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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

CRISTINA FRAGATA DOS SANTOS

VERSÕES DE UM ACONTECIMENTO:
a controversa cobertura jornalística do caso Eichmann

Porto Alegre
2016
Cristina Fragata dos Santos

VERSÕES DE UM ACONTECIMENTO:
a controversa cobertura jornalística do caso Eichmann

Trabalho de conclusão de curso apresentado à


Faculdade de Comunicação Social da
Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul como requisito parcial para
obtenção do título de Bacharel em Jornalismo.

Orientador: Prof. Dr. Antônio Carlos Hohlfeldt

Porto Alegre
2016
Cristina Fragata dos Santos

VERSÕES DE UM ACONTECIMENTO:
a controversa cobertura jornalística do caso Eichmann

Trabalho de conclusão de curso apresentado à


Faculdade de Comunicação Social da
Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul como requisito parcial para
obtenção do título de Bacharel em Jornalismo.

Aprovado em: ____ de ________________________de ________.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Celso Augusto Schröder – PUCRS

Prof. Dr. Juremir Machado da Silva – PUCRS


AGRADECIMENTOS

Agradeço à Cristiane, minha irmã, pelo crescimento e aprendizado conjuntos, sem os


quais eu não teria condições de produzir um trabalho como este. Sou grata a ti por nunca ter
me deixado sentir sozinha, por acreditar no meu trabalho e no meu potencial, na maioria das
vezes, mais do que eu sou capaz. Obrigada pelos livros, pelos debates, pelas conversas e pelas
risadas. Obrigada por ter me contado a história de uma filósofa chamada Hannah Arendt.
Aos meus pais, por terem financiado uma biblioteca inteira ainda na infância, por
acreditarem cegamente na minha paixão pelas palavras, mesmo sem compreendê-la. Apesar
de todos os títulos nas nossas estantes, a maior inspiração sempre encontrei na dedicação e no
amor de vocês.
Obrigada Lucas e Milene, por todas as vezes em que disseram que daria tudo certo.
Não só agora, mas em todos os nove anos dessa amizade. A cumplicidade e o carinho de
vocês foram determinantes para que eu não perdesse a minha pouca ternura. Pedro, obrigada
por conseguir ser eu e tu ao mesmo tempo. Obrigada pela paciência e pela versão da vida que
vejo pelas tuas lentes.
Agradeço ao meu namorado, Vinicius, por ter escolhido minha companhia, mesmo
quando eu, paranoica, passava horas pensando nas palavras certas para escrever esta
monografia. O teu cuidado e o teu afeto também são parte importante deste trabalho.
Sou grata ao meu orientador, o professor Hohlfeldt, pela confiança, pelo aprendizado e
pelos questionamentos destes últimos 12 meses. Aos professores que, assim como ele, foram
capazes de ensinar a profissão além da técnica nestes quatro anos de Famecos. Muito
obrigada.
For each of us who has ever felt that God created us better than any other human
being has stood on the threshold where Eichmann once stood. And each of us who
has allowed the shape of another persons nose or the color of their skin or the
manner in which they worship their God, to poison our feelings towards them, has
known the loss of reason that led Eichmann to his madness. For this was how it all
began with those who did these things. (FRUCHTMAN, 1961).
RESUMO

A Nova York da década de 1960 protagonizou um debate histórico para o jornalismo


de revista. A cobertura do caso Eichmann feita por Hannah Arendt, para a New Yorker,
promoveu um intenso debate entre jornalistas e acadêmicos sobre a visão da filósofa política
do acontecimento. Em 1961, Adolf Eichmann, ex oficial nazista, foi julgado em Jerusalém
pelos crimes cometidos ao longo da Segunda Guerra Mundial. Ao invés de vilões e vítimas,
Arendt apresenta em sua reportagem pessoas comuns sobrevivendo a um regime totalitário. A
percepção dela como repórter surpreendeu a comunidade intelectual nova-iorquina, que se
dividiu entre acusadores e defensores para discutir os aspectos mais polêmicos do seu relato.
O foco deste trabalho está na análise do texto de Hannah Arendt e de um dos seus principais
opositores, Norman Podhoretz, editor da revista Commentary.

Palavras-chave: Jornalismo de revista. Reportagem. Julgamento. Caso Eichmann.


ABSTRACT

The New York of the 1960's protagonized an historical debate in magazine journalism.
The coverage of the Eichmann case made by Hannah Arendt, for The New Yorker, promoted
an intense debate among journalists and academics on the vision of the political philosopher
of the event. In 1961, Adolf Eichmann, former Nazi official, was tried in Jerusalem for crimes
committed during the Second World War. Instead of villains and victims, Arendt presents in
her report ordinary people surviving a totalitarian regime. Her perception as a reporter
surprised the New York intellectual community, which was divided between accusers and
advocates to discuss the most controversial aspects of her story. This work focus in the
analysis of Hannah Arendt's text and one of her main opponents, Norman Podhoretz,
Commentary magazine editor.

Key-words: Magazine journalism. Report. Trial. Eichmann Case


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................................8
2 JORNALISMO DE REVISTA ...........................................................................................12
2.1 CONCEITO ........................................................................................................................12
2.2 THE NEW YORKER .........................................................................................................13
2.3 COMMENTARY................................................................................................................17
3 PERSONAGENS DO ACONTECIMENTO .....................................................................21
3.1 HANNAH ARENDT ..........................................................................................................21
3.2 NORMAN PODHORETZ ..................................................................................................25
3.3 ADOLF EICHMANN.........................................................................................................27
4 EICHMANN EM JERUSALÉM ........................................................................................32
4.1 O TEXTO DE HANNAH ARENDT..................................................................................32
4.2 O TEXTO DE NORMAN PODHORETZ..........................................................................45
4.3 AS POLÊMICAS ...............................................................................................................49
5 CONCLUSÃO ......................................................................................................................54
ANEXO A - PRIMEIRA PÁGINA DE "EICHMANN EM JERUSALÉM"....................60
ANEXO B - PRIMEIRA PÁGINA DO TEXTO DE NORMAN PODHORETZ .............61
8

1 INTRODUÇÃO

A prisão de Otto Adolf Eichmann, em maio de 1960, pautou a imprensa internacional.


Nome de pouco destaque na Segunda Guerra Mundial, Eichmann se tornou conhecido pelas
citações ao longo dos julgamentos do tribunal de Nuremberg (1945-1946), que tratou da
punição dos crimes cometidos pelos nazistas durante o conflito. Capturado em um subúrbio
de Buenos Aires, na Argentina, o ex-oficial nazista, responsabilizado pela Solução Final, foi
levado a julgamento em Israel, pela Corte Distrital de Jerusalém.
De acordo com o relato de Hannah Arendt, para a revista New Yorker, ainda na
primeira semana do júri, o grande grupo de correspondentes enviados por jornais de diversos
países se dispersou. Eichmann já havia sido julgado pela opinião pública e pela mídia como
culpado, ainda que a sentença estivesse longe de ser proferida.
As coberturas jornalísticas apresentavam-no como a representação viva do mal,
associado ao Terceiro Reich (1922-1945). Para Arendt, filósofa alemã de origem judaica, a
maldade atribuída a Eichmann estava diretamente ligada ao contexto social da Alemanha
nazista, no qual as ordens de Adolf Hitler eram acatadas como leis. Portanto, na visão de
Arendt, Eichmann não passava de um burocrata, um mero executor no arranjo militar,
cunhando, assim, o termo banalidade do mal.
O tema versões de um acontecimento trata da necessidade de análise e reflexão sobre
diferentes abordagens nos relatos jornalísticos. O recorte, com base na cobertura do caso
Eichmann, justifica-se pela repercussão da reportagem de Hannah Arendt, para a New Yorker.
Antes mesmo da publicação, em 1963, os boatos relacionados à ótica da repórter sobre o
evento repercutiram negativamente, já que a proposta da autora apresentou impressões
diferentes do padrão veiculado pela mídia da época.
O período contemplado pela análise deste trabalho visa a reflexão dos acontecimentos
e como foram percebidos, do início do julgamento até a publicação sobre Eichmann, em
Jerusalém, como livro, em maio 1963. Dentre os materiais utilizados para construir este
estudo, estão artigos, documentos e livros relacionados tanto ao aspecto jornalístico, quanto
histórico do tema.
A hipótese do newsmaking1, que trata dos critérios de produção da notícia, consiste no
principal referencial teórico do trabalho. A escolha se justifica pela cobertura especial do caso

1 A hipótese do newsmaking trata das condições da notícia, com foco no jornalista, neste caso o emissor,
responsável pela transformação do acontecimento em relato. Para além disso, inclui o relacionamento entre
fontes e jornalistas e as etapas da produção da informação (HOHFELDT, 2002).
9

Eichmann. Deste modo, através das categorias substantivas dos valores-notícia2, pode-se
refletir tanto sobre a quebra da rotina de produção, com Hannah Arendt na condição de
repórter; quanto sobre o grau de interesse do público em relação ao acontecimento,
considerando o nível hierárquico dos indivíduos envolvidos.
Os procedimentos metodológicos adotados podem ser sintetizados em três etapas. A
primeira delas trata da pesquisa bibliográfica, com o objetivo de conhecer e compreender o
cenário no qual o julgamento de Eichmann estava inserido. Em um segundo momento, foi
feita uma pesquisa documental que serviu como base para a última etapa, o método
comparativo, que visa compreender a produção da New Yorker e da Commentary – que
apresentaram diferentes versões sobre o acontecimento em questão.
Os problemas de pesquisa buscam compreender aspectos importantes da produção da
notícia. Entre eles, a) a maneira como Adolf Eichmann foi retratado pela mídia em função do
julgamento; b) a maneira com que a jornalista propõe sua versão do acontecimento frente à
pressão da opinião pública, um dilema sofrido por Hannah Arendt antes mesmo da publicação
de sua reportagem; bem como c) o peso da construção pessoal da jornalista, como definição
do resultado final da notícia.
Por fim, os objetivos deste estudo visam a) identificar as particularidades da cobertura
do caso Eichmann, com base no texto de Hannah Arendt; b) refletir sobre a pressão da opinião
pública no resultado final do trabalho da jornalista; e c) comparar as versões propostas por
Arendt, pela New Yorker, e Norman Podhoretz, pela Commentary.
A estrutura pretende organizar os elementos que constituem a temática de forma
crescente, para que o leitor possa compreender o contexto no qual o acontecimento tomou as
proporções que fez dele o objeto de estudo sobre o qual este trabalho se debruça.
O primeiro capítulo, "Jornalismo de revista", apresenta o histórico, as características e
os conceitos que o fundamentam e diferenciam a prática das outras formas em que o
jornalismo se expõe. Suas particularidades são exibidas a fim de trazer clareza aos eventos
explorados. Algumas delas, como a segmentação de público, muito característica deste
formato do jornalismo, foram determinantes para tornar o objeto deste estudo possível. Não
fosse o público fortemente intelectualizado da Nova York da década de 1960, para o qual o
texto de Hannah Arendt foi destinado, a recepção de Eichmann em Jerusalém poderia ter
repercutido com uma intensidade distinta.

2 Os critérios que definem a escolha de acontecimentos que se tornarão matéria noticiosa (CORREIA, 2009, p.
46).
10

Para além das propriedades genéricas das revistas, as singularidades das publicações
envolvidas são aprofundadas. Primeiramente, com o histórico sobre a New Yorker: do que se
propunha como revista e o que se tornou no período em que veiculou a reportagem
"Eichmann em Jerusalém". São exploradas as condições que tornaram possível a escolha de
uma filósofa como correspondente de um dos julgamentos mais importantes da história do
século XX.
Na sequência, a trajetória da Commentary é desenvolvida, com o acompanhamento da
história dos editores que fizeram da revista do Comitê Judaico Americano um expoente
intelectual e político dos Estados Unidos. Sua escolha como objeto se justifica pela sua
importância e pelo seu caráter analítico, acentuados pela ferocidade do então editor Norman
Podhoretz, apesar de outras publicações terem concedido amplo espaço para o debate
levantado pela reportagem de Hannah Arendt.
O segundo capítulo é composto pela biografia dos três principais personagens
envolvidos no acontecimento. A primeira parte conta os aspectos relevantes para a construção
do perfil de Hannah Arendt, como filósofa política. Da infância ao exílio nos Estados Unidos,
período contemplado pela narrativa, é possível compreender aspectos presentes em seu
entendimento sobre o Caso Eichmann.
A segunda parte apresenta ao leitor a trajetória de Norman Podhoretz, desde a infância
pobre, no Brooklyn, em Nova York, até se tornar o jovem e ambicioso editor da Commentary.
Assim como Arendt, o posicionamento de Podhoretz frente aos acontecimentos que levaram
ao enforcamento de Eichmann, em Tel Aviv, torna-se previsível, na medida em que se revela
a sua escalada acadêmica e profissional.
No terceiro e último fragmento do capítulo, a narrativa se concentra em esclarecer a
identidade do homem por trás da cabine de vidro, Adolf Eichmann. Com base na descrição de
Hannah Arendt sobre o acusado, desenvolve-se o perfil do ex-oficial nazista, na tentativa de
distinguir o homem do monstro julgado pela morte de milhões de judeus, em Jerusalém.
O quarto capítulo trata do julgamento de Eichmann e das reportagens e artigos que se
sucederam ao veredito proclamado pelos juízes. O primeiro aspecto abordado é a reportagem,
escrita por Hannah Arendt, após assistir às sessões do julgamento que condenou Eichmann à
forca. A primeira parte da análise compreende os principais aspectos de "Eichmann em
Jerusalém", incluindo o detalhamento dos elementos que fizeram o relato, publicado em 1963,
tão controverso.
Em seguida, o texto “Hannah Arendt sobre Eichmann: um estudo sobre a perversidade
do brilhantismo”, de Norman Podhoretz (1963) é analisado, em busca dos aspectos que
11

escandalizaram os intelectuais nova-iorquinos sobre a reportagem. Podhoretz, um dos


principais adversários de Arendt, tangencia os pontos que seriam tocados pelos outros
oponentes, de maneira a definir um posicionamento que desencadearia um grande debate na
história do jornalismo.
Ao final deste trabalho, os principais pontos dos textos são revisitados, com o objetivo
de compreender as questões apresentadas ao longo de toda a análise. No último capítulo, são
expostas as considerações e opiniões da autora da monografia, com base em todo o material
utilizado para a produção do estudo.
12

2 JORNALISMO DE REVISTA

A tradição do jornalismo teve início com a invenção da prensa, de Johannes


Gutenberg, no século XV. A revolução empreendida pelo inventor alemão tornou possível a
reprodução seriada de conteúdo, o que representou a ampliação das possibilidades para o
campo da comunicação.

2.1 CONCEITO

O nascimento das revistas sucede ao crescimento dos jornais, entre os séculos XVII e
XVIII. A consolidação da revolução industrial e do processo de urbanização, ao longo do
século XIX, criou um ambiente favorável ao desenvolvimento de novos produtos de
comunicação. Conforme Tavares e Schwaab (2013, p. 29), "aos poucos, a constituição de um
mercado editorial e a força da indústria cultural expandiram as diferenças em relação a outros
periódicos impressos e impulsionaram o afinamento das peculiaridades de linguagem e
circulação".
Bloch (1985 apud VOGEL, 2013, p. 19) defende "o conceito de revista como
caleidoscópio de imagens e tempos". Para ele, a revista pode ser interpretada como uma
montagem que conecta produções jornalísticas, como fotos, ilustrações, texto e design, por
exemplo. A união dos elementos de uma revista acaba por constituir sua fórmula e sua
consolidação, no mercado, depende precisamente da coerência sobre a união destes aspectos,
em relação aos prismas que constituem tal variabilidade.
Por sua característica de montagem, a revista oferece ao leitor uma visão panorâmica e
analítica dos acontecimentos. Assim, se diferencia do jornal, que apresenta os mesmos
eventos de forma pontual e imediata, dentro do seu tempo, e não para além dele. Por isso, a
relação da produção com o tempo é um fundamento importante para se entender as definições
de jornalismo de revista.

Não é difícil reconhecer que, numa revista, ocorre um encontro de temporalidades


mistas e heterogêneas: os tempos dos acontecimentos factuais, os tempos de
produção de revista, os tempos de leitura. Quando se empreende uma leitura crítica
da revista, entra em cena a temporalidade do analista, do observador. (VOGEL,
1985, p. 24).

Para o jornalismo, a revista confere um novo sentido à atualidade, que deixa de ser um
sinônimo para o novo (BENETTI, 2013, p. 45). Em função disso, a novidade deixa de ser
protagonista da notícia, cedendo lugar ao entendimento do contemporâneo e ao conhecimento
13

especializado. Este conhecimento especializado, para ser reconhecido como jornalismo, deve
seguir as diretrizes de um contrato de comunicação. Os critérios deste contrato podem variar
de acordo com a visão da publicação, mas buscam estabelecer procedimentos que
caracterizem o conteúdo como jornalístico. Incluem questões como modo de produção,
identidade do veículo e contexto histórico-cultural da produção de discurso, por exemplo.
Algumas questões sobre o modo de produção tornam o jornalismo de revista muito
particular. Dentre eles, a periodicidade é um dos mais marcantes, no sentido do resultado final
do produto jornalístico. Revistas costumam ser publicadas mensal, quinzenal ou
semanalmente. Este respiro de apuração permite ao jornalista manter uma distância entre o
acontecimento e a publicação, o que oferece a possibilidade de novos desdobramentos e
perspectivas sobre o assunto abordado, aprofundando-o.
A segmentação também consiste em uma particularidade desta forma de jornalismo.
No caminho oposto ao do generalismo dos jornais, o trabalho de uma revista costuma ser feito
tendo em vista uma categoria específica de leitores. Deste modo, ele se adapta mais
facilmente às mudanças da sociedade e busca manter-se encaixado em seu nicho social.
O poder do jornalismo de revista está na fidelidade do seu segmento e na força da sua
expressão. Segundo Benetti (2013, p. 55):

O jornalismo de revista é um discurso e um modo de conhecimento que: é


segmentado por público e por interesse; é periódico; é durável e colecionável; tem
características materiais e gráficas distintivas dos demais impressos; exige uma
marcante identidade visual; permite diferentes estilos de texto; recorre fortemente à
sinestesia: estabelece uma relação direta com o leitor; trata de um leque amplo de
temáticas e privilegia os temas de longa duração.

Por todos os aspectos apresentados, é possível compreender a dinâmica diferenciada


do jornalismo de revista, bem como o sucesso e a permanência deste modelo no mercado
editorial. Frente às mudanças tecnológicas, ele segue se adaptando às expectativas do público
e dos anunciantes, como uma das alternativas mais tradicionais de se fazer jornalismo.

2.2 NEW YORKER

Harold Ross, aos 33 anos, não poderia imaginar que sua revista de cartoons se tornaria
uma das principais publicações sobre cultura dos Estados Unidos. Fundada em 1925, sob o
olhar meticuloso de Ross, a New Yorker se consagraria como a porta-voz da ficção, do
jornalismo literário e das tirinhas de humor ácido no universo editorial.
14

Como editor da Home Sector, revista semanal voltada para o público veterano de
guerra, Ross começou a conceber os moldes nos quais a New Yorker seria montada.
Elementos como a periodicidade, o teor do conteúdo e até mesmo padrões gráficos se
repetiriam no veículo, criado cinco anos após o fim da Home Sector, engavetada em 1920.
A criação de uma publicação impressa semanal parecia uma maneira segura de
empreender um projeto nos anos 1920. Com o avanço tecnológico e os baixos custos dos
correios, o mercado de revistas americano vivia um momento de prosperidade. Para Kunkel
(2013, posição 1292, tradução nossa), autor de uma biografia de Ross, “a revista que ele tinha
em mente – polida, inteligente e atrevida – poderia entregar qualidade ao mercado de
propaganda de Nova York, para uma audiência de qualidade de Nova York”3.
Para materializar a ideia, Ross recorreu à opinião de administradores do mercado
editorial sobre os custos de uma primeira edição, o que deixou clara a necessidade de se
buscar investidores. Por não representar fisicamente a ideia de sofisticação que pretendia
imprimir à revista, foi desencorajado a buscar apoio na área. De uma conversa informal,
nasceu a parceria que tornou possível a New Yorker. Raoul Fleischmann, empresário do ramo
de alimentação, que pouco entendia sobre a publicação de revistas, concordou em financiar o
projeto.
O primeiro desentendimento entre Fleischmann e Ross coincidiu com a impressão do
primeiro número da revista, em fevereiro de 1925. Além de não agradar à crítica, o primeiro
número também não conquistou a simpatia do patrocinador. Mudanças se mostraram
indispensáveis para que a publicação seguisse no mercado. Naquele momento, a New Yorker
começava a busca pela fórmula perfeita e as características que constituiriam a identidade da
revista até os dias atuais.
O primeiro editorial da New Yorker abriu a edição com um texto explicativo sobre a
montagem de uma revista. Da busca por patrocínio até as negociações com a companhia
telefônica para a obtenção de uma linha para o escritório, em duas páginas repletas de humor
e ironia, a publicação revela suas intenções:

A New Yorker inicia com uma declaração de propósito sério, mas com uma
declaração concomitante de que não será muito séria na execução deste propósito.
Ela espera refletir a vida metropolitana, mostrar os eventos e assuntos do dia, ser
feliz, humorada e satírica, sendo mais do que brincalhona. Irá publicar fatos que a
levarão aos bastidores dos acontecimentos, mas não tratará de escândalos pelo apelo
deles ou pela comoção. Tentará, com consciência, manter seus leitores informados

3
“The magazine he had in mind— glossy, intelligent, and cheeky— could deliver quality New York
merchandise to a quality New York audience.”
15

sobre o que está acontecendo nos campos que despertam seus interesses. (NEW
YORKER, 1925, p. 2, tradução nossa)4.

A sobrevivência ao primeiro ano indicou que os esforços de Ross haviam sido


reconhecidos pela crítica e pelo público. Apesar de consciente dos seus objetivos, o editor
demorou alguns meses para montar a equipe capaz de transformar a New Yorker na revista
idealizada por ele. Após a fase de ajustes, a estabilidade financeira e o renome da revista
fizeram com que ela se tornasse o objetivo profissional de escritores e jornalistas.
Coincidente com a consolidação do trabalho de Herald Ross, eclodiu a Segunda
Guerra Mundial. A decisão inicial de sustentar uma posição neutra sobre a questão não
conseguiu ser mantida, em função dos avanços nazistas sobre o restante da Europa. Os artigos
da New Yorker sobre a guerra se tornaram famosos por oferecer perspectivas diferentes dos
demais veículos. Naquele período, a revista deu ao jornalismo um novo fôlego, com relatos de
combatentes, sobreviventes e espectadores do mundo todo. Para Kunkel (2013, posição 5401,
tradução nossa):

Além de inventivos e informativos, os artigos de guerra da New Yorker tinham


poder. Os escritores da revista, como os homens e mulheres que cobriam, eram
jovens, bravos e completamente comprometidos com a causa, o que inspirou seu
trabalho com energia e paixão. Por estarem nos locais na maioria das vezes, eles
transmitiam autoridade5.

Devido às pressões do trabalho e ao desgaste da produção jornalística de guerra, ainda


que a um oceano de distância dos acontecimentos, Ross desenvolveu problemas de saúde
ligados ao estresse. A úlcera no estômago fez com que o editor buscasse tratamento e
cogitasse seu afastamento da revista. Questões financeiras também influenciaram na sua
decisão. Em um acordo firmado com a direção da New Yorker, em 1945, Ross recebeu
aumento de salário, sob a condição de preparar um sucessor.
O sucessor de Ross sonhava em trabalhar na New Yorker desde a primeira leitura da
revista. Para ele, o modelo da publicação era o que considerava ideal como produção
jornalística. William Shawn teve sua primeira oportunidade na New Yorker em 1932, como

4
“The New Yorker starts with a declaration of serious purpose but with a concomitant declaration that it will not
be too serious on executing it. It hopes to reflect metropolitan life, to keep up with events and affairs of the day,
to be gay, humorous, satirical but to be more than a jester. It will publish facts that it will have to go behind the
scenes to get, but it will not deal in scandal for the sake of scandal nor sensation. It will try conscientiously to
keep its readers informed of what is going on in the fields in which they are most interested.”
5
“Beyond being inventive and informative, The New Yorker’s war articles had real power. The magazine’s
writers, like the men and women they covered, were young, brave, and completely committed to the cause,
which infused their work with energy and passion, and because they were on the scene for the most part, they
conveyed authority.”
16

freelancer, e foi efetivado um ano depois, em 1933. Apesar do bom trabalho como repórter,
Shawn não era visto pelo restante da redação como provável sucessor de Ross em função das
suas diferenças. Assim, as semelhanças na maneira de pensar a New Yorker entre os dois
eram facilmente despercebidas. De acordo com Kunkel (2013, posição. 5103, tradução nossa),

Cada texto digno de premiação era um fanatismo pela pontuação e exatidão e


preferia que as atenções se voltassem mais para o escritores do que para ele. Cada
um tinha uma paixão pela descoberta; se algo assim fosse possível, Shawn era
vorazmente mais curioso do que Ross. Muitas pessoas diziam que ele apenas não
conseguia ficar entediado6.

Shawn dirigiu a New Yorker entre 1951 e 1987, quando deixou a publicação por
divergências com o grupo Conde Nast, que comprou a revista em 1985. Durante o período,
Shawn manteve a tradição de Ross e persistiu na veiculação de artigos que fizeram com que a
revista fosse lembrada como o ponto final para assuntos culturais e políticos discutidos em
sociedade. Pela trajetória da New Yorker, seu público contava com ela para prover a versão
decisiva sobre estes temas. Adler (2011, posição 30, tradução nossa) explica:

A força da New Yorker com os seus dois grandes editores, Harold Ross e William
Shawn, vinha do fato de ser governada inteiramente pela curiosidade e energia
desses dois editores e dos artistas e escritores que eles encontraram, sem se
preocupar se os leitores iriam gostar e, ainda menos, sobre o que os anunciantes
pensariam7.

Os nomes que definiram o sucesso da New Yorker, segundo Adler (2011), foram os
dos dois primeiros editores. Para a escritora, que iniciou na revista sob a tutela de Shawn, a
New Yorker já havia acabado enquanto ela escrevia as páginas do seu livro de memórias
sobre os anos em que se dedicou à revista, publicado em 2011. Após Ross e Shawn, a New
Yorker passou pela supervisão de outros três editores: Robert Gottlieb (1987 – 1992), Tina
Brown (1993 – 1998) e David Remnick, que entrou em 1998 e é o responsável pela
publicação até o presente momento.

6
“Each prized good writing, was a fiend for punctuation and accuracy, and preferred the spotlight to be on his
writers rather than himself. And each had a passion for discovery; if such a thing was possible, Shawn was even
more voraciously curious than Ross. Many people said of him that he simply could not be bored.”
7
“The strength of The New Yorker under its two great editors, Harold Ross and William Shawn, was that it was
governed entirely by the curiosity and energy of these editors and of the artists and writers whom they found,
without worrying about what readers were going to like, least of all, about what advertisers thought.”
17

2.3 COMMENTARY

No final da Primeira Guerra Mundial, o número de judeus residentes na cidade de


Nova York ultrapassava a soma da Europa Ocidental, América do Sul e Palestina. O cenário
de pobreza, resultante da imigração forçada, não diminuía a dedicação da comunidade judaica
ao conhecimento. Inicialmente, com o objetivo de perpetuar a cultura religiosa, fundaram
escolas, sinagogas e jornais.
Condicionados ao modo de produção capitalista, os refugiados buscavam, na indústria,
o caminho para a prosperidade prometida pelo novo continente. As duras condições de
trabalho e a baixa remuneração evidenciaram, contudo, a situação de exploração da classe
operária. Estes fatores, combinados com o elevado grau de instrução dos judeus, culminaram
na participação massiva da comunidade em sindicatos e na adoção do socialismo como
ideologia. Balint (2010, posição 171, tradução nossa) explica: “nem todos os socialistas na
América eram judeus, mas judeus eram desproporcionalmente representados nessa categoria
social”8.
Os criadores da Commentary, filhos deste contexto sociopolítico, imprimiram à
publicação a posição política dos intelectuais judeus do século XX. Fundada em 1945, pelo
Comitê Judaico Americano, a revista, inicialmente mensal, trazia assuntos de conteúdo
político e cultural, não apenas para judeus, mas para o público geral.
Os moldes que consagrariam a Commentary como uma das mais influentes
publicações nos Estados Unidos foram criados por Elliot Cohen, seu primeiro editor. Aceito
aos 14 anos na Universidade de Yale, Cohen já ambicionava a criação de uma revista judaica
capaz de integrar-se à tradição das grandes revistas americanas. A carreira de Cohen, como
editor, teve início no Menorah Journal, periódico judaico criado em 1915, na Universidade de
Harvard. A dedicação ao resgate dos valores intelectuais judaicos e a busca por escritores que
traduzissem este esforço tornou o seu trabalho reconhecido, chamando a atenção do Comitê
Judaico Americano.
No primeiro editorial da Commentary, Cohen concentra seus esforços na explicação
do que a revista será. Ao longo do texto, ele afirma aspectos que acompanharão o periódico
até os dias atuais, como o patrocínio do Comitê Judaico Americano, e prevê os eventos sobre
os quais a publicação comprometerá editores e colaboradores futuros, como a cobertura dos
julgamentos de guerra.

8
“Not all socialists in America were Jews, but Jews were disproportionately represented in the socialist ranks.”
18

Commentary é um ato de fé nas nossas possibilidades na América. Com a Europa


devastada, recai sobre nós aqui, nos Estados Unidos, grande parte da
responsabilidade de levar adiante, de maneira criativa, nossas heranças espirituais e
culturais, comuns aos judeus. E, de fato, nós temos fé que das oportunidades das
nossas experiências aqui, envolverão novos padrões de vida, novos pensamentos, os
quais harmonizarão a herança e o país em um verdadeiro sentimento de ninho no
mundo moderno. Certamente, nós que sobrevivemos à catástrofe, sobreviveremos à
liberdade também. (COHEN, 1945, p. 2, tradução nossa)9.

Apesar do patrocínio do Comitê Judaico Americano, a Commentary conquistou


autonomia editorial, o que permitiu à equipe de Cohen produzir artigos e reportagens
marcantes. No período de consolidação, concorria com a Partisan Review, um periódico que
compartilhava aspectos com a Commentary, mas divergia quanto à adoção de uma identidade
judaica. Segundo Friedman (2005, posição 18, tradução nossa):

O jovem Norman Podhoretz, uma vez, perguntou ao primeiro editor da


Commentary, Elliot E. Cohen, qual era a diferença entre as duas revistas. Cohen
respondeu que a Commentary era uma revista conscientemente judia, enquanto a
Partisan Review era judia por causa de suas lideranças e colaboradores, e não
sabia.10

Elliot Cohen editou a Commentary até 1959, ano do seu suicídio. A escolha do novo
editor ficou sob responsabilidade de um conselho organizado pelo Comitê Judaico
Americano. Em dezembro do mesmo ano, Norman Podhoretz foi anunciado como sucessor de
Cohen e retornou à redação da Commentary, a qual havia abandonado anos antes, por
divergências intelectuais.
Sob a direção de Norman Podhoretz, a Commentary sofreria mudanças muito além do
design. Com o objetivo de apresentar uma nova versão da revista, Podhoretz empreendeu o
reposicionamento intelectual do veículo, abrindo o período considerado como a segunda fase
da revista.
Moldada pelos interesses pessoais de Podhoretz, a Commentary passou a ser
excessivamente editada, criando uma homogeneidade sobre o material publicado. A revista,

9
“Commentary is an act of faith in our possibilities in America. With Europe devastated, there falls upon us here
in the United States a far greater share of the responsibility for carrying forward, in a creative way, our common
Jewish cultural and spiritual heritage. And, indeed, we have faith that, out of the opportunities of our experience
here, there will evolve new patterns of living, new modes of thought, which will harmonize heritage and country
into a true sense of at-home-ness in the modern world. Surely, we who have survived catastrophe, can survive
freedom, too.”
10
“A youthful Norman man Podhoretz once asked Commentary's first editor, Elliot E. Cohen, what the
difference was between the two magazines. Cohen responded sponded that Commentary was a consciously
Jewish magazine, but although though the Partisan Review was Jewish because of its leadership and
contributors, it didn't know it.”
19

de acordo com Abrams (2012, posição 538, tradução nossa), tornou-se “um canal para a
expressão das visões de Podhoretz, quer ele escrevesse pessoalmente ou outros o fizessem”11.
Neste contexto, em sintonia com a batalha americana contra a ameaça soviética, foi
estabelecida uma nova postura política: o neo-conservadorismo. Os fatores que alavancaram a
adoção deste posicionamento ocorreram ao longo da década de 1960, incluindo a erupção do
antissemitismo na comunidade negra e na esquerda americana. Segundo Nash (2005, posição
1907, tradução nossa),

Por todos estes motivos, e mais, Podhoretz conclui que havia chegado o momento de
a Commentary e os judeus em geral defenderem "a ordem liberal democrática na
América" contra as ideias daqueles, "especialmente dos radicais de esquerda", que
estavam a destruindo.12

Em junho de 1970, a Commentary publicou seu primeiro texto em oposição à nova


esquerda, chamando a atenção para a sua tendência. A intenção do editor era marcar o novo
posicionamento ideológico da revista e ocupar o espaço intelectual até então disponível no
mercado editorial americano.
Durante o período da guerra fria, a revista se consolidou como o principal veículo de
reflexão sobre a vida política e intelectual dos Estados Unidos. Em 1995, após a
aposentadoria de Norman Podhoretz, a Commentary deu início a sua terceira fase, sob a
direção de Neal Kozodoy. Atualmente, desde 2009, é editada por John Podhoretz, filho de
Norman Podhoretz.
Sob a direção de John Podhoretz, a publicação segue a tendência inaugurada por
Norman, de criticar enfaticamente textos de outros veículos. Em setembro de 1963, Norman
Podhoretz publicou um artigo sob o título "Um estudo sobre a perversidade do
brilhantismo"13, no qual Hannah Arendt teve sua moral questionada pela divergência em sua
maneira de entender e reportar os acontecimentos que sucederam à captura do oficial nazista
Adolf Eichmann.
Mais de meio século após a grande polêmica, no dia 16 de março de 2016, em artigo
assinado por James Kirchick, com o título "New Yorker vs. Liberdade de expressão"14, a
Commentary acusa a New Yorker de comparar as vítimas do ataque ao jornal satírico francês

11
“Podhoretz made Commentary into an outlet for the expression of his views, whether he wrote them
personally, or others did.”
12
“For all these reasons and more, Podhoretz concluded that the time had come for Commentary, and for Jews in
general, to defend "the liberal democratic order in America" against the ideas of those, ‘especially on the radical
Left,’ who were working to destroy it.”
13
Tradução livre de “Hannah Arendt on Eichmann: A Study in the Perversity of Brilliance”.
14
Tradução livre de “The New Yorker vs. Free Speech”.
20

Charlie Hebdo a nazistas. O texto de Teju Cole, "Mortes sem lamúrias"15, publicado em 9 de
janeiro de 2015, foi utilizado como introdução para uma série de acusações, com base em
outros artigos da revista, sobre a tentativa da New Yorker de suprimir o discurso livre.
A sucessão destes acontecimentos demonstra que polemizar o produto do jornalismo
americano está nas raízes da Commentary e segue como uma das suas principais
características editoriais.

15
Tradução livre de “Unmournable bodies”.
21

3 PERSONAGENS DO ACONTECIMENTO

As polêmicas que envolvem a cobertura do caso Eichmann, especificamente a


reportagem de Hannah Arendt, publicada pela New Yorker, estão diretamente ligadas aos
personagens envolvidos. Figuras fortes e de destaque social, Hannah Arendt, Norman
Podhoretz e Adolf Eichmann eram capazes de sustentar controvérsias individuais. Reunidos
em torno de um mesmo fato, o julgamento de Eichmann sobre crimes de guerra, eles
protagonizaram uma grande discussão sobre ética e jornalismo.

3.1 HANNAH ARENDT

Em 14 de outubro de 1906, em Linden, atual bairro burguês da cidade de Hannover


(Alemanha), nascia Johannah Arendt, filha de Paul e Martha Arendt, um jovem casal erudito,
socialista e ateu. Aos dois anos de idade, mudou-se para Königsberg onde viveria sua
infância. Apesar de abdicarem da religião, os pais de Hannah permitem que a filha seja
apresentada à religião dos avós. Com eles, a menina aprenderia sobre a fé e os costumes
judaicos.
No ambiente escolar, Hannah conhece o problema histórico que perseguiu o povo
judeu durante séculos. Manifestado por colegas e professores, o antissemitismo aparece na
vida da futura filósofa ainda na infância, fazendo com que trocas de escola sejam necessárias
para afastá-la do preconceito. Para Adler (2007, p. 25), “a relação de Hannah com a judeidade
vai constituir o fio condutor de sua vida, tanto pessoal quanto intelectual”.
O molde do caráter independente de Hannah Arendt tem origem na intimidade da
família. A fragilidade da figura masculina, causada pelas mortes do pai e do avô no mesmo
ano, em 1913, concedeu à família Arendt, “a aparência de um clã feminino” (ADLER, 2007,
p. 20). A força das mulheres, centralizada especialmente na figura da mãe, desenvolveu o
entendimento de Hannah sobre o papel feminino para além das questões familiares.
Em agosto de 1914, os avanços da Primeira Guerra sobre a Alemanha exigiram de
Martha Arendt uma decisão sobre o destino da família. Ela e Hannah partem de Königsberg
para Berlim, onde ficam pouco mais de dois meses instaladas na casa de familiares. De volta
a sua cidade, a família Arendt tenta se adaptar à nova realidade. Hannah, ainda criança, não
consegue se manter alheia aos problemas que a cercam. A guerra faz dela uma menina doente,
intercalando enfermidades atribuídas, segundo a mãe, à angústia.
22

O envolvimento político de Martha Arendt cresce neste período. A partir de 1916, o


apartamento dividido entre ela e a filha torna-se palco de reuniões dos socialdemocratas. A
influência destes debates sobre a formação de Hannah se tornará evidente em sua produção,
que promoverá, no futuro, reflexões além da ideologia que cativou a ela e a mãe.

Sua filha dirá que a mãe se impressionava com o ardor, a firmeza e a força de
convicção de Rosa Luxemburgo, e lembrará que Martha arrastava-a para as
primeiras reuniões fervorosas para apoiá-la. Ela acompanha com paixão o desenrolar
dos acontecimentos. (ADLER, 2007, p. 31).

Assim como seu desenvolvimento intelectual, a entrada de Hannah Arendt na


universidade foi precoce. Expulsa da escola por organizar um boicote contra um dos
professores, passou uma temporada em Berlim, dedicando-se ao estudo das línguas antigas e
da religião cristã. Neste período, aprofundou seus conhecimentos sobre as obras de Kant,
Kierkegaard e Jaspers.
De volta a Königsberg, iniciou a preparação para o exame que lhe renderia a
conclusão dos estudos, o Abitur. Em 1924, um ano antes das expectativas da família e das
colegas de classe, Hannah é aprovada e recebe a medalha concedida às meninas que se
formavam no ginásio.
Na universidade, ela é desafiada pelas aulas e diálogos com os colegas. Hannah se
dedica ao estudo da filosofia, que tem seu início formal ainda em 1924, na Universidade de
Marburg. Segundo Bowring (2013, posição 217, tradução nossa),

[...] Arendt se inscreveu nos seminários inovadores sobre filosofia grega de


Heidegger. Dentre seus colegas de classe, estavam Hans Jonas, Karl Löwith e
Günther Stern, e se tivesse chegado alguns anos depois, teria tido a companhia de
Herbert Marcuse16.

Neste período, Arendt se envolve romanticamente com Martin Heidegger, casado e 17


anos mais velho do que ela. Mais do que apelo da juventude, as capacidades e os pensamentos
da aluna atraem o interesse do professor, com quem se relaciona às escondidas, para não
prejudicar a família e o casamento dele. O distanciamento do relacionamento com Heidegger
acontece em 1925, quando Hannah muda-se para Freiburg, dando continuidade a seus estudos
na Universidade Albert Ludwig, sob a tutela de Edmund Husserl, durante um semestre.

16
“[...] Arendt enrolled on Heidegger’s ground-breaking seminars on Greek philosophy. Her classmates included
Hans Jonas, Karl Löwith and Günther Stern, and had she arrived a few years later she would have had Herbert
Marcuse for company.”
23

O próximo passo a levou para Heidelberg, onde teve a oportunidade de estudar sob a
tutela de Karl Jaspers. Na ocasião, ampliou seu círculo intelectual na academia alemã e, em
1929, apresentou sua tese "O conceito de amor em Santo Agostinho” 17, publicada no mesmo
ano. Com a conclusão dos estudos, mudou-se para Berlim. Na capital, reencontra o ex-colega
de Marburg, Günter Stern, com quem se casaria no mesmo ano. O envolvimento político de
Stern reaviva seu interesse político e Hannah torna-se uma leitora voraz de Marx, Lenin e
Trosky.
O casal se separaria pela primeira vez em 1933, com a emigração de Stern para Paris.
A causa foi o avanço da ideologia nazista e a forte ligação do escritor com o comunismo.
Hannah se juntaria a ele no mesmo ano, mas não antes de compreender melhor as ideias que
ameaçavam a Alemanha:

Arendt permaneceu em Berlim, utilizando seu apartamento para esconder refugiados


políticos, procurando escapar da Alemanha de Hitler e, para o legado da
Organização Sionista Alemã, passando tempo na Biblioteca Estadual da Prússia,
secretamente coletando evidências documentais do antissemitismo na vida pública e
privada da Alemanha. (BOWRING, 2013, posição 228, tradução nossa).18

Em Paris, Hannah dedicou-se à causa judaica. Dentre os novos companheiros, ela


conquistou a amizade de figuras como Walter Benjamin e Heinrich Blücher, com quem se
casaria após o divórcio com Günter Stern. Quanto às relações deixadas na Alemanha, a
decepção era inevitável. Intelectuais do seu círculo, como Martin Heidegger, aparentemente,
aderiram à ideologia nazista, incorporando aspectos que seriam abordados em suas teses
futuras, sobre o comportamento humano frente ao fascismo.
Pouco antes de a França se render a Adolf Hitler, em 1940, Hannah Arendt e Heinrich
Blücher, recém casados, foram capturados e enviados aos campos de concentração. Os relatos
de Hannah sobre o período retratam a situação desumana em que viviam os presos. Estupros,
violência, fome, sujeira e medo fizeram parte da sua rotina durante os sete meses de
confinamento forçado, na companhia de outras mulheres.
A incerteza sobre o próximo dia, em Gurs, ou de Blücher, em Paris, fez de Hannah,
não raras vezes, uma mulher sem esperanças. Em meio ao terror, a mobilização de cerca de
200 mulheres fez com que ela encontrasse mais uma vez a liberdade. Junto com suas

17
Do original “Saint Augustine’s Concept of Love”.
18
“Arendt remained in Berlin, using her apartment to hide political refugees looking to escape from Hitler’s
Germany, and, at the bequest of the German Zionist Organisation, spending time in the Prussian State Library
covertly collecting documentary evidence of anti-Semitism in German public and private life.”
24

companheiras, fugiu a pé, do campo de Gurs, apenas com uma escova de dentes e a vontade
de reaver o controle da sua vida.
Em meio à desordem dos campos de concentração no início da implementação do
modelo, Heinrich Blücher também conseguiu escapar. Graças ao ex-marido de Hannah, o
casal consegue documentos para deixar a Europa:

Com Günter Stern, que havia emigrado para os Estados Unidos, em 1936,
peticionando a favor deles, Arendt e Blücher conseguiram passaportes e vistos de
emergência americanos. Obtendo o mais raro abrandamento nas regras de saída de
Vichy, escaparam para Portugal, em janeiro de 1941, chegando de barco em Nova
York, em maio de 1941, com a mãe de Arendt se juntando a eles, com sorte,
algumas semanas depois. (BOWRING, 2013, posição 246, tradução nossa).19

Apesar de alguns trabalhos na Alemanha, o jornalismo passa a ser parte da vida de


Hannah Arendt, como profissão, após a sua chegada nos Estados Unidos. Logo sua produção
se torna expressiva. Seus textos passam a ser publicados em diversos veículos, como a própria
Commentary e a Partisan Review. A visão sensível e humanitária de Hannah é requisitada,
ainda que considerada controversa por alguns.
Dez anos após sua chegada aos Estados Unidos, em 1951, publica uma de suas
maiores obras: Origens do totalitarismo. Com a repercussão do livro, é convidada a dar
aulas em universidades americanas. Em 1963, é contratada pela Universidade de Chicago e,
em 1967, pela New School for Social Research, em Nova York.
Hannah Arendt publicou diversas obras ao longo da sua carreira, com abordagens
diversas. Em 1963, teve uma série de reportagens veiculadas pela New Yorker, registro da sua
percepção do julgamento de Adolf Eichmann. Em função das afirmações feitas, Hannah
Arendt sofreu com a atmosfera de hostilidade e represália, especialmente após a publicação
do artigo provocador de Norman Podhoretz, na Commentary, no mesmo ano.
Arendt seguiu com suas atividades acadêmicas até 1975, ano em que sofreu o segundo
ataque cardíaco, desta vez, fatal. A morte, quatro anos após a do marido, apenas amplificou
seu grande legado para a teoria política.

19
“With Günther Stern, who had emigrated to the US in 1936, petitioning on their behalf, Arendt and Blücher
were granted emergency American visas. Making the most of a rare relaxation of the Vichy exit permit rules,
they escaped to Portugal in January 1941, arriving by boat in New York in May 1941, with Arendt’s mother
luckily joining them a few weeks later.”
25

3.2 NORMAN PODHORETZ

O esforço de Norman Podhoretz para se tornar um dos principais editores do mercado


norte-americano fez da carreira profissional o fio condutor da sua trajetória. Com exceção da
infância, retratar um dos principais nomes do círculo intelectual nova-iorquino significa
refletir sobre o trabalho de sua vida: a revista Commentary.
Em 16 de janeiro de 1930, no Brooklyn, nascia Norman Podhoretz. Filho de Julius e
Helen Podhoretz, primos que emigraram do centro da Europa para os Estados Unidos, em
busca de um futuro intocado pela guerra. Sem ambições intelectuais ou políticas, o salário de
entregador de leite do pai garantiu a Norman a infância padrão de um bairro pobre de
metrópole, cercada de pobreza, violência e problemas sociais.
Ainda criança, o futuro jornalista aprendeu a direcionar suas ambições. Aos seis anos
de idade, já pretendia ser escritor, graças à precoce experiência em pressionar as teclas de uma
máquina de escrever. Nathan Abrams, autor de uma análise sobre a trajetória político-
intelectual da Commentary e, consequentemente, de Norman Podhoretz, escreve: “ele
começou copiando notícias de jornais e logo ficou entediado, o que o levou a escrever suas
próprias histórias e poemas” (ABRAMS, 2012, p. 9, tradução nossa)20.
A curiosidade levou o estudante às bibliotecas públicas de Nova York. A ausência de
livros, na casa da família, não impediu a satisfação de seus questionamentos e o
aprimoramento da sua produção. Por vontade do pai, também passou a receber a educação
formal religiosa que ampararia sua futura carreira. Abrams (2012, p. 9, tradução nossa)
destaca:

Podhoretz lembra da influência de duas mulheres nestes primeiros anos: sua mãe, de
que ele herdou sua ambição e o desejo de vencer na vida; e a Sra. Harriet Haft
(imortalizada como "Sra. K." na sua biografia Vencendo), sua professora no ensino
médio, com quem aprendeu sobre o mundo das letras em língua inglesa, enquanto
resistia às exigências dela por requinte.21

O que o futuro reservara para Norman Podhoretz desafiava a probabilidade. Ao


concluir os estudos básicos, o aluno prodígio foi admitido na Universidade de Harvard, com
uma bolsa de estudos. Questões financeiras, como a impossibilidade de pagar por uma

20
“He began by copying out stories from the newspapers, and when he got bored of that he graduated to writing
his own stories and poems.”
21
“Podhoretz recorded the influence of two women on his early years: his mother, from whom he inherited his
ambition and desire to “make it,” and Mrs. Harriet Haft (immortalized as “Mrs. K.” in his biography Making It),
his high school English teacher, from whom he learned the world of English letters while resisting her demands
for gentility.”
26

acomodação, fizeram com que ele abrisse mão da oportunidade. No entanto, outra bolsa, desta
vez na Universidade de Columbia, em Nova York, proporcionou ao jovem Norman, ainda
com 16 anos, a continuidade do seu desenvolvimento intelectual.
Aos 20 anos, Norman Podhoretz carregava dois diplomas de graduação. O primeiro de
Columbia, onde o progresso no aprendizado chamou a atenção de professores como Lionel
Trilling, famoso crítico literário americano. Podhoretz cursaria Letras sob o amparo
intelectual de Trilling, com quem compartilhava da judeidade. Naquele período, também
concluiu os estudos em letras hebraicas, na Faculdade de Estudos Judaicos.
A continuidade da carreira acadêmica parecia um caminho óbvio para Podhoretz. Com
a ajuda de Trilling, conseguiu uma bolsa de estudos na Universidade de Cambridge, agora
para dedicar-se ao estudo da literatura. Foi na Inglaterra onde sua carreira passou a se inclinar,
ainda que levemente, para os rumos do jornalismo.
“Em Cambridge, Podhoretz foi apresentado ao influente acadêmico F. R. Leavis,
possivelmente o mais famoso crítico literário britânico do início de século XX” (ABRAMS,
2012, p. 10, tradução nossa)22. Determinado, Podhoretz aspirava um posto dentre seus
seguidores, com quem aprenderia o estilo de crítica que o consagrou nas revistas.
A ferocidade de Norman Podhoretz, facilmente identificada em sua carreira
jornalística, torna-se proeminente no período em que passa a integrar os leavisites, termo que
designava os discípulos intelectuais de Leavis. O episódio que o levaria ao escritório de Elliot
Cohen, editor da Commentary, aconteceu num dos encontros do grupo, quando Podhoretz
decidiu que um de seus membros não era digno de pertencer às discussões promovidas por
eles:

Podhoretz o perseguiu até um beco teórico, onde ele admitiu que lia literatura
porque lhe dava prazer. Então, Podhoretz o questionou abruptamente, se ele leria
quadrinhos se lhe dessem mais prazer. Ele trocaria a literatura por isso? Leavis
recompensou Podhoretz pela sua ferocidade puritana e literária com um convite para
contribuir com o seu periódico Scrutiny, com uma resenha sobre o trabalho de
Trilling, de 1947, A imaginação liberal: Ensaios sobre literatura e sociedade.
(ABRAMS, 2012, p. 11, tradução nossa).23

22
“At Cambridge, Podhoretz was introduced to the highly influential academic F. R. Leavis who was possibly
the most famous British literary critic of the early twentieth century.”
23
“Podhoretz chased him into a rhetorical corner, where he admitted that he read literature because it gave him
pleasure. So Podhoretz asked bluntly, if reading dirty comic books gave him more pleasure, would he switch to
that? Leavis rewarded Podhoretz for his puritanical and literary ferocity with an invitation to contribute a review
of Trilling’s 1947 The Liberal Imagination: Essays on Literature and Society to his journal Scrutiny.”
27

Foi a produção de conteúdo para o Scrutiny que chamou a atenção dos editores nova-
iorquinos para o trabalho de Podhoretz. Convidado ao escritório da Commentary, em 1952,
ficou tão encantado pelo universo intelectual, para além da academia, que abandonou seus
projetos na universidade. Para o jornalismo de revista da cidade de Nova York, na década de
50, que desprezava a formalidade da academia, o convite a Norman Podhoretz foi uma
improvável oportunidade.
Apesar de algumas contribuições para outras publicações e do período de afastamento,
a carreira de Norman Podhoretz fez da Commentary seu alicerce, tanto pessoal, quanto
profissional. No outono de 1956, ele se casou com a ex-secretária de Elliot Cohen, Midge
Decter. Com 30 anos, o jovem pai de família, consciente de suas responsabilidades, alcançou
o posto de editor-chefe da revista, após disputas com colegas que também almejavam o cargo.
Nos anos em que esteve à frente da revista, consolidou sua importância no mercado
editorial e protagonizou polêmicas, mantendo a proposta de vigília declarada por Cohen. Com
a tentativa de posicionar a publicação na vanguarda intelectual americana, ousou ao mudar
gradualmente, ao longo da sua carreira, o posicionamento político da Commentary,
representando a ascensão e o declínio do neoconservadorismo nos Estados Unidos.
Atualmente aposentado, Norman Podhoretz considera-se um colecionador de
inimigos, resultado da sua defesa feroz do judaísmo e da política conservadora americana.

3.3 ADOLF EICHMANN

Os registros sobre Adolf Eichmann estão limitados ao ofício que colocou seu nome na
história. Responsabilizado pela Solução Final, um dos maiores crimes cometidos contra a
humanidade, narrou suas memórias através de testemunhos no tribunal da Casa de Justiça, em
Israel. O conhecimento sobre a vida do então ex-oficial nazista foi construído a partir deste
episódio, que o tornou mais conhecido mundialmente do que o Reichsmarschall, o Marechal
do Reich, Hermann Göring, segundo homem na hierarquia da Alemanha.
Otto Adolf Eichmann carregou consigo, até o dia do seu enforcamento, aos 56 anos, o
peso do insucesso. Nascido em 1906, na cidade de Solingen, o filho mais velho de Karl Adolf
Eichmann e Maria Eichmann, foi o único dos cinco irmãos a não concluir os estudos na escola
secundária. Ainda assim, apresentava-se como engenheiro de construção, em consequência
dos seus estudos, também interrompidos, na escola vocacional para engenharia.
Antes de se filiar ao Partido Nacional Socialista, Adolf Eichmann ainda trabalhou
como mineiro, na empresa de mineração adquirida pelo pai, e vendedor, na Companhia
28

Oberösterreichischer Elektrobau, de 1925 a 1927, e na Companhia de Óleo a Vácuo de Viena.


O último emprego rendeu a Eichmann o argumento de que não era antissemita.

Um primo de sua madrasta – homem que ele chamava de “tio" – presidente do


Automóvel Clube austríaco, casado com a filha de um empresário judeu na
Tchecoslováquia, usara seus contatos com o diretor-geral da Companhia de Óleo
austríaca, um judeu chamado Sr. Weiss, para conseguir para seu infeliz parente um
emprego de vendedor viajante. Eichmann ficou adequadamente agradecido; os
judeus de sua família estavam entre as suas "razões particulares” para não odiar os
judeus. (ARENDT, 1999, p. 41).

Hannah Arendt já havia escrito sobre este comportamento, em Origens do


totalitarismo:

O terror, como conhecemos hoje, ataca sem provocação preliminar, e suas vitimas
são inocentes até mesmo do ponto de vista do perseguidor. Esse foi o caso da
Alemanha nazista, quando a campanha de terror foi dirigida contra os judeus, isto é,
contra pessoas cujas características comuns eram aleatórias e independentes da
conduta individual especifica. (ARENDT, 2013 p. 29).

O trabalho modesto de vendedor viajante, somado à vida pacata de Viena, fizeram


crescer a ambição e a inconformidade do jovem Eichmann para com a vida mediana que
levava. Quando convidado por Ernst Kaltenbrunner para se juntar ao Partido Nacional
Socialista, em 1932, ele aceita e passa a fazer parte da Schutzstafell, a SS.
Desempregado, segundo Eichmann, consequência da sua filiação ao Partido, alista-se
no treinamento militar, em 1933. Em 1934, torna-se cabo. No capítulo dedicado ao ex-oficial,
na reportagem "Eichmann em Jerusalém", Hannah Arendt (2013, p. 47) reproduz a fala do
acusado sobre a experiência: “a rotina do serviço militar era algo que eu não suportava, dia
após dia a mesma coisa, sempre e sempre a mesma coisa”. Com a abertura de vagas no
Serviço de Segurança da Reichsführer SS, o Sicherheitsdienst (SD), Eichmann se candidata e
conquista seu espaço, transferindo-se da Áustria para Berlim, a capital do Reich.
Em 1935, com a estabilidade de quem pertence a uma das mais importantes
organizações do Partido, Eichmann casa-se com Vera Liebl, de quem era noivo desde 1931.
Para além de questões afetivas, o casamento era uma garantia de segurança nos cargos da SS.
De acordo com Stangneth (2014, posição 435, tradução nossa), o casamento era um bom
negócio para ambas as partes: “ela, e os dois irmãos que trabalhavam para a Gestapo, viriam a
lucrar com a ascensão social do marido”.24

24
“She and her two borthers, who worked for the Gestapo, would come to profit from her husband’s social
climbing.”
29

Um dos primeiros trabalhos de Eichmann para o SD exigia a característica que mais


marcou os relatos sobre o seu julgamento: a dissimulação. O serviço de inteligência do
Partido incumbiu Eichmann de investigar organizações judaicas e seus membros, infiltrando-
se em reuniões, aulas e leituras. Foi assim que ele se tornou, como indica Hannah Arendt, no
terceiro capítulo da reportagem, “um perito na questão judaica” (ARENDT, 1999, p. 45).
Com a reputação construída sobre seus conhecimentos e articulações na comunidade
judaica, Eichmann conquista a simpatia dos seus superiores e avança politicamente no
Partido. No ano de 1938, foi promovido ao posto de tenente, encarregado da emigração
forçada dos judeus austríacos. Eichmann desempenhou seu trabalho com excelência: em
pouco mais de um ano, livrou a Áustria de 60% da população judaica.
Mais do que um grande especialista sobre o judaísmo, Adolf Eichmann passou a ser
visto como um homem dotado do pragmatismo que o trabalho exigia. Em função disso, foi
repetidamente promovido: passou de segundo-tenente a capitão e, depois de um ano e meio,
assumiu o posto de tenente-coronel, em 1941.
Os feitos de Eichmann, enaltecidos por ele em seus relatos, não foram suficientes para
satisfazer suas ambições dentro do Partido. Jamais alcançou as posições que almejava,
segundo ele, não por sua culpa, já que havia se candidatado até mesmo ao front de batalha
para alcançar o título de coronel. Seu maior desejo, entretanto, era tornar-se chefe de polícia
de uma cidade na Alemanha. Nada disso aconteceu, mesmo após 1941, quando sua função
perdeu importância.
De acordo com o seu posicionamento no julgamento, Eichmann não fora capaz de
identificar os sinais que indicavam a obsolescência do seu trabalho. Com o início da Segunda
Guerra Mundial, em 1939, a manutenção dos programas de emigração forçada tornou-se uma
opção difícil e logo foi descartada pelos líderes nazistas.
De 1938 até 1940, Eichmann trabalhou na viabilização do Projeto Madagascar. O
objetivo era transportar 4 milhões de judeus para a ilha africana, para viverem sob o comando
nazista e tornar a Europa judenrein, livre de judeus. A logística para possibilitar este meio
caminho entre a vontade dos judeus, especificamente os sionistas, e os antissemitas, consistia
na concentração do povo judeu como um “estágio preliminar necessário” (ARENDT, 1999, p.
92).
Em 1940, foi informado de que o plano havia sido suspenso. Para Arendt, nunca
houve a intenção de levar estes judeus para a África por parte do alto escalão nazista. Segundo
a autora, Madagascar foi uma estratégia utilizada para encobrir a real intenção, o extermínio
dos judeus na Europa Ocidental:
30

Parece improvável que alguém, além de Eichmann e alguns outros luminares


menores, tenha levado a sério a coisa toda, pois à parte o fato de o território ser
sabidamente inadequado, sem falar do fato de ser, afinal de contas, uma possessão
francesa, o plano teria exigido espaço de viagem para 4 milhões de pessoas no meio
da guerra, e num momento em que a Marinha britânica detinha o controle do
Atlântico. (ARENDT, 1999, p. 91).

Com a mudança de posicionamento do Partido, os conhecimentos de Eichmann


tornaram-se irrelevantes. Em 1942, participou da conferência de Wannsee, uma reunião dos
secretários de Estado do Reich. Este episódio foi o grande marco da sua responsabilidade
sobre o Holocausto. Apesar de ter prestado apoio a Heydrich, como secretário da reunião,
Eichmann tornou-se, a partir do encontro, um perito de “evacuação forçada” (ARENDT,
1999, p. 92). Sua responsabilidade, a partir de então, era de organização e transporte dos
judeus para alguns dos campos de extermínio da Polônia, dos Estados Bálticos e da parte do
território ocupado na Rússia.
Como resultado da conferência, foi nomeado supervisor do campo de concentração de
Theresienstadt, o que lhe causou imenso tédio, por se tratar de um espaço pequeno, que, no
final, tornar-se-ia um campo para judeus privilegiados e, depois, campo de transferência para
Auschwitz. Até o final da guerra, Theresienstadt seria responsabilidade de Adolf Eichmann.
O fim da guerra significou, para Eichmann, a quebra de um estilo de vida. Sem um
guia para obedecer, o destino tornou-se, em março de 1945, incerto. Sua tarefa final,
designada por Kaltenbrunner, consistia na organização de um comando de guerrilhas na
Áustria, já que Eichmann estava impossibilitado de cumprir as ordens dadas por Himmler de
resgatar judeus importantes, que poderiam ser utilizados como barganha pelos nazistas, em
Theresienstadt.
Com o bloqueio das estradas pelos exércitos soviéticos, restou a Eichmann tentar
seguir os planos propostos por Kaltenbrunner. Mais uma vez sem sucesso, ele tenta contato
com o superior, mas depara-se com o destino de alguns dos seus colegas oficiais: a captura
pelos exércitos inimigos:

[...] Eichmann foi capturado por soldados norte-americanos e levado para um campo
para homens, da SS, onde numerosos interrogatórios não conseguiram descobrir a
sua identidade, embora fosse sabida por alguns de seus colegas prisioneiros. Ele foi
cauteloso e não escreveu para a família, deixando que acreditassem que tinha
morrido; [...]. (ARENDT, 1999, p. 257).

A preservação da identidade de Eichmann se manteve até 1960, ano de sua nova


captura. Antes disso, ainda na Alemanha, foi julgado sob o nome de Otto Eckmann; escapou
31

da prisão como Adolf Karl Barth e viveu no norte da Alemanha, como o produtor rural Otto
Heninger, que desaparece em 1950, para chamar-se Ricardo Klement.
A vida de Ricardo Klement na Argentina era pacífica como a de Otto Heninger na
Alemanha. Propiciada pela igreja católica (ARENDT, 1999), a fuga para a América, com um
novo passaporte, concedeu a Eichmann uma oportunidade de recomeço. Dois anos após a
chegada à Argentina, trouxe a família para viver num subúrbio de Buenos Aires.
Em 1960, Ricardo Klement não consegue suprimir o passado como ex-oficial nazista e
é descoberto pelo serviço de inteligência de Israel. Sequestrado e submetido a um controverso
julgamento, iniciado em 1961, foi considerado culpado e sentenciado à morte. Em junho de
1962, foi enforcado na prisão de Ramla, nas proximidades de Tel Aviv.
32

4 EICHMANN EM JERUSALÉM

A captura de Adolf Eichmann direcionou o olhar da mídia, mais uma vez, para a
brutalidade cometida pelo regime nazista ao longo da Segunda Guerra Mundial. Após
Nuremberg, a sensação era de que os julgamentos sobre crimes de guerra faziam parte do
passado, um passado que seria revistado apenas nos livros de história.
Em 1961, Israel convida jornalistas e espectadores do mundo todo para contar a
história de um ex-oficial do Reich e julgar suas ações no período em que estivera a serviço de
Hitler. Nos Estados Unidos, duas importantes revistas promoveram uma grande discussão
sobre as diferentes perspectivas do acontecimento. De um lado, Hannah Arendt, como
representante da New Yorker, com uma visão incisiva e crítica. Do outro, Norman Podhoretz,
a serviço do Comitê Judaico Americano e de sua revista, a Commentary, com uma percepção
emocional.

4.1 O TEXTO DE HANNAH ARENDT

Em 16 fevereiro de 1961, o primeiro fragmento da grande reportagem escrita por


Hannah Arendt, ao longo do julgamento de Adolf Eichmann foi publicado pela New Yorker.
As próximas quatro edições da revista trariam a versão completa do relato, dividido em
quinze partes, sob a ótica da filósofa judia.
O primeiro capítulo, "A casa de Justiça", apresenta os principais personagens e o
cenário do julgamento. A distribuição dos lugares, importante para compreender a atmosfera
de espetáculo criada para o evento, é descrita em detalhes por Hannah.

Desde o começo não há dúvidas de que é o juiz Landau quem dá o tom, e de que ele
está fazendo o máximo, o máximo do máximo, para evitar que este julgamento se
transforme num espetáculo por obra da paixão do promotor pela teatralidade. Uma
das razões pelas quais ele nem sempre consegue isso está no simples fato de que as
sessões ocorrem num palco, diante de uma plateia, com o esplêndido grito do
meirinho no começo de cada sessão produzindo o efeito de uma cortina que sobe.
(ARENDT, 1999, p. 14).

A pirâmide de poderes reservou o topo do palco para os três juízes, amparados por
uma mesa coberta de documentos; seguidos por tradutores, cujos serviços eram necessários
para o acompanhamento das sessões em hebraico, tanto por parte do público, quanto do réu;
no nível abaixo, estava localizada a cabine de vidro que abrigava Eichmann, próxima às
33

demais testemunhas. Na base, guardavam a estrutura, com a plateia e de costas para ela, o
promotor e seus quatro assistentes, bem como o advogado de defesa.
De acordo com Arendt, o caráter de espetáculo atendia aos interesses do primeiro
ministro israelense, David Ben-Gurion, considerado por ela o "diretor da cena do processo"
(ARENDT, 1999, p. 15). A mensagem de Israel para o mundo, proferida repetidamente pelo
promotor Gideon Hausner e suas testemunhas, era clara: o sequestro de Eichmann, em Buenos
Aires, e a condução do seu julgamento, por uma corte judaica, demonstravam que, mais do
que julgar os atos do ex-oficial, o tribunal pretendia trazer à luz, mais uma vez, as barbáries
cometidas contra o povo judeu.
A imprensa internacional, omissa quanto às atrocidades cometidas pelos nazistas,
agora observava atentamente o que restava do regime derrotado, pelo menos no que diz
respeito aos primeiros dias do seu julgamento. Hannah Arendt observou:

A fidelidade dos jornalistas não durou mais de duas semanas, depois das quais a
plateia mudou drasticamente. Daí em diante deveria ser composta por israelenses,
por judeus orientais, por aqueles a quem a história nunca fora contada. O julgamento
iria mostrar-lhes o que significava viver entre os não-judeus, iria convencê-los de
que só em Israel um judeu teria segurança e poderia viver uma vida honrada.
(ARENDT, 1999, p. 18).

O segundo e o terceiro capítulos da reportagem apresentam ao leitor Otto Adolf


Eichmann. Da juventude medíocre, origem da necessidade de uma liderança que justifique
seu sucesso ou fracasso, ao especialista sobre questões judaicas. Hannah Arendt percorre, de
forma linear, a história de Eichmann, explicando o homem por trás das ações que lhes são
atribuídas.
Ao longo da reportagem, a narrativa sobre os rumos da guerra se mescla com a
biografia de Eichmann. A partir da filiação ao partido nazista, o desenvolvimento da sua
trajetória pessoal está diretamente relacionado aos rumos da guerra e aos esforços de
reconhecimento frente aos seus superiores. Por isso, o capítulo deste trabalho, que se dedica
ao retrato de Eichmann, apoia-se na descrição do acusado feita por Arendt (1999), neste
relato.
Dos interrogatórios policiais aos questionamentos da corte, Arendt descreve o réu
como um refém da linguagem burocrática. Ao longo do julgamento, sempre que questionado,
declarar-se-ia inocente, no sentido da acusação. O uso das palavras, nesta ordem, representa o
esforço de Eichmann para relativizar seus atos, em uma tentativa de resgate de contexto.
34

No entanto, o caso de Eichmann é diferente do criminoso comum, que só pode se


proteger com eficácia da realidade do mundo não criminoso dentro dos estreitos
limites da sua gangue. Bastava Eichmann relembrar o seu passado para se sentir
seguro de não estar mentindo e de não estar se enganando, pois ele e o mundo em
que viveu marcharam um dia em perfeita harmonia. (ARENDT, 1999, p. 65).

Arendt reforça o caráter dissimulado de Eichmann, nesta parte da reportagem,


sustentando que, assim como a população alemã, o ex-oficial não demonstrou resistência ou
acreditou em algum momento que teria responsabilidade sobre as mortes de milhões de
pessoas. Segundo ela, a cabeça do acusado estava cheia de justificativas:

A estonteante disposição de Eichmann, primeiro na Argentina, depois também em


Jerusalém, a admitir seus crimes devia-se menos a sua capacidade criminosa de
auto-engano do que à aura de sistemática hipocrisia que constituía a atmosfera geral,
aceita por todos, do Terceiro Reich. "Claro" que ele havia desempenhado um papel
no extermínio dos judeus; "claro" que se "não os tivesse transportado, eles não
teriam sido entregues aos açogueiros". "O que existe aí para admitir?", ele
perguntava. Agora, continuava, "gostaria de fazer as pazes com [seus] antigos
inimigos" - sentimento que partilhava não só com Himmler, que os expressou
durante o último ano de guerra, e também com o líder das frentes de trabalhos
forçados, Robert Ley [...]. (ARENDT, 1999, p. 65).

Após traçar o perfil do acusado, nos próximos capítulos, Hannah Arendt avança sobre
as propostas nazistas: as soluções para o problema judaico, na Europa. Ao longo do
julgamento, Eichmann sustenta a ideia de que os acontecimentos do final da guerra não
refletiram as intenções iniciais do Partido. Segundo o acusado, realocar os judeus, que
classifica como oponentes neste trecho do interrogatório, era parte de uma solução
mutuamente justa, que tinha como objetivo colocar solo firme debaixo de seus pés
(ARENDT, 1999).
Hannah denomina o quarto capítulo da reportagem como "A primeira solução:
expulsão", que elucida a participação de Eichmann na primeira parte da série de medidas
adotadas pelos nazistas para tornar a Europa judenrein. A hipocrisia denunciada por Arendt,
anteriormente, reaparece no fragmento do interrogatório em que Eichmann se orgulha do seu
protagonismo no processo de imigração forçada de judeus para o oriente médio:

"As pessoas tendem a esquecer isso agora". Quem, se não ele, Eichmann, havia
salvado centenas de milhares de judeus? O que, se não seu grande zelo e dom de
organização, tinha lhes permitido escapar a tempo? É verdade que ele não pudera
prever, na época, a iminente Solução Final, mas ele os salvara e isso era um "fato".
(ARENDT, 1999, p. 70).

O orgulho de Eichmann sobre a sua relação com a comunidade judaica apareceria em


diversos momentos, ao longo dos interrogatórios. Poucos seriam os momentos em que ele
35

poderia contar com a defesa do Dr. Robert Servatius, um advogado de Colônia, já conhecido
pela imprensa por defender outros nazistas no Tribunal de Nuremberg. De acordo com Arendt
(1999), se a memória de Eichmann fosse melhor e seu defensor mais interessado, seria
possível invocar testemunhas, incapazes de corroborar a fantasia do réu, mas que poderiam
intervir em seu favor através de suas experiências de emigração para a Palestina.
Os judeus capazes de depor para fazer da história de Eichmann algo minimamente
verossímil eram os sionistas, com quem o ex-oficial estreitou laços nos primeiros anos do
serviço de inteligência do Partido. O sucesso dos nazistas com este grupo foi capaz de
promover campanhas, apoiadas por judeus influentes, que incentivavam o uso da estrela
amarela que os identificaria ao longo da guerra, antes mesmo da obrigatoriedade. Para eles,
até mesmo a ascensão de Hitler trazia ares de vitória, tendo em vista a derrota da parcela
assimilacionista, os que pretendiam viver na Europa, como europeus (ARENDT, 1999).
Os avanços do Führer sobre o leste europeu iniciaram os eventos que desestabilizariam
a estrutura de autodefesa de Eichmann no tribunal. Em 1938, os territórios do Reich
agregariam, de acordo com a autora, entre 2 e 2,5 milhões de judeus. O andamento da guerra
inviabilizou a primeira solução nazista e, em 1941, oficialmente, o Partido manifestou a
ordem de suspensão da emigração de judeus.
O relato de Arendt afirma que, tanto a polícia, quanto a corte, tentaram trazer
Eichmann para as questões objetivas sobre o fato. Em um destes momentos, confrontaram o
réu com documentos referentes a uma reunião ocorrida em setembro de 1939:

[...] Um deles, uma carta teletipada de Heydrich que continha certas diretivas para
os Einsatzgruppen, fazia pela primeira vez uma distinção entre um "objetivo final,
que exige períodos de tempo mais longos" e que devia ser tratado como "altamente
confidencial", e "os estágios para se obter esse objetivo final". A expressão solução
final ainda não aparecia, e o documento silencia sobre qual seria esse "objetivo
final". (ARENDT, 1999, p. 92).

Eichmann afirma que entendeu como objetivo final o seu projeto Madagascar, o plano
de evacuação em massa de judeus para a ilha britânica, que serviu, de acordo com o acusado,
como justificava para os campos de concentração. Neste momento do julgamento, fica clara a
confusão dele, segundo Hannah, atribuída as suas versões repletas de convicção. Este é um
dos poucos momentos em que o antissemitismo aparece na exposição de Eichmann:

Mas depois de ler o documento, Eichmann disse imediatamente que estava


convencido de que "objetivo final" só podia significar "extermínio físico", e
concluiu que "essa ideia básica já estava enraizada nas mentes dos altos líderes, ou
dos homens máximos". (ARENDT, 1999, p. 92).
36

No sexto capítulo, “A solução final: assassinato”, Arendt explica que Eichmann não
estava entre os primeiros oficiais a conhecer as reais intenções de Hitler. Em uma reunião
com Heydrich, foi informado da ordem de que os os judeus deveriam ser exterminados e
recebeu instruções de visitar um comandante em Lublin, para conhecer técnicas de eliminação
de judeus, já aplicadas.
No tribunal, em Jerusalém, foi confrontado quanto a esta informação, quando a
acusação sugeriu que ele seria responsável, após a conversa, de levar a Lublin, na Polônia, a
ordem de extermínio. Afirmativa semelhante também foi feita sobre Rudolf Höss, que depois
afirma ter recebido a notícia por Himmler. Segundo Hannah, estas acusações apenas
demonstravam a dificuldade de orientação da acusação, frente à complexidade da burocracia
do Terceiro Reich. Tais ordens, de acordo com os registros, não poderiam partir de um oficial
como Eichmann (ARENDT, 1999).
Outra falha na memória de Eichmann, de acordo com a autora, comprometeria sua
defesa. Ao contrário do depoimento que prestou na Argentina, em Jerusalém, não foi capaz de
resgatar o trecho da conversa com Heydrich no qual foi informado de que o plano não seria de
responsabilidade do seu departamento, mas do Escritório Central para Economia e
Administração da SS e que havia sido denominado “Solução Final”.
No período em que Eichmann teve a reveladora conversa com Heydrich, a informação
sobre a ordem de extermínio já era conhecida pelo alto escalão nazista, segundo um membro
da Chancelaria do Führer, julgado em Nuremberg. Arendt (1999) relata o posicionamento de
Eichmann, parte do seu esforço para se mostrar pequeno na estrutura do regime: mas
Eichmann, como tentou vaidosamente explicar em Jerusalém, nunca pertenceu aos altos
círculos do Partido; ele nunca ficava sabendo nada além do necessário para realizar um
trabalho específico, limitado.
Para Hannah Arendt (1999), Eichmann era, na visão do regime, um tipo modelo para a
aplicação das "regras de linguagem", uma ferramenta semântica de distorção, cujo objetivo
era mascarar a realidade. Em documentos oficiais, as palavras cujo sentido era diretamente
associado às atrocidades promovidas pelos nazistas contra judeus, eram raras. Os eufemismos
eram diversos e afastavam os oficiais, por meio do jargão burocrata, das noções de
humanidade que existiam antes da ascensão do Terceiro Reich.
A vivência da Solução Final inevitavelmente aproximou os nazistas do que a
linguagem os resguardava. Mais do que discutir com outros oficiais a capacidade de
extermínio dos campos, Eichmann passou a assistir às mortes, ordem de Müller, seu superior
direto. Nestas inspeções, Eichmann se deparou com as primeiras experiências de morte por
37

intoxicação com gás. Em Kulm, na Polônia, utilizavam caminhões de gás: os judeus entravam
numa grande sala; recebiam ordem de se despir; então chegava um caminhão, parava bem na
entrada da sala, e os judeus nus recebiam ordem de entrar nele. As portas eram fechadas e o
caminhão partia (ARENDT, 1999).
Eichmann relata:

"Não sei dizer [quantos judeus entraram], eu mal olhei. Não consegui; não consegui;
para mim bastava. O guincho e [...] fiquei muito perturbado, conforme contei depois
a Müller, quando lhe fiz o relatório; meu relatório não serviu para muita coisa.
Depois, segui de carro atrás do caminhão, e vi a coisa mais horrível que já tinha
visto na vida. O caminhão estava indo para um buraco aberto, as portas se abriram e
os corpos foram jogados para fora, como se ainda estivessem vivos, tão moles
estavam seus membros. [...] Ali, me bastou. Eu estava acabado”. (ARENDT, 1999,
p. 103).

Logo o repertório de histórias macabras de Eichmann se ampliaria. Sua inspeção em


Minsk, na Rússia, averiguaria mortes por fuzilamento. Eichmann afirmou que se sentiu
aliviado por chegar ao fim do fuzilamento na Rússia, mas ao visitar um amigo em Lemberg,
presenciou o que descreveu como uma imagem horrível: uma cova recém preenchida com
judeus vítimas de fuzilamento.
A boa relação com os oficiais fez com que Eichmann evitasse as piores cenas que a
brutalidade nazista poderia lhe proporcionar. Arendt (1999, p. 105) afirma:

Ele viu apenas o suficiente para estar plenamente informado de como funcionava a
máquina de destruição: havia dois métodos diferentes de matança, o fuzilamento e a
câmara de gás; o fuzilamento era feito pelos Einsatzgruppen e a execução por gás
nos campos, em câmaras ou caminhões; viu também as complexas precauções que
se tomavam no campo para enganar as vítimas até o final.

A partir deste momento, quando a reportagem se direciona à questão do extermínio, a


autora inicia seus questionamentos filosóficos, que situam o leitor quanto ao contexto da
reportagem: um relato jornalístico, escrito por uma filósofa alemã e judia. As provocações e o
direcionamento para a reflexão, tornam-se constantes, a partir do questionamento sobre o
limite da responsabilidade de Eichmann.
Arendt destaca, mais uma vez, o posicionamento do Dr. Servatius, derrotista, que
posterga suas oportunidades de defesa, sem fazer objeções e, ao final, deixa de apresentar
provas ou de discursar como pretendia, repetindo as estratégias falhas de Nuremberg. Arendt
não defende que houvesse vitória possível para Eichmann. Ele era culpado por mais do que
poderia pagar em vida e a acusação, segundo ele mesmo, em trechos do julgamento, já tinha
em mãos provas suficientes para enforcá-lo.
38

Ao revelar esta situação, Arendt questiona as condições do acusado, como responsável


pelo transporte dos judeus, não por seu extermínio:

Legalmente, formalmente, pelo menos Eichmann sabia o que estava fazendo? Havia,
além disso, outra pergunta: ele teria estado em posição de julgar a enormidade de
seus feitos, ele seria legalmente responsável, além do fato de ser medicamente são?
(ARENDT, 1999, p. 106).

Na função de jornalista, mais do que propõe, Arendt, em seguida, responde:

Ele havia visto os lugares para onde iam os carregamentos, e havia ficado chocado
até a loucura. Uma última pergunta, a mais perturbadora de todas, foi feita pelos
juízes, principalmente o juiz presidente, com muita insistência: a matança dos judeus
tinha ido contra a sua consciência? Mas isso era uma questão moral, e a resposta
podia não ser legalmente relevante (ARENDT, 1999, p. 106).

As aberturas para defesa de Eichmann na lei israelense existiam, mas seus atos
impossibilitavam a reversão da sentença. Os atenuantes aceitáveis legalmente não foram
praticados por Eichmann, enquanto oficial nazista. Quando questionado sobre ter
conhecimento da consequência de suas ações, o acusado respondia que a única outra opção,
no caso de negar encaminhar milhões de judeus para a morte, seria encontrar a sua própria.
A ideia de que a única saída era o suicídio não convenceu a corte, já que a história não
corroborava a sua versão: segundo os documentos nos quais se apoia a reportagem de Hannah
Arendt, não era prevista pena de morte para oficiais que pedissem transferência de função na
estrutura do Reich.
Eichmann poderia, quando compreendeu as implicações da sua ação, ter deixado o
cargo executivo, sem maiores consequências. "Naquelas circunstâncias, esse comportamento
era impossível. Ninguém agia assim" (ARENDT, 1999, p. 107), afirmou Eichmann em frente
à corte. A realidade, de acordo com ele, é que praticamente, até a aproximação do insucesso
das estratégias de Hitler, absolutamente ninguém parecia efetivamente contrário à Solução
Final (ARENDT, 1999).
Como parte da exposição sobre o progresso do plano de Solução Final, Hannah Arendt
faz uma das afirmações mais polêmicas da sua carreira: a da cooperação das organizações
judaicas com o nazismo. Neste contexto, já parte do capítulo sete, que tem seu início na
Conferência de Wannsee, a autora acompanha o curso da guerra, até 1944, ano em que as
atividades de extermínio diminuem drasticamente em detrimento da iminente derrota alemã.
Eichmann cita o exemplo, único, ao qual recorre para tratar de oposição à Solução
Final, o Dr. Kastner, um advogado e jornalista judeu. Kastner, famoso pelo êxito nas
39

negociações para libertar prisioneiros dos campos de extermínio, foi morto em 1957, em meio
ao julgamento que tratava da sua colaboração com os nazistas. Os problemas em torno do
exemplo de Eichmann, bem como outras publicações referidas por Arendt, sustentavam sua
afirmação, considerada por muitos, controversa. Sobre a assistência de judeus com o trabalho
de Eichmann, afirma:

Esperava – e recebeu, a um ponto verdadeiramente extraordinário – a cooperação


deles. Isso era "evidentemente, a pedra angular" de tudo o que fazia, como havia
sido a pedra angular de suas atividades em Viena. Não fosse a ajuda judaica no
trabalho administrativo e policial – o agrupamento de judeus em Berlim foi, como já
mencionei, feito inteiramente pela polícia judaica –, teria ocorrido ou o caos
absoluto ou uma drenagem extremamente significativa do potencial humano alemão.
(ARENDT, 1999, p. 133).

A autora prossegue o argumento, reiterando a gravidade análoga à participação dos


judeus no processo que levaria, até mesmo seus líderes, aos campos de extermínio:

Não há dúvida de que, sem a cooperação das vítimas, dificilmente teria sido possível
para uns poucos milhares de pessoas, a maioria das quais, além de tudo trabalhavam
em escritórios, liquidar muitas centenas de pessoas [...] Ao longo de todo o caminho
para suas mortes, os judeus poloneses não viam mais do que um punhado de
alemães. (PANDEORF, 1961 apud ARENDT, 1999, p. 133).

Com isso, Arendt conclui: "para um judeu, o papel desempenhado pelos líderes judeus
na destruição de seu próprio povo é, sem nenhuma dúvida, o capítulo mais sombrio de toda a
sua história de sombras" (ARENDT, 1999, p. 134). Os documentos sobre os quais se apoia a
reportagem denunciam o trabalho de funcionários judeus, que desempenhavam funções desde
a compilação de listas sobre outros judeus e seus bens, até o comércio das estrelas amarelas.
Foram responsáveis pelo salvamento de alguns dos seus, mas apenas daqueles que
julgavam importantes. Arendt utiliza uma analogia marítima para explicar estas relações,
afirmando que estes judeus se sentiam como capitães, que para salvar o navio do naufrágio,
atiravam ao mar parte da sua preciosa carga. “Com cem vítimas salvam mil pessoas, com mil
salvam 10 mil” (ARENDT, 1999, p. 135).
O oitavo capítulo, “Deveres de um cidadão respeitador das leis” busca a compreensão
da cultura instituída por Hitler ao longo da Segunda Guerra Mundial. Neste fragmento da
reportagem, Eichmann deixa clara a sua dificuldade de interpretação, não apenas de palavras,
mas de contextos. Para a autora, Eichmann era capaz de entender que o cumprimento de
ordens, no seu caso, transcendia a noção militar tradicional, uma vez que implicava em ações
criminosas. Para justificar sua submissão ao regime, o réu invoca Kant, com o argumento de
que guiava sua vida pelos princípios morais do filósofo. Arendt expõe sua opinião que,
40

segundo o texto, parece ser compartilhada pelos juízes: "isso era aparentemente ultrajante, e
também incompreensível, uma vez que a filosofia de Kant está intimamente ligada à
faculdade de juízo do homem, o que elimina a obediência cega” (ARENDT, 1999, p. 153).
As dificuldades para conceber as ações de Eichmann, além do que contraria qualquer
sentido de humanidade, surgem com os indícios de que o réu, ao fim da guerra,
constantemente contrariava as ordens de seus superiores. Se as normas às quais Eichmann
esteve submetido levaram-no a cometer os crimes sobre os quais era julgado, é questionável a
rebeldia que passou a manifestar nos últimos anos do Terceiro Reich.
A justificativa se apoia na mudança de postura dos oficiais superiores a Eichmann. A
flexibilidade dos homens do alto escalão tornou muitos deles moderados, quanto à
manifestação do antissemitismo, nos últimos anos de guerra. A visão do acusado como
fanático e antissemita é sustentada pelos seus atos, que até o instante da derrota alemã,
estavam alinhados com as ideias de Hitler.

Em Jerusalém, confrontado com provas documentais de sua extraordinária lealdade


a Hitler e à ordem do Führer, Eichmann tentou muitas vezes explicar que durante o
Terceiro Reich "as palavras do Führer tinham força de lei" (Führerworte haben
Gesetzkraft), o que significava, entre outras coisas, que uma ordem vinda
diretamente de Hitler não precisava ser escrita. Ele tentou explicar que, por isso,
nunca havia pedido uma ordem escrita por Hitler (nenhum documento relativo à
Solução Final jamais foi encontrado; provavelmente nunca existiu nenhum) [...].
(ARENDT, 1999, p. 165).

Quanto a isso, Arendt conclui que, mais do que uma ordem, a Solução Final de Hitler
foi tratada como uma lei. Uma lei que tornaria criminosos todos os envolvidos diretamente
com a administração dos prisioneiros, contrariando as leis dos países civilizados, onde o
respeito à vida superava o desejo de suprimir os adversários pela morte.

No Terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o
reconhecem – a qualidade de tentação. Muitos alemães e muitos nazistas,
provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não
roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição [...], e a não se
tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. (ARENDT, 1999,
p. 167).

Nos próximos quatro capítulos, Hannah Arendt busca detalhes da guerra que
complementariam as questões do julgamento. Sua análise detalha temas já levantados em
outros momentos, como as deportações do Reich, dos Balcãs e do centro da Europa, e os
campos de extermínio do Leste. Com a exposição dos fatos ligados à Solução Final, ela
conclui a base da acusação sobre os crimes atribuídos a Adolf Eichmann, nos anos em que
41

esteve a serviço do Reich, como Obersturmbannführer, responsável pelo departamento IVB4


da Gestapo.
A partir de então, com o capítulo "Provas e testemunhas", a autora traz o foco da
narrativa para uma nova questão: os testemunhos no julgamento de Eichmann e a utilização
unilateral deste recurso. O estabelecimento da corte, em Jerusalém, tornou complicada a
defesa do ex-oficial, no que diz respeito à utilização do argumento de testemunhas. A maior
parte dos depoentes em nome de Eichmann, tinham ligações diretas com os nazistas e, ao
pisarem em Israel, poderiam sofrer as mesmas consequências do acusado.
O fato de algumas das testemunhas da acusação também não poderem ser interrogadas
pela defesa, colocava o advogado de Eichmann em posição de desigualdade. Quanto ao
exame de documentos, a situação se repetiria, já que o acesso da defesa era limitado. Arendt
explica a desvantagem:

Na verdade, não tinha nem "os meios nem o tempo" de conduzir adequadamente a
questão, não tinha à sua disposição "os arquivos do mundo e os instrumentos do
governo". A mesma censura havia sido feita contra os julgamentos de Nuremberg,
onde a desigualdade de status entre acusação e defesa era ainda mais gritantes.
(ARENDT, 1999, p. 242).

A maior parte dos recursos da defesa eram documentos criados pelo próprio réu, como
tabelas e notas escritas no período de reclusão em Israel, bem como os depoimentos prestados
à polícia neste período. Ao final, o Dr. Servatius conseguiu apresentar 110 documentos,
contra quinhentos da acusação (ARENDT, 1999). Arendt afirma que o testemunho de
Eichmann veio a ser a prova mais importante do julgamento.
Ser o objeto do interrogatório mais longo da história, até então, era motivo de orgulho
para o réu. Eichmann foi submetido a mais de um mês de interrogatórios, em um total de 33
sessões e meia, questionado, ora pela defesa, ora pela acusação. Com quase o dobro de
sessões, 62, as 100 testemunhas de acusação utilizaram o espaço na Casa de Justiça para
relatar os horrores vividos por elas durante a guerra. A maior parte delas, sem muita relação
direta com as ações de Eichmann. Dentre os depoentes, apenas cinco viveram sob a área de
influência do Obersturmbannführer.
Em síntese, para Arendt, a importância destes relatos, ainda que alguns desconexos,
fazia parte do esforço para que os crimes cometidos pelos nazistas não caíssem no
esquecimento. Em um trecho da reportagem, ao redigir o relato da deportação de uma família
polonesa, afirma: “era de se pensar que todo mundo, todo mundo deveria ter o seu dia na
corte” (1999, p. 251).
42

No penúltimo capítulo da reportagem, chamado "Julgamento, apelação e execução",


Hannah Arendt retoma a captura de Eichmann, na Argentina, e o acompanha até as últimas
palavras. A calma apresentada pelo réu, ao longo do julgamento, não poderia surpreender as
autoridades israelenses, já que antes mesmo de pisar em Jerusalém, ele parecia consciente do
seu destino. A colaboração de Eichmann, ao longo dos interrogatórios, demonstrava esta
mesma conformidade.
Depois do término das 114 sessões de defesa e dos quatro meses de recesso, a corte
retornou para apresentar a sentença de Eichmann:

Desprezando a acusação de "conspiração" encaminhada pela promotoria, que o


transformava num "grande criminoso de guerra" automaticamente responsável por
tudo que tivesse a ver com a Solução Final, eles condenaram Eichmann em todas as
quinze acusações, embora fosse absolvido em alguns particulares. (ARENDT, 1999,
p. 266).

As absolvições dizem respeito ao período anterior a 1942, nas suas atividades


relacionadas à emigração. Os juízes entenderam que Eichmann não teve a intenção de destruir
o povo judeu. No entanto, todos os crimes dos quais foi considerado culpado previam pena de
morte em Israel.
Em seu último depoimento, Eichmann se mostrou frustrado por não ter conseguido
convencer a corte de que seus atos, apenas, não seriam capazes de promover os crimes dos
quais era acusado: “a corte não o entendia: ele nunca tinha nutrido ódio aos judeus, e nunca
desejou a morte de seres humanos. Sua culpa provinha de sua obediência, e a obediência é
louvada como virtude” (ARENDT, 1999, p. 269). Dois dias depois, Eichmann foi sentenciado
à morte.
Três meses se seguiram à sentença, até o início dos trabalhos na Corte de Apelação.
Agora, cinco juízes, presididos por Itzhak Olshan, revisitariam o caso Eichmann. A defesa e a
acusação repetiram as estratégias apresentadas: Servatius, sozinho, e Hausner, acompanhado
de quatro assistentes. Servatius persistiu no argumento de que a corte de Israel não era
competente para julgar o caso. Além disso, apresentou uma relação de novas testemunhas,
cujo interrogatório seria impossível, com uma delas falecida há dez anos. Com alternativas
descuidadas, não foi capaz de acrescentar nada que pudesse intervir a favor do seu cliente.
A Corte de Apelação trabalhou durante duas semanas e retornou dois meses depois,
com o julgamento. Reduzida a 50 páginas, a nova versão trazia novidades em relação ao
primeiro texto:
43

Em marcante contraste com o julgamento original, considerava-se agora que "o


acusado não recebera nenhuma 'ordem superior'. Ele era seu próprio superior, e dava
todas as ordens em questões que afetavam os problemas judeus"; ele tinha, além
disso, "eclipsado em importância todos os seus superiores, inclusive Müller.
(ARENDT, 1999, p. 271).

Na sequência, Eichmann também é apontado como responsável pela Solução Final: “a


ideia da Solução Final jamais teria assumido as formas infernais da pele esfolada e da carne
torturada de milhões de judeus sem o zelo fanático e a incansável sede de sangue do acusado e
seus cúmplices” (ARENDT, 1999, p. 271).
Apesar das muitas tentativas de intervenções para poupar Eichmann do enforcamento,
a maioria delas da comunidade judaica, sua execução aconteceu dois dias após a sentença
final. Hannah Arendt afirma que ele estava perfeitamente controlado ao caminhar para a
morte. Antes de morrer, saudou o nazismo por meio da expressão "Gottgläubiger", que
significava que não era cristão e não acreditava em outras vidas. Arendt (1999, p. 274)
conclui: “foi como se naqueles últimos minutos estivesse resumindo a lição que este longo
curso de maldade humana nos ensinou – a lição da temível banalidade do mal, que desafia
palavras e os pensamentos”.
No epílogo, Hannah Arendt acentua os questionamentos feitos ao longo de toda a
reportagem. Se, nos capítulos anteriores, a autora se ocupara em esmiuçar os fatos
apresentados no julgamento, aqui fica claro seu senso de responsabilidade, como repórter, que
implica na reflexão sobre os termos sob os quais Eichmann foi julgado.
As indagações sobre as práticas de Israel sobre o caso Eichmann começam com o
sequestro do réu, na Argentina, 16 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. No
julgamento, Eichmann afirma ter conhecimento sobre os trabalhos da polícia israelense na sua
busca. Ele não apresentou nenhuma forma de resistência: não alterou sua rotina ou a da
família, nem mesmo ofereceu resistência ao rapto. A conformidade de Eichmann em se
responsabilizar por seus atos, perante a lei israelense, mostra-se evidente.
Nestas condições, o sequestro e a condução de Eichmann para Israel invocam a
indagação do leitor sobre o objetivo da corte instaurada em Jerusalém.

Os que estão convencidos de que a justiça, e nada mais, é a finalidade da lei


tenderão a endossar o ato de rapto, embora não por precedentes, mas, ao contrário,
como um ato desesperado, sem precedentes e incapaz de configurar um precedente,
necessário devido à condição insatisfatória da lei internacional. (ARENDT, 1999, p.
287).
44

A afirmação de Arendt se deve à necessidade do sequestro. Pelos meios legais, a


dificuldade de levar o acusado para Israel e o estabelecimento de uma corte judaica tornariam
o julgamento a que o mundo assistiu, improvável. Ao traçar um paralelo entre a situação dos
réus de Nuremberg e Eichmann, a autora conclui que o julgamento do último não constituiu
um avanço sobre os julgamentos de crimes de guerra:

Em resumo, o fracasso da corte de Jerusalém consistiu em não ter tomado as rédeas


de três itens fundamentais, todos suficientemente conhecidos e amplamente
discutidos desde a instauração dos julgamentos de Nuremberg: o problema da pré-
definição da justiça na corte dos vitoriosos; uma definição válida de "crime contra a
humanidade"; e um reconhecimento claro do novo tipo de criminoso que comete
esse crime. (ARENDT, 1999, p .297).

Para Arendt, o prejuízo da defesa de Eichmann com a impossibilidade de interrogar


suas testemunhas tornou o processo mais falho em Jerusalém, o que acusa o problema de um
julgamento de guerra conduzido por uma corte de vitoriosos. Quanto à problematização do
segundo e do terceiro item, Hannah Arendt conclui que os juízes obtiveram maior sucesso no
caso Eichmann, já que a ideia de crimes cometidos contra o povo judeu distanciou os atos dos
nazistas dos crimes de guerra conhecidos até então, cujas mortes eram consequência das
batalhas, mas da dedicação a eliminação de um povo.
Ao fim do texto, Hannah Arendt se direciona ao leitor, com o veredito traduzido na
linguagem da sua reportagem:

E se é verdade que "a justiça não deve ser apenas feita, ela deve ser vista", então a
justiça do que foi feito em Jerusalém teria emergido para ser vista por todos se os
juízes tivessem a ousadia de se dirigir ao acusado em algo como os seguintes termos
[...]. (ARENDT, 1999, p. 300).

Neste trecho, a autora cita questões como a culpa que Eichmann não admite, quando
afirma que não poderia ter feito diferente no contexto em que se encontrava, já que seu
argumento significa que ninguém é culpado pelas mortes de milhões de pessoas; a questão de
que o réu não se considerava antissemita, bem como o fato de não ter construído uma carreira
visando parte no extermínio de judeus; e o fato de que as ordens executadas por ele serviram
de apoio ao assassinato em massa promovido pelos nazistas.
Por fim, conclui: “consideramos que ninguém, isto é, nenhum membro da raça
humana, haverá de querer partilhar a terra com você. Esta é a razão, e a única razão, pela qual
você deve morrer na forca” (ARENDT, 1999, p. 302). Com estas palavras, Hannah Arendt
finaliza o relato sobre o julgamento de Adolf Eichmann.
45

4.2 O TEXTO DE NORMAN PODHORETZ

A crítica de Norman Podhoretz não alcança apenas Hannah Arendt. Alinhado ao


caráter da Commentary e ao seu próprio, ele não inicia a avaliação do trabalho da filósofa sem
antes criticar o da revista na qual foi publicado. Podhoretz compara o texto de Arendt com o
de James Baldwin25, publicado em novembro de 1962, pela New Yorker: “um negro sobre os
negros, uma judia sobre os judeus, cada um contando a história de horror que recaiu sobre o
seu povo e como estes horrores surgiram [...]”. (PODHORETZ, 1963, p. 201, tradução
nossa)26.
Na comparação, o diretor da Commentary afirma que, enquanto o relato de Baldwin é
eloquente e, ao mesmo tempo, desprovido de inteligência, o de Arendt é inteligente, mas
carente de eloquência. Se um é considerado ousado por buscar no sentimentalismo um rumo
para a sua história, o outro também o é, entretanto, pelo fato de recorrer com frequência à
ambiguidade moral que permeia sua narrativa. Estas são as considerações iniciais de
Podhoretz em seu artigo que se estende por oito páginas da edição de setembro de 1963 da
revista Commentary.
Para Norman Podhoretz, a versão de Hannah Arendt tem como objetivo atender ao que
chama de "uma sofisticada sensibilidade moderna" (PODHORETZ, 1963, p. 201, tradução
nossa)27:

Portanto, no lugar do monstro nazista, ela nos dá o nazista banal; no lugar do judeu
mártir virtuoso, ela nos dá o judeu como cúmplice da maldade; e no lugar do
confronto entre culpa e inocência, ela nos dá a colaboração do criminoso e da
vítima. A história, como ela conta, é complexa, sem sentimentos, solucionada com
paradoxo e ambiguidade. (PODHORETZ, 1963, p. 201, tradução nossa).28

A sequência de sua análise envolve o entendimento de que a autora considera sua


visão sobre o acontecimento superior. Quanto a isso, o editor afirma que parte do seu prestígio
para tratar sobre o assunto, especialmente da maneira escolhida por Arendt, advém do seu
sucesso com o livro As origens do totalitarismo, de 1951. Para além desta percepção,

25
Ele se refere ao texto “Letter from a region in my mind”.
26
“A negro on the Negroes, a Jew on the Jews, each telling a tale of horrors that have been visited upon his
people and of how these horrors were borne [...].”
27
"sophisticated modern sensibility."
28
“Thus, in place of the monstrous Nazi, she gives us the ‘banal’ Nazi; in place of the Jew as virtuous martyr,
she gives us the Jew as accomplice in evil; and in place of the confrontation between guilt and innocence, she
gives us the ‘collaboration of criminal and victim’. The story as she tells it is complex, unsentimental, riddled
with paradox and ambiguity.”
46

Podhoretz ainda declara que "Eichmann em Jerusalém" se exibe como relato histórico,
aspecto que o torna, como registro factual, aberto às críticas.
A opinião do editor se estende até ao método utilizado por Hannah Arendt para redigir
seu relato. Para Podhoretz, as informações utilizadas por ela, da maneira em que foram
dispostas, induziam o leitor à inexatidão:

Com exceção da crítica do julgamento em si, no qual ela compareceu, as fontes da


senhorita Arendt são, a maioria, secundárias (ela se apoia especialmente no livro A
destruição dos judeus europeus, de Raul Hilberg) e sua manipulação das evidências
é o tempo todo visivelmente tendenciosa. No entanto, uma imagem desenhada de
forma distorcida ou exagerada, a serviço de uma tese sugestiva pode,
ocasionalmente, nos trazer para mais perto da verdade essencial do que um estudo
cuidadosamente qualificado e meticulosamente documentado - desde que a tese
concorde razoavelmente bem com a evidencia. (PODHORETZ, 1963, p. 202,
tradução nossa).29

Neste momento, Norman Podhoretz adentra a reportagem de Hannah Arendt, para dar
continuidade ao seu argumento e justificá-lo. O primeiro trecho ao qual recorre se refere à
colaboração dos judeus, através do trabalho administrativo e policial. Quanto a este fato,
Podhoretz relembra o que a própria Hannah afirma sobre o assunto em suas demais
produções, quando junto com outros autores, estabelece que garantir a cumplicidade das
vítimas figura entre as ambições de um regime totalitário.
Na reportagem "Eichmann em Jerusalém", Arendt utiliza a expressão "a um ponto
verdadeiramente extraordinário" (ARENDT, 1999, p. 133), para tratar da colaboração das
lideranças judaicas com as intenções nazistas. A insatisfação de Podhoretz com a expressão
utilizada fica evidente com a sua repetição, em tom de ironia, que ele também utiliza para
tratar da visão da autora sobre Eichmann.
Ao longo das suas reflexões, o editor da Commentary contrapõe o texto publicado pela
New Yorker com argumentos utilizados pela autora, seja os dos livros que ela usou como
complemento da reportagem, ou com os da obra dela, publicada até então. A controvérsia
ligada à tese do judeu cúmplice é o seu primeiro grande apontamento, o que leva em
consideração a afirmação de Hannah Arendt de que o número de mortes poderia ter sido
menor, caso os judeus não fossem um povo tão organizado.

29
“Except in her critique of the trial itself, which she attended, Miss Arendt's sources are for the most part
secondary ones (she relies especially on Raul Hilberg's The Destruction of the European Jews), and her
manipulation of evidence is at all times visibly tendentious. Nevertheless, a distorted or exaggerated picture
drawn in the service of suggestive thesis can occasionally bring us closer to the essential truth than a carefully
qualified and meticulously documented study - provided that the thesis accords reasonably well with the
evidence.”
47

Para rebater o argumento, Podhoretz recorre a David Rousset, citado por Arendt em
sua reportagem. O fragmento escolhido por ele enfatiza: “o triunfo da S.S. demanda que a
vítima torturada se permita a ser levada para a morte sem protestar, que ela renuncie e
abandone a si ao ponto de deixar de afirmar sua identidade” (ROUSSET, 1947 apud
PODHORETZ, 1963, p. 203, tradução nossa)30. Podhoretz prossegue na premissa,
considerando a colaboração das nações envolvidas e suas populações como fator
preponderante ao sucesso da implementação das soluções nazistas, em detrimento da
cooperação proposta por Arendt:

Mas desde que a senhorita Arendt deseja que nós acreditemos que os nazistas jamais
poderiam ter matado seis milhões de judeus sem a ajuda judaica, ela se esforça para
transmitir a impressão de que ainda que os próprios judeus fizeram em quaisquer
outros países importava também significativamente. É neste ponto que se torna
visivelmente tendenciosa na sua manipulação dos fatos. (PODHORETZ, 1963, p.
203, tradução nossa).31

Podhoretz cita os exemplos da Bélgica e da França, assinalando o fato de, ao longo da


reportagem, Arendt não ter mencionado os judenräte, os conselhos judaicos, instalados nas
grandes cidades destes países. Mais do que isso: acusa Arendt de ter omitido que tais
instituições não existiam na Bélgica. Ele afirma que não houve emigração forçada ou
instituição de guetos, no ocidente, porque as populações destes países nunca aderiram às
políticas de segregação de minorias.
Com o desenvolvimento do texto, Norman Podhoretz explica, da sua perspectiva, o
motivo que levou os judeus a colaborarem com os nazistas:

Quase todo líder judeu na Europa cometeu o mesmo erro em relação às intenções
nazistas sobre eles e seu povo - um erro que os nazistas, a propósito, fizeram de tudo
para encorajar. Então se nos perguntarmos o motivo pelo qual as lideranças judaicas
cooperaram com os nazistas, a resposta poderia ser que elas estavam seguindo a
política de apaziguamento e que não havia nada de "extraordinário" sobre isso.
(PODHORETZ, 1963, p. 204, tradução nossa).32

30
“The triumph of the S.S. demands that the tortured victim allow himself to be led to the noose without
protesting, that he renounce and abandon himself to the point of ceasing to affirm his identity.”
31
“But since Miss Arendt wishes us to believe that the Nazis could never have killed as many six million Jews
without Jewish help, she tries very hard to convey the impression that what the Jews themselves did in any given
country mattered significantly too. And it is here that she becomes most visibly tendentious in her manipulation
of the facts.”
32
“Almost every Jewish leader in Europe made the same mistake regarding the intentions of the Nazis toward
them and their people - a mistake that the Nazis incidentally did everything they could to encourage. If, then, we
ask why Jewish leadership cooperated with the Nazis, the answer would seem to be that they were following a
policy of appeasement, and that there was nothing in the least ‘extraordinary’ about this.”
48

Na sequência, a opinião de Norman é acentuada pelo entendimento de que Hannah


quis dizer em seu texto que, se os judeus não fossem judeus, pela sua costumeira organização,
os nazistas não teriam sido capazes de matar tantos deles. O tratamento dado pela autora à
questão do sionismo é descrito por Podhoretz como desagradável. Concluindo a ideia, afirma:
“eu não acho que esteja sendo injusto com a senhorita Arendt” (PODHORETZ, 1961, p. 205,
tradução nossa).33
O próximo assunto eleito por Norman Podhoretz é a versão de Adolf Eichmann,
retratada por Hannah Arendt. Se a autora, sob o ponto de vista dele, foi objetiva ao tratar do
papel dos judenräte, por outro lado buscou, na subjetividade, contar a história do homem
responsável pelo transporte de milhões de judeus para a morte. O que Podhortez percebe
como um claro contraste no tratamento dos dois principais e controversos pontos da
reportagem de Arendt, a análise do papel de Eichmann na Solução Final, foi tratada com
maior inteligência do que a das vítimas.
Ao contrário do que muitos críticos levantaram sobre a interpretação de Hannah
Arendt, Podhoretz deixa claro, em seu texto, que sua avaliação não trata a autora como
defensora de Eichmann. Segundo ele, o que Arendt faz é levar em consideração a avaliação
que Eichmann faz de si mesmo e das suas responsabilidades sobre a Solução Final, na posição
de réu.
Para Podhoretz, quando Arendt afirma que Eichmann não era o nazista demoníaco que
a promotoria de Jerusalém gostaria de acusar, leva o leitor a conhecer a mente do oficial
nazista e o mundo que lhe concedeu poder:

O brilhantismo no tratamento da senhorita Arendt sobre Eichmann poderia ser


dificilmente contraposto por qualquer leitor desinteressado. Mas ao mesmo tempo,
dificilmente poderia haver um melhor exemplo do que esta parte do livro sobre a
perversidade intelectual resultante da busca pelo brilhantismo por uma mente
enfeitiçada com a sua própria agilidade e tendência a gerar deslumbramento.
(PODHORETZ, 1963, p. 206, tradução nossa).34

A escolha das palavras de Hannah Arendt são um problema evidente para Norman
Podhoretz. O mal, como banalidade, apresentado pela autora da reportagem, parece
representar, aos olhos de Podhoretz, a desqualificação das barbáries cometidas pelos nazistas:
"semelhantemente, o comportamento dos líderes judeus sob o regime nazista era

33
“I do not think I'm being unfair to Miss Arendt here.”
34
“The brilliance of Miss Arendt's treatment of Eichmann could hardly be disputed by any disinterested reader.
But at the same time, there could hardly be a more telling example than this section or her book of the
intellectual perversity that can result from the pursuit of brilliance by a mind infatuated with its own agility and
bent on generating dazzle.”
49

extraordinário, mas Adolf Eichmann era ordinário, até mesmo banal"(PODHORETZ, 1963,
p. 206, tradução nossa)35 .
De acordo com Podhoretz, a impossibilidade de aceitar a representação de Eichmann
feita por Hannah Arendt, em sua reportagem, está no fato de ele não ter vivido da versão de
um Estado totalitário ideal. Adolf Eichmann era fruto de uma primeira geração de nazistas e
conhecia o mundo além das atrocidades que cometiam. O editor ainda assinala que, se
Eichmann fosse tão pouco importante quanto gostaria que acreditassem, ou como Arendt
pretendeu, não teria sido confiada a ele a tarefa de transportar os judeus para os campos de
extermínio, um trabalho de extrema importância para a política nazista.
Para provar a irracionalidade e o radicalismo do antissemitismo nazista, Podhoretz
recorre ao exemplo da Romênia, que manifestava uma postura muito semelhante à dos
alemães. Ao contrário dos nazistas, os romenos logo perceberam que utilizar os judeus como
força de trabalho era mais lucrativo do que exterminá-los. No argumento de Podhoretz, ainda
que se manifestasse o antissemitismo, em outras partes da Europa, ele encontrava barreiras e
até mesmo racionalidade.
No fechamento do texto, Norman Podhoretz confronta a opinião de Hannah Arendt
sobre a corte estabelecida em Jerusalém, como substituta de uma corte internacional. Em
defesa de Ben Gurion e Hausner, atacados com frequência na reportagem da filósofa, o autor
concorda com o posicionamento de ambos quanto ao julgamento de Eichmann, reforçando a
ideia de que a exposição dos crimes cometidos pelos nazistas contra o povo judeu deveria
envergonhar as nações do mundo.
O relato de Hannah Arendt peca, na visão de Podhoretz, nesta função. A capacidade
de questionar o papel dos judeus e de humanizar Eichmann é entendida, por ele, não apenas
como uma perspectiva diferente dos acontecimentos, mas como uma afronta ao povo judeu.
Podhoretz responde, com este texto: uma denúncia pública, com o objetivo de marcar a
perversidade no aclamado brilhantismo intelectual de Arendt.

4.3 AS POLÊMICAS

O reconhecimento internacional sobre a produção de Hannah Arendt foi amplificado


por seu Origens do totalitarismo, publicado em 1951. A fama rendeu à filósofa política a

35
“Similarly, the behavior of the Jewish leaders under the Nazis was "extraordinary", but Adolf Eichmann was
ordinary, even unto banality.”
50

oportunidade de acompanhar um dos julgamentos mais importantes do século XX, com a


missão de reportá-lo para os leitores da revista New Yorker. Mas sua visão dos fatos,
desenvolvida ao longo do relato do julgamento, foi alvo de críticas severas pela comunidade
intelectual de Nova York.
Não apenas Norman Podhoretz e sua Commentary julgaram absurda a maneira como
Arendt conduziu sua narrativa sobre o caso Eichmann. Com os mesmos pontos comuns a
Podhoretz, todos os críticos de Arendt combatem duas ideias centrais do texto da filósofa: o
retrato de Eichmann como homem banal e a responsabilidade atribuída às lideranças judaicas
pelas mortes de seis milhões de judeus.
A reação em Nova York causou espanto entre apoiadores e críticos da reportagem. Os
frequentes ataques, nos mais diversos veículos, entre um lado e outro da disputa, chegaram a
ser classificados como violentos. Irvin Howe (1982), editor da revista Dissent, afirmou que
“A controvérsia sobre ‘Eichmann em Jerusalém’ foi uma guerra civil que estourou entre os
intelectuais nova-iorquinos” (HOWEL, 1982 apud ERZA, 2007, p. 142, tradução nossa)36.
Uma das primeiras reprovações à jornalista-filósofa foi publicada no New York Times
Book Review, o suplemento literário do jornal The New York Times. O texto do juiz Michael
Musmanno (1963) critica a forma como Hannah Arendt tratou das questões jurídicas e
assinala que a sua interpretação dos documentos apresentados pela acusação em Jerusalém
contrariava a realidade dos fatos: “a disparidade entre o que a senhorita Arendt declara e o
que são os fatos apurados acontece com tanta frequência no livro dela que mal pode ser aceito
como trabalho histórico”(MUSMANNO, 1963 apud ERZA, 2007, p. 143, tradução nossa).37
Além disso, Musmanno acusa Arendt de manifestar simpatia por Eichmann, em
função das suas tentativas de colocar o acusado na posição de ser humano frente a um regime
totalitário. Quando escolhe não demonizar Eichmann, ela é acusada de ser simpática a ele. O
resultado da publicação do artigo foi o recebimento de uma centena de cartas, a maioria em
defesa da reportagem de Hannah Arendt (ERZA, 2007).
A onda de ataques fez se manifestar até mesmo Hausner, que empreendeu uma viagem
até Nova York, segundo ele para defender-se das acusações presentes na reportagem
"Eichmann em Jerusalém". Em sua fala, também acusou a autora de distorcer fatos e
evidências (ERZA, 2007, p. 144).

36
“The Eichmann in Jerusalem controversy was a civil war that broke out among New York intellectuals.”
37
“The disparity between what Miss Arendt states, and what the ascertained facts are, occurs with such
disturbing frequency in her book that it can hardly be accepted as an authoritative historical work.”
51

As publicações declaradamente judaicas foram bastante incisivas em suas críticas.


Marie Syrkin, na The Jewish Frontier, do órgão norte-americano sionista homônimo, acusou
Hannah Arendt de vulgaridade e ridicularizou seus argumentos contra o sionismo. Em seu
texto, Syrkin (1963) polemiza a ideia de que os sionistas se aproveitaram do levante nazista,
uma acusação segundo ela, escandalosa. Ao final, conclui que apenas Eichmann sai da
história melhor do que entrou (SYRKIN, 1963 apud ERZA, 2007).
Outra perspectiva, a de Gertrude Ezorsky (1963), para o jornal de esquerda New
Politics, debate um diferente aspecto sobre o retrato de Eichmann. Ezorsky lança mão dos
laudos psicológicos do acusado para denunciar as incoerências na reportagem de Hannah
Arendt.

Ezorsky citou os resultados de um teste psiquiátrico: o sujeito era um homem


obcecado com o perigoso e insaciável estímulo para matar, decorrente do desejo de
poder. Ela conclui que a história da senhorita Arendt de que Eichmann seria
desprovido do ódio fanático contra os judeus parece implausível e acaba por ser
falsa. (EZORSKY, 1963 apud ERZA, 2007, p. 145, tradução nossa).38

Além de alguns leitores, Arendt também encontrou defensores no meio intelectual. No


New York Rewiew of Books, assim como os acusadores, os defensores também tiveram seu
espaço. Stephen Spender, escritor inglês, classificou a reportagem de Hannah Arendt como
“[...] um estudo brilhante e perturbador do personagem e do julgamento de Adolf Eichmann”
(SPENDER, 1963 apud ERZA, 2007, p. 146, tradução nossa).39
Dentre os defensores, esteve também o sobrevivente judeu Bruno Bettelheim.
Publicado na The New Republic, também em 1963, seu artigo foi uma das maiores defesas de
Hannah Arendt. O texto argumenta que, para Arendt, assim como para o autor, "Eichmann em
Jerusalém" não poderia se referir exclusivamente ao réu, na sua individualidade. O texto da
filósofa vai além disso, para Bettelheim, já que a reportagem ultrapassa Eichmann como
personagem, para refletir sobre o totalitarismo, em si mesmo.
Para intervir a favor de Arendt, ele também tratou da questão da cooperação judaica,
com a afirmação de que a história dos guetos poderia ser diferente. Na sua conclusão, atesta:

Então enquanto eu recomendaria este livro por muitas razões, a mais importante é
que esta é a nossa melhor proteção contra o controle opressivo e desumanizar o
totalitarismo ainda é um entendimento pessoal dos eventos como aconteceram. Para

38
“Ezorsky quoted the results of a psychiatric test: the subject was ‘a man obsessed with a dangerous and
insatiable urge to kill, arising out of a desire for power.’ She concluded, ‘Miss Arendt’s tale that Eichmann was
without fanatical hatred of Jews seems initially implausible and turns out to be false.”
39
“[...] a brilliant and disturbing study of the character and the trial of Adolf Eichmann.”
52

este fim, Hannah Arendt nos forneceu com um rico material. (BETTELHEIM, 1963
apud ERZA, 2007, p. 146, tradução nossa).40.

A revista Partisan Review concedeu espaço a uma série de artigos contra e a favor do
posicionamento adotado por Arendt na escrita de “Eichmann em Jerusalém”. Apesar das
críticas comuns às outras publicações, nesta série de debates surgiram autores com
comparações confusas, como Lionel Abel: “alguém pode acusar as pessoas de Nagasaki e
Hiroshima por terem tornado possíveis suas próprias mortes, já que eles viviam em cidades e
cidades eram os melhores alvos” (ABEL, 1963 apud ERZA, 2007, p. 148, tradução nossa).41
O objetivo de Abel era comparar o senso de culpa entre a questão dos conselhos judaicos com
a tragédia no Japão.
Na série, a escritora Mary McCarthy, amiga pessoal de Hannah Arendt, defende o
brilhantismo da reportagem. No seu texto, McCarthy (1964) observou que as críticas mais
hostis partiam dos que compartilhavam a fé de Arendt, enquanto as favoráveis eram de
autores não judeus. Como Arendt, McCarthy sentiu que a reportagem sobre o caso Eichmann
foi mal interpretada (ERZA, 2007) e busca resgatar a perspectiva filosófica presente no relato
de Hannah. Os problemas de interpretação, aparentemente, tinham origem nos
questionamentos propostos por Arendt.
Os artigos da Partisian Review sobre o acontecimento não se encerraram com Mary
McCarthy. Por meses, os intelectuais da cidade de Nova York continuariam discutindo
particularidades do trabalho de Arendt. O último deles a publicar sua opinião foi William
Phillips, editor da revista, em 1964. Ele afirmava que as reações eram repletas de excessos e
que até mesmo ouviu pessoas dizendo que Arendt era um ser humano pior do que Eichmann.
Sobre isso, destaca: “particularmente deprimente é o processo das polêmicas, com todos
discutindo tão inteligentemente, com tanta perspicácia e lógica, como se aqueles eventos
horríveis estivessem sendo usados para afiar a mente e a retórica de alguém” (PHILLIPS,
1964 apud ERZA, 2007, p. 151, tradução nossa).42
Na Europa, apesar de não ter suscitado o mesmo tipo de reação, a reportagem de
Hannah Arendt também sofreu julgamento. Para alguns críticos alemães, que os americanos

40
“So while I would recommend this book for many reasons, the most important one is that our best protection
against oppressive control and dehumanizing totalitarianism is still a personal understanding of events as they
happen. To this end Hannah Arendt has furnished us with a richness of material.”
41
“One might as well accuse the people of Nagasaki and Hiroshima for having made their own deaths possible,
since they lived in cities, and cities make the best targets.”
42
“Particularly depressing is the procession of polemics, with everyone arguing so cleverly, with so much wit
and logic, as though those awful events were being used to sharpen one’s mind and one’s rhetoric.”
53

acusavam de beneficiários da versão de Arendt, a questão da resistência e da cooperação


judaica foi considerada inadmissível. Na Alemanha, assim como em outras partes da Europa,
Eichmann em Jerusalém foi boicotado até mesmo pelas livrarias, quando sua versão em livro
foi editada.
54

5 CONCLUSÃO

No seu tempo, "Eichmann em Jerusalém" não poderia ser uma reportagem menos do
que controversa. Ainda que sua publicação tenha acontecido 18 anos após o fim da Segunda
Guerra Mundial, a proximidade com o conflito despertou, no público, um sentimento de
justiça que a autora foi incapaz de reproduzir. Mais do que ter concluído o improvável sobre o
julgamento de Adolf Eichmann, o crime de Hannah Arendt foi o de ter sido capaz de chegar a
estas conclusões como judia.
Acusada de nutrir ódio contra o próprio povo, Hannah Arendt, também chamada de
Hannah Eichmann, pelos opositores, como apontou Mary McCarthy (ERZA, 2007, p.150),
contava com as condições para perceber o acontecimento além do preestabelecido,
considerando sua formação questionadora como filósofa e suas teses já desenvolvidas sobre o
totalitarismo. Os apontamentos feitos por ela, na reportagem, seriam mais surpreendentes caso
refletissem o senso comum.
A precisão dos detalhes presentes em sua descrição faz recordar a maneira de
Dostoiévski compor cenários e personagens para dar vida ao relato. A passagem em que
explica a impressão causada pela cabine que abrigou o réu, ao longo do julgamento,
caracteriza-o como “desencarnado através das grossas paredes de vidro que o cercavam”
(ARENDT, 1999, p. 234). Ainda que tenha sido televisionado, é possível alinhar mentalmente
a disposição da corte e até mesmo os cenários das barbáries denunciadas pelas testemunhas da
acusação, tendo apenas o texto em mãos.
"Eichmann em Jerusalém" é uma narração das consequências causadas pela instalação
de um regime totalitário. Independente da perspectiva que a filósofa escolhesse adotar,
inflamaria discussões. Contemporâneos a ela não poderiam deixar de observar as falhas e as
qualidades de um texto cuja proposta era elucidar questões para as quais não se encontrariam
respostas definitivas, mesmo 53 anos depois. É possível que este ponto não estivesse claro
para o público: Hannah Arendt faz da reportagem uma experiência, apostando em um formato
de jornalismo que questiona e não soluciona. Por isso mesmo, depois transforma aquele texto
jornalístico em livro.
Ao longo da reportagem, a autora transgride o papel de repórter e adota a posição de
advogada, articulando a defesa necessária para amenizar as acusações contra Eichmann.
Considerado um fragmento controverso do relato, em repetidos momentos, Arendt se
concentra na crítica sobre a atuação do advogado de defesa, o Dr. Robert Servatius. A
insistência da filósofa em proteger os interesses do réu, através do exame minucioso dos
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registros, motivou denúncias que especulavam sua simpatia por Eichmann. Ao examinar os
documentos da acusação, Arendt é capaz de retomar momentos da história do regime nazista
que diminuiriam o papel atribuído a Eichmann que, por arrogância ou problemas de memória,
não era capaz de se recordar.
O apoio sobre os documentos é um indicativo da necessidade, por parte da autora, de
construir um conhecimento sólido, além dos fatos narrados pela reportagem que dizem
respeito ao julgamento. As condições em que foi escrita, do veículo que a publicou até a
técnica aplicada, justificam o resultado incomum obtido pela autora, considerando que
nenhuma outra publicação produziu material tão rico e extenso sobre o assunto quanto a New
Yorker. O trabalho de Hannah Arendt demonstra o potencial do jornalismo para revelar o
novo (MEDITSCH, 1992), mesmo que o objeto seja parte do passado.
Ao construir Adolf Eichmann como personagem, Hannah Arendt apresenta o ex-
oficial ao público como homem banal, ao contrário do antissemita monstruoso que Israel
pretendia exibir. Ao longo dos interrogatórios, Eichmann tentou demonstrar a ausência de
pretensões assassinas em seus atos, incompatíveis com a função exercida por ele na estrutura
militar nazista. Ainda que não tivesse a intenção de assassinar, sua omissão transportou
milhões de judeus para o encontro com a morte. Nos vagões coordenados por Eichmann,
iniciava-se o processo de desumanização dos prisioneiros judeus.
A defesa de Eichmann, por parte da autora, com base no argumento da banalidade do
mal (ARENDT, 1999), foi alvo de críticas hostis. A versão do nazista sádico, amplamente
aceita, estava consolidada antes mesmo do início do julgamento em Jerusalém. Alguns
críticos de Arendt chegaram a afirmar que Adolf Eichmann, no fim da história, foi o único
que saiu melhor do que entrou (ERZA, 2007). O questionamento sobre o trato da
personalidade do réu pela reportagem é inevitável. Hannah Arendt poderia ter sido mais
objetiva?
O mito da objetividade jornalística (AMARAL, 1996) é responsável pelo
estranhamento da proposta de reflexão, um aspecto incomum aos textos do jornalismo. O
relato de Arendt, desde o início, renuncia à crença na objetividade como única maneira de
expor um acontecimento. Como filósofa, a autora parece ter consciência da impossibilidade
de relatar a realidade como ela é. Arendt não era responsável, nem sua reportagem, pela
definição da personalidade de Adolf Eichmann. A opinião pública já havia feito estas
definições.
Hannah provoca o leitor a procurar além da obviedade. Escolhe contar a história de
um homem em um contexto totalitário e conduz o leitor à reflexão sobre a possibilidade da
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adoção de uma postura diferente por parte do réu. Sua abordagem não é óbvia, nem busca
uma verdade absoluta e definitiva. Uma versão objetiva, como a supostamente adotada pelos
críticos, seria o melhor caminho para a reportagem? É difícil afirmar que a busca por
objetividade é o único caminho para a verdade (AMARAL, 1996).
O papel dos judenräte nos resultados surpreendentes da Solução Final foram expostos
pela autora como parte importante do julgamento. Enquanto a mídia não considerou este
aspecto, Arendt não hesitou em desenvolvê-lo, com a ajuda de outros teóricos. A condição de
judia, fugitiva dos campos nazistas e exilada, concedeu à autora a credibilidade para tratar do
assunto com uma postura crítica. Ainda que seja doloroso classificar este como o capítulo
mais sombrio de toda a história de sombras do povo judeu (ARENDT, 1999).
A experiência de Arendt, inevitavelmente, influencia a reportagem. É natural que a
opinião pública americana, fruto de outras experiências, considerasse ultrajante a importância
atribuída por Arendt à questão da colaboração dos líderes judaicos com os nazistas. Assim
como a tese da banalidade do mal (ARENDT, 1999), é possível que a filósofa tenha previsto
as consequências destas afirmações, que não apenas desafiaram o senso comum, quanto
alteraram a relação clássica entre agressores e vítimas.
O estranhamento causado por essa aproximação entre as vítimas e os criminosos pode
ser atribuída às práticas do jornalismo como veículo de comunicação de massa. A ruptura da
repetição de sentidos, à qual, tanto o leitor, quanto os demais jornalistas estão habituados, é
capaz de causar o sentimento de revolta que tomou os intelectuais nova-iorquinos após a
veiculação de "Eichmann em Jerusalém".
A reação de outros veículos, como a Commentary, refletiu a opinião dos judeus
contemporâneos à Arendt ao acontecimento. Um assunto de extrema importância, o
julgamento de um ex-oficial nazista na terra recém-conquistada pelos judeus não estava
aberto às críticas incisivas feitas por Hannah Arendt.
O texto de Norman Podhoretz (1963) sintetiza o sentimento de hostilidade contra a
filósofa. Carregado de ironia, o artigo busca refutar as informações presentes na reportagem.
Os primeiros parágrafos instigam o leitor a repensar as qualidades do texto, com a afirmação
de que estudiosos da literatura e da filosofia podem considerar a versão de Arendt melhor do
que as que abraçam o sentimentalismo para contar a história do julgamento. Na concepção de
Podhoretz (1963), a autora lança mão de uma interpretação diferenciada, com o objetivo de
destacar a superioridade da sua tese.
Empenhado em apontar contradições, Podhoretz parece desejar alcançar uma classe de
leitores, assim como ele, judeus insatisfeitos com o tratamento dado por Arendt à reportagem.
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Para isso, como anuncia no título, discursará sobre a perversidade do brilhantismo da autora,
como justificativa para as diferenças essenciais entre a sua perspectiva sobre o acontecimento
e a dela.
A grande repercussão das críticas instaurou, nas publicações de cunho cultural e
intelectual de Nova York, um debate aberto entre críticos e defensores da reportagem
veiculada pela New Yorker. Enquanto as reações de editores, escritores, jornalistas e
acadêmicos eram mais facilmente monitoradas, as dos leitores, que se manifestavam por
cartas, e precisavam pagar por este serviço, dificultam a mensuração da opinião publica frente
às discussões.
Por interesse em promover o debate ou para ampliar as vendas, a Partisan Review
publicou uma série de artigos problematizando o conteúdo da reportagem. A riqueza das teses
produzidas por grandes nomes da literatura, do jornalismo, da filosofia e da sociologia, foi
capaz de ampliar o fluxo da notícia, que deixou de fluir da maneira tradicional, para aprimorar
a experiência e os conhecimentos do leitor.
A importância do caso Eichmann e de seus desdobramentos tem se amplificado ao
longo dos anos. Por mais que nos pareçam distantes, as características tacanhas do