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CORREDOR CULTURAL DO RIO DE JANEIRO:

UMA VISÃO TEÓRICA SOBRE AS PRÁTICAS DA


PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL

Evelyn Furquim Werneck Lima 1


evelynw@rjnet.com.br

RESUMO
Partindo de autores e documentos reconhecidos internacionalmente como a Carta de Veneza
(1964), Declaração de Amsterdã (1975), Recomendação de Nairobi (1976) e Carta de Burra (1980),
a autora, primeiramente, aponta as transformações conceituais que estabeleceram os marcos
teóricos da preservação, e numa abordagem contemporânea busca também definir alguns dos
dilemas atuais desta atividade. Neste sentido, este trabalho busca compreender o reflexo destas
transformações sobre as práticas da preservação estabelecidas no Brasil, e mais especificamente
no caso do Corredor Cultural do Rio de Janeiro. A partir da reflexão sobre o caso, a autora delineia
os aspectos que levaram à criação do projeto e à sua implantação, apontando para como uma de
suas principais conseqüências a própria delimitação das APACS - Áreas de Proteção do Ambiente
Construído. A análise apresentada permite a delimitação e avaliação das várias etapas deste
processo, destacando ainda a atuação do Grupo Executivo do Projeto do Corredor Cultural do Rio
de Janeiro. Finalmente, a autora conclui pela necessidade de uma abordagem contemporânea na
preservação da área, considerando os diversos aspectos de sua realidade local.

PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio cultural, politicas de preservação, corredor cultural.

RESUMEN
Este artículo propone una reflexión sobre la práctica de la preservación del patrimonio cultural, a
partir de autores y documentos reconocidos internacionalmente, como la Carta de Venecia (1964),
Declaración de Ámsterdam (1975), Recomendación de Nairobi (1976) y la Carta de Burra (1980). La
autora primeramente apunta las transformaciones de los conceptos que establecieron los marcos
teóricos y prácticos de la preservación, en un abordaje contemporáneo, buscando también delimitar
algunos de los dilemas actuales de esta actividad. Se trata de comprender su reflejo sobre las
prácticas de la preservación establecida en Brasil y más específicamente en el caso del Corredor
Cultural de Rio de Janeiro. A partir de la reflexión sobre el caso, se trata de delinear históricamente
los aspectos que llevaron a la creación del proyecto y a su implantación, además de apuntar para
sus principales consecuencias, como la limitación de las APACS – Áreas de Protección del
Ambiente Construido. El análisis del caso, permite entender la actuación del Grupo Ejecutivo del

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Proyecto del Corredor Cultural de Rio de Janeiro, limitando y evaluando las varias etapas de este
proceso. La autora concluye por la necesidad de un abordaje contemporáneo en la preservación del
área, considerando los diversos aspectos de su realidad.

PALABRAS CLAVE: Patrimonio cultural, políticas de preservación, corredor cultural.

ABSTRACT
This paper deals at first with the contemporary conceptual transformations in heritage preservation,
using international documents such as the Venice Charter (1964), the Amsterdam Declaration
(1975), the Nairobi Recommendations (1976) and the Burra Charter (1980), and, in a contemporary
approach, tries to diagnose some current dilemmas in the field. It aims to establish the relationship
between the theoretical transformations and the practice of preservation field in Brazil, taking as a
case study the Corredor Cultural, a preservation project in Rio de Janeiro’s historic center. Finally,
the author points the necessity of a contemporary approach in the preservation of the area,
considering all its relevant aspects.

KEYWORDS: Cultural heritage, preservation policies.

CONCEITOS E DILEMAS

O patrimônio cultural de um povo não se constitui só dos bens móveis ou imóveis


independentemente de serem públicos ou privados, porém de toda manifestação
que se origine de conceitos históricos, ambientais, paisagísticos, arquivísticos,
etnográficos, que em alguma época possam ter contribuído para a consolidação da
identidade de um grupo social. Aspectos estilísticos cognitivos e afetivos com a
população local devem ser sempre ajuizados no processo de investigação de um
bem a preservar. Preservar e restaurar bens não quer dizer “cristalizá-los” como
peças ou verdadeiros museus (LIMA et al, 1992, p.65). O cerne da questão do
patrimônio é justamente a forma de revitalizar o uso dos bens preservados sem
retirar o significado urbano do bem. Ao proteger os bens culturais de um segmento
da sociedade, visa-se na realidade promover-lhe a identidade cultural, pois ao
perder ou ver alteradas expressivas manifestações arquiteturais e paisagísticas, o
indivíduo perde também os referenciais que permitem sua identificação com a
cidade em que vive, em especial quando tecidos antigos são arrasados e novos
objetos urbanos passam a compor a paisagem, com massivas alterações na escala
do lugar.

