possuir uma tessitura de âmbito mais restrito e ser executado em uma
região médio-grave do instrumento que dá a esta passagem a função de sustentação e
acompanhamento ao canto, diferentemente do caráter solístico da introdução. (fig.12)
40
O vídeo sob o título de Expresso 2222. Mp4 trata de uma entrevista aonde Gilberto Gil fala sobre sua
composição e demonstra os aspectos técnico-musicais envolvidos na canção e foi visualizado pelo site
youtube. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=ptQi9co6UNga> acessado em: 01/03/ 2014.
76
41
É importante lembrar que Bellinati transcreveu, publicou e gravou a peça Lamentos do Morro.
77
42
O salto da 1ª à 13ª casa em legato é possível graças ao uso da corda solta si, que ao manter-se vibrando
possibilita a mudança de posição da 1ª para a 13ª casa sem interrupções sonoras.
78
A partir do compasso 50, temos uma nova textura aplicada ao arranjo facilmente
identificada pela condução rítmica de samba, que por sua vez consiste em uma
estilização resultante da polirritmia dos instrumentos da bateria de um bloco de
percussão. A regularidade rítmica dos baixos em semínimas relaciona-se à marcação do
“surdo” contraposta às síncopes realizadas pelo tamborim representada nas vozes
superiores dos acordes. Durante toda seção B, nota-se uma preocupação de Bellinati
com o encadeamento dos acordes, principalmente no que se refere à movimentação de
suas vozes superiores que mesmo estando em um contexto textural homofônico
parecem formar um contracanto subjacente a harmonia.
43
Apesar de ter como maior referência à maneira de tocar da harpa, seu uso também é bastante
consagrado em instrumentos de teclado como o piano que, com a utilização do pedal de sustentação e o
uso de ambas as mãos, pode executar sequência de arpejos em várias oitavas com relativa facilidade.
79
O musema aqui apresentado (fig. 21) chama a atenção pelo fato de possuir dois
planos sonoros distintos e independentes no qual temos uma base harmônica e uma
melodia que realiza um contracanto na voz superior. Do compasso 65 ao 67, o baixo em
semínimas realiza um movimento cromático descendente que poderia configurar como
mais uma voz ao acompanhamento representado uma “sinédoque de gênero”
diretamente relacionada ao choro em sua formação flauta, cavaquinho e violão sete
cordas. As inversões e cromatismos na condução do baixo nos graves, a base rítmico-
harmônica na região média e a flauta na voz superior executando a melodia reforçam
esta percepção.44
44
Na gravação do disco Afro-sambas (1990), o arranjo desta canção dá bastante destaque aos
contracantos realizados pela flauta.
80
Labareda
Observamos algumas gravações instrumentais feitas por Baden nas quais três
foram feitas com o acompanhamento de um conjunto musical e uma versão mais
intimista onde o violão solo conta unicamente com a marcação rítmica do chimbal da
bateria.45 Não por acaso, nota-se que é a gravação da qual Bellinati mais fez referências
45
A referida gravação é encontrada no álbum Baden Powell A Vontade (1997) quanto as demais estão em
Poem on Guitar (1967)) Tempo Feliz (1966) e Baden Powell ao vivo no Teatro Santa Rosa (1966)
83
A obra tem início com uma introdução onde o violão apresenta um ostinato de
dois compassos característico dos acompanhamentos de bossa nova (vide fig.23). O fato
de estar no registro agudo e possuir acordes formados por três ou quatro sons nos
remete a estética de concisão presente nos arranjos pianísticos quando inserido nos
conjuntos de bossa nova, constituindo uma “cinédoque de gênero”. O paralelismo em
intervalo de terças é sobreposto a uma linha de baixo em ostinato, articulado sempre no
primeiro e segundo tempo de cada compasso, caracterizando a marcação que dá suporte
às sincopes presentes no acompanhamento e na melodia. O musema perdurará por toda
a primeira repetição da seção A da canção onde, gradualmente, se movimenta por graus
conjuntos descendentes que realizam uma transição da região aguda do violão para a
extrema grave, que se concretiza na segunda repetição do último verso da estrofe
“melhor era tudo se acabar”. Deste modo, tem-se sublinhado o significado textual com o
“acabar” também do limite sonoro da tessitura com som mais grave do violão emitido
pela sexta corda, fundamental do acorde de Ré menor.
M.1
Dm7(9), a nota mi (1ª corda solta) se mantém, ao passo que a 4ª justa formada pelas
notas dó e fá realizam um cromatismo descendente das vozes internas ocasionando
diversas tensões disponíveis aos acordes que contrastam com o caráter pentatônico da
melodia. O tratamento harmônico em bloco e o ritmo que coincide em vários pontos
com o da melodia aludem as “viradas” típicas das Big band de jazz, caracterizando
assim uma “sinédoque de gênero”.
M-2
M-4 M-3
Obedecendo à mesma estrutura da peça solo para violão, a voz encontra seu
espaço no contracanto em relação à melodia que é primeiramente entoada no baixo
cantante, constituindo assim uma forte referência aos responsórios tão típicos aos
cânticos sacros dos rituais afro-brasileiros, porém com o violão fazendo o papel do
cantador principal respondido posteriormente pela cantora. O efeito do cânone remete a
ideia de movimento e coletividade da roda de capoeira ou de um culto afro-brasileiro
(“anáfone cinética”).
