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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ

DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES


COLEGIADO DE LETRAS
LTA 051 - LITERATURA BRASILEIRA II
Profa. Paula Regina Siega

LUIZ HENRIQUE CARACAS DA SILVA

ENSAIO

ILHÉUS - BAHIA
2017
Literatura como instrumento para a construção de imaginários
Luiz Henrique Caracas da Silva

Introdução
É fato inegável que José de Alencar cumpriu magistralmente seu papel como
romancista brasileiro no século XIX. Além de escritor de romances, foi jornalista,
político, advogado, cronista e orador. Nascido em Messejana, Ceará, em 1 de maio de
1829, passou a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, então capital do império.
Conforme o próprio Alencar descreveu em sua autobiografia “Como e Porque Sou
Romancista”, é possível que seu páthos1 com a literatura tenha ocorrido ainda em sua
infância, quando costumava ler romances e novelas para as senhoras que frequentavam
sua casa.
José de Alencar é a expressão clara de como a produção artística escrita pode ser,
tanto o fruto de um autor que entendeu o seu público, e, portanto, tem em sua arte a
capacidade de dialogar com as afeições de seus leitores e leitoras, quanto a semente de
alguém que intenta produzir um tipo de público a partir da construção de um imaginário.
Tal intenção, no contexto do romantismo, foi marcada pela construção de uma
ideia de nação, tal como de uma língua pátria. Como refletiu Bakhtin,

Os românticos foram os primeiros filólogos da língua materna, os


primeiros a tentar reorganizar totalmente a reflexão linguística sobre a
base da atividade mental em língua materna, considerada como meio de
desenvolvimento da consciência e do pensamento. (BAKHTIN, 1988,
p.112)

Nação romanticamente imaginada


Em terras tupiniquins, é possível destacar que o labor literário romântico, do qual
emerge Alencar, foi amplamente marcado por um engajamento para a formação de uma
literatura que fosse a expressão de uma identidade nacional, desvinculada da literatura
portuguesa. Assim, é nesse cenário que emergem conceitos como: brasilidade, cor local
e nativismo, vale dizer, utilizados pela crítica literária como critérios para determinar o
que seria, ou não, literatura brasileira.
Partindo desse pressuposto, ao analisarmos as obras de Alencar a partir de uma
perspectiva geral e nos servirmos da subdivisão de seus escritos, nas categorias indianista,

1
Padecimento; sentimento que não pode ser expresso por palavras. Segundo o Houaiss, qualidade no
escrever, no falar [...] que estimula o sentimento.
histórica, regionalista e urbana, tornar-se-á perceptível a construção de um imaginário
nacional fundamentado naquilo que, sob a ótica do autor, representava o Brasil, o
indígena, o sulista, o nordestino, o sertanejo, o homem, a mulher, o negro etc. Assim,
torna-se amplamente provável o argumento de que não há literatura desinteressada, bem
como a premissa de que os textos literários são condicionados ao tempo em que foram
escritos, ao lugar social de onde se escreveu e principalmente à ideologia sob a qual o
texto é produzido.

Perfil de Mulher: bela, recatada e do lar


No que concerne aos romances urbanos de Alencar, podemos destacar a obra
“Senhora”, um dos últimos romances alencarinos. Publicado em 1875, em sua “velhice
literária” (termo cunhado pelo autor para designar um tempo posterior ao período no qual
foi restituído às letras após ter se dedicado a alta política), o romance nos conta, através
de um narrador-observador onisciente, a história das peripécias da heroína Aurélia
Camargo, (jovem órfã, nascida de uma família pobre, que recebe uma herança inesperada
de seu avô paterno, o rico fazendeiro Lourenço Camargo) e os acontecimentos de sua
aventura amorosa com Fernando Seixas, jovem interesseiro que, embora possuísse
sentimentos amorosos por Aurélia, preferiu abandoná-la, trocando-a por Adelaide
Amaral, motivado pela promessa de um dote cuja quantia era de trinta contos de reis. A
trama é organizada em quatro partes que remetem a uma transação comercial: Preço,
Quitação, Posse e Resgate, que representam metaforicamente o casamento por interesse.
É digno de nota o fato de que o romance se desenrola de forma a apresentar, no Resgate,
a redenção (ato de resgatar mediante pagamento) do personagem Fernando Seixas, bem
como a superação dos conflitos sociais que se interpõem ao longo da obra.
Ainda que se tenha cuidado de não estabelecer uma análise anacrônica
fundamentada em critérios psicológicos, sobre a possibilidade de que a intenção de José
de Alencar fosse, a partir do romance Senhora, empreender uma crítica da sociedade
burguesa de seu tempo, sobretudo acerca dos casamentos por dinheiro, é válida a reflexão
proposta por Antonio Candido (2006, p. 15-17) quando realizou uma pequena análise
desse romance para tratar de possibilidade de uma crítica sociológica de escritos literários.
Segundo Candido, para se alcançar uma definição do caráter sociológico de um estudo, é
preciso ir além “referências a lugares, modas, usos; manifestações de atitudes de grupo
ou de classe” (ibid., p. 15). Neste caso, o fator sociológico não seria percebido dentro das
estruturas presentes no desenvolvimento da protagonista Aurélia, e seu desejo de
vingança que a prende numa perspectiva das relações humanas reduzidas a um acordo
econômico. Diferentemente, o fator social seria identificado como formador da estrutura
do livro, na composição do todo e das partes.

Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta
o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar,
na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade
determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente;
mas como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo
e não ilustrativo (ibid., p. 15-16).

Por conseguinte, se tomarmos o termo utilizado pelo autor no subtítulo do


romance, Aurélia representa um tipo, um modelo, um “perfil de mulher”. Alencar a
apresenta magnificamente como uma estrela, a rainha dos salões fluminenses, a musa dos
poetas. Tomemos como exemplo uma das descrições da personagem apresentada ainda
no segundo capítulo da primeira parte:

Quem a visse nesse momento assim resplandecente, poderia acreditar


que sob as pregas do roupão de cambraia estava â ondular
voluptuosamente a nimpha das chammas, a lasciva salamandra, em que
se transformara de chofre a fada encantada. (ALENCAR, 1875, p.21)

Entretanto, embora apresentada como resplandecente estrela, e com características


psicológicas incomuns às mulheres de seu tempo, o ambiente no qual Aurélia exerce seu
reinado está condicionado aos espaços residenciais. Toda voluptuosa glória com a qual a
heroína é detalhadamente descrita não são capazes de proporcioná-la um papel de
relevância nos espaços públicos, uma vez que, mesmo sendo rica, permanece dependente
de um enlace matrimonial para permanecer numa posição de dignidade diante da
sociedade, ao mesmo tempo em que condiciona sua vida ao amor romântico. Assim,

Em Senhora, temos a oportunidade de observar a afirmação da mulher


como o “outro” do homem. A personagem Aurélia, num único
movimento, reivindica o amor e renuncia a si mesma, pois, ao eleger o
amor como o objeto supremo de sua existência, confunde-se com o
próprio destino, admitindo mesmo a ideia de morrer por amor
(THIENGO, 2008, p. 5. Grifo da autora).

Nesse sentido, Aurélia encaixa-se perfeitamente num “perfil de mulher” vigente


em certas formações discursivas ainda presentes na contemporaneidade, mesmo depois
de quase um século e meio da publicação de Senhora. A heroína alencarina era,
precisamente, “bela, recatada e do lar”.
A função edificadora do romance
Como destacamos anteriormente, Alencar dominou a arte de produzir romances
que dialogassem com as afeições do público de seu tempo, especialmente as mulheres.
Porém, romancista não tão somente percebeu o caminho para falar ao coração de suas
leitoras, mas, se utilizou de sua arte como instrumento modalizador de um imaginário
acerca de qual seria o papel da mulher enquanto ente de uma sociedade brasileira,
familiar, patriarcal, sob a premissa de uma moral elevada, e de bons costumes. Nessa
perspectiva, Soares (2010) aborda que os romances consistiam numa escrita que
objetivavam construir uma mentalidade específica sobre as relações entre os gêneros
justamente pelo fato de proporem regras sociais que condicionavam as experiências
amorosas dentro de um discurso fundamento em práticas permitidas de acordo com certo
padrão moral. É importante ressaltar que a ênfase não estava reduzida apenas a questões
morais como fim em si mesmas, mas que essa forma de adequação seria uma conditio
sine qua non2, para uma vida feliz, para um final feliz,

Ao mostrar as situações com base em um raciocínio que considere o


certo e o errado dentro do âmbito dos sentimentos, Alencar sugere às
leitoras o modelo de comportamento não apenas decente, mas
sobretudo feliz! Dessa forma, quando a felicidade de toda a vida está
em jogo, o melhor realmente é seguir as instruções que impeçam a
desgraça (SOARES, 2006, p.200).

Considerações Finais
De acordo com a simples argumentação proposta acima, torna-se possível
confirmar a proposição do título deste ensaio. Como toda expressão artística, a literatura
tem a capacidade de dialogar com as emoções de seus interlocutores, e, portanto, podem
moldar a consciência, construir imaginários, formar sociedades. Cabe-nos,
consequentemente, o esforço intelectual de, na medida do possível, nos deslocarmos
enquanto leitores de textos literários para que possamos perceber que tipo de formação
discursiva tem sido o solo d’onde brotam os dizeres, as estruturas nas quais os gêneros
textuais estão expostos. Tal esforço não se resume à leitura crítica de textos literários,
mas à toda e qualquer formação discursiva, toda e qualquer produção artística,
principalmente as que se apresentarem como desinteressadas, como neutras, como única
possibilidade.

2
Indispensável, essencial.
REFEÊNCIAS:
ALENCAR, José de. Senhora, perfil de mulher. Rio de Janeiro: B. L. GARNIER. 1875.

______. Como e porque sou romancista. Portal Domínio Público. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000311.pdf>. Acesso em: 10 set.
2017.

CANDIDO, A. Crítica e Sociologia. In _____. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro:


Ouro Sobre Azul 2006, p. 15-25.

BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV, V. N). A interação verbal. In: ______. Marxismo e


filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem 4ª ed. Tradução por Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec,
1988. p. 112-130.

SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Nos caminhos da pena de um romancista do século
XIX: o Rio de Janeiro de Diva, Lucíola e Senhora. Revista Brasileira de História, São
Paulo, vol. 30, n. 60, p. 195-209, 2010. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rbh/v30n60/a11v3060.pdf>. Acesso em: 8 ago. 2017.

THIENGO, Mariana. O perfil de mulher no romance Senhora, de José de Alencar.


Travessias (UNIOESTE. Online), v. 3, p. 1-17, 2008. Disponível em: <http://e-
revista.unioeste.br/index.php/travessias/article/viewFile/3016/2362>. Acesso em: 22 set.
2017.

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