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Como afirma Lucrecia Ferrara (2000) a escala humana dos centros históricos fazia
com que o espaço público se fizesse notado e utilizado.

A rua, a avenida, a praça, o jardim, o passeio eram os espaços do


coletivo, da mescla de pessoas, de hábitos, de opiniões, da
apropriação conjunta. Definitivamente, o espaço da cidade oferecia,
em público, o conforto da intimidade: a rua, a avenida, a praça eram
espaços de estar, ver e sentir e estavam muito distantes da funcional
artéria destinada ao deslocamento; diferiam, em todo o sentido,
daquilo que tem sido apontado como sinal de decadência do público
em favor do espaço privado ( FERRARA, 2000, p. 134).

A cidade, espaço possível do encontro é o lugar mesmo no qual o homem pode


agir. É o lugar concreto e efetivo onde as vontades humanas, pelos
entrecruzamentos, podem atuar em conjunto, onde o homem encontra-se a si
mesmo e os outros como possibilidade miraculosa no espaço (Cf. ANSAY e
SCHOONBRODT, 1989, p. 63). Assim funcionavam os espaços públicos e
privados, onde a troca de sociabilidades e a solidariedade eram a marca da cidade
antes que os modelos desenvolvimentistas fossem implantados nos territórios
urbanos 2 .

Até os anos 1960, a idéia que se fazia da arquitetura como patrimônio cultural era
ortodoxa e calcada sobre conceitos estratificados na fase “heróica“ do IPHAN, onde
as estéticas colonial, barroca, neoclássica e do Movimento Moderno representavam
sólidos modelos. Imóveis ecléticos, art-nouveau e protomodernos eram ignorados e
derrubados. Inicia-se uma nova visão de intervenção sobre o patrimônio, passando-
se da idéia da preservação para a da conservação, que vem a constituir o segundo
modelo do artigo de Leonardo Castriota (2004). Considerando o contido na “Carta
de Burra” de 1980, o termo conservação designará:

os cuidados a serem dispensados a um bem, para preservar-lhe as


características que apresentem uma significação cultural. De acordo
com as circunstâncias, a conservação implicará ou não a
preservação ou a restauração, além da manutenção; ela poderá,
igualmente, compreender obras mínimas de reconstrução ou
adaptação que atendam às necessidades e exigências práticas
(CARTA BURRA, 1980 apud CASTRIOTA, 2004).

Como se pode perceber, a partir da concepção ampliada de seu próprio objeto, a


conservação vai apontar para uma dimensão mais dinâmica, passando da idéia da
manutenção de um bem cultural no seu estado original para a da conservação
daquelas de suas características ”que apresentem uma significação cultural”. Desta

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forma, enquanto a preservação pressupõe a limitação da mudança, a conservação
refere-se à inevitabilidade da mudança e à sua gestão. Nesta nova perspectiva,
surge uma contribuição teórica importante pela Declaração de Amsterdã de 1975,
do conceito de “conservação integrada”, onde se explicita a necessidade da
conservação do patrimônio cultural ser integrada ao planejamento urbano e
regional.

Verifica-se que surgiu também na cena internacional, desde 1975, a questão da


integração (dos conjuntos históricos) à vida coletiva de nossa “época”. Em 1976, em
Nairobi, a Unesco adota uma recomendação relativa à proteção dos conjuntos
históricos tradicionais e ao seu papel na vida contemporânea, que continua sendo a
exposição de motivos e a argumentação mais complexa em favor de um tratamento
não museal das malhas urbanas contemporâneas (CHOAY, 2001, p.223).

Obedecendo em parte os princípios desta declaração, uma equipe de escritores e


arquitetos, o Grupo Executivo do Projeto do Corredor Cultural do Rio de Janeiro,
passou a gerir a área da cidade do Rio de Janeiro referente ao centro histórico e
que tem progredido em várias etapas de um processo, há mais de vinte anos.