M.5
46
Segundo Carlos Almada “convém estabelecer uma importante distinção entre dois termos
frequentemente empregados de forma equivocada, tendo ás vezes mesmo seus significados trocados:
harmonia quartal e harmonia (cujas partes estão dispostas) em quartas. A primeira tecnicamente não
tonal (o termo “atonal” seria talvez forte demais para designá-la), já que não se baseia no sistema
harmônico tradicional de terças superpostas, é construída - como se pode bem imaginar – por
superposição de quartas justas. Rigorosamente, foi usada por alguns poucos compositores modernos
eruditos, tais como Schöenberg (a Música Popular praticamente desconhece a verdadeira harmonia
quartal). O segundo tipo, bem mais comum, não passa de uma forma diferente de se dispor notas de um
acorde convencional (bem como as tensões pertencentes a sua escala, se forem necessárias) de modo que
se dê total preferência ao intervalo de quarta justa.” (ALMADA, 2000. p. 107)
86
Cifra original
47
Faixa número 11 do álbum Afro Sambas (1997) de Bellinati e Salmaso onde a peça solo Cordão de
Ouro, que de acordo com o violonista foi composta sobre a estrutura da peça Berimbau, é usada como
base do arranjo para o acompanhamento.
48
Para o ritmo de samba canção, Pereira (2006) sugere o andamento baseado na semínima em 42 Bpm,
caracterizando um tipo de samba lento e arrastado ao passo que na partitura de consolação, Bellinati fixa
o arranjo em 88.
87
50
2/2 Dm Em7(b5) A7 Dm Dm Dm/A Dm Am7
58
Dm Em7(b5) A7 Dm Dm Dm Dm Am7
Cifra re-harmonizada49
13
13 9 13 9
9 Ab
#6 #6 #6 #6
Ab G7(13) Db C7(9) Gb F6 Cb
#6
54
Bb7M G/B F7M/C Am7(9)
13 9 13 9
#6 #6 #6 #6
58
D7(b9) Ab G7(13) Db C7(9) Gb F6 Cb
62
B7M Dm Am Am
Ele aparece como uma alternativa de variação para o início da segunda frase da
seção B em que o arranjo apresenta a mesma estrutura harmônica e melódica da frase
49
A metodologia de cifragem adotada neste exemplo segue os preceitos propostos na tese de harmonia de
Câmara (2008).
88
anterior, porém este novo elemento musical inserido cria um contraste a esta estrutura
musical. Observa-se que a rítmica proporciona um preenchimento do compasso com as
subdivisões em semicolcheias e cria um contraponto com a nota longa emitida pela voz.
No contexto em que se insere, ele contrasta com a levada de samba-canção estabelecida
na seção B constituindo uma “sinédoque” ao samba enredo. (vide fig.30)
M-7
Devido à afinação convencional do instrumento (mi, si, sol, ré, lá, mi) a
utilização de escalas pentatônicas com paralelismo de quartas constitui um recurso
idiomático ao violão e constitui padrões de grande utilização no rock e blues
constituindo uma sinédoque de gênero em relação ao rock/ blues50(vide figura)
50
Baden fez o uso abundante deste recurso em obras como Luar de Agosto e Insônia.
89
Diferentes das demais peças analisadas, o interlúdio não tem relações com a
introdução, mas consiste em uma repetição do baixo cantante de caráter rítmico de A’,
mas com a articulação em pizzicato dando-lhe outra atmosfera. Do mesmo modo como
Labareda, nota-se que o compositor procurou distribuir os recursos técnicos musicais
em função da estruturação formal da canção dando-lhes formas de acompanhamentos
diferenciados entre si (quadro).
Consolação
preferência pelo movimento paralelo na condução das vozes, inclusive o baixo, que
juntos mimetizam o gesto do “vai e vem” típico do embalar de uma criança que pega ao
sono, caracterizando uma “anáfone cinética”; assim como a nota si, tocada como
harmônico natural na 19ª casa, alude ao som dos sinos presente nos compassos iniciais
da orquestração de Gershwin.
Há algumas relações de compatibilidade entre as peças como tonalidade menor e
a presença de fragmentos melódicos semelhantes que permitem ao arranjador fazer esta
citação com bastante organicidade.
Neste musema (fig. 35) temos uma melodia com cromatismos que contrastam
com o tema do canto feito sobre uma escala pentatônica que constitui a segunda parte da
introdução do arranjo e a primeira da seção A. De acordo com o violonista, esse foi o
elemento musical no qual mais se orgulha de ter criado (BELLINATI apud
GONZALEZ, 2012, p.100). Nota-se um efeito de ruptura com o caráter anteriormente
consolidado e a execução de uma “chamada” que parece introduzir ao ambiente de
evocação ao Orixá. A estrutura rítmica, que em todo momento preenche as subdivisões
do compasso, e o andamento vivo nos colocam diante a imagem da dança (“anáfone
cinética”). Os principais parâmetros característicos desta seção são o andamento mais
rápido e o caráter Vivo que reforçam os atributos de Xangô, “o deus do raio e do fogo,
um orixá temido e respeitado, pois além de viril e violento, é também justiceiro”.
(HAUDENSCHILD, 2010, p.6)
95
52
A violonista Marcela Roshbacker Gonzalez produziu um trabalho de conclusão de curso intitulado O
acompanhamento de seis cordas que remete a sonoridade do violão solo (2012) no qual se dedica a
análise do arranjo em questão.
98
violão, característica presente no ritmo de dança africana que integra o culto a Xangô
chamado alujá. (vide fig. 42)
Outra obra na qual o violonista explora estas matrizes africanas é a peça Jongo
(fig.43) onde encontram-se as principais estruturas rítmicas que são alternadas nesta
seção, uma caracterizando o compasso binário composto e a outra com inclinação para o
térnário simples.
Neste musema (fig. 44) nota-se a presença dos blocos de acordes de três sons no
qual a voz superior mantém-se constante sobre a nota mi (1ª corda solta) enquanto as
demais compõem o intervalo de terça maior que se desloca por movimento cromático
descendente por todo o trecho. Estes elementos nos remetem ao tema da canção
99
53
Para facilitar a compreensão no contexto analisado, a transcrição do tema de Jobim se encontra um tom
acima das gravações feitas pelo compositor.
