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Livre improvisação e pensamento musical em ação: novas

perspectivas

(ou na livre improvisação não se deve nada)

um lugar de vontades livres

A proposta da livre improvisação trata da implementação de um

" l u g a r " (e s p a ç o - t e m p o r a l ) p r o p í c i o a u m f l u x o v i t al m u s i c a l p r o d u t i v o .

Cria um espaço de jogo, de processo, de conversa e de interação entre

m ú s i c o s . N e s t e l u g a r a s f o r ç a s e e n e r g i a s a i n d a l i v r e s 1, i n - f o r m ad as ,

podem adquirir consistência na forma de uma sucessão de es t ad o s


provisórios, num devir sonoro/musical. Parte-se do pressuposto de que
tudo é impermanente e que as formas são aspectos provisórios de

a g e n c i a m e n t o s v i a b i l i z a d o s p o r c o n e x õ e s i m p r e v i s t a s e r i z o m á t i c a s 2.

Este espaço só é possível devido ao desejo/vontade de potência

que funciona como um combustível das ações e das interações entre os

improvisadores. Para isto, é necessário partir de uma escuta intensa,

r e d u z i d a q u e a b s t r a i a s f o n t e s p r o d u t o r a s , o s s i g n i f i c ad o s m u s i c ai s 3 e o s

gestos idiomáticos inevitáveis presentes nas enunciações de cada músico

e que centra nas qualidades propriamente sonoras das ações

instrumentais (p e n s a m o s no objeto sonoro de Pierre S c h a e f f e r ). Os

e l e m e n t o s p o s t o s e m j o g o n e s t e j o g o i d e al o n d e n ã o h á r e g r a s p r é -

1
…o essencial não está nas formas e nas matérias, nem nos temas, mas nas forças, nas densidades, nas
intensidades (Gilles Deleuze, Mil Platôs IV, Editora 34, 1997, p. 159).
2
Utilizamos este conceito que aqui descreve as formas de conexão conforme elas são definidas na filosofia
de Gilles Deleuze: …diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer
com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços da mesmo
natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos (Deleuze,
Mil Platôs I, Editora 34, 1997, p. 32).
3
Pierre Schaeffer diferencia o objeto musical - aquele que adquire seu sentido no contexto de um sistema
ou idioma musical discursivo (por exemplo um acorde de 7a. de dominante numa cadência autêntica
perfeita numa música "clássica) - do objeto sonoro resultante de uma atitude de escuta voltada para as
qualidades intrínsecas do mesmo, desvinculado de qualquer sistema apriorístico. Seria o caso do mesmo
acorde de 7a. numa obra de Debussy em que o que importa não é sua função num discurso linear e sim sua
sonoridade específica, verticalizada (vide por exemplo o Prelúdio VII/ vol.I).

1
estabelecidas emergem dos rostos4 biográficos de cada músico. Os rostos

são inevitáveis, necessários e testemunham nossas submissões históricas

e p e s s o a i s . A q u i p o d e m o s e x p l i c i t á- l o s : a p r e n d i z a d o s 5 o s m a i s d i v e r s o s ,

i n s t r u m e n t a i s , i d i o m á t i c o s , g e s t u a i s (a s m ã o s t o c a m s o z i n h a s o s s i s t e m a s

onde cresceram: os dedos de um saxofonista tocam jazz e choro mesmo

sem querer, os de um pianista tocam Chopin, etc…) e os repertórios; a

p e r s o n a l i d a d e d e c a d a u m , s e u s r i t o r n el o s , m a n i a s , j e i t o s e p o s e s ; o s

sistemas de idéias, as crenças, os valores, etc. Tudo isto faz o rosto de

cada um.

Estes rostos entram no jogo concentrados, prontos para lidar com

o imprevisto dando respostas produtivas, vivas, sinceras e rigorosas. Ter

disposição e saber lidar com o acaso6 de forma produtiva é um

pressuposto básico desta proposta. Isto porque toda jogada é válida

neste jogo. O que se faz com as jogadas é o que torna o jogo potente ou

não. As decisões são tomadas a cada momento diante de realidades

também configuradas a cada momento. Neste sentido o jogo da

4
Também aqui faremos uso de mais um conceito de Deleuze. Para ele os processos de territorialização
dizem respeito às repetições e redundâncias. A constituição do vivo se dá através de repetições - ritornelos -
que delineiam os territórios. Um ser vivo estabelece suas membranas, seus territórios, a partir de
procedimentos repetitivos (sempre diferenciados a cada vez, é claro). O rosto é resultado deste processo de
territorialização. Eu me caracterizo por uma série de procedimentos repetitivos que delineiam o meu ser:
minhas manias e cacoetes minhas falas, meus percursos, meus gostos, meu corpo, minhas linguagens, meus
usos destas linguagens, etc.
5
É interessante notar que a livre improvisação é radicalmente democrática pois pode ser implementada no
contexto de alta complexidade e sofisticação que só é possível àqueles que conhecem várias técnicas e
idiomas (o que pode se tornar um empecilho por razões que veremos à frente) ou num ambiente de extrema
simplicidade em que os participantes da atividade se defrontam com muito pouca "bagagem" musical
anterior. Derek Bailey afirma: Improvisação livre, além de ser uma atividade musical altamente
especializada é aberta ao uso de quase qualquer pessoa - iniciantes, crianças e não-músicos. A habilidade
e conhecimento requerido é aquele que estiver disponível. Pode ser uma atividade de enorme sofisticação e
complexidade ou a mais simples e direta expressão: um estudo e trabalho de toda uma vida ou uma
atividade casual e diletante (Derek Bailey, Improvisation, its nature and practice in Music, Da Capo Press,
1992, p. 83,84).
6
É importante salientar que o acaso aqui não é o mesmo pensado por John Cage que em suas obras
conceituais não se preocupa com o som (Veja bem, eu não ouço a música quando eu a escrevo. Eu a
escrevo para que eu possa ouvir algo que eu ainda não ouvi). Sua ênfase nos processos e no não controle
estão no nível abstrato do conceito. Na livre improvisação o acaso e aimprevisibilidade são decorrentes de
um jogo instrumental sonoro e concreto. Evidentemente somos contaminados pela sua postura radicalmente
experimental e iconoclasta e pela idéia de não controle. O resultado das performances deve fluir a partir de
um processo vivo e imprevisível.

2
i m p r o v i s a ç ã o é s e m p r e u m d i á l o g o c o m o c o s m o s 7: l á e s t ã o t o d a s a s

energias e forças necessárias ao projeto de consistência que só se

delineia em pleno vôo. Trata-se também de uma performance

desprotegida8 e, por isso, é preciso coragem, ousadia e sinceridade de

expressão. O risco é assumido de maneira consciente: não se pode ter

medo do vazio (o caos informe) que, a todo momento espreita a

performance. Num certo sentido, nada disto é novidade. Debussy já dizia:

Q u al q u er som em q u al q u er c o m b i n aç ão e em q u al q u er s u c es s ão s ão
d o r av an t e l i v r es p ar a s er em u s ad o s n u m a c o n t i n u i d ad e m u s i c al . E é
exatamente disto que se trata: uma continuidade musical presentificada

(e m t e m p o r e a l ), p e n s a m e n t o s m u s i c a i s e m a ç ã o e i n t e r a ç ã o a p a r t i r d o

desejo e da vontade de potência dos músicos em estabelecer um plano de

consistência.

ação musical no lugar da exibição de obras "primas"

Deve ficar evidente também, que não se trata da composição de

obras pois, nada se fixa, nada se repete. Também não se trata de

ex i b i ç ão , p o i s o p ú b l i c o - s e h o u v e r - d e v e c o n s t r u i r e c r i a r j u n t o c o m o s
p er f o r m er s . O público que acompanha uma performance de livre

improvisação deve atuar como cúmplice numa aventura de construção e

compartilhar dos riscos que acompanham o processo. Ele deve presenciar

uma conversa, um jogo - apreciar as jogadas, o entrosamento, os truques,

os eventuais desencontros - e testemunhar o desenrolar de um fluxo

sonoro. Assim, a performance não é exibição e muito menos exibicionismo

pois, na improvisação livre o ideal é que haja um despojamento que iniba

os gestos retóricos. Pode-se observar, no entanto, que os sutis jogos de

sedução que se estabelecem entre os performers e o público são quase

7
A partir daí, as forças a serem capturadas não são mais as da terra, que consituem ainda uma grande
Forma expressiva, elas são agora as forças de um Cosmo energético, informal e imaterial (Deleuze, Mil
Platôs IV, p. 159).
8
No sentido de que nela os músicos não se apoiam numa partitura ou num roteiro ou mesmo numa
"linguagem" (idioma musical) compartilhado por todos. Mesmo os momentos em que o Caos invade a
performance devem ser encarados com naturalidade pois isto faz parte do jogo ideal sem regras.

3
inevitáveis e podem assumir formas indesejáveis: o virtuosismo que pode

m u i t a s v e z e s s e r i n ó c u o , o ef ei t i s m o q u e p o d e r e s v a l a r e m b a n a l i z a ç ã o , o

uso de gestos retóricos gratuitos que não se integram adequadamente no

fluxo da performance, etc. Isto não quer dizer que devemos ignorar a

relação com o público que acaba por configurar inevitavelmente o

ambiente da performance. Idealmente, a presença do público deve

p o t e n c i a l i z a r u m a a t u a ç ã o i n t e n s a e i n t e r i o r i z a d a d o p e r f o r m e r (n a n o s s a

p r o p o s t a 9). N o c o n t e x t o d e s t a p r o p o s t a d e l i v r e i m p r o v i s a ç ã o a l t a m e n t e

i n t e r i o r i z a d a e c o n c e n t r a d a n a i n t e i r e z a d e c a d a a t o (c a d a s o m p r o d u z i d o

t e m c o n s e q ü ê n c i a s n o f l u x o d a i m p r o v i s a ç ã o e n a d a é g r a t u i t o ), n ã o c a b e

o gesto que tem por objetivo o "convencimento" daquele que assiste -

que poderia ser um gesto que não nasce das necessidades imanentes da

performance, mas sim de segundas intenções: manipulação, sedução e

exercício de poder. Além disso, muitas vezes, a ansiedade, que

inconscientemente acomete o improvisador por ocasião de performances

públicas pode prejudicar a interação e o fluxo de energias entre os

músicos. Noutras palavras, às vezes a presença de público torna difícil a

concentração necessária à intensidade de cada ato do improvisador. Por

outro lado, arriscamos afirmar que quanto mais intensa e concentrada é a

performance maior é o envolvimento de quem assiste. Portanto, o ideal é

que os performers improvisem quase como se não houvesse público,

totalmente concentrados no jogo. Talvez devêssemos pensar neste

ambiente integrado como uma espécie de celebração festiva ou

"sagrada". Assim, o público não é ignorado mas integrado na performance

e é elemento constituinte do ambiente.

Por outro lado, a livre improvisação em grupo é sempre uma

enunciação coletiva resultado de um jogo de forças onde há implícitas e

inevitáveis relações de poder entre os músicos. Estas são resultado das

a s s i m e t r i a s i n e r e n t e s a o s r i t m o s e n t r e o s m e i o s (r e l a ç õ e s e n t r e o s r o s t o s

9
Sim, porque há situações de performance onde o que importa é seduzir e, de certa maneira, catalizar
energias e manipular o público. No show de rock por exemplo, na maior parte das vezes, os performers
investem grande parte de sua energia num gestual sensual exacerbado. O objetivo deste tipo de atitude é
evidentemente extrovertido e catártico.

4
d i v er s o s ). E s t a s a s s i m e t r i a s s ã o d e v á r i a s n a t u r e z a s e r e s u l t a m d o q u e
cada músico traz para a performance - seu rosto - e também as

impressões, sensações, ações de cada um diante do fluxo que vai se

delineando no presente. O objetivo não é uma guerra pois não se

disputam territórios. A idéia é de existir no coletivo, na multidão: o

i n d i v í d u o s ó s e p r o d u z n o c o l e t i v o p r o d u z i n d o a l g o 10.

improvisação "inútil"

A improvisação "não serve para nada" - no sentido comercial e

pragmático do termo. Não cria produtos para serem comercializados.