ASPECTOS PROPÍCIOS À IMPLANTAÇÃO DO CORREDOR CULTURAL

No caso do Rio de Janeiro, a crise econômica dos anos 1980 e uma certa
estabilização do crescimento da população urbana, que já atingira a faixa de 80%
da população total do município, aliada à retomada da democratização foram
fatores que estancaram o desenvolvimento da indústria imobiliária que substituiu
em menos de um século no mínimo três vezes as edificações dos bairros cujos
terrenos muito se valorizaram. Este foi o caso da avenida Rio Branco, onde restam
apenas três ou quatro imóveis edificados nas primeiras décadas do século XX e
onde alguns terrenos abrigam a quinta geração de prédios desde 1905, quando de
sua inauguração, numa feroz reconquista do valor de mercadoria adquirido pelos
terrenos ao longo do tempo.

A Carta de Veneza (1994) e a preservação dos sítios urbanos e conjuntos


arquitetônicos e não mais apenas os marcos notáveis, certamente propiciou
delinear a proposta que se materializou na pela Lei Nº 506, de Preservação
Paisagística e Ambiental do Centro da Cidade do Rio de Janeiro, conhecida como a
Lei do Corredor Cultural, aprovada em 17 de Janeiro de 1984 e depois revista e
ampliada pela Lei Nº 1.139 de 16 de dezembro de 1987.

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Alguns fatos contribuíram para a implantação do projeto Corredor Cultural: (i)
iniciativa e vontade política da prefeitura; (ii) sinergia de atores sociais; (iii) forte
exposição na mídia; (iv) isenção de IPTU, que é muito elevado na área central, TO
e ISS. Estes mesmos fatos não conseguem induzir as reabilitações em outras áreas
significativas e históricas da cidade, que têm sido objeto de leis de proteção do
ambiente cultural, visto que essas, por serem áreas desvalorizadas e, por vezes
decadentes, apresentam o IPTU bastante reduzido, com valor insuficiente para a
recuperação dos imóveis.

Entre as características básicas do Centro Histórico do Rio de Janeiro destacam-se:


(i) a fragmentação do espaço urbano, (ii) uma verdadeira colagem de prédios de
várias décadas diferentes, (iii) alturas e tipologias diferenciadas; (iv) grande
concentração de bens tombados pelo IPHAN, em especial igrejas dos períodos
barroco e neoclássico, bem como várias obras do Movimento Moderno.

Pode-se afirmar que os primeiros passos destinados a atribuir novos significados, e


conseqüentemente mais valor, aos conjuntos urbanos, do ponto de vista das
políticas de preservação do patrimônio histórico no Brasil, foram dados na década
de 1970 (MAGALHÃES, 1985). Os sinais partiram do próprio governo federal
através das reflexões e ações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – o IPHAN/ Pró-Memória. Naquele momento discutia-se e tentava-se
praticar, ao lado de conceitos inovadores, como a valorização do patrimônio
imaterial e a incorporação e participação da população nos processos de
preservação, um novo ideário de proteção e de ação sobre os sítios históricos, que
fosse mais permeável do que aquele até ali adotado, ainda muito arraigado às
formulações da cidade monumental. Os postulados da Carta de Veneza, de 1964,
tiveram grande importância nesta mudança de rumos do mundo do patrimônio no
Brasil e no resto do mundo em geral, mas pode-se afirmar que o início da abertura
política e a expressiva participação das associações de moradores foram decisivos
para deslanchar o processo.

Segundo Augusto Ivan Pinheiro (2004), o projeto Corredor Cultural iniciado no início
dos anos 1980 pode ser subdividido em quatro períodos: implantação (delimitação,
criação do quadro legal e institucional), consolidação (materialização,
aprofundamento, recuperação e conservação), estruturação (incorporação dos
espaços públicos e das melhorias incrementais) e integração (adesão de outros
atores e outros processos) (PINHEIRO, 2004, p.76).