100
Por meio da observação aos musemas, verificou-se que um dos recursos mais
explorados no decorrer do arranjo é o baixo cantante, porém agregando significados
musicais distintos. O primeiro aponta à forma estilizada por Villa-Lobos em muitas de
suas composições, constituindo melodias que exploram a sonoridade cantábile da quarta
e quinta corda do violão remetendo a sonoridade do violoncelo. Posteriormente,
constata-se que M.8 “baixo cantante” (efeito fechamento)”, já não alude ao lirismo
melódico como anteriormente apresentado. O preenchimento rítmico e o movimento da
escala com o uso de cromatismo de caráter improvisatório o aproximam da forma
utilizada pelos chorões. Assim como nos demais arranjos estudados o momento de
maior clímax do arranjo é reservado à seção B que, no presente caso, parece haver entre
o violão e a voz uma polirritmia provocada pelo cruzamento entre a pulsação binária,
presente na voz, e a ternária estabelecida no violão, característica presente no ritmo de
dança africana que integra o culto a Xangô chamado alujá. Esta seção contrasta com
M.6 (efeito “Villa-Jobim”) no qual os blocos de acordes sem articulação rítmica
ganham um aspecto recitativo que valoriza o significado dos versos da canção.
101
Canto de Xangô
Considerações Finais
Como visto, o disco é fruto de uma parceria de dois músicos que se assemelham
em aspectos como a intensa relação com a música brasileira, o trânsito por gêneros e
estilos musicais dos mais variados, o alto apuro técnico, o apreço por arranjos musicais
mais sofisticados e de caráter experimental, e o fato de a crítica, corriqueiramente,
posicionar seus trabalhos em uma zona fronteiriça que dialoga com elementos
tipicamente relacionados à estética da música popular e de concerto.
uma estética de maior apelo ao público. Desta forma, eles decidiram levar adiante o
projeto de forma independente. Como alternativa, Bellinati sugeriu que realizassem o cd
pela gravadora/editora americana Guitar Solo Publications (GSP), que já havia
produzido outros trabalhos do violonista como o cd The Guitar Works of Garoto. Desta
forma, o violonista propôs um trabalho com uma qualidade violonística que o
justificasse ser incluído em seu catálogo discográfico.
choro, frevo, Jazz, rock e blues) e recursos instrumentais empregados em obras para
violão solo de compositores diversos como Garoto, Guinga, Gismonti e Villa-Lobos.
Foram encontradas referências ao conteúdo paramusical expresso na letra das canções.
Baseando-se no significado dos Afro-sambas para o violonista, ele faz uma citação à
ária Summertime da ópera Porgy and Bess de Gershwin na primeira parte da introdução
de Canto de Xangô.
Referências Bibliográficas
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música sacra afro-brasileira. 2ª Ed. Rio de Janeiro, Pallas, 2005.
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1986.
DREYFUS, Dominique. O violão Vadio de Baden Powell. São Paulo: Editora 34, 1999.
FRANÇA, Gabriel Muniz Improta. Coisas: Moacir Santos e a composição para seção
rítmica na década de 1960. (2007). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
Graduação em Música, CLA, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2007.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
109
SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. 85 anos de músicas brasileiras. Vol. 2:
1958 – 1985. 1ª ed. São Paulo, Ed. 34, 1998.
TAGG, Philip. Analysing popular music: theory, method and practice. Liverpool.
1982. Disponível em: <www.tagg.org/texts.html.> Acessado em 15/03/2014.
Jornais
Baden Powell. Anti-estrela. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 de Julho de 1999,
Caderno Ilustrada, p. 1 e 4
Moacir Santos encerra série Arranjadores com inéditos. Folha de São Paulo, São Paulo,
10 de Setembro de 1992, Caderno Ilustrada, p. 4
Mônica leva Mpb ao erudito. Jornal do estado, Curitiba, 04 abril de 2004, Lançamento.
Discos:
Sites:
ANEXOS:
1. Gostaria que você falasse um pouco sobre seu primeiro contato com a música.
Como foi, através da família? Como foram as suas primeiras instruções musicais?
Meu pai tocava um pouquinho, cantava, tocava um acompanhamento e tal. E, na
verdade minha irmã, um ano mais nova que eu, ganhou um violão nos anos 64 e 63. E
estava muito na moda, nos anos 60, coisa da bossa nova, dar um violão de presente.
Minha irmã ganhou um violão e começou a estudar e eu ficava olhando pra ela e ai
agente até brigava muito. Eu falava pra ela: está tudo errado o que você esta fazendo ai.
Eu não sabia muito, mais eu amolava. Essa coisa de irmão. Ai, minha mãe me falou
assim: Ah, você quer tocar, então vai estudar! – eu falei: Mas eu quero estudar. Ela
ficou meio assim e teve que me colocar na escola de música que ela estava. Eu comecei
a estudar. E dai, foi super rápido. Comecei a estudar bastante, depois eu já entrei no
Conservatório Dramático pra estudar com o Isaias Sávio. Entrei no conservatório em
66. Em 66 eu fiz o enxame e entrei e, em 67, comecei a estudar com o Isaias Sávio no
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.
2. Sobre suas aulas com o prof. Isaias Sávio como era o tipo de repertório e a
abordagem que ele trabalhava com você?
Era um violão super tradicional. Claro, ele passava muitas composições dele,
mas passava o repertório tradicional. [Eu] Tocava Torroba, Albénis, Granados, que ele
gostava muito, e vários compositores. Scarlatti, Frecobaldi, o repertório do Segóvias,
Barrios, Villa-Lobos, os métodos de técnica dele (escola moderna do violão). Um violão
bem tradicional. Eu conheci o Marco Pereira, que também era aluno dele nesta época, o
Paulo Porto Alegre, agente era colega, tudo contemporâneo, todo mundo junto no
conservatório.
3. E teve algum período da formação um estudo voltado exclusivamente para a
música popular?
Teve bastante. Eu tocava em conjunto, tocava guitarra, então, eu estudava jazz.