Sem querer aqui estabelecer nenhum juízo de valor, é fácil observar

que vivemos um tempo em que a arte ultra-funcionalizada, muitas vezes,

tem que servir a várias finalidades: louvar os diversos "deuses de

p l a n t ã o " (g e r a l m e n t e i n t o l e r a n t e s e o p o n e n t e s : r e l i g i õ e s , s e i t a s , p a r t i d o s ,

c o n c e i t o s e s t é t i c o s , e t c . ), u n i f i c a r a s m a s s a s e m t o r n o d e " b a n d e i r a s "

específicas (p o r exemplo nos hinos e gritos de guerra de t o r c i d a ),

f a v o r e c e r o s p r o c e s s o s d e a p r e n d i z a d o e a d e s t r a m e n t o (a a r t e à s e r v i ç o

d a e d u c a ç ã o ), v e n d e r p r o d u t o s a p a r t i r d e s e u s p o d e r e s r e t ó r i c o s d e

p e r s u a s ã o (n a p u b l i c i d a d e ), m a n i f e s t a r o u s u b l i n h a r " s e n t i m e n t o s " (p o r

e x e m p l o , a m ú s i c a r e t o r i z a d a d a T V , d e c e r t o t i p o d e c i n e m a e d e t e a t r o ),

p a r a u n i f i c a r m u l t i d õ e s o u m a s s a s e m t o r n o d e r i t u a i s c a t á r t i c o s (n a s

r av es e f e s t a s ), p r o m o v e r o e n c o n t r o s o c i a l d e m e l ô m an o s d a a r t e e r u d i t a
em concertos e museus, etc. Num tempo como este, a livre improvisação

10
Aqui caberia falar da distinção entre massa e multidão estabelecida por Elias Canetti : a massa só existe
se os indivíduos nela se diluírem perdendo sua identidade pessoal. Todos se fundem num único corpo
coletivo, seguem numa mesma direção, obedecem a um único comando e respondem a um único
chefe…Desinibida, ela "pode tudo", da devoção ao assassinato…Já a multidão é plural, heterogênea…não
se trata de uma massa compacta e uníssona, liderada por um chefe, porém de singularidades em jogo,
constituindo redes múltiplas, sem que se configure nenhuma totalidade definida…seu conjunto é
inapreensível e o conjunto não responde a um comando unívoco. Neste rizoma sem centro nem chefe,
muitos universos se entrecruzam, várias direções coexistem, vários possíveis se criam a cada cruzamento
ou conexão…Digamos apenas, para retomar os dois pólos de aglomeração evocados, que a massa e a
multidão não constituem grupos distintos, mas lógicas diferentes que podem rivalizar num mesmo
contingente humano (Pelbart, Peter Pál, citado de artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo,
29/05/2005, Caderno Aliás, p. 4). A livre improvisação se liga ao conceito de multidão. No caso dos
pequenos grupos, podemos falar de micro multidões.

5
é um fim em si mesmo. Talvez estabeleça uma conduta, seja uma cura,

uma política ou uma pedagogia. Mas uma pedagogia onde não se ensina

nenhum conteúdo. Nela s e f al a d e d i n a m i s m o s , d e r e l a c i o n a m e n t o s , d e


processos e fluxos. Através de vivências dos mesmos. Metáfora do

pensamento ou o próprio pensamento.

6
na improvisação não se deve nada

Sob uma perspectiva filosófica, partindo do conceito de vontade de

potência de Nietzsche, podemos considerar a livre improvisação como

uma ação radicalmente voltada para a produção e a presentidade. Em

Assim f al o u Z ar at r u s t a, Nietzsche nos fala das 3 transmutações do

espírito: de como este se torna em camelo, depois em leão e finalmente

em criança. Podemos relacionar estes 3 estágios do espírito com as

atitudes diante da música que se configuram na improvisação. Para

Nietzsche o camelo é o espírito de carga que se ajoelha e quer ser bem

c a r r e g a d o . E l e d e s e j a v á r i o s s e n h o r e s (D e u s , a m o r a l , o " c e r t o " , e t c . ).

Niezstche simboliza estas sujeições com a figura do grande dragão

chamado "Tu-deves". Um fazer musical que sempre necessita de uma

referência extrínsica, um sistema, que busca critérios transcendentes,

ilusórios, manifesta esta situação do camelo na alegoria nietzschiana.

P a r a N i e t z s c h e t o d o es s e p es ad í s s i m o , o es p í r i t o d e c ar g a t o m a s o b r e s i :

i g u al ao c am el o , q u e c ar r eg ad o c o r r e p ar a o d es er t o / … / m as n o s o l i t ár i o
d es er t o o c o r r e a s eg u n d a t r an s m u t aç ão : em l eão s e t o r n a aq u i o es p í r i t o ,
l i b er d ad e q u er el e c o n q u i s t ar , e s er s en h o r d e s eu p r ó p r i o d es er t o 11. M a s
p a r a i s s o o e s p í r i t o d e v e e n f r e n t a r o g r a n d e d r a g ã o : v al o r es m i l en ar es

r es p l an d ec em n es s as es c am as , e as s i m f al a o m ai s p o d er o s o d e t o d o s o s
d r ag õ es : t o d o o v al o r d as c o i s as r es p l an d ec e em m i m . T o d o v al o r j á f o i
c r i ad o , e t o d o o v al o r c r i ad o - s o u eu (i d e m ) . E n t ã o , p o r e s t a n e c e s s i d a d e
de conquistar a liberdade, de enfrentar os valores estabelecidos e se

t o r n ar s en h o r d e s eu p r ó p r i o d es er t o o e s p í r i t o d e v e s e t o r n a r o l e ã o p a r a
c r i ar a l i b er d ad e e u m s ag r ad o N ão , m es m o d i an t e d o d ev er … (i d e m ).
Podemos relacionar a esta alegoria, a situação de um fazer musical que

busca sempre se afirmar a partir da negação. Trata-se de uma busca por

originalidade que não se apoia na singularidade afirmativa mas que se

afirma na oposição à alteridade. Mas este estágio é definitivamente

11
F. Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, in Os Pensadores: Nietzsche, Obras Incompletas, Ed. Nova
Cultural 1999, p. 214

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i m p o r t a n t e : t o m ar p ar a s i o d i r ei t o a n o v o s v al o r es / … / c o m o s eu m ai s

s ag r ad o , am av a el e o u t r o r a o " T u - d ev es " : ag o r a t em d e en c o n t r ar i l u s ão
e ar b í t r i o at é m es m o n o m ai s s ag r ad o , p ar a c o n q u i s t ar s u a l i b er d ad e
d es s e am o r : é p r ec i s o o l eão p ar a es t a r ap i n a.
O último estágio da transmutações pode ser relacionado ao

p e n s a m e n t o d a l i v r e - i m p r o v i s a ç ã o : … d e q u e ai n d a é c ap az a c r i an ç a, d e

q u e n em m es m o o l eão f o i c ap az? E m q u e o l eão r ap i d am en t e t em ai n d a d e


s e t o r n ar em c r i an ç a? I n o c ên c i a é a c r i an ç a, e es q u ec i m en t o , u m c o m eç ar -
d e- n o v o , um jogo, uma roda r o d an d o por si m es m a, um p r i m ei r o
m o v i m e n t o , u m s ag r ad o d i ze r - s i m (i d e m ) . N e m u m a s u j e i ç ã o a o d r a g ã o
d o s v a l o r e s e s t a b e l e c i d o s (a o s s i s t e m a s , a o s i d i o m a s , à s t é c n i c a s , à s

ideologias, à moral, às estéticas, aos valores transcendentes, etc) nem

um compulsivo dizer não, uma tentativa de criar novos valores para

s u b s t i t u i r o s a n t i g o s (n o v a s i g r e j a s p a r a n o v o s c u l t o s … ) m a s s i m u m a

vontade de potência, um gosto pelo risco, pelo jogo, necessidade de

produção, de criação: vitalidade pulsante.

improvisação livre enquanto zona autônoma provisória (TAZ)

Uma outra conexão que gostaríamos de estabelecer é entre a

prática da livre improvisação e as táticas de resistência ao exercício do

poder explicitadas em algumas propostas neo-anarquistas e

situacionistas. Estamos nos referindo especificamente às TAZ (z o n a s

autônomas temporárias) descritas por Hakim Bey no livro de mesmo nome

da coleção Baderna. Lá podemos ler que

a T A Z é u m a es p éc i e d e r eb el i ão q u e n ão c o n f r o n t a o E s t ad o
d i r et am en t e, u m a o p e r aç ão d e g u er r i l h a q u e l i b er a u m a ár ea (d e
t er r a, d e t em p o , d e i m ag i n aç ão ) e s e d i s s o l v e p ar a s e r e- f azer em
o u t r o l u g ar e o u t r o m o m en t o , an t es q u e o E s t ad o p o s s a es m ag á- l a.
Uma v ez que o E s t ad o se p r eo c u p a p r i m o r d i al m en t e com a
S i m u l aç ão , e n ão c o m a s u b s t ân c i a, a T A Z p o d e, em r el at i v a p az e

8
por um bom t em p o " o c u p ar " c l an d es t i n am en t e es s as ár eas e
r eal i zar s eu s p r o p ó s i t o s f es t i v o s … A s s i m q u e a T A Z é n o m ead a
(r ep r es en t ad a, m ed i ad a), el a d ev e d es ap ar ec er … d ei x an d o p ar a t r ás
um invólucro v azi o , e b r o t ar á n o v am e n t e em outro l u g ar ,
n o v am e n t e invisível, porque é indefinível pelos termos do
E s p et ác u l o . A s s i m s en d o a T A Z é u m a t át i c a p er f ei t a p ar a u m a
ép o c a em q u e o E s t ad o é o n i p r es en t e e t o d o - p o d er o s o m as , ao
m e s m o t e m p o r e p l e t o d e r ac h ad u r as e f e n d as . E , u m a v e z q u e a
T A Z é u m m i c r o c o s m o d aq u el e " s o n h o an ar q u i s t a" d e u m a c u l t u r a
d e l i b er d ad e, n ão c o n s i g o p en s ar em t át i c a m el h o r p ar a p r o s s eg u i r
em d i r eç ão a es t e o b j et i v o e, ao m es m o t em p o , v i v er al g u n s d e
s eu s b en ef í c i o s aq u i e ag o r a… A TAZ é um ac am p am en t o de
g u er r i l h e i r o s o n t o l o g i s t as : at aq u e e f u j a. A T A Z d e v e s e r c ap az d e
d ef en d er - s e; m as , s e p o s s í v el , t an t o o " at aq u e" q u an t o a " d ef es a"
d ev em ev ad i r a v i o l ên c i a d o E s t ad o q u e j á n ão é u m a v i o l ên c i a c o m
s en t i d o . O at aq u e é f ei t o às es t r u t u r as d e c o n t r o l e, es s en c i al m en t e
às i d éi as … A " m áq u i n a d e g u er r a n ô m ad e" c o n q u i s t a s em s er
n o t ad a e s e m o v e an t e s d o m ap a s e r r e t i f i c ad o 12.

A relação deste programa com a proposta de livre improvisação nos

parece evidente uma vez que esta se coloca à margem das estruturas

escolares, das instituições musicais conservatoriais, das hegemonias

estéticas, das desgastadas e hierarquizadas formas de concerto, das

pedagogias e dos adestramentos, das sistematizações e da

mercantilização da arte. Deste ponto de vista, a livre improvisação é um

território livre, em devir constante, socializado, autônomo, libertário,

democrático e anárquico. Nele não há lugar para propriedade privada dos

meios de produção, não há sociedade de direitos autorais, não há

mistificação de competências, nem sacralização e fetichização da obra de

arte ou do artista. Não há sistemas fechados nem poderes estabelecidos.