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A área denominada Corredor Cultural apresenta uma população usuária de cerca
de dois milhões de transeuntes pertencentes a diferentes camadas sociais que
circulam nas avenidas ruas, praças e becos onde edifícios de diferentes períodos
abrigam usos comerciais e institucionais diversos. A proposta legislativa do
Corredor Cultural alterou alguns tipos de uso das edificações, proibindo alguns
usos, como a construção de vagas para veículos nos prédios preservados e
limitando outros mais, como o número de pavimentos garagem nas áreas
renováveis. O uso das salas de espetáculos (cinemas e teatros) foi mantido, mas,
independente da proibição, muitos deles foram substituídos por usos religiosos.
Uma questão fundamental foi a padronização de letreiros de propaganda nas
fachadas dos imóveis, bem como a colocação de equipamentos externos, como
aparelhos de ar-refrigerado e toldos nos vãos de janelas e portas. Infelizmente, as
prospecções pictóricas são raras e o Grupo Executivo acabou por montar
esquemas cromáticos e oferecer aos ocupantes dos imóveis preservados,
desprezando algumas teorias do restauro.

Para estimular as obras de recuperação das fachadas, o poder público municipal


investiu maciçamente nas obras de requalificação urbana, reurbanizando ruas,
largos e praças e investindo na iluminação dos edifícios mais significativos. Os
locais escolhidos primeiramente foram as imediações da Praça XV de Novembro, a
Cinelândia, o Largo da Carioca, o Largo da Lapa e o trecho que se estende desde a
Rua Uruguaiana até a Praça Tiradentes. As etapas seguintes foram
progressivamente atingindo toda a área central, mesmo nos trechos não
preservados. Embora não cronológicas as descrições a seguir dão uma idéia do
vulto e da importância do programa de obras que chegou, entre 1993 e 1996 a
atingir valores próximos a U$ 100.000.000,00 (cem milhões de dólares).

UMA MORFOLOGIA A PRESERVAR

Deve-se enfatizar que reestruturar áreas degradadas, isto é, promover a


reabilitação dos imóveis e a requalificação dos espaços públicos, implica na
integração destas áreas às necessidades da vida contemporânea, sendo
indispensável que as novas destinações de uso sejam compatíveis com a
morfologia, com a escala do bairro e com o desejo dos usuários que ali habitam.
Acreditando que a história social urbana se escreve a partir da análise das cidades
e de suas edificações, e que a cultura tem sido sempre a cultura urbana, edifícios
outrora simbólicos, antigos palacetes ou simples residências operárias devem sofrer

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transformações que revalorizem suas estéticas e que justifiquem seus novos usos.
Além disto, é fundamental que esses usos sejam multifuncionais, ou seja, é
insuficiente transformar a área em centro de serviços sem que haja também
residências, pequenos comércios e incentivo ao artesanato mais característico da
região.

Com base nos estudos morfológicos e antropológicos das áreas e não


especificamente nos bens tombados é que se devem fundamentar os estudos da
cidade. Para Giulio Carlo Argan (1993):

O urbanismo é uma atividade estética que se prolonga no domínio


político. Nas condições culturais de hoje em dia, o valor estético e
político existe tanto no método quanto na prática. Traduzir em formas
a estrutura de uma sociedade significa desenhar e construir o espaço
de sua existência, que é também o espaço da razão formal da
arquitetura (ARGAN, 1993, p. 88) 3 .

Mesmo que não se articulem como tecidos homogêneos, os bairros mais antigos do
Rio de Janeiro apresentam numerosas qualidades urbanas e morfológicas que
permitem observar certa harmonia na ambiência. Os alinhamentos e os ritmos do
parcelamento da terra, com terrenos estreitos e compridos, volumetrias de gabaritos
médios e baixos, materiais de revestimentos similares e sistemas construtivos
análogos, com algumas raras exceções, conformam a fisionomia da paisagem
edificada. Entretanto, para não banalizar os instrumentos de proteção do patrimônio
cultural é necessário ter em mente que a experiência estética é o resultado de um
percurso iniciático, e a experiência do patrimônio histórico arquitetônico não foge à
regra e comporta dificuldades próprias. Falando dos bairros históricos e sua
proteção, G. C. Argan (1993) alega que se atribuirmos um valor e se continuarmos
a fazê-lo, é porque este bairro exerce ainda uma função, mesmo que não seja mais
sua função original e que seu valor não represente mais do que um valor estético e
de testemunho da história”. Se a conservação do antigo é discutida ou
comprometida pelos fatos, - cada qual estando sujeito a ser condenado como
sacrilégio a violação de testemunhos preciosos -, é porque o valor histórico e
estético reconhecido por uma parte da sociedade, não existe para a outra parte
(ARGAN, 1993, p. 89).