Eu lidava com a música popular bastante assim, não tanto estudando, mas trabalhando
mesmo, acompanhando, tocando em baile desde o começo, desde quando eu tinha 15
anos. Ai, mais pra frete um pouco, eu acabei sendo contratado por um grupo de baile
112
4. Com o Sávio, ele nunca chegou a entrar nesta questão da música popular ou era
só o repertorio tradicional?
Não, ele sabia. Ele gostava do jeito que eu tocava as Cenas brasileiras. Ele sabia
e ele antevia que eu ia ser um “brasilianista” assim. Ele me dava um repertório. Depois
de um tempo quando ele viu que eu trabalhava com música Popular ele falou: “puxa,
você vai tocar bem toda obra de Valdemar Henrique e Hekel Tavares”. Ele começou a
me dar um monte de coisa que ele não dava pra ninguém, só pedia pra eu tocar esses
tipos de coisas. Arranjos de música popular, repertório mais folclórico, eu toquei tudo.
Cenas Brasileiras, as duas séries, todas as transcrições dele e do Valdemar Henrique,
Hekel Tavares, todos os arranjos lá, as coisas de folclore da Plata.
uma mesma pessoa. Eu precisava de tudo para fazer as pesquisas e tocar um repertório
de música popular com uma sofisticação mais... E todo estudo começou a aparecer.
9. O contrabaxista Rodolfo (do Pau Brasil) afirma em uma entrevista que a ideia
de batizar o nome teve inspiração direta nos ideias modernistas do Mário de
Andrade. De alguma forma você se identifica com essa coisa do Mário de Andrade,
de resgate da cultura popular e do folclore?
Completamente. Eu acho que já fazia isso, sem mesmo ter lido nada do Mário de
Andrade, eu já fazia isso. Eu já era pesquisador sem saber que era. Mais ou menos
assim, eu estava vivendo essas coisas assim. Quando fiz as viagens de navio, quando
estava trabalhando, quando se faz publicidade é um universo gigante, “micro coisa”,
mas são milhões de “micro coisas” que você faz. Para cada trilha você tem que buscar
uma história que tenha haver e tal. Quando eu voltei da Europa, que eu acabei... Antes
115
Acompanhamento, ele tem que ser uma cama confortável. Ele dá...
Acompanhamento faz tudo, né. É o acompanhamento que fala que a música é baião, que
é maracatu, o que é xaxado, o que é valsa, o que é rock. É o acompanhamento que faz o
estilo que dá todo o visual, toda imagem, a emoção da música. A música é uma coisa
super descritiva, o som tem o poder de criar imagens na cabeça das pessoas. E a música
(o acompanhamento) é a parte que tem o poder de fazer isso. Você pode fazer um
acompanhamento muito suave, muito violento, dependendo do que a letra precisa. Eu já
vi muitos acompanhamentos que não tem nada a ver com a música, já vi bastante assim.
O cara tá falando de florzinha e tá tocando um negócio que parece aço, aço temperado.
É isso, ai. Acho que o acompanhamento é coisa fundamental, faz parte da música e é
uma camada importante da música.
11. Você falou de imagens, você costuma pensar em imagens para compor, alguma
coisa neste sentido?
Penso, não é uma coisa muito difícil. Eu entendi que compor era isso desde o
começo. Você lembra coisas, quando eu faço uma música pro um pai, eu lembro dele.
Faço música pro Brasil, Tô lá na Suíça, cheio de imagens na sua cabeça, coisas que
agente vive, né. E tem muita música que vem com coisas, lembranças da minha
infância, bastante assim. Tem música que eu nem sei que estilo que é, não tem estilo, o
que é isso? Não sei. Não é baião, não é samba, não é nada. Não é dessas coisas mais é
brasileiro.
116
nenhum violão em baixo, porque, ai, o momento e a hora que o violão aparecer, vai
criar aquele contraste e tal. Então tudo é que nem uma cozinha, né. Você pode por mais
sal, tirar sal, temperar do jeito que você quer. Eu acho que tem muito isso. A música é
interessante e ela é viva porque tem contraste, né. A música que não tem contraste ela
começa a ficar monótona, chata. E o acompanhamento é a mesma coisa. Eu acho que o
acompanhamento é que nem compor outra música por baixo, simultaneamente. É claro
que você tem várias modalidades de escrita, na música. Polifonia você pode ter duas
vozes andando, o acompanhamento pode ser uma segunda voz que sai costurando. Pode
ser acordes, pode ser só um baixo, pode ser uma orquestra sinfônica gigante, no caso só
o violão, o violão é uma pequena orquestra. Dentro do violão você pode fazer uma coisa
que nem o João Gilberto, que faz um tipo de acompanhamento que vai direto, que é uma
coisa que é uma especialidade, mas ele faz aquilo lá. No caso do disco Afro-sambas eu
tinha um arsenal muito maior de ferramentas como compositor, como orquestrador, e
tal. Essas coisas de dosar, cada faixa tem um estilo, cada faixa eu fui pra um lado.
Provavelmente se o João Gilberto que gravasse os Afro-sambas ia ser uma coisa um
pouco mais monótona, ia ser o jeito dele em todas as músicas. Quer dizer, não quero
dizer que os Afro-sambas não tem o meu estilo. Tem meu jeito lá, mas meu arsenal tem
muito mais elementos.
16. Você pensou em uma concepção global?
É, cada música foi tratada. Eu demorei três, quatro anos pra escrever tudo aquilo.
Cada música foi tratada exaustivamente. O que eu vou fazer com essa? ... Ai, sei lá.