Nele todos são compositores e intérpretes (m e s m o aqueles que só

12
Hakim Bay, TAZ - Zona Autônoma Temporária, Conrad Livros, ed. Coletivo Baderna, 2001, p. 18 e 19.

9
participam como público) e participam de uma celebração festiva. Neste

caso se evidencia também, o distanciamento entre a prática da

improvisação livre e a categoria do Espetáculo que é utilizada como

ferramenta de poder e alienação na sociedade contemporânea. O

Espetáculo, desta perspectiva, é abertamente retórico, manipulador, lugar

da simulação e instrumento de dominação. A livre improvisação é uma

proposta de socialização do fazer artístico. Sobre todas estas questões e

este novo papel da música e da arte podemos ler no livro de Hakim Bey:

E u s u g i r o q u e a T A Z é o ú n i c o " l u g ar " e " t em p o " p o s s í v el p ar a a


ar t e ac o n t ec er p el o m er o p r azer do jogo c r i at i v o , e como
c o n t r i b u i ç ão r eal p ar a as f o r ç as q u e p er m i t em q u e a T A Z s e f o r m e e
s e m an i f es t e. A ar t e n o M u n d o d a A r t e t o r n o u - s e u m a m er c ad o r i a.
P o r é m , ai n d a m ai s c o m p l e x a é a q u e s t ão d a r e p r e s e n t aç ão e m s i , e
a r ec u s a d e t o d a m ed i aç ão . N a T A Z , ar t e c o m o u m a m er c ad o r i a s er á
s i m p l es m en t e i m p o s s í v el . A o c o n t r ár i o , a ar t e s er á u m a c o n d i ç ão d e
v i d a. A m ed i aç ão é d i f í c i l d e s er s u p er ad a, m as a r em o ç ão d e t o d as
as b ar r ei r as en t r e ar t i s t as e " u s u ár i o s " d a ar t e t en d er á a u m a
c o n d i ç ão n a q u al (c o m o A . K . C o o m ar as w am y es c r ev eu ) " o ar t i s t a
n ão é u m t i p o e s p e c i al d e p e s s o a, m as t o d a p e s s o a é u m t i p o
es p ec i al d e ar t i s t a (i d e m , p . 6 9 ) .

Ainda sobre a questão do nomadismo, da vitalidade que é esperada

da experiência intensificada da livre improvisação e a necessidade da

ativação livre do desejo enquanto vontade de potência numa perspectiva

nietzschiana, citamos novamente Hakim Bay e sua proposta de zonas

autônomas temporárias:

A l i b er aç ão é p er c eb i d a d u r an t e o es f o r ç o : es s a é a es s ên c i a d a
" au t o - s u p er aç ão " n i et zs c h i an a. E s s a t es e p o d e t am b ém t o m ar c o m o
s í m b o l o o an d ar i l h o d e N i et zs c h e. E l e é o p r ec u r s o r d o v ag ar a
es m o , no s en t i d o d ad o p el o s i t u ac i o n i s m o p ar a d ér i v e e da

10
d ef i n i ç ão de L y o t ar d p ar a driftwork. P o d em o s an t e v er uma
g eo g r af i a c o m p l et am en t e n o v a, u m t i p o d e m ap a d e p er eg r i n aç ão
n o q u al o s l u g ar e s s ag r ad o s s ão s u b s t i t u i d o s p o r e x p e r i ê n c i as d e
p i c o e T A Z … (i d e m , p . 7 3 ) .

a improvisação livre e a preparação do ambiente

Evidentemente, a disposição para o jogo, para a conversa, para a

criação e para a performance é condição necessária, mas não suficiente

para a prática da livre improvisação. É necessário preparar um ambiente

favorável para que este tipo de prática se estabeleça, seja potente e bem

sucedida. Às vezes é necessário, como dizia o pintor Francis Bacon,

"raspar a tela" antes de começar uma nova pintura.

Grande parte dos músicos se sente incapaz de participar de uma

sessão de improvisação em que eles são simplesmente chamados a atuar

c o m s e u i n s t r u m e n t o s , f o r m u l a n d o s u a s i n t e r v e n ç õ e s s o n o r a s (c r i a n d o

seus "textos", suas " f a l a s " ), interagindo com o ambiente (o u t r o s

m ú s i c o s , p ú b l i c o , s o n s d o a m b i e n t e , e t c . ), p e l o s i m p l e s f a t o d e q u e e l e s

sempre atuaram enquanto intérpretes do pensamento musical de outrém

(a p a r t i r d o s t r a d i c i o n a i s " m a n u a i s d e i n s t r u ç ã o " : a s p a r t i t u r a s e s c r i t a s ).

Outros estão presos a idiomas muito pouco permeáveis: improvisam no

âmbito de uma espécie de h i p e r - p ar t i t u r a q u e c o m p r e e n d e t o d a s a s


s i t u a ç õ e s p o s s í v e i s d e n t r o d a q u e l e i d i o m a e s p e c í f i c o 13. T r a t a - s e d e u m

13
Não se supõe aqui, como afirmado no início do texto, que os músicos participem de uma prática como
esta despidos de suas biografias, seus rostos e seus aprendizados. Eles são inevitáveis e condição necessária
da contituição das identidades individuais. O que se espera é que estes diversos aprendizados,
condicionamentos e identidades sofram, no jogo da livre improvisação, processos contínuos de
desterritorialização, "raspagem" (como queria Bacon), molecularização e que seus estilhaços se tornem
energias imediatas e descondicionadas no contexto da performance. Assim, não se espera que numa livre
improvisação seja "proibido" o uso de idiomas. Poderíamos citar, para explicitar esta posição, um texto de
Christian Munthe: Tem sido apontado, e corretamente, que a livre improvisação não pode de antemão
excluir os idiomas tradicionais…A diferença entre aquele que é ativo dentro das fronteiras de um idioma
particular e o livre improvisador está na maneira com que este lida com este idioma…Idiomas particulares
não são vistos como pré requisitos para o fazer musical, mas sim como ferramentas que, em qualquer
momento podem ser usadas ou não… da mesma maneira o ponto de partida do livre improvisador contém
uma recusa em se submeter a qualquer idioma particular ou tradicional e ao mesmo tempo não
necessariamente favorecer uma atitude inovadora ou experimental diante da música (a não ser pelo fato

11
j o g o c o m r e g r a s d e f i n i d a s e m q u e h á o c e r t o e o e r r a d o (é o c a s o d o s

músicos que tocam músicas "com nome". O nome define, delimita,

identifica e estabelece regras: o jazz, o choro, o flamenco, o rock, o

b a r r o c o , e t c . ). H á t a m b é m a q u e l e s q u e a c r e d i t a m q u e a l i v r e i m p r o v i s a ç ã o

é u m a e s p é c i e d e v a l e- t u d o e n ã o s e p r e o c u p a m c o m o r i g o r d a p r o p o s t a

d e i n t e r a ç ã o e c o m a s n e c e s s i d a d e s t é c n i c a s e a u d i t i v a s 14 . E s t e s , n a

maior parte das vezes em que se engajam em performances têm a

sensação de frustração típica de quem não conseguiu estabelecer um jogo

ou uma conversa. O resultado é como uma conversa entre surdos

(f a l a n t e s " m o n o l o g a n t e s " ). A e s t e r e s p e i t o g o s t a r í a m o s d e c i t a r a n o s s a

tese de doutorado onde afirmamos que:

U m v al e- t u d o ex p er i m en t al i n f an t i l i zad o e s t á, p o r t an t o , d e s c ar t ad o p e l as
ex i g ên c i as t éc n i c as d a p er f o r m an c e d ev i d o ao f at o d e q u e el a s e d á n u m
t er r en o d e i n t er aç ão e s o b r i ed ad e (p o i s s ó h á i m ag i n aç ão n a t é c n i c a ).
Q u an t o m ai s f am i l i ar i zad o c o m as t éc n i c as , q u an t o m ai s v i v ên c i a r eal c o m
p r át i c as r eai s e d i n âm i c as t em o m ú s i c o , m ai s el e es t á h ab i l i t ad o o p er ar
numa p e r f o r m an c e coletiva de i m p r o v i s aç ão e n q u an t o um ar t e s ão
c ó s m i c o . P o r t an t o , n a p er f o r m an c e d e l i v r e i m p r o v i s aç ão c o n f o r m e a
c o n c eb em o s s e d á u m p r o c es s o c o m o o q u e é d es c r i t o p o r D el eu ze em
s eu t ex t o s o b r e o r i t o r n el o :

" … u m m ú s i c o p r ec i s a d e u m p r i m ei r o t i p o d e r i t o r n el o , r i t o r n el o
t er r i t o r i al ou de ag en c i am en t o , p ar a t r an s f o r m á- l o de d en t r o ,
d es t er r i t o r i al i zá - l o , e p r o d u zi r en f i m u m r i t o r n el o d e s eg u n d o t i p o ,
c o m o m et a f i n al d a m ú s i c a, r i t o r n el o c ó s m i c o d e u m a m áq u i n a d e
s o n s / … / N ão se t em n ec es s i d ad e de suprimir o t o n al , t em - s e
n e c e s s i d ad e d e c o l o c á- l o em f u g a. V ai - s e d o s r i t o r n el o s ag en c i ad o s
(t er r i t o r i ai s , p o p u l ar es , am o r o s o s , et c ) ao g r an d e r i t o r n el o

trivial de que nada é proibido e que a música é sempre um produto da prática pessoal e resultado de suas
escolhas únicas) (Christian Munthe, Vad är fri improvisation, in Nutida Musik ,n.2, 1992, p.12 a 15).
14
Conforme afirmamos anteriormente, para que este tipo de proposta tenha exito é necessário que os
participantes estabeleçam uma espécie escuta reduzida voltada para o som pré-musical "molecularizado".

12
m aq u i n ad o cósmico/…/É o t r ab al h o ex t r em am en t e profundo no
p r i m ei r o t i p o d e r i t o r n el o q u e v ai c r i ar o s eg u n d o t i p o , i s t o é a
p eq u en a f r as e d o C o s m o " 15

A s s i m , n o s p a r e c e q u e , p o r m a i s q u e a t é c n i c a (q u e e s t á s e m p r e ,

inevitavelmente, ligada a algum idioma específico) às vezes se coloque

como um entrave à liberdade de invenção do improvisador, ela é, por

outro lado, o que possibilita os vôos da imaginação e a ação do

pensamento musical. Só podemos criar a partir de nossas identidades,

nossos rostos e subjetividades. Trata-se de pensar na potência e no devir

a partir das forças armazenadas. T r a t a- s e d e p e n s a r no passado (a

técnica, a identidade e o rosto) como potência dinâmica e não como

nostalgia paralizante. Por isso citamos aqui, novamente o filósofo francês

G. Deleuze para quem:

o b u r ac o n eg r o d a s u b j et i v i d ad e, a m áq u i n a d o r o s t o s ão i m p as s es ,
a m ed i d a de n o s s as s u b m i s s õ es e de n o s s as s u j ei ç õ es ; m as
nascemos dentro d e l e s e é aí q u e d ev em o s n o s d eb at er / . . . / É
s o m en t e at r av és d o m u r o d o s i g n i f i c an t e q u e s e f ar á p as s ar as
l i n h as d e a- s i g n i f i c ân c i a q u e an u l am t o d a r ec o r d aç ão , t o d a r em i s s ão ,
toda s i g n i f i c aç ão p o s s í v el e toda i n t er p r et aç ão que possa s er
d ad a. . . . É s o m en t e n o i n t er i o r d o r o s t o , d o f u n d o d o b u r ac o n eg r o e
em s eu muro b r an c o que os t r aç o s de r o s t i d ad e p o d er ão s er
l i b er ad o s 16.

improvisação: problemas e assimetrias

15
Rogério Luiz Moraes Costa, O músico enquanto meio e os territórios da livre improvisação, tese de
doutorado apresentada para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica na PUC/SP, 2003,
p. 162, 163.

16
Deleuze, Mil Platôs III, p. 59.

13
Ainda a respeito deste dinamismo da livre improvisação que se

assemelha ao de uma conversa é importante assinalar o fato de que,

como nesta, o processo da livre improvisação é imprevisível e, por isso,

pode alternar momentos mais ou menos bem sucedidos. Como numa

conversa, há aqueles momentos em que todos falam ao mesmo tempo,

outros em que alguém não é ouvido ou entendido. Pode haver momentos

de falta de assunto em que se "tateia" em busca de algo que interesse a

t o d o s (g e r a l m e n t e e s t e s s ã o m o m e n t o s r e c h e a d o s d e s i l ê n c i o e e s t e s

podem ser de diversos tipos: dúvida, ênfase, atenção, preparação,

expectativa, etc.) momentos assimétricos em que alguém fala mais e

outros ouvem, etc. Os próprios participantes da performance são,

invariavelmente, diferentes no que diz respeito às reações, temperamento

e atitudes (e l e m e n t o s que configuram dinamicamente aquilo que

d e f i n i m o s c o m o r o s t o ). A p e r f o r m a n c e r e f l e t i r á d e a l g u m a f o r m a t o d a s

estas assimetrias e contigências reais. O acaso, obviamente, será um

componente fundamental pois irá manter sempre viva a possibilidade de

mudanças no fluxo da conversa. Aqui poderiámos lembrar da possibilidade

do humor, da surpresa, das atitudes inesperadas, etc.