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UMA DAS PRINCIPAIS CONSEQÜÊNCIAS POSITIVAS: AS APACS

Uma conseqüência positiva da implementação da área de proteção do Corredor


Cultural, inspirado no modelo francês do secteur sauvegardé, foi a decretação de
outras Áreas de Proteção, não especificamente no centro histórico. As Áreas de
Proteção do Ambiente Construído - APACs, tais como definidas no Plano Diretor de
1992, visam à melhoria das condições de habitabilidade nas áreas de intervenção,
preservando a morfologia e o valor cultural das edificações, buscando dinamizar a
vida econômica social e cultural através dos valores do próprio bairro.

Esta política urbana evita a desertificação das áreas degradadas que acabam por
apresentar riscos de marginalidade. Mantendo nos bairros antigos a população
jovem e as famílias que se formam, fornecendo-lhes meios de trabalho e suporte
sócio-econômico, eliminam-se os fluxos pendulares e a proliferação de habitações -
dormitórios na periferia, fato que agrava também as questões do transporte.

Em alguns bairros antigos do Rio de Janeiro como Santa Tereza, Estácio, Saúde e
Cruz Vermelha já ocorre uma tradição de uso multifuncional do solo, tal como no
Marais e no Château Rouge, em Paris, ou Alfama, Mouraria, Mandradoa e Bairro
Alto em Lisboa, havendo inúmeras possibilidades de implantar programas
consagrados à habitação. A legislação existente para a área contém inúmeras
medidas destinadas a favorecer a diversidade de funções, dentro do próprio espírito
do bairro. A proteção de alguns edifícios nestes locais resultou em excelente
oportunidade para aumentar a oferta de imóveis habitacionais, buscando a
reestruturação em especial deste bairro ao sul do Corredor Cultural: a área da Cruz
Vermelha e Adjacências.

Apesar de algumas semelhanças com o bairro francês do Marais, o primeiro secteur


sauvegardé de Paris (1960), os modelos morfológicos de nosso patrimônio não
incluem muitos palacetes e mansões senhoriais, nem grande quantidade de
monumentos arquitetônicos de valor excepcional, exceção feita à arquitetura
religiosa. Este patrimônio é formado de construções vernaculares
predominantemente construídas no início do século XX, após as obras de
embelezamento, idealizadas nos moldes franceses, pelo prefeito Pereira Passos.
Nos antigos sobrados, prevalecem as fachadas ecléticas que conferem o caráter
particular dos bairros, e que devem ser reabilitadas. Tal como nos modelos
português e no francês de reabilitação do patrimônio destaca-se o valor do espaço
público, onde os usuários dos bairros podem imergir numa cidade densa de
memórias onde existe o convívio e a troca de sociabilidades.

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A intenção, a exemplo dos bairros parisienses do Marais e no Château Rouge, foi a
de proteger as atividades particulares da Cruz Vermelha e adjacências, como o
incentivo à manufatura e recuperação de mobiliário, às escolas de artesanatos
vinculadas ao restauro, à fabricação de luminárias e elementos de acrílico, às lojas
de revenda de livros usados, aos antiquários, usos atualmente consagrados nas
adjacências da rua do Lavradio. (cf. LIMA, 2004, p. 21)

Mas é claro que as leis devem ser flexíveis o suficiente para atender às evoluções
ao longo do tempo, criando cumplicidade entre criação e preservação que
mantenham os bairros vivos e não uma cidade “engessada”, como se desejava na
década de 1980. Como forma de preservar, conservar e reabilitar um espaço
periférico ao centro seguindo, principalmente, os preceitos de Giovannoni (apud
CHOAY, 2001), para quem, já na primeira década do século XX,

Uma cidade histórica constitui em si um monumento, tanto por sua


estrutura topográfica como por seu aspecto paisagístico, pelo caráter
de suas vias, assim como pelo conjunto de seus edifícios maiores e
menores; por isso, assim como no caso de um monumento particular,
é preciso aplicar-lhes as mesmas leis de proteção e os mesmos
critérios de restauração, desobstrução, recuperação e inovação
(GIOVANNONI apud CHOAY, 2001, p.143).