Pega o Bocoché, ele tem um jeito de levar, mas ai na hora que você toca o Canto de
Iemanjá, puts! Vou fazer a mesma coisa que eu fiz no Bocoché. Então eu vou procurar
outra coisa, procurar um outro elemento, fazer um outro tipo de introdução, sei lá. É
uma pesquisa, é como compor, a mesma coisa. Criar um arranjo de acompanhamento é
como compor uma peça. Eu diria que é muito mais trabalhoso, você tem que conhecer
muito mais coisa. Você tem que enxergar toda a harmonia, tem que estar com tudo
aquilo na cabeça, todas as modulações, tem que estar com todos os encadeamentos de
acordes, tem que estar com aquele arsenal harmônico bem elaborado, tem que estar
acostumado a orquestrar, porque você tem que enxergar a música. Quer dizer a música,
ela anda horizontalmente, mas tem ela tem que ser checada verticalmente o tempo
inteiro. Você faz um acorde - que acorde legal, mas você vai ver a melodia, tem nota
que bate... Tem coisa que... Muita coisa com técnica de orquestração você resolve no
violão, que é a mesma coisa, música é música, é igual. Dó maior na orquestra sinfônica
119
e no violão é a mesma coisa. Tem que saber as mesmas regras, a mesma escrita. Não
importa se é um duo ou uma orquestra.
17. Então você prefere estruturar o acompanhamento e durante os ensaios ir
acertando ou prefere já ir com ele em um esboço mais estruturado?
Olha, cada música foi de um jeito viu. Cada música foi uma história. No caso
dos Afro-sambas, violão e voz, com esse grau de escrita tinha uma negociação com a
tonalidade. Não dava pra fazer um arranjo em ré bemol, por exemplo. Entendeu? Você
“mata” o violão. Você não sai do 3ª compasso. Então tinha uma coisa de negociar com a
voz da Mônica, com a tessitura dela pra escolher as tonalidades que fizessem o
instrumento render. Isso veio um pouco da viola caipira, né. Os caras tocam é o
“cebolão”, o “rio abaixo”, ou em ré ou mi e pronto. Tem que ser naquele tom. Se for em
Mi bemol, não vai acontecer coisa nenhuma. O instrumento não vai soar e os caras não
tocam isso. Então a voz, meio se encaixa, né. Nas duplas sertanejas, por exemplo, o cara
tem a viola, o “cebolão”, e todas as músicas eram feitas daquele jeito, naquela tessitura
e eu trouxe um pouco disso desta informação também. Tem cantor que é muito estrito
“– não, eu canto só em Si bemol, eu canto só em Ré bemol, Lá bemol. Eu canto essa
música em lá bemol. Pô, vamos tentar Lá ou Sol. O violão vai render muito e a música
vai ficar mais bonita. Tem casos que.. Tá bom, ponho o capotasto lá e dou um jeito, mas
o violão vai soar mal. Pra esse nível de coisa que agente estava fazendo (eu estava
tocando com o violão super caro, o fleta, microfones DPA, era uma qualidade de som...)
o violão tinha que render o máximo, como um violão de concerto. O violão tem que
soar 100 por cento, explodir, corda nova, tudo a mil. Então pra isso o arranjo tem que
estar orgânico na tonalidade que ....
18. A letra... Tem alguma coisa especial em relação à letra na hora de construir os
arranjos?
Tem, Totalmente. Eu já falei isso aqui hoje. A letra te dá pistas, texturas. Coisas
que são delicadas. “Gotas de água”, “flocos de neve”, “lágrimas”, “ gotas de orvalho”,
tudo isso são imagem sonoras que você pode sublinhar com a música. E também não
pode ser caricato. Coisa de dosagem, se você salgar demais, você não consegue comer.
Não consegue comer nem sem sal, nem salgado demais. A música tem muito isso. Tem
arranjo que foi desprezado nos Afro-sambas, tem coisa que não deu certo e eu fiz outro.
Tem música que mudou de tom, estava... A tonalidade estava muito desconfortável, daí
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agente refez em outro tom. As ideias foram ficando amadurecidas até chegar na
gravação. Era constante, né. Cada ensaio modificava um pouquinho até chegar no dia
que estava gravando. Então vamos fazer isso aqui desse jeito. Até na última hora, né. E
mesmo depois que agente gravou, porque agente fez muita turnê, tocamos esses Afro-
sambas no mundo inteiro, e os arranjos seguiram evoluindo, ganharam coisas que não
tem no disco, ganharam trechos.
19. Então eles não são fechados? Já houve performances com outras...
Não, eles são bem fechados. Não tem muito pra onde abrir com esse nível de
dificuldade. Ganharam assim, por exemplo: vamos fazer um trecho de improviso de
violão e voz. No Tempo de Amor, por exemplo, tem um trecho lá que agente fez depois.
O Bocoché também tem um trecho grande lá, uma variação, um interlúdio. Não sei
quantos compassos tem, é grande, 16 compassos de um interlúdio que não tem na
gravação, ai eu compus mais um pedacinho. Um adendo assim, né.
20. Em alguns momentos o resultado do disco se mostra com um clima bem
diferente do original. Como que foi essa escolha do caráter. Da experimentação?
Porque foi ficando só violão é voz. Esse disco começou como um disco da
Mônica com uma produção do Eduardo Godin, que era pra gravadora velas, e agente
começou a fazer os arranjos e, quando agente apresentou os primeiros arranjos, eles
sentiram que tava muito complicado. Eles falaram: pô, isso ai tá muito difícil, não vai
vender nada. As pessoas não vão gostar deste negócio, tem que por um “tamborzinho”,
tem que por um “tecladinho”. E a gente ficou super ofendido, tanto eu como a Mônica,
que comprou essa ideia, é uma pessoa muito musical, ela falou: Não, vamos na sua,
vamos na qualidade. Fazer um negócio revolucionário. E ai o disco acabou sendo
abandonado, tanto pelo Godin, tanto pela Velas, eu e a Mônica ficamos sem gravadora,
a agente ficou só com os arranjos. Ai, eu propus pra Mônica da gente fazer o disco lá na
GSP, onde eu tinha feito o Garoto, Serenata e tal. Vamos fazer um disco com uma
qualidade de violão sensacional e agente apresenta lá e entra no meu catálogo. E assim
foi feito. Foi produzido o disco aqui, sem gravadora sem nada, agente fez sozinho.