"aprendendo" a improvisar livremente

Quando falamos em aprender a improvisar, temos claro o que isto

significa no contexto de idiomas específicos e delimitados como é o caso

do jazz. Fazendo uma analogia com a linguagem verbal temos que, para

que possamos participar do exercício da fala, devemos aprender o

vocabulário, a gramática, a sintaxe e aplicação destes elementos numa

pragmática. Concretamente, no caso do jazz, por exemplo, devemos

estudar escalas, arpejos, modos, as teorias harmônicas (c a m p o

harmônico, dominantes individuais, notas acrescentadas, notas alteradas,

n o t a s e s t r u t u r a i s , n o t a s d e a p r o x i m a ç ã o , e t c . ). D e v e m o s t a m b é m n o s

familiarizar com as formas de ataque e articulação, com o uso de clichês,

padrões rítmicos e melódicos. Se conseguirmos uma imersão prática na

14
linguagem poderemos aprender os jogos sutis de acentuação e

d e s l o c a m e n t o r í t m i c o p r e s e n t e s n a c h a m a d a " l e v a d a " o u g r o o v e 17 e a s s i m

estaremos mais ou menos habilitados a improvisar sobre esta base com

conhecimento de causa e "autoridade". Improvisaremos com "swing". Já

na proposta de improvisação livre, a preocupação parece ser outra: como

se livrar das "camadas de tinta" ou "raspar a tela"? Isto porque, do nosso

ponto de vista, para este tipo de atividade é necessário re-adquirir a

curiosidade, a liberdade e espontaneidade da criança. E isto não é fácil

para quem está adestrado nos idiomas.

Há músicos e professores preocupados em criar e promover

ambientes favoráveis a este tipo de atividade. O professor e saxofonista

Tom Hall da New England Conservatory propõe em sua página na internet

uma série de exercícios baseados em algumas questões e alguns

pressupostos. Citemos alguns pontos:

P ar a o p r o p ó s i t o d e e n s i n ar e p r at i c ar a l i v r e i m p r o v i s aç ão , e u
c o n s c i en t em en t e c o m eç o c o m al g u n s a c o r d o s q u e c r i am " ab er t u r a"
e es p aç o p ar a a ex p l o r aç ão :
1 - É c o m p l et am en t e n at u r al u s ar a i m p r o v i s aç ão p ar a t o c ar e
ap r en d er …

17
A respeito deste conceito de "levada" ou groove citaremos a nossa tese de doutorado onde se pode ler
que ela é a textura rítmico- timbrística que invariavelmente sustenta o improviso - que é, quase sempre, um
solo de algum instrumento sobre uma base. A levada é um mecanismo (talvez uma submáquina da
máquina), uma onda portadora, uma paisagem onde vai se desenhar um rosto que é o improviso solista. A
levada funciona um pouco como um muro branco (de significância assegurada desde que corretamente
executado) sobre o qual se desenham variados rostos e estes rostos se remetem ao buraco negro da
individualidade de cada músico. A expressividade dos improvisos individuais - sua singularidade -
acontece nas dobras de um discurso todo ele idiomatizado. Ora, a significância do muro branco está
garantida exatamente pelos idiomas que se constituem como linhas de força e que ajudam a tornar
consistente o plano de improvisação. O improviso solista dialoga com esta levada de inúmeras maneiras. A
levada muitas vezes, além de seu aspecto textural (tecido rítmico-timbrístico) carrega também um
encadeamento harmônico (tonal, direcional ou modal cíclico, etc.) que vai condicionar a atuação do
solista. Com relação a este encadeamento o procedimento é análogo ao da variação melódica (como numa
chaconne ou passacaglia onde a estrutura harmônica se repete). Suas possibilidades são muito amplas e
variadas e aí se inscrevem desde as ornamentações, os clichês (pessoais ou acadêmicos) e até verdadeiros
achados, pequenos acontecimentos musicais, desenvolvimentos de idéias simples melódicas ou rítmicas
(síntese ativa da memória), etc. O diálogo com a textura propriamente dita se dá mais especificamente com
sua parte rítmica (deslocamentos, nuances de acentuações, hemíolas, etc.) (Costa, 2003, p. 150, 151).

15
2 - A u n i d ad e b ás i c a d a l i v r e i m p r o v i s aç ão é u m s o m . S eu u n i v er s o
p es s o al i n t ei r o de som, f ei t o de tudo o que você ouviu e
ex p er i en c i o u na v i d a, es t á d i s p o n í v el p ar a você u s ar na sua
i m p r o v i s aç ão .
3 - T o d o s o m c o m b i n a c o m q u al q u er o u t r o s o m . N ão h á n en h u m a
c o m b i n aç ão d e s o n s i n t r i n s ec am en t e er r ad a.
4 - D i zer a v er d ad e. A c o i s a m ai s i m p o r t an t e n es t e t r ab al h o é a
v er d ad e e a au t en t i c i d ad e da ex p r es s ão … O s c en ár i o s p ar a a
i m p r o v i s aç ão q u e n ó s c r i am o s d ev em s er ab er t o s o b as t an t e p ar a
i n c l u i r t o d as as es c o l h as p o s s í v ei s em q u al q u er s i t u aç åo 18.

Fica claro neste texto que a preocupação de Hall, que é responsável

por um curso de livre improvisação no NEC, é criar para os seus alunos

um ambiente de espontaneidade e liberdade diante do universo sonoro.

Tudo está aberto para a construção e para o estabelecimento de

processos de consistência a partir de uma prática consciente e

concentrada. Ainda, para resolver alguns problemas que surgem e facilitar

estas experiências interativas Hall propõe alguns exercícios como por

exemplo:

U m p r o b l em a c o m u m n u m g r u p o d e i m p r o v i s aç ão é q u an d o s e d á o
f at o d e t o d o m u n d o t o c ar s em p r e ao m es m o t em p o . E i s al g u n s
ex er c í c i o s p ar a t r ab al h ar es t e i t em :
1 - T o d o m u n d o d ev e f i c ar em s i l ên c i o p o r t an t o t em p o q u an t o
t en h a p r o d u zi d o s o m …
2 - T o q u e u m ex er c í c i o em q u e t o d o s c o m eç am e t er m i n am f r as es ao
mesmo tempo. Depois toque um onde ninguém d e v e t o c ar ao
m e s m o t e m p o e m q u e o s o u t r o s … (i d e m ).

E mais adiante, um exercício ainda mais preliminar e que aponta

para uma espécie de escuta reduzida e de autoconhecimento:

18
http://freeimprovisation.com/index.html, 2006.

16
"One Sound": é um ex c el en t e p r i m ei r o ex er c í c i o . É s i m p l es o
b as t an t e a ponto de q u al q u er p es s o a p o d er r eal i zar , m as as
p o s s í v ei s v ar i aç õ es p o d em p r o v er uma p r át i c a p ar a muitos
f u n d am en t o s d a m ú s i c a e d a i m p r o v i s aç ão . P r i m ei r o p as s o : s en t e- s e
o u f i q u e d e p é d e u m a m an ei r a r el ax ad a e n u m a p o s t u r a d e " p r o n t o
p ar a t o c ar " . F o c al i ze s u a at en ç ão p ar a " d en t r o " . C o n s c i en t i ze - s e d e
s eu s s en t i m en t o s e s en s aç õ es n e s t e m o m e n t o . N ão f aç a n e n h u m
j u l g am e n t o , s i m p l e s m e n t e s e o b s e r v e e p e r c e b a c o m o v o c ê s e
s en t e. E s p er e q u e u m s o m o u u m i m p u l s o p ar a o m o v i m en t o s u r j a
p ar a a s u a c o n s c i ên c i a. P er m i t a q u e s u r j a d o s eu c o r p o e c r i e u m
s o m … S eg u n d o p as s o : t o d o s , em s eq ü ên c i a, t o c am u m s o m . I s t o
p o d e s er f ei t o s em u m p u l s o . É ú t i l d as d u as m an ei r as . F azer s em
u m p u l s o p o s s i b i l i t a q u e o g r u p o u t i l i ze o t e m p o n e c e s s ár i o p ar a
ac h ar o som m ai s ad eq u ad o . Com o pulso s u r g em o u t r as
p o s s i b i l i d ad es r el ac i o n ad as (i d e m ).

Esta proposta se assemelha muito a algumas instruções contidas na

p e ç a - p r o c e s s o d e K . S t o c k h a u s e n , D as S i eb en T ag en q u e t a m b é m c o l o c a a

questão da necessidade de interiorização, auto consciência e

concentração e busca este resultado na peça através de sugestões

a b s t r a t a s e e v o c a t i v a s d o t i p o : c o n c en t r e - s e e t o q u e o s o m d e s u a m en o r

c él u l a.

Também o autor deste artigo tem experimentado em alguns

workshops algumas estratégias para potencializar um ambiente favorável

à esta prática. Nestes casos, como os grupos envolvidos costumam ser

m u i t o h e t e r o g ê n e o s (e m g e r a l , c o m p o s t o s p o r m ú s i c o s d e o r q u e s t r a c o m

pouca experiência em improvisação, compositores/intérpretes com alguma

experiência em propostas mais contemporâneas de improvisação - Cage,

Stockhausen, Earle Brow, Cornelius Cardew, etc. - e músicos ligados ao

rock, ao jazz ou à música intrumental brasileira) é necessário, num

17
primeiro momento, propor uma prática que unifique as diferentes

experiências pessoais. A estratégia tem sido a de situar os primeiros

exercícios no âmbito de um idioma simples e bem delimitado no qual os

músicos possam criar variações rítmico-melódicas sobre uma base

h a r m ô n i c a f i x a (à m a n e i r a d e u m a P as s ac ag l i a )e e x p e r i m e n t a r s o l u ç õ e s

q u e n a d a m a i s s ã o d o q u e r e a l i z a ç õ e s p e s s o a i s d a " h i p e r p a r t i t u r a " (q u e é

o c o n j u n t o v i r t u a l d e p o s s í v ei s p r e v i s t o s n o i d i o m a ). D e s t a m a n e i r a o q u e

e s t a r á e m j o g o é a d i a l é t i c a e n t r e a p a r t e c o n s t a n t e d o i d i o m a (s u a

"estrutura" abstrata com seus limites gramaticais, seus procedimentos e

seu vocabulário, numa analogia com a linguagem verbal) e a parte variável

(u m a p r a g m á t i c a o n d e s e r e a l i z a m a s s i n g u l a r i d a d e s d a s s o l u ç õ e s r e a i s e

p e s s o a i s ). T r a t a - s e a í d e u m j o g o c o m r e g r a s : h á o c e r t o e o e r r a d o , o

adequado e o inadequado. A propósito da questão da dialética entre o

constante e o variável e sobre o funcionamento dos idiomas musicais

"folclóricos", cabe citar o trabalho do semiólogo J. J. Nattiez fazendo

referência ao trabalho do etnomusicólogo Constantin Brâiloiu:

… B r âi l o u i ac r ed i t a q u e a b u s c a d es s e c r i ad o r i n d i v i d u al n ão é al g o
nem útil nem p o s s í v e l … " J am ai s recolhemos 'uma c an ç ão ' , t ão
s o m en t e uma v ar i an t e… O 'primitivo' n ão se p r eo c u p a em
i n o v ar … s eu o b j et i v o é s al v ag u ar d ar s eu b em , n ão s u b s t i t u í-
l o … E n t r et an t o , el a n ão é u m a ' o b r a ac ab ad a' , m as al g o q u e s e c r i a
e r ec r i a p er p et u am en t e. I s t o s i g n i f i c a q u e t o d as as p er f o r m an c es
i n d i v i d u ai s d e u m p ad r ão m el ó d i c o s ão i g u al m en t e v er d ad ei r as e
p o s s u em o m es m o p es o n a b al an ç a d o j u í zo . S i g n i f i c a t am b ém q u e o
' i n s t i n t o d e v ar i aç ão ' n ão é u m a s i m p l es p ai x ão p el a v ar i aç ão , m as
u m a c o n s e q ü ên c i a n ec es s ár i a d a au s ên c i a d e u m m o d el o i r r ec u s áv el .
N ão h á, p o r t an t o um ' o b r a' p r o p r i am e n t e d i t a: A e x e c u ç ão é,
s i m u l t an eam en t e, i n t er p r et aç ão e c r i aç ão 19" .