Vale ressaltar que no final dos anos 1990, o conceito de patrimônio cultural evoluiu
para o conceito de patrimônio ambiental, sugerindo que sejam conjugados os
propósitos de preservação e conservação do patrimônio edificado, o próprio
planejamento urbano físico-territorial, além dos impactos no meio-ambiente urbano
e humano, evitando que prevaleça a lógica capitalista neo-liberal de utilizar o
patrimônio apenas por seu valor de troca.

No caso da APAC da Cruz Vermelha, o setor nordeste é o local onde existe a maior
quantidade de imóveis a preservar e maior homogeneidade no que se refere aos
gabaritos, especialmente quando nos aproximamos da Rua do Lavradio, parte
integrante dos limites da Área de Proteção do Ambiente Cultural. O plano
elaborado para a área em 1990 propôs alterações de algumas posturas municipais,
recomendações quanto à qualidade ambiental, diretrizes para a implantação de
mobiliário urbano e programação visual; diretrizes quanto ao desenvolvimento
turístico, diretrizes quanto ao transporte coletivo, e à circulação de pedestres, além
de propostas gerais para a revitalização da área, sem expulsão dos residentes
(LIMA et al, 1992).

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Algumas propostas de desenho urbano foram também sugeridas no sentido de
valorizar certas perspectivas, algumas já implementadas. Os dados estatísticos
demonstraram um grande número de imóveis vazios ou subutilizados em seus
pavimentos superiores. Ao longo de sua ocupação, a região guardou importante
patrimônio arquitetural constituído de casario, igrejas, vilas e cortiços, destacando-
se os sobrados implantados no início da Rua Mem de Sá e na Praça da Cruz
Vermelha. A abordagem sócio-antropológica identificou que, na região, predomina a
pequena classe média cuja situação sócio-econômica indica uma renda per capita
entre dois e cinco salários mínimos.

A proposta de remanejamento do bairro buscou a melhoria da qualidade de vida, o


conforto e a salubridade das habitações, privilegiando a reabilitação. O plano de
estudos elaborado em 1992 propôs, entre outros objetivos: (I) preservar e valorizar
a qualidade da paisagem arquitetônica; (II) favorecer a dinâmica comercial; (III)
melhorar os espaços públicos para os transeuntes e (IV) melhorar a qualidade de
vida do bairro sob todos os aspectos.

O estudo sobre os espaços públicos visou simplificar os deslocamentos dos


moradores do bairro, reduzir o estacionamento sobre as calçadas e criar uma
melhor identificação dos habitantes com a paisagem de cada rua. O exemplo mais
eloqüente das intervenções no espaço público é a própria praça da Cruz Vermelha,
antes um espaço seccionado para o cruzamento das avenidas Mem de Sá e
Henrique Valadares e hoje um verdadeiro ponto de encontro, de trocas de
sociabilidade da população do bairro.

A relação de imóveis renováveis passou por uma proposta de parâmetros de


integração com os imóveis preservados e hoje, decorridos quatorze anos do início
dos trabalhos, já se podem notar novas edificações perfeitamente harmonizadas
com a paisagem edificada. Ao mesmo tempo quase todos os imóveis preservados
passaram por um processo de reabilitação, conferindo-lhe o conforto necessário.
Ainda não foi implantado um escritório técnico na área, mas esta medida parece-
nos essencial para administrar o plano diretor dos espaços públicos, definido a
partir da análise da titularidade da terra, os usos possíveis das ruas, largos e praças
e a modificação do plano de circulação de veículos, acréscimo de áreas de
calçadas, vegetação e mobiliário urbano a ser utilizado. As prescrições
arquitetônicas definidas pelo órgão competente devem favorecer a reabilitação
cuidadosa dos imóveis preservados e garantir a inserção harmoniosa dos imóveis
novos na paisagem local. Nos vazios urbanos e nos terrenos cujas edificações
possam ser demolidas estão sendo construídas habitações de interesse social com

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financiamento específico para proprietário e inquilinos, obedecendo à linguagem
morfológica, porém com características contemporâneas. O programa Novas
Alternativas da Secretaria Municipal de Habitação também tem promovido a
recuperação de vários cortiços no bairro. Alguns projetos residenciais estão sendo
elaborados para a área. Mas, a exemplo da experiência francesa, seria
recomendável que os órgãos públicos envolvidos criassem uma Agência que
possibilitasse um conjunto de ações desenvolvidas, a serem coordenadas por um
único órgão, captador de recursos, evitando-se superposições ou contradições de
informações e permitindo a manutenção da população residente através de ações
sociais.