Daí....
21. Em 95?
Em 95. E ai, quando ficou pronto em 96... 97 saiu. Em 96, agente mandou para
os Estados Unidos, agente conseguiu negociar, dai eu negociei a mixagem e
masterização em Los Angeles, o disco foi finalizado lá. A parte de mixagem e
masterização. E ai, saiu nos EUA e depois, quase no mesmo tempo, a Atração quis
121
lançar, então saiu quase simultaneamente, em 97 nos EUA e aqui no Brasil pela
Atração.
22. A Mônica contribuiu de uma forma mais ativa na construção dos arranjos ou
partiu mais da...?
Eh, ela deu muitas ideias. Muito ativa, ela é uma pessoa muito musical, muito
sabe. Tremendo bom gosto. Era tudo uma negociação constante, desde a tonalidade até
o jeito, né. Foi um negócio que era o primeiro disco dela e eu consegui fazer muita coisa
por ela estar começando. Eu acho que se eu tivesse feito o disco com a Gal Costa, com a
Leila Pinheiro eu ia ser muito podado, eu não ia conseguir fazer esse monte de confusão
que eu aprontei nos Afro-sambas. Eu acho que isso é o diferencial. Eu acho que se fosse
hoje a Mônica Salmaso não iria querer fazer o disco deste jeito. É um disco que o
acompanhamento tem uma importância que não é normal. Entendeu? Um
acompanhamento desse jeito tira um pouco... O disco é o que é por causa do violão, por
causa dos arranjos. Têm outros discos ai, os Afro-sambas, da Clara Sandroni dos outros
Afro-sambas, você ouve e... Tudo bem, o acompanhamento baixinho, ali bem normal e
o cantor lá na frente, um disco mais nos padrões no Brasil. Este disco sai do padrão
total, né. Ele assusta. Assustou a gravadora Velas que não quis mais. “Nossa, afro-
samba que não tem atabaque, nem um tamborzinho”. E é um disco que o
acompanhamento é um duo mesmo. É um duo isso ai. Mesmo quando você vê o
acompanhamento do João Gilberto, um dos grandes mestres, né. No acompanhamento a
voz dele é mais importante. E o acompanhamento tá lá quietinho fazendo aquela levada,
aquela “basezinha” bem precisa, um swing e tal, mas é uma camada de importância bem
menos importante. O Afro-sambas tem um diferencial, ele assusta assim. [- me
assutou...] eu trabalhava com a Leila Pinheiro na época e ela falava assim: Pô, porque
você não fez esse Afro-sambas comigo? Ai eu falei pra ela: porque você não ia deixar
eu fazer aquilo tudo, eu falei pra ela.
23. Você se inspirou em algum outro disco dentro desde modelo de voz e violão em
que o violão tenha um papel “lado a lado”?
Ah, tem o disco Cry me a River (Julie London) com o Barney kessel, que é um
disco de violão e voz que eu acho espetacular, Cult, muito antigo. E eu pensei muito
neste disco quando fui fazer o Afro-sambas, que é um disco que tem uma mágica, é
outro estilo, mas assim, é um disco que tem essa coisa, que a guitarra, o
acompanhamento é fascinante. E tem alguns acompanhamentos no Brasil que nem o
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pra caramba. Mas assim, tem uma coisa visual. A labareda original... É fogo, a labareda
pulando “O labareda me chamou”... O negócio está pulando ali na sua frente e eu falei:
o que eu vou fazer? A gravação original é paupérrima neste negócio! Dois acordes, né.
E tem muito pouco do violão do Baden, é mais um terreiro, um negócio bem rústico,
bem simples. E foi nesta música mais rústica, mais simples, que eu consegui elaborar o
acompanhamento mais complicado. Porque eu fui nesta coisa descritiva, do visual, criar
um texto que mostra, que descreve visualmente. O violão tá... A Labareda tá lá no
violão, tá aceso.
25. Na contra-capa do disco de 66, o Vinicius disse que não interessava fazer um
disco bem feito, valorizando mais a espontaneidade. Como você vê isso, será que
isso prejudicou? Como você vê isso... (esse tratamento interpretativo)
Num sei. Eu acho que eles estavam na piração deles pra fazer esse negócio.
Fizeram uma obra maravilhosa. No acabamento, eu vejo um cara meio preguiçoso que
quer ir embora, gravar logo. Eu trabalhei com muito músico assim, que na hora de ser
pressionado o cara fala: puts, me tira daqui que eu quero ir lá pro buteco, toma uma
cerveja e fica em paz. Na hora da pressão, eles odeiam, porque é muito chato. E eu,é o
contrário, né. Eu trabalhei tanto em estúdio, eu fiz tanto acabamento na minha vida
como músico, Passar horas no estúdio cuidando, achando o som certinho do violão,
achando o melhor som da voz, o melhor microfone, era um negócio natural, é uma coisa
que faz parte de minha vida em todos os meus discos. Então, no afro-sambas foi só
continuação deste negócio de acabamento. Se você ouvir meus outros discos vai ver que
tem tudo a ver, o acabamento que tem nos Afro-sambas também tem no Garoto,
também tem nos outros disco anteriores e posteriores. É um jeito que eu tenho de lidar
com a música. Eu acho que se a música estiver mal gravada vai ser muito difícil as
pessoas curtirem. Você se mata pra fazer um arranjo, pra compor um negocio tão legal e
na hora de gravar faz um som, uma porcaria. Fica pra sempre aquele negócio. Porcaria
vai durar eternamente.