19
Jean Jacques Nattiez, O combate entre Cronos e Orfeu, Ed. Lettera, 2005, p. 7)

18
Obviamente, no curto espaço de tempo de um workshop não é

possível vivenciar o idioma de uma maneira significativa pois para isto

seria necessário uma "imersão" muito mais i n t e n s a 20. Além disso, o

ambiente criado é assumidamente artificial uma vez que uma

característica geral dos idiomas é ser firmemente territorializado. No

entanto esta experiência tem se mostrado útil em muitos aspectos,

p r i n c i p a l m e n t e n o q u e d i z r e s p e i t o a c r i a r u m a a t i t u d e d e " s o l t u r a " (p a r a

aqueles que não tem experiência com a i m p r o v i s a ç ã o ), de escuta

i n t e n s i f i c a d a (d o o u t r o , d o c o n j u n t o e d e s i m e s m o ) e d e i n t i m i d a d e c o m

o instrumento. Para esta primeira fase do trabalho em geral trabalhamos

c o m a " f o r m a " b l u es d e 1 2 c o m p a s s o s .

Numa segunda etapa do trabalho, ainda dentro de um ambiente

idiomático, procuramos criar situações mais propícias à escuta de outros

p a r â m e t r o s d o s o m q u e n ã o s ó a s f r e q ü ê n c i a s (n o t a s , e s c a l a s , m o d o s e

a r p e j o s ). S o b r e u m a b a s e r í t m i c a p o p u l a r q u a l q u e r (s a m b a , f o r r ó , s a l s a ,

funk, etc.) sem nenhuma base harmônica propomos a realização de

improvisos em que se focalize a questão rítmica: frases de diversos

tamanhos em que os músicos procurem se sintonizar e dialogar com o

fluxo através de acentuações, deslocamentos. Como não existe aqui a

exigência de se manter num âmbito harmônico restrito surge a

oportunidade de se enfatizar o aspecto rítmico através de deslocamentos,

acentuações, etc. Pelo mesmo motivo, a escolha do material frequencial

20
Nos permitiremos aqui novamente uma citação de nosso trabalho de doutorado em que podemos ler:
Estamos pensando aqui, que aquele que estuda improvisação no contexto de um idioma qualquer, fica
durante muito tempo só experimentando os elementos abstratos daquele idioma: escalas, padrões,
estruturas rítmicas e de intervalos. No entanto esta experimentação ainda não é o jogo propriamente dito
da improvisação. Esta envolve outros elementos além destes apreendidos através de extenuantes
exercícios. Isto não quer dizer que eles não são necessários. Mas o fato é que, durante muito tempo, em
suas tentativas de improvisação o aprendiz irá fazer um uso mecânico - por isto abstrato, não significativo
- destas estruturas, e não vai efetivamente ouvir e improvisar. Muitas vezes elas serão um empecilho para
uma escuta real do fluxo da performance: ao invés de ouvir o som que está resultando e interagir com ele
o aprendiz fica preso às fórmulas abstratas apreendidas e ansioso por usá-las. Ele está na fase de
denominação dos signos, quando eles ainda não estão prontos para o uso. Citando Wittgenstein
poderíamos dizer que "denominar é uma preparação para a descrição. O denominar não é ainda nenhum
lance no jogo de linguagem, - tão pouco quanto o colocar uma figura de xadrez no lugar é um lance no
jogo de xadrez. Pode-se dizer: ao denominar uma coisa, nada está ainda feito. Ela não tem nome, a não
ser no jogo" (Wittgenstein, 1979, p.31 citado por Rogério Luiz M. Costa, op. cit. 2003, p. 74).

19
(n o t a s , e s c a l a s , m o d o s , s é r i e s , e t c ) d e v e p a r t i r d e o u t r o s p r e s s u p o s t o s

de intencionalidade criando uma lógica desvinculada de alguma base

harmônica fixa de referência. Lembramos aqui o que nos diz Stravinsky a

respeito deste diálogo com a regularidade da pulsação presente nas

p e r f o r m a n c e s d e j azz:

q u an t o s de nós, ouvindo j azz, n ão t er ão s en t i d o uma curiosa


s en s aç ão , próxima da v er t i g em , q u an d o um…músico s o l i s t a,
t en t an d o i n s i s t en t em en t e en f at i zar ac en t o s i r r eg u l ar es , n ão
c o n s eg u e d es v i ar o nosso ouvido da p u l s aç ão r eg u l ar m ét r i c a
p r o d u zi d a p el a p er c u s s ão … O s t em p o s i s ó c r o n o s , n es s e c as o , s ão
ap en as u m m o d o d e p ô r em r el ev o a i n v en ç ão r í t m i c a d o s o l i s t a 21.

Após estas duas primeiras etapas que podem ser subdivididas se o

tempo disponível for suficiente, passamos a um momento em que

tentamos propor, a partir de roteiros de interação, "conversas" em que

se focalizem os aspectos puramente sonoros do pensamento "musical". A

idéia é introduzir, não de maneira teórica necessariamente, o conceito de

escuta reduzida e ampliar assim o universo de materiais possíveis para

utilização numa performance: emancipar o ruído, incorporar todos os sons

possíveis, partir do informe, expandir as possibilidades do instrumento,

etc. As performances são comentadas pelos ouvintes e os grupos que se

formam (d u o s , trios) revelam suas potencialidades. Para uma etapa

posterior é possível introduzir nos roteiros, instruções e caminhos que

vão conduzindo o grupo a idéias composicionais mais complexas e

sofisticadas. Evidentemente, quanto maior é o repertório de soluções, a

disponibilidade para interação e quanto mais apurada é a atitude de

escuta por parte dos músicos componentes dos grupos maior é a

possibilidade de que as performances sejam bem sucedidas.

21
STRAVINSKY, Igor, Poética Musical em 6 lições, Jorge Zahar Editor, 1996, p. 5 e 36.

20
Poderíamos ainda citar as instruções concebidas pelo trombonista,

compositor e improvisador Vinko Globokar para potencializar as práticas

d e i m p r o v i s a ç ã o e m g r u p o s p o r e l e d i r i g i d o s . E m s e u c é l e b r e t e x t o r èag i r

Globokar delineou uma proposta de sistematização das interações entre

os músicos que prevê as seguintes "negociações": imitar, se opor, se

integrar, hesitar, fazer algo diferente. É importante perceber que estas

p r o p o s t a s d e i n t e r a ç ã o i n c i d i n d o n u m p l a n o d e c o n s i s t ê n c i a i d eal , s e

alternam, se misturam e se completam na performance em tempo real.

São linhas de força, intensidades diferentes, qualidades de atuação que

incidem sobre o plano de consistência e o tornam dinâmico. Esses

procedimentos de interação supõe uma operação de memória sobre algo

representado. Algo que é imitado, variado, etc., tem que se tornar, na

memória, a l g o r e p r e s e n t a d o . Assim, neste tipo de interação se coloca a

questão da direcionalidade como um fator importante. Aquilo que é

representado na memória e variado ou imitado, etc., tem uma posição

superior de hierarquia com relação àquilo que surge a partir destes

procedimentos. Nele há o princípio, o tema, o m e s m o que retorna. Não

se pode, no entanto, esquecer que a improvisação não caminha só neste

sentido.

livre improvisação no mundo

Há, hoje em dia, vários artistas e grupos que se dedicam ou se

dedicaram à este tipo de experiência de livre improvisação. Podemos citar

L a w r e n c e C a s s e r l e y , D e r e k B a i l e y (u m d o s p i o n e i r o s n a r e f l e x ã o s o b r e

e s t e a s s u n t o c o m o l i v r o I m p r o v i s at i o n , i t s n at u r e an d p r ac t i c e i n m u s i c

e que mantém um site dedicado ao assunto chamado European Free

I m p r o v i s a t i o n ), H a n B e n n i c k , E a r l e B r o w n , J o h n S t e v e n s , G a v i n B r i a n , J o h n

Z o r n , E v a n P a r k e r , S t e v e L a c y , L a D o n n a S m i t h (q u e e d i t a n o C a n a d á a

revista eletrônica The Improvisor) o grupo Joseph Holbrooke, The Music

Improvisation Company, etc. Há ainda uma grande quantidade de

festivais de livre improvisação, principalmente na Holanda, Inglaterra,

21
Canadá e Austrália. Não podemos nos esquecer de trabalhos precursores

como os de Cornelius Cardew e sua Scratch Orchestra, Stockhausen e

suas experiências citadas anteriormente, John Cage e os

experimentalistas americanos (L a M o n t e Young, David Tudor, Morton

F e l d m a n , C h r i s t i a n W o l f f ). A p e s a r d e q u e m u i t o s d e l e s n ã o s e d e d i c a r a m

necessariamente à livre improvisação.

livre improvisação e eletroacústica: grupo Akronon

N o B r a s i l , o g r u p o A k r o n o n , d o q u a l f a z e m o s p a r t e (E d s o n E z e q u i e l ,

violino; Rogério Costa, flautas e saxofones e Silvio Ferraz, live-eletronics)

tem se dedicado nos últimos anos a experiências em que a prática de livre

improvisação se dá em um ambiente potencializado pela interação

eletrônica em tempo real. Com este grupo realizamos inúmeras

performances em Festivais e encontros dedicados à música

c o n t e m p o r â n e a (F e s t i v a l M ú s i c a N o v a , F e s t i v a l d e L i n g u a g e n s E l e t r ô n i c a s

- F I L E , p r o g r a m a ç ã o d o C P F L , e t c . ). É i m p o r t a n t e s a l i e n t a r q u e o g r u p o

inaugurou suas atividades no contexto de nosso trabalho de doutorado.

N e s t a é p o c a (2 0 0 2 ) g r a v a m o s a l g u m a s p e r f o r m a n c e s a p a r t i r d a s q u a i s

desenvolvemos grande parte de nossas reflexões. Citaremos, de nossa

tese de doutorado, a descrição e análise de uma destas performances

que, acreditamos, irá esclarecer o funcionamento deste ambiente com

todas suas variáveis, linhas de força e dinamismos:

1-Pollock

O t í t u l o d es t a p er f o r m an c e (at r i b u í d o a p o s t er i o r i c o m o t o d o s o s
t í t u l o s d as m ai s d e 3 0 p er f o r m an c es r eg i s t r ad as p el o A k r o n o n ) é u m a
h o m e n ag e m ao p i n t o r am e r i c an o J ac k s o n P o l l o c k (1 9 1 2 - 5 6 ) q u e f o i ,
s eg u n d o o h i s t o r i ad o r N i c o l as P i o c h , o p r i m ei r o p i n t o r " al l - o v er " . N es t e
es t i l o s e ab an d o n a a i d éi a t r ad i c i o n al d e c o m p o s i ç ão em t er m o s d e
r el aç ão en t r e as p ar t es e t o d as as c o n v en ç õ es d e u m m o t i v o c en t r al p ar a