A legislação para áreas centrais deve reduzir as exigências legais das áreas
onerosas e não privativas da edificação, no sentido de incentivar a moradia no
centro - ainda superficial, talvez pela dificuldade em alterar-se a mentalidade de
alguns cariocas que julgam desmerecedor “morar no centro”, fato comum em quase
todas as capitais européias e norte-americanas. Seria ingênuo acreditar que a
reabilitação de bairros tão degradados teria resultados tão imediatos como os
alcançados nos modelos português e francês, mas o importante é manter coesa a
idéia de que o binômio patrimônio cultural e habitação pode ser uma chance real
de, simultaneamente, reabilitar um bairro para seus próprios moradores e para a
história da cidade.

É natural que as cidades do Terceiro Mundo tenham posições diferenciadas


daquelas existentes nas grandes capitais européias, cada qual com seu sistema de
preservação, conservação e reabilitação, mas seria quase impossível fugir do
binômio Urbanismo x Patrimônio Cultural, hoje a tônica do planejamento urbano no
Brasil. Sabe-se que Françoise Choay (2001) lamenta o urbanismo de redes, pois
alega que,

contaminada pela lógica das redes, a arquitetura muda de status e de


vocação: os edifícios individuais tendem cada vez mais a serem
concebidos como objetos técnicos autônomos, passíveis de serem
conectados, enxertados ou ligados a um sistema de infra-estruturas,
liberados da relação contextual que caracterizava as obras da
arquitetura tradicional (CHOAY, 2001, p. 244).

Entretanto, as diretrizes atuais buscam a reintegração deste patrimônio edificado


junto aos tecidos antigos, evitando o presépio e as “curetagens”. Há que entender a
posição dos teóricos e acadêmicos, que não estão a serviço dos poderes locais,
para ver que “a transformação do entendimento do patrimônio, nas práticas atuais,

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como produto de consumo e espetáculo, banaliza a dimensão fundamental que o
inaugura...” (VILLAC, 2001).

Uma política de conscientização aliada a análises aprofundadas de cada área com


suas peculiaridades e com suas vocações poderá incentivar a concretização de
projetos que integrem vazios urbanos, renovem áreas abandonadas ou
subutilizadas e façam reviver um patrimônio arquitetural restaurado e reciclado para
atender às demandas sociais da cidade, sem, contudo, carnavalizar ou transformar
a arquitetura num espetáculo.

Em síntese, concluo que as políticas públicas cariocas destinadas a proteger o


patrimônio devem privilegiar a função habitacional, reabilitar a estrutura funcional e
a qualidade ambiental, valorizar e preservar o patrimônio edificado, reordenar o
sistema viário e o estacionamento, implementar medidas contra incêndios e
qualificar o ambiente urbano, sem proceder à descaracterização em pastiches sem
valor histórico ou estético.

Os teóricos do patrimônio e da cidade não devem retirar o significado das


edificações, ainda que seja possível valorizar um casario reabilitado se este mesmo
casario atender às necessidades antropológicas da cidade. Os imóveis não devem
ser reutilizados para solucionar as questões de city marketing, que levam a cidade a
estabelecer um distanciamento dos antigos habitantes de um determinado bairro
que se quer reabilitar. Utilizar o planejamento estratégico empresarial para
recuperar o patrimônio edificado é esquecer do enorme contingente de indivíduos
que vivem nas grandes metrópoles em condições sub-humanas. Nesse caso todo o
corpus do patrimônio arquitetônico urbano perderia por completo qualquer valor
memorial afetivo para conservar apenas o valor intelectual, e, claro, o valor de
entretenimento que lhe confere a indústria patrimonial.

O fetiche do patrimônio não deve prescindir dos conhecimentos técnicos da


estética, que como se sabe, depende de formação de juízos de valor, mas, antes
enfatizar os valores antropológicos daquele espaço urbano, evitando para tal “a
inflação do patrimônio histórico-arquitetônico iniciada na década de 1960 que
advém de outra lógica. Nem o jogo dos valores tradicionais, nem a lógica
econômica trazida pela cultura de massa esgotam seus excessos e tampouco
explicam um culto que se transforma em fetichismo”, como defende Choay (op. cit,
2001, p. 240 - 252).