26. E como foi a ideia de utilizar o Cordão de Ouro junto com Berimbau?
Uma vez eu tinha feito um arranjo pro Berimbau, lá na Suíça, pro meu grupo lá,
e o tema do Cordão de Ouro já era um acompanhamento do Berimbau. Então foi um
pouco o contrário. Quando eu fiz o arranjo de Berimbau com aquele tema por baixo,
porque o berimbau tem a... [cantando: nã, nã..nã,] só notas repetidas e eu queria fazer
um acompanhamento que não fosse nota repetida, que fosse uma melodia... Eu fiz
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É, porque foi feito em cima do Berimbau, o Cordão de Ouro foi feito em cima
da melodia do Berimbau, da harmonia e da melodia, por isso que dá certo
simultaneamente.
28. Tem uma transposição que você faz na seção B, para Sol menor e,
originalmente, ela se mantem (ou vai pro relativo).
E, isso daí tem um... Tem a tessitura da voz da Mônica que em outro tom iria
ficar agudo de mais e eu ia perder, e todo o meu Ré menor com a 6ª em ré ia para o
“saco”. Daí, não tem mais sentido, né. Ai,era outro arranjo se fosse para outro tom. Era
o tipo da música que ia pra dó menor... Sei lá pra onde ela ia. Ela ia pra um tom do
além. Um tom que não é mais 6ª em ré, não é mais nada daquilo. Ai teve algumas
soluções assim. Eu falei: puts! Por que agente em vez de ir pra Sol menor, normal,
agente vai pra dó menor, porque não? Você ouve e parece um negócio normal, né. Não
parece um negócio estranho. É um outro “tonzinho”. Ela roda em Si bemol em vez de
rodar em Fá. Porque ai a Mônica canta em uma tessitura normal, né. Ai eu aproveito o
“A” [seção] do Cordão de Ouro inteiro em ré com a 6ª em ré. Isso foi uma salvação do
Cordão de Ouro e do Ré menor com a 6ª em ré. Se não, ia perder tudo isso e ia ser
outro arranjo e sabe Deus que outro arranjo iria ser.
Todos os meus discos, desde o Garoto até hoje, eu uso um par de DPA 40 06 pra
gravar. Sempre o mesmo par de microfones. Quer dizer, agora eu tenho meu próprio
par, mas quando eu gravava nos EUA, gravava com esse mesmo microfone e quando eu
gravei aqui nos Afro-sambas eu fiz questão de alugar esse mesmo microfone pra gravar
os Afro-sambas com o mesmo som que eu tinha conseguido nos EUA. Então, tem um
padrão. Tem um padrão de som, o mesmo microfone, com a mesma distância, o mesmo
jeito de posicionar, o mesmo tipo de sala, sala seca. Então, isso dá uma marca minha no
som do violão em todos os meus discos que é sempre muito próximo. Você sabe. Ouve
e você diz: esse é o som.
32. Você considera esse trabalho, se fosse pra fazer um show, seria um concerto ou
mais pra um show a apresentação.
Agente fez as duas coisas. Agente foi convidado pra muitos festivais de violão.
Ai, era concerto acústico total mesmo. Festival Internacional de Violão, agente fez, na
Inglaterra, em vários lugares. E vários jazz clubs também, ai tinha mais cara de show,
mas agente se apresentava sempre com o mesmo figurino, com o mesmo jeitão assim.
33. Você tem algum conhecimento específico sobre candomblé, sobre toques, que
chegou a usar como referência?
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Tenho. Eu fui muito parceiro do José Eduardo Nazário, baterista do Grupo Um.
Logo quando eu cheguei no Brasil, agente montou um curso de música brasileira. Ele
montou um curso, todos os toques do berimbau e tal, ele fez uma apostila gigante. São
Gonçalo, São Bento pequeno... Milhares de toques, né. Vários tipos de afoxé, vários
tipos de levadas de caxixi e esse material eu dividi com ele eu toquei com ele,
entendeu? Eu tenho todas as apostilas eu aprendi todas as levadas. Eu tinha muito
conhecimento dessas coisas e não era um conhecimento teórico. Sabe como é que é? Eu
peguei o caxixi, eu peguei o Berimbau e toquei os negócios com ele. Mas assim, não era
uma coisa complicada. Nunca foi uma coisa complicada pra mim lhe dar com esse
treco, foi uma coisa prazerosa. Pô! Que legal pegar o caxixi “3 contra 2” dá essa levada
e tal. Berimbau, a mesma coisa. Eu nunca quis fazer isso uma tese acadêmica, por
exemplo. Catalogar tudo. Sei lá, quando eu precisar tá aqui dentro. Eu aprendi isso,
algum dia eu vou usar. É claro, quando você quer fazer um negócio mais muito
específico. Como é que é um pagode de viola do Tião Carreiro? Puts! Vou ter que ir lá
no disco, né. Tem muita variedade no Brasil. Pra fazer um pagode de viola igualzinho
tem que escutar a violinha do Tião Carreiro, aqueles discos dele até entender o que tá
rolando ali... No Consolação, por exemplo, eu peguei um improviso que o Baden faz.
Improviso não, é um acompanhamento que o Baden faz que tá na gravação original. Eu
falei: puts! Isso é muito legal, tem que ter. Mas eu coloco esse negócio depois, como
uma coisa nova, entendeu? Eu tiro ele da posição de acompanhamento no disco do
Baden e boto ele na posição de interlúdio. Porque eu acho um negócio tão legal... Que
no meu disco eu coloco numa posição de destaque, inclusive a Mônica faz junto comigo
aquele refrão, aquele refrão que no disco do Baden era um acompanhamento. Era um
acompanhamento dele, que ele faz cada vez de um jeito. Eu tirei aquele negócio, dei
uma organizada pra ficar... E fiz a partitura direitinho e a Mônica aprendeu, dei uma
partitura pra ela e falei: Puts! Vamos deixar ele como especial, sem o Consolação em
cima pra “atrapalhar”. É, ficou legal.
36. Na canção do Cordão de Ouro teve algum motivo específico que você usou que
lembra (que remeteu) alguma coisa da capoeira, ou do Baden?
Ah, teve só a levada do lundum, que é uma levada simples. (demonstração
verbal) que é uma levada bem rudimentar, os primórdios da música brasileira. Primeira
“batidinha” da música brasileira. Super rudimentar. Bem simples mesmo. Eu tentei
guardar isso um pouquinho (demonstração verbal)... Que é diferente do baião que... É
bem diferente. Isso leva um pouquinho a coisa pra outro lado. E você pega os primeiros
estilos brasileiros, a modinha e o lundum, você vê uma coisa muito simples, mas você
vê o contraste do simples com o... A síncope só é valorizada desde que você tenha o
chão. Se você não tem o chão, ela pode ser qualquer coisa, ela tá flutuando.
Então, o que eu entendi no Cordão de Ouro eu falei: Puts, pra essa síncope
aparecer eu tenho que colocar colcheias constantes. (demonstração verbal) entendeu?
Essas duas vozes se completam neste sentido. O ritmo fica muito mais charmoso desde
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que você tenha o chão. Tem que ter um chão pra coisa que está suspensa ser precisa e
acontecer.
37. As harmonizações em bloco que, às vezes, aparecem muito, têm uma referência
ao jazz... Ao Baden...?
Tem. Tudo é a mesma coisa. Do mesmo jeito que você escreve pra Big Band, você
escreve pra bloco de violão. É a mesma coisa. Pode ser modal, pode ser cromático, pode
ser bachiano, pode ter “cadências clássicas”.
Acho que o importante em música é você não ter uma coisa só, e cada música você se
dedicar a ela especialmente. Não tente enviar coisa que você aprendeu na outra música
na música do novo arranjo. Isso daí, é que engessa e que faz a música ser
desinteressante. Eu acho que você tem que se colocar em estado de inspiração cada vez
que você começa a mexer com música. Tanto pra arranjar, tanto pra compor. Tem
alguma coisa que tem que fazer, tem que tirar de dentro as coisas. Essa música é
especial, o que ela tem que as outras não têm? E procurar, né. Procurar dentro de você
qual a expressão que aquela música tem. E você vai curtindo e começa a sair, as coisas
saem meio naturalmente. O lugar que você procurar que tem que ter cuidado, você pega
aquela sua “caixinha de Sus4”, entendeu? Tem esses acordes aqui e eu vou colocando.
Eu já vi muitos arranjos assim, eles [arranjos] não dão muito certo, são chatos, eles são
feios, né! Eu acho que quando você lida com uma composição tão boa como essas do
Vinicius, do Tom, ou de qualquer outro desse gênio da música brasileira, você tem que
recriar a música. Você tem que fazer o percurso que o compositor fez. E nesta curtição
as coisas continuam no caminho pra pegar aonde o cara parou, né. Mas pra pegar aonde
o cara parou tem que viver o que o cara viveu, tem que curtir a música. Como que é esta
letra aqui, porque que é assim. Tem que tá curtindo. Tem uma coisa da curtição mesmo,
de ficar curtindo a música, de ficar gostando daquele negócio. Aí, saem novidades,
aparecem coisas, aparecem coisas... Sei lá... De repente aparece um negócio, aparece
um caminho, uma coisa que nunca ninguém fez. Entendeu? Você não foi buscar em
lugar nenhum. A sua pergunta é engessante neste sentido, quer dizer. Mas ela é
desafiadora. Ela me obriga a te dizer que não fui buscar em lugar nenhum. Não fui
buscar em lugar nenhum. Graças a Deus, porque se eu tivesse ido buscar, ia ficar igual a
outras coisas que são chatíssimas. Você vai na “caixinha do Sus4”, você vai na
“caixinha da diminuta”. Sei lá... Eu acho que não é esse o jeito de procurar, é outro
jeito, por isso que dá certo. Pelo menos, eu acho. Num sei...
129
38. Se fosse pra analisar suas músicas qual ferramenta analítica você acha que
seria mais apropriada pra poder fazer uma análise?
Ferramenta, ferramenta o quê, ferramenta musical?
39. É.
Qualquer análise ela é igual. Qualquer música que você analisa você analisa forma,
analisa harmonia, analisa a parte temática, modulações, o que é A o que é B, o que é
introdução, o que é variação, o que é interlúdio , o que é coda, porque que modula. E o
estilo do texto, tanto o texto musical, o melódico, quanto o texto acompanhamento. E a
análise profunda vertical do contraponto de compasso por compasso, acorde por acorde.
A música tem... É um gráfico, né. Ela anda dos dois jeitos, ela anda na horizontal e
vertical. Ela vibra no tempo. Tem o andamento, o andamento é uma coisa importante.
Depois de tudo isso, você aplica a interpretação que é o acabamento final. Porque que
vai sumindo, por que é super piano em uma hora, por que é super forte, por que vai pra
percussão, Por quê? Por que o cara decidiu de repente. Isso foi uma ideia que apareceu,
né. Eu tava fazendo o Pedra Preta e uma hora apareceu essa ideia de uma repetição ser
só violão-percussão com a voz, sem o acompanhamento, daí na hora que volta, você
tem outra uma textura. Tem a textura quando sai, mas tem a textura quando volta.
Quando volta o acompanhamento dá outra variação. São elementos de orquestração que
agente acaba usando, são muito legais. O arranjo foi feito sem isso, isso apareceu lá
pelas tantas... Uma pela hora lá eu falei: puts!... Eu saí fazendo e a Mônica falou: nossa
que você está fazendo? Sei lá, num sei... O que você acha? De repente você vai tá
tocando e incorpora isso no arranjo. Aparece. Você tem uma ideia a faz a ideia naquela
hora, isso é uma coisa muito do improvisador. E a ideia é tão legal. Puts!...Vamos
gravar isso já, senão vai esquecer. Ficou demais. Outra coisa... Você tá tocando, sente o
treco e sai fazendo. Se meter a fazer um treco que não tava combinado, não tava nada
certo. Fica muito legal e acaba sendo uma coisa que vai pro texto, vai pra partitura.