22
a p i n t u r a. A l ém d i s s o , a p ar t i r d e u m a d et er m i n ad a f as e d e s u a c ar r ei r a
(1 9 4 7 ) P o l l o c k p as s o u a t r ab al h ar d es p ej an d o a t i n t a d i r et o d a l at a s o b r e
a t el a, d ei x an d o d e u s ar p i n c éi s e p al et a. V ár i o s r el at o s d es c r ev em s eu s
p r o c es s o s d e t r ab al h o em q u e el e d an ç a n u m a es p éc i e d e s em i - êx t as e ,
d er r u b an d o , d es p ej an d o , p i n g an d o , b o r r an d o e m an i p u l an d o a t i n t a c o m a
aj u d a d e f ac as e r i p as d e m ad ei r a s o b r e as t el as c o l o c ad as n o c h ão . E l e
c o s t u m av a d i zer : " a p i n t u r a t em v i d a p r ó p r i a. E u t en t o f azer c o m q u e el a
s e m an i f es t e" . N es t a f as e d e s eu t r ab al h o el e n ão p i n t av a i m ag en s ,
s o m en t e aç ão . D aí o t er m o c u n h ad o p ar a d es c r ev er s u a o b r a: ac t i o n
p ai n t i n g .
A h o m en ag em en t ão , num p r i m ei r o m o m en t o , d ec o r r e de um
c o n c ei t o p ar al el o q u e n o s ap r o x i m a d e s u a p r o p o s t a: ac t i o n an d r eac t i o n
m u s i c . A m ú s i c a d o A k r o n o n é m ú s i c a em aç ão e, ao m es m o t em p o , é
m ú s i c a d e r e aç ão p o i s s e t r at a d e u m a p r át i c a m u s i c al " i n s t an t ân e a" ,
c o l et i v a e i n t er at i v a. É u m f azer . T am b ém n ão " p i n t am o s " i m ag en s ,
s o m en t e aç ão . A outra d i m en s ão da h o m en ag em diz r es p ei t o às
c ar ac t er í s t i c a s es p ec í f i c as d e s t a p e r f o r m a n c e : o m at er i al s o n o r o m ai s
s i g n i f i c at i v o d es t a s es s ão , c o n f o r m e p r et en d em o s d em o n s t r ar n a an ál i s e,
é o g es t o . O g es t o i n s t r u m en t al , au t o m át i c o , i n t u i t i v o e " i m p en s ad o " q u e
g er a f i g u r as e t ex t u r as n o d ec o r r er d a p er f o r m an c e. A s s i m c o m o é
as s u m i d am en t e, au t o m át i c o , ap ar en t em en t e intuitivo e i m p en s ad o , o
g es t o d e P o l l o c k em aç ão s o b r e as t el as c o l o c ad as n o c h ão .
P o l l o c k é t am b é m o n o m e d e u m ap l i c at i v o c o m p u t ac i o n al u t i l i zad o
n as p e r f o r m an c e s do Akronon, c r i ad o por Silvio F e r r az a p ar t i r do
s o f t w ar e M A X . S eg u n d o o s eu m an u al d e i n s t r u ç ão , o ap l i c at i v o " P o l l o c k
s o u n d p o u r er " f o i d es en h ad o c o m b as e n a i m ag em d a t i n t a d es en h ad a em
n u m b e r - 8 , f u l l f at h o m - 5 , e o u t r o s p ai n éi s d e J ac k s o n P o l l o c k . A i d éi a
p r i n c i p al f o i c r i ar u m s i s t em a q u e p er m i t i s s e b r i n c ar c o m s o n s g r av ad o s
como se f o s s em r es p i n g o s sonoros. Ele pode s er u t i l i zad o em
p er f o r m an c es i n s t r u m en t ai s o u em j o g o s i n t er at i v o s . A p ar t i r d e u m
d i s p o s i t i v o s i m p l es d e g r av aç ão , é p o s s í v el g r av ar u m a am o s t r a d e s o n s
q u e é i m ed i at am en t e t o c ad a, p as s an d o p o r u m p r o c es s o c o n s t an t e d e

23
g r an u l aç ão . A am o s t r a é p i c o t ad a n es s es g r ão s , c u j o t am an h o p o d e s er
m an i p u l ad o e m t e m p o r e al , e e s p al h ad a t an t o n o e s p aç o ac ú s t i c o (e s p aç o
f r eq ü en c i al ) c o m o n o es p aç o t r i d i m en s i o n al (at r av és d e u m s i m u l ad o r d e
es p aç o b i n au r al ), r ep r o d u zi n d o o ef ei t o d e " t i n t as- s o n o r i d ad es " l an ç ad as
em m o v i m en t o s i r r eg u l ar m en t e r ei t er ad o s / … / E m P o l l o c k , M A X é u t i l i zad o
n ão s ó c o m o g r an u l ad o r (m ó d u l o d e p r o c e s s am e n t o s o n o r o ) m as n o
d es en h o d e u m ap l i c at i v o q u e r ef l et e u m a es t r at ég i a c o m p o s i c i o n al . A
i d éi a d a r ei t er aç ão e d a s u a d i s p er s ão es p ac i al em p eq u en o s f r ag m en t o s
c o m p r een d e a i d éi a d e u m a c o m p o s i ç ão m u s i c al q u e t en h a a r ep et i ç ão
i r r eg u l ar c o m o s eu p r i n c i p al m o t o r .
G en er i c am en t e o M A X é u m am b i en t e d e p r o g r am aç ão s o b r e o q u al é
p o s s í v el es t r u t u r ar es t es ap l i c at i v o s (s o f t w ar es que t r an s f o r m am os
c o m p u t ad o r es em v er d ad ei r o s " i n s t r u m en t o s " ) p ar a i n t er aç ão el et r ô n i c a
em t em p o r eal e q u e u t i l i zam u m a p l at af o r m a M ac i n t o s h . A s p o s s i b i l i d ad es
s ão i n ú m er as p o i s o M A X é u m a t el a b r an c a o n d e s e p o d em t r aç ar i n f i n i t o s
m ap as . A p ar t i r d e l e s , o m ú s i c o q u e o p e r a o s p r o c e s s am e n t o s e l e t r ô n i c o s ,
p o d e c r i ar d i f er en t es c am i n h o s at u an d o s o b r e o s s o n s p r o d u zi d o s p el o s
i n s t r u m en t o s ac ú s t i c o s e d ev o l v en d o - o s t r an s f o r m ad o s p ar a o am b i en t e.
O Pollock sound pourer é um d e s t e s m ap as e é u m d o s q u e m ai s
u t i l i zam o s e m n o s s as p r át i c as .
C o n c r e t am e n t e , e s t e ap l i c at i v o o p e r a d a s e g u i n t e m an e i r a: h á 4
g r av ad o r es p ar a c o l h er as am o s t r as (s am p l es ) q u e f u n c i o n am d e m an ei r a
i n d ep en d en t e. A p ar t i r da s el eç ão de t r ec h o s d as am o s t r as , os
p r o c es s am en t o s d i s p o n í v ei s s ão as g r an u l aç õ es , as al t er aç õ es de
v el o c i d ad e c o m a c o n s eq u en t e m u d an ç a d e r eg i s t r o , o s ef ei t o s g l i s s an d i ,
os loops (g r av aç õ es r ep et i d as em ciclo f ec h ad o ), os r ev er s o s , os
c o n g el am en t o s d e t r ec h o s , et c . T o d a s es t as o p er aç õ es s ão d ec i d i d as e
d i s p ar ad as em t em p o r eal p el o m ú s i c o q u e o p er a o c o m p u t ad o r em
i n t er aç ão c o m o am b i en t e t o t al d a p er f o r m an c e. O s g r av ad o r es p o d em
o p er ar s i m u l t ân ea o u i n d i v i d u al m en t e. A l ém d i s s o o ap l i c at i v o p o s s i b i l i t a a
o p er aç ão d e s í n t es es A M em t em p o r eal (s em u t i l i zaç ão d o s g r av ad o r es ):

24
o som ac ú s t i c o p r o d u zi d o p el o s outros músicos é t r an s f o r m ad o no
m o m e n t o m e s m o d a e m i s s ão e j á s ai p e l as c ai x as ac ú s t i c as m o d i f i c ad o .
É c er t o q u e a u t i l i zaç ão d es t es r ec u r s o s c o m p u t ac i o n ai s , al ém d e
am p l i ar en o r m em en t e o p o t en c i al d e f ab r i c aç ão d es t a m áq u i n a d e s o n s
q u e é a p er f o r m an c e, ag r eg a à m es m a, u m al t o g r au d e i m p r ev i s i b i l i d ad e.
A s v ar i áv ei s s ão i n f i n i t as e o g r au d e c o n t r o l e d o s r es u l t ad o s s o n o r o s p o r
p ar t e d o m ú s i c o r es p o n s áv el p el as o p er aç õ es d e p r o c es s am en t o , d ep en d e
d o am b i en t e c o n c r et o (p l en o d e m u l t i p l i c i d ad es e c o m p l ex i d ad es ) em q u e
a p er f o r m an c e s e d es en r o l a. U m a d i m en s ão ex p er i m en t al c o n c r et i zad a n o
m é t o d o d e t e n t at i v a e e r r o i n t e g r a o ar s e n al d e p r o c e d i m e n t o s d e s u a
at u aç ão . A ev en t u al f r u s t r aç ão d e ex p ec t at i v as t am b ém f az p ar t e d e u m
am b i en t e q u e s e c o n f i g u r a, c o n f o r m e p al av r as d o p r o f es s o r e p er f o r m er
S i l v i o F er r az, en q u an t o u m a " p er f o r m an c e d es p r o t eg i d a" . P o r o u t r o l ad o ,
é a p ar t i r d a u t i l i zaç ão d es t e t i p o d e r ec u r s o q u e es t e m ú s i c o s e i n t eg r a
d e m an ei r a at i v a n a p er f o r m an c e. O c o m p u t ad o r s e t o r n a t am b ém u m
i n s t r u m en t o . É c er t o q u e el e n ão p r o d u z o s s o n s i n i c i ai s : g r av a e
t r an s f o r m a aq u i l o q u e c ap t u r a. É o " v am p i r i s m o m u s i c al " .
P as s e m o s à p e r f o r m an c e p r o p r i am e n t e d i t a. P r o c ed er em o s , n es t e
c as o à uma an ál i s e d et al h ad a do fluxo sonoro. A d u r aç ão t o t al da
p er f o r m an c e é d e 1 6 ' 3 7 " . A s es s ão s e i n i c i a ao s p o u c o s c o m a i n t r o d u ç ão
d e el em en t o s q u e p o d er i ám o s d ef i n i r c o m o a c u m u l a ç õ e s no sentido
es t ab el ec i d o p o r S c h aef f er : o s ax o f o n e s o p r an o p r o d u z a p ar t i r d e u m a
m an i p u l aç ão rítmica livre d as c h av e s (0 ' 0 8 " at é 0'15") um objeto
d es c o n t í n u o , i r r eg u l ar , d en s o e s em al t u r a d ef i n i d a. E s t e t i p o d e o b j et o é
d es c r i t o p o r S c h aef f er n a p ág i n a 3 5 9 d e s eu t r at ad o : " A t r av és d o s eu
am o n t o ad o , d es o r d en ad o em m ai o r o u m en o r g r au d e ar t e o u n at u r eza, o
ouvido pode ap o i ar - s e sobre o s eu p ar en t es c o , e c o ac t ar a sua
d i v er s i d ad e em u m o b j et o c ar ac t er í s t i c o : a a c u m u l a ç ã o (an al o g i a d e u m a
m u l t i p l i c i d ad e d e c au s as )" . E s t e o b j e t o , as s i m c o m o m u i t o s d o s q u e , a o s
p o u c o s s e ap r es en t ar ão n es t a s es s ão , r ev el a d e u m a m an ei r a ev i d en t e,
u m g e s t o i n s t r u m e n t al p o r t r ás d e s u a p r o d u ç ão . A q u i p e r c e b e - s e a
p er c u s s ão l i v r e, o r i t m o p u r o d o s d ed o s s o b r e as c h av es d o i n s t r u m en t o .

25
S i m u l t an eam en t e (0 ' 1 3 " ) s e d el i n ei a u m o u t r o o b j et o (o u u m a o u t r a
c am ad a do o b j et o m ai s c o m p l ex o que irá se d el i n ear a p ar t i r da
ac u m u l aç ão d es t es p eq u en o s p r é - o b j et o s ) a p ar t i r d e o u t r o g es t o : n o
v i o l i n o , o g es t o l i v r e em p i zzi c at o s o b r e as c o r d as s o l t as (q u e t em m ai o r
p er m an ên c i a d o q u e o g es t o d o s ax o f o n i s t a, p o i s r ev er b er a) d el i n ei a
n o v am e n t e uma acumulação. Só que es t a r ev el a c ar ac t er í s t i c as
f r eq ü en c i ai s i d en t i f i c áv ei s (al t u r as d ef i n i d as e v ar i áv ei s ), d i f er en t e
d en s i d ad e e o c o r r ên c i a i n t er m i t en t e: s ão como i l h as de sons com
f r eq ü ên c i as i n d ef i n i d as (n o t as ) en t r em ead as p o r s i l ên c i o s . A p ar t i r d a
m ar c a d e 0 ' 2 2 ' ' at é 0 ' 4 0 " s e e s t ab e l e c e u m a e s t r u t u r a d e p e r g u n t a e
r es p o s t a: as c ar ac t er í s t i c as da c am ad a i n t er m i t en t e do violino
" c o n t am i n am " o o u t r o i n s t r u m en t i s t a q u e p as s a a d i al o g ar , p r een c h en d o
o s es p a ç o s c o m ev en t o s an ál o g o s . O s n o v o s el em en t o s c r i ad o s p el o
s ax o f o n i s t a p ar a es t e d i ál o g o s ão , p o r ém , m ai s c l ar am en t e g es t u ai s :
es c al as e f r ag m en t o s d e es c al as s o l t o s , en u n c i ad o s c o m o u n i d ad es d e
t am an h o s v ar i ad o s e en t r em ead o s p o r s i l ên c i o s ab r u p t o s . U m t r at am en t o
f i g u r al (t em át i c o ) p o r v ezes s e i n s i n u a m as n ão c h eg a a s e i n s t al ar . N o
jogo de pergunta e resposta (n a c o n v e r s a. . . ), estes dois objetos
f u n c i o n am como p al av r as de t am an h o s d i v er s o s en u n c i ad as p el o s
p ar t i c i p an t es . A o n í v el d o s o l f ej o t em o s u m o b j et o m i s t o c o m p o s t o
l i n ear m en t e (n ão h á, ai n d a a s i m u l t an ei d ad e) a p ar t i r d a al t er n ân c i a
d es t es d o i s o b j et o s (o u c am ad as c o n f o r m e a p r o p o s t a d e an ál i s e).
N a m ar c a d o s 0 ' 4 1 " ap ar e c e , p e l a p r i m e i r a v e z u m o b j e t o q u e é
r es u l t ad o d e u m p r o c es s am en t o el et r ô n i c o . E s t e, q u e é u m a m an i p u l aç ão
t r an s p o s t a d o o b j et o d o v i o l i n o , o p er a u m ad en s am en t o d a es t r u t u r a
g er al f azen d o com que d i m i n u am os es p aç o s en t r e os ev en t o s . Se
es t ab el ec e ao s poucos, as s i m , a s i m u l t an ei d ad e d as c am ad as . D es t e
m o m e n t o at é a m ar c a d e 2 ' 0 6 " p o d e- s e d i zer q u e s e c o n s t i t u i u m a
t ex t u r a que soma v ár i as c am ad as com o b j et o s s em el h an t es , p o r ém
d i f er en c i ad o s : o s g es t o s - ac u m u l aç õ es es p aç ad o s q u e " r i s c am " a t es s i t u r a
p r o d u zi d o s p el o s ax o f o n e, as c u r t as " i l h as " - ac u m u l aç õ es em p i zzi c at o
p r o d u zi d as p el o v i o l i n o , al ém d o s o b j et o s m ai s g r an u l o s o s p r o d u zi d o s