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Choay (op cit ) critica as reconversões de uso que deixam no bem cultural apenas a
casca vazia de seu conteúdo por “curetagem”. Infelizmente este processo tem sido
recorrente tanto nos países europeus quanto no Brasil. Ela critica em especial o
Projeto Main Street de Quebec, cidade submetida a um projeto de valorização de
uma avenida comercial reconstruída sem bases científicas. Acredito que seja o
caso da área do centro histórico do Rio de Janeiro, onde a municipalidade,
ignorando os conceitos de multi-funcionalidade e de área de vizinhança, expressos
pela teórica Jane Jacobs em 1961, promoveu na área de preservação do Corredor
Cultural uma região de comércio, cultura e lazer, onde os residentes são poucos.
Urge re-estudar as propostas de 1987, pois como afirma Argan (1993, p. 89): «a
durabilidade de um plano regulador é dada pelo cálculo do tempo necessário
previsto para melhorar uma situação que se julgue deficiente ou obsoleta» 4 .

A preservação dos imóveis nas áreas delimitadas como Corredor Cultural já está
sedimentada. Entretanto, os habitantes precisam apropriar-se desta extensa área
infra-estruturada para habitá-la em seus espaços ainda vazios. Não bastam os
projetos de revitalização que privilegiem apenas o comércio e a indústria cultural.
Para que o centro histórico deixe de ser um belo presépio iluminado das 21 às 7
horas da manhã, é necessário um programa de ocupação habitacional das áreas a
reabilitar. Ao lado de poucos palacetes, ainda existe um casario com características
ecléticas, morfologicamente harmoniosas. Transformações de uso que permitam
abrigar aqueles que precisam ou gostam de habitar próximo aos locais de trabalho,
ou ainda aqueles que já habitam os sobrados arruinados, devem ser a preocupação
dos urbanistas das cidades latino-americanas cujas áreas centrais estejam
degradadas.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

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philosophiques. Approches et enjeux de la Philosophie de la ville. Bruxelles: 1989.
p. 23-108.

ARGAN, Giulio Carlo. Projet et Destin. Art , Architecture, Urbanisme. Traduit de


l´italien par Elsa Bonan. Paris: Les éditions de la Passion, 1993.

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perspectivas. BH: texto digitalizado, dez, 2004. Inédito.

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Paulo: UNESP/ Estação Liberdade, 2001.(1. ed. Seuil, 1992).

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1992.

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Janeiro: 7 Letras, 2004. pp. 64-82.

VILLAC, Maria Isabel. Orelha do livro. In CHOAY, Françoise. A alegoria do


Patrimônio. Trad. Luciano Vieira Machado. São Paulo: UNESP/ Estação Liberdade,
2001.

1 Evelyn Furquim Werneck Lima é arquiteta, urbanista, Doutora em História Urbana, membro do
Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural. É Professora Associada da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro e Ex-Coordenadora da Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo do Instituto Metodista Bennett. Bolsista CAPES no estágio Pós-doutoral na Université
Paris X / EHESS (2003) Pesquisadora do CNPq. Autora dos livros Das vanguardas à
tradição.(2006), Arquitetura do espetáculo teatros e cinemas da Praça Tiradentes à Cinelândia
(2000) e Avenida Presidente Vargas: uma drástica cirurgia (1990 e 1995).

2 Para Henri Lefébvre, esses espaços criados pelos próprios cidadãos, consistem em espaços de
representação ou espaços vivenciados. Os modelos de urbanismo impostos são, ao contrário,
representações do espaço. Cf. Le droit à la ville. Paris: Plon, 1989, p.49-54.

3 L´urbanisme est une activité esthétique qui se prolonge dans le domain politique. Dans les
conditions culturelles d´aujourd´hui, la valeur esthétique et politique existe désormais dans la
méthode et dans la pratique. Traduire en formes la structure de la société signifie dessiner et
construire l´espace de son existence, qui est aussi l´espace et la raison formelle de l´architecture.

4La durée d´un plan régulateur est donnée par le calcul du temps nécessaire prévu pour améliorer
une situation que l´on juge déficiente ou obsolescente.

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