26
p el o s p r o c es s am en t o s el et r ô n i c o s q u e s ão j o g ad o s , as v ezes em l o o p , em
v ár i as d i r eç õ es es p ac i ai s e em v ár i as r eg i õ es d a t es s i t u r a. N es t a t ex t u r a,
c ad a c am ad a i d en t i f i c ad a d e o b j et o s s e c o m p o r t a d e m an ei r a i m p r e v i s í v e l .
O s ev en t o s s ão ap r es en t ad o s em m o m en t o s d i s p ar at ad o s e em p o s i ç õ es
(d i n âm i c as , f r eq u en c i ai s , t em p o r ai s , et c . ) s u r p r een d en t es . No g er al ,
p o r ém , t r at a - s e d e u m a t ex t u r a h o m o g ên ea e em ev o l u ç ão . P o d em o s aq u i
p as s ar a c o n s i d er ar o r es u l t ad o d a s o m a d e o b j et o s / c am ad as c o m o u m
o b j et o c o m p l ex o q u an d o el e s e ap r es en t a p r o v i s o r i am en t e h o m o g ên eo .
Como r e s u l t ad o desta e v o l u ç ão (o u do s at u r am e n t o de s u as
p o s s i b i l i d ad es ), s e i n t r o d u zem n o v o s el em en t o s e f o r ç as q u e ao s p o u c o s
v ão (o u n ão ) s e c o n s t i t u i r em n o v o s o b j et o s : s o n s l o n g o s , t ô n i c o s ,
contínuos e es t áv ei s , g l i s s an d o s e i t er aç õ es (" n o t as " r ep et i d as )
i n t r o d u zi d o s aq u i e al i p el o v i o l i n o .
Na m ar c a de 2'06", a " n o t a" longa do violino começa a se
es t ab el ec er en q u an t o c en t r o d e u m a n o v a t ex t u r a. H á, n a r eal id ad e, u m a
l en t a e i m p er c ep t í v el t r an s f o r m aç ão da t ex t u r a a p ar t i r da g r ad u al
i n t r o d u ç ão d es t es o b j et o s tônicos e s u s t en t ad o s que p as s am a s er
p r o d u zi d o s t am b ém p el as o u t r as f o n t es (s ax o f o n e - 2'21", e
p r o c es s am en t o el et r ô n i c o ). E s t a t r an s i ç ão s e c o n f i g u r a n a m e d i d a e m q u e
s e m an t ém n a t ex t u r a at u al , es p ar s am en t e, o b j et o s d a t ex t u r a an t er i o r
(p r i n c i p al m en t e n a c am ad a el et r ô n i c a) e o g es t o i n s t r u m en t al an t er i o r d o
s ax o f o n i s t a s e " c o n t am i n a" c o m o n o v o o b j et o : o s r áp i d o s f r ag m en t o s d e
es c al a p as s am a r ep o u s ar n o s e u f i n al e m n o t as l o n g as . E s t a n o v a
c o n f i g u r aç ão d e c am ad as - r áp i d o s f r ag m en t o s d e es c al a c o n d u zi n d o a
s o n s t ô n i c o s s u s t en t ad o s , g r an u l aç õ es r es u l t an t es d e p r o c es s am en t o s e
t r an s p o s i ç õ es , " i l h as " d e s o n s i t er at i v o s d i v er s i f i c ad o s (p i zzi c at o s , s o n s
c u r t o s at ac ad o s n o s ax o f o n e), et c - v ai p r o m o v en d o u m a g r ad u al d i l u i ç ão
n a d e n s i d ad e d a t e x t u r a q u e v ai , at é a m ar c a d o s 3 ' , c o n f i g u r ar u m a n o v a
" p ai s ag em " s o n o r a. E s t as t r an s f o r m aç õ es n ão s ão p r em ed i t ad as , el as
ac o n t ec em n o c o n t ex t o m es m o d a p er f o r m an c e e s ão p er c eb i d o s n u m a
an ál i s e r et r o s p ec t i v a.

27
Num nível m ai s g e r al esta an ál i s e revela uma tendência d as
p er f o r m an c es de que os o b j et o s c o m p l ex o s (g es t al t s , t ex t u r as ) se
es t ab el eç am g r ad at i v am en t e em c am ad as m ai s o u m en o s i n d ep en d en t es .
E s t as c am ad as p o d em s e d es l o c ar c o m v el o c i d ad es d i f er en t es d e m o d o s
q u e, m u i t as v ezes há i n t er p o l aç õ es : o b j et o s v ão s en d o constituídos
s i m u l t an eam en t e a o u t r o s q u e v ão s e d i s p er s an d o . T u d o é l i g ad o p as s o a
p as s o .
N a m e d i d a e m q u e n ão h á u m t e r r i t ó r i o e s p e c í f i c o (i d i o m a) q u e
u n i f i q u e a p er f o r m an c e, o s o b j e t o s s o n o r o s é q u e d ã o c o n s i s t ê n c i a
m u s i c a l a e s t a p r á t i c a q u e d e o u t r o m o d o p o d er i a m er g u l h ar n u m a
es p éc i e d e c ao s c ó s m i c o i n d i f er en c i ad o . O s o b j et o s s ão ex p r es s ão d e u m a
m e t am o r f o s e d a r e p e t i ç ão . R e p e t i ç ão , n a m e d i d a e m q u e e l es s ó s e
es t ab el ec em a p ar t i r d e u m a r ep et i ç ão d e c o m p o n en t es . M et am o r f o s e -
que é o modo de s er d as p er f o r m an c es - porque as p eq u en as
t r an s f o r m aç õ es l o c ai s v ão ao s poucos d el i n ean d o (t r an s i ç õ es ) o
ap ar ec i m en t o d e n o v o s o b j et o s . T o d o es t e p r o c es s o q u e s e d á em p l en a
s i m u l t an ei d ad e e em t em p o r eal d ep en d e de um al t o p o d er de
c o n c en t r aç ão dos músicos o que c o n f er e ao s o b j et o s m u s i c ai s al t a
v o l at i l i d ad e. E l es s ão c o m o n u v en s q u e s e f o r m am n o c éu e s e d es f azem a
c ad a s eg u n d o . A s s i m , c ad a o b j et o (t an t o as c am ad a s q u an t o o s o b j et o s
c o m p l ex o s ) t em um g r au de p o t ên c i a d i f er en t e que d ep en d e
p r i n c i p al m en t e d e s eu c o n t eú d o em o c i o n al . E s t a p o t ên c i a c o n d i c i o n a o
t em p o d e p er m an ên c i a d o s o b j et o s . N a r eal i d ad e o t em p o d e p er m an ên c i a
de um m es m o o b j et o m u s i c al d ep en d e de uma s ér i e de f at o r es
constitutivos que v ão d et er m i n ar se es t e o b j et o é f ec u n d o p ar a
t r an s f o r m aç õ es s em p er d er s u a i d en t i d ad e o u s e o s eu t ec i d o é es t ér i l e
s e es v ai r ap i d am en t e.
N e s t e c o n t e x t o as at i t u d e s d o m ú s i c o p o d e m s e r b as i c am e n t e d e
d o i s t i p o s : a r es p o s t a (q u e é u m a es p éc i e d e s i n t o n i a c o m o s el em en t o s
c o n s t an t es do o b j et o ) p el a q u al el e se i n t eg r a no o b j et o v i g en t e
t r an s f o r m an d o - o p o r d en t r o , e a p r o p o s t a, at r av és d a q u al el e p r o p õ e
n o v o s r u m o s p ar a a p e r f o r m an c e e e s t ab e l e c e p o n t e s c o m o s n o v o s

28
o b j et o s vindouros. O ad v en t o de p r o p o s t as pode ou n ão o c as i o n ar
m u d an ç as d e r u m o . N a r e al i d ad e o e s p í r i t o d a r e s p o s t a e d a p r o p o s t a s ão
c o m p l em en t ar es . T r at a - s e s i m p l es m en t e d e u m a q u es t ão d e g r au .
V o l t em o s p ar a a an ál i s e. N a m ar c a d e 3 ' , s u r g e u m n o v o o b j et o
p r o d u zi d o p el o v i o l i n o : é, n as p al av r as d e S c h aef f er , u m a t í p i c a a m o s t r a
(" D o l ad o d o s s o n s c o n t í n u o s , é a p er m an ên c i a d e u m m es m o ag en t e a
p er s eg u i r s u as t en t at i v as , q u e i r á s o l d ar , at r av és d a i n c o er ên c i a d o
d et al h e, as d i v er s as f as es d o ev en t o s o n o r o " . - S c h aef f er , 1 9 9 3 , p . 3 5 8 ) e
t am b ém t em u m a c l ar a o r i g em g es t u al . T r at a- s e d e u m o b j et o c o n t í n u o ,
ex c ên t r i c o , p r o d u zi d o p o r u m g es t o s i m i l ar ao d es c r i t o p o r S c h aef f er :
" U m m en i n o q u e af l o r a c o m o d ed o a c o r d a d e u m v i o l i n o , en q u an t o
conduz i n ab i l m en t e o ar c o a q u al q u er l u g ar , f ab r i c a um som t ão
i n c o n g r u en t e q u an t o i n t er m i n áv el … " (S c h aef f er , 1 9 9 3 , p . 3 5 8 ) . N o n o s s o
c as o , a am o s t r a é p r o d u zi d a p el o v i o l i n o a p ar t i r d o u s o d e u m a ar c ad a
em f l au t at o s o b r e a r eg i ão d o s h ar m ô n i c o s n a c o r d a m i c o m u m a d i n âm i c a
em p p . E s t e n o v o o b j et o p r ep ar a a en t r ad a d a f l au t a p í f an o (3 ' 1 7 " ). E s t a,
i n t r o d u z o b j et o s s em el h an t es às a c u m u l a ç õ e s p r o d u zi d as an t er i o r m en t e
p el o s ax o f o n e (g es t o s es c al ar es , f r ag m en t o s , c u r t o s d e f i g u r as , et c ) m as
c o n t am i n ad o s p el o t i m b r e h ar m ô n i c o t í p i c o d o f l au t ad o d o v i o l i n o . N es t e
m o m e n t o , d a e n t r ad a d a f l au t a at é a m ar c a d e 3 ' 4 3 ' ' , c o n v i v e m n a
t ex t u r a al g u m as c am ad as : a) o v i o l i n o c o m s u a am o s t r a ex c ên t r i c a d e
r u í d o s , h ar m ô n i c o s e t i m b r es i n u s i t ad o s , b ) a f l au t a c o m s u as f i g u r as
c l ar am en t e g es t u ai s d er i v ad as dos f r ag m en t o s es c al ar es propostos
an t er i o r m en t e p el o s ax o f o n e (t r at a- s e aq u i d a r em i n i s c ên c i a d e u m g es t o
e n ão d o u s o f i g u r al o u p r o p r i am en t e t em át i c o d es t es el em en t o s , q u e
c o n f i g u r ar i a u m a s í n t es e at i v a d a m em ó r i a), c ) v ár i as r es u l t an t es d e
p r o c es s am en t o el et r ô n i c o d e m at er i ai s an t er i o r es e at u ai s : g r an u l aç õ es
ag u d í s s i m as " r i s c an d o " al eat o r i am en t e o t ec i d o s o n o r o e u m a f r eq ü ên c i a
g r av e numa d i n âm i c a pp q u as e i m p er c ep t í v el e p r o v av el m en t e
i n v o l u n t ár i a, n ão p r em ed i t ad a e ac i d en t al 22.

22
Já tivemos a oportunidade de afirmar o caráter positivo do acaso e do acidental - enfim, do não
premeditado - no contexto da performance. Neste caso particular fica bastante evidente a pertinência

29
A p ar t i r d a m ar c a d e 3 ' 4 5 " s e d es en v o l v e u m a t ex t u r a r ar ef ei t a q u e
s e c ar ac t er i za p o r u m a es p éc i e d e d i ál o g o p r ed o m i n an t em en t e m el ó d i c o
(p l en o d e g es t u al i d ad e), p o r v ezes c o n t r ap o n t í s t i c o , en t r e a f l au t a e o
v i o l i n o n o c o n t ex t o d e u m a " p ai s ag em " q u e n o s r em et e ao s p ás s ar o s d e
M es s i aen : c aó t i c o s , l i v r es , i m p r ev i s í v ei s m as ai n d a as s i m , p o r t an d o u m a
i d en t i d ad e sonora p er c ep t í v el (f i g u r aç õ es r ap i d í s s i m as - q u as e
g r an u l aç õ es - em r eg i õ es de f r eq ü ên c i as ag u d as a p ar t i r de um
p r o c es s am en t o d e s o n s s u s t en t ad o s d o v i o l i n o e d a f l au t a, d i n âm i c as ).
É i n t er es s an t e o b s er v ar , n o c o n t ex t o d es t e d i ál o g o en t r e a f l au t a e
o v i o l i n o , a p ar t i r d o 4 ' 4 0 " , a r ei t er aç ão o b s es s i v a d e u m a f i g u r a d e 4
n o t as p e l a f l au t a e o c o n t r ap o n t o l i v r e e m s o n s l o n g o s , g l i s s ad o s e
s u s t en t ad o s p o r p ar t e d o v i o l i n o . O u t r a c ar ac t er í s t i c a i m p o r t an t e d es t a
t ex t u r a é o s eu g r au de m o b i l i d ad e ex p r es s a num r ev ezam en t o de
p r ed o m í n i o d as d i v er s as c am ad as .
A p ar t i r d a m ar c a d e 5 ' 1 9 " a c ar ac t er í s t i c a i t er at i v a e g r an u l ar
i m p l em en t ad a n a c am ad a el et r ô n i c a c o n t am i n a a t ex t u r a q u e v ai ao s
p o u c o s g an h an d o d en s i d ad e e u m a n o v a c o n f i g u r aç ão : o s " p ás s ar o s "
i n v ad em a p ai s ag em . N a m ar c a d e 7 ' 1 9 " u m a n o v a p r o p o s t a i n v ad e o
t ec i d o : o v i o l i n o i n t r o d u z ar p ej o s r áp i d o s q u e l em b r am as f i g u r as g es t u ai s
d o s ax o f o n e q u e p o r s u a v ez r et o r n a à t ex t u r a s u b s t i t u i n d o a f l au t a.
G es t o s r áp i d o s e en t r ec o r t ad o s , q u as e p o n t i l h i s t as c o m p õ em es t a n o v a
c o n f i g u r aç ão . N a m ar c a d e 8 ' 4 8 " at é 1 0 ' 1 5 " a c am ad a el et r ô n i c a i n t r o d u z
s u c es s i v as c am ad as d e c ar át er r í t m i c o r ep et i t i v o (at r av és d o u s o d e l o o p s
t r an s f o r m ad o s e t r an s p o s t o s ) q u e f u n c i o n am c o m o o n d as p o r t ad o r as o u
p ed ai s rítmicos p ar a os ac o n t ec i m en t o s p o n t i l h i s t as , g es t u ai s e
as s i m ét r i c o s (at aq u es em c o r d as d u p l as n o v i o l i n o , f i g u r aç õ es m el ó d i c as ,
r áp i d as na f l au t a que se introduz n o v am en t e na m ar c a de 10'05")
p r o n u n c i ad o s p el o s i n s t r u m en t o s . A p ar t i r d a m ar c a d e 1 0 ' 1 5 " , c o m a
d i s p er s ão d o p ed al r í t m i c o a t ex t u r a v ai p r o m o v er a s u a d i l u i ç ão g r ad at i v a
a p ar t i r , p r i n c i p al m en t e, d a i d éi a d e p o n t i l h i s m o e m i c r o f i g u r as : o es p aç o

acidental do elemento descrito enquanto força articuladora do caráter transitório deste momento da
performance.

30
t em p o r al , d i n âm i c o e f r eq ü en c i al v ai ao s p o u c o s s en d o d es b as t ad o e a
t ex t u r a p er d e es p es s u r a.
N a m ar c a d e 1 1 ' 0 5 " o c o r r e u m g r an d e c o r t e r e s u l t an t e d e s t e
g r ad u al d es ad en s am en t o : é a p r i m ei r a p au s a g er al n a p er f o r m an c e. A
p ar t i r d a m ar c a d e 1 1 ' 0 9 " o c o r r e a g r ad u al c o n s t r u ç ão d e u m a t ex t u r a
h o m o g ê n e a d e f i n i d a p o r s u as c am ad as n i t i d am e n t e d e l i n e ad as : a)o v i o l i n o
i n t r o d u z u m a f i g u r a r ep et i t i v a c o m p o s t a d e s o n s s u s t en t ad o s , i r r eg u l ar es ,
em g l i s s an d o (u m a es p éc i e d e am o s t r a), b ) a f l au t a f az u m a es p éc i e d e
s o l o m el ó d i c o " ét n i c o " (n u m a ap r o x i m aç ão i n t en c i o n al c o m o c o n c ei t o d e
"folclore i n v en t ad o " b ar t o k i an o ), c) a c am ad a el et r ô n i c a promove
i n t er v en ç õ es i m p r ev i s í v ei s - i n i c i al m en t e u m a es p éc i e d e ac o m p an h am en t o
- q u e v ão c o n t am i n an d o as o u t r as c am ad as c o m s u as c ar ac t er í s t i c as
c o m p l ex as . A s en s aç ão d e o r g an i c i d ad e d es t e t r ec h o é ev i d en t e.
A p ar t i r d a m ar c a d e 1 2 ' 3 2 " , c o m a i n t r o d u ç ão d e s o n s i t er at i v o s -
t r êm u l o s n o v i o l i n o q u e s u r g em p o r s u a v ez en q u an t o r es u l t ad o d e u m a
r es s o n ân c i a d a c am ad a el et r ô n i c a g r an u l ad a - a t ex t u r a v ai s o f r en d o
n o v as t r an s f o r m aç õ es . O s el em en t o s p r es en t es n a t ex t u r a an t er i o r n ão
d es ap ar ec em ab r u p t am en t e: v ão s e t r an s f o r m an d o , c o n t am i n an d o e s en d o
c o n t am i n ad o s p el o s n o v o s ac o n t ec i m en t o s . O au m en t o d e d en s i d ad e é
c o n s t an t e, o s s o n s i t er at i v o s e as g r an u l aç õ es i n v ad em o am b i e n t e n as
v ár i as c am ad as q u e t am b ém c am i n h am n a t es s i t u r a c o n d u zi n d o a t ex t u r a
a u m a c r es c en t e c o m p l ex i d ad e.
A p ar t i r d a m ar c a d e 1 3 ' 5 0 " at é 1 4 ' 2 0 " d u as c am ad as s e f i x am e
d i al o g am n u m f l u x o ev o l u t i v o : o v i o l i n o p r o d u z u m o b j et o i t er at i v o q u e s e
m o v e n a t e s s i t u r a e a c am ad a el et r ô n i c a d ev o l v e o p r o c es s am en t o d e
el em en t o s an t er i o r es (a p ar t i r d e f i g u r as p r o d u zi d as p el a f l au t a e p el o
v i o l i n o : g r an u l aç õ es t r an s p o s t as , at i r ad as em t o d as as d i r eç õ es ). E s t a
t ex t u r a d es em b o c a n u m a o u t r a c o n f i g u r aç ão (1 4 ' 2 0 " ) em q u e o v i o l i n o
r ad i c al i za as am o s t r as e b u s c a o s r u í d o s d e f o r m a s i s t em át i c a en q u an t o a
c am ad a el et r ô n i c a p r o c ed e a u m a g r ad at i v a s at u r aç ão d a g r an u l aç ão q u e
c o n d u z, n a m ar c a d e 1 4 ' 5 0 " , ao ap ar ec i m en t o de um longo o b j et o
i t er at i v o h o m o g ên eo m et am o r f o s ean t e. Este se soma a uma outra

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c am ad a - p r o d u zi d a p el o v i o l i n o - d e s o n s t ô n i c o s e i t er at i v o s q u e s e
m o v e m p e l a t e s s i t u r a. P o r ú l t i m o s e s o m a u m o u t r o o b j e t o i t e r at i v o
i n t er m i t en t e, d es t a v ez p r o d u zi d o em f r u l l at o p el o s ax o f o n e.
O f i n al d a p er f o r m an c e, q u e r es u l t a u n i c am en t e d o c an s aç o o u d o
es g o t am en t o n at u r al d o d es ej o d o s m ú s i c o s , s e c ar ac t er i za p o r u m a
d i s p er s ão g r ad u al de t o d as as c am ad as i d en t i f i c ad as que p as s am a
i n t er v i r c ao t i c am en t e no am b i en t e, t o r n an d o - o i n s t áv el . A t r av és de
o l h ar es en t r e o s m ú s i c o s s e es t ab el ec e u m c o n s en s o : c o m u m f ad e- o u t
ex ec u t ad o n a m es a d e s o m a p er f o r m an c e c es s a. N ão h á u m " ac o r d e
f i n al " , n ão h á u m a r e s o l u ç ão p o i s n ão h á o q u e r e s o l v e r . C o m r e l aç ão a
es t e as p ec t o d as p er f o r m an c es p o d em o s d i zer q u e c ad a p er f o r m an c e s e
dá d en t r o de uma “ m em b r an a” . É um d et er m i n ad o ag en c i am en t o
at u al i zad o a p ar t i r d o p l an o d e c o n s i s t ên c i a d o g r u p o . T em m em b r an a m as
n ão é l i n ear . É c o m o o " c o r p o s em o r g ão s " d e D el eu ze e G u at ar i . T em p o r
i s t o u m a d u r aç ão l i v r e. S eg u n d o N y m an : “ p r o c es s o s es t ão , p o r d ef i n i ç ão ,
s em p r e em m o v i m en t o e p o d em s er i g u al m en t e b em ex p r es s o s em d o i s
m i n u t o s o u em v i n t e e q u at r o h o r as . ” C i t an d o C h r i s t i an W o l f f a r es p ei t o
d e p eç as d e m ú s i c a ex p er i m en t al (N y m an , 1 9 9 9 , p . 1 2 ): “ C o m eç o e f i m
n ão s ão p o n t o s em u m a l i n h a e s i m l i m i t es d o m at er i al d e u m a p eç a. . . q u e
p o d em s er t o c ad o s a q u al q u er m o m en t o d u r an t e a p eç a. O s l i m i t es d e
u m a p eç a es t ão ex p r es s o s , n ão em m o m en t o s d e t em p o q u e m ar c am u m a
s u c es s ão , m as c o m o m ar g en s d e u m a p r o j eç ão es p ac i al d a es t r u t u r a
sonora t o t al ” . É i n t er es s an t e n o t ar que os p r o c es s o s da livre
i m p r o v i s aç ão es t ão m u i t o m ai s p r ó x i m o s d as i d éi as d e C ag e, m as as
s o n o r i d ad es r es u l t an t es es t ão m ai s p r ó x i m as d as o b r as d e V ar ès e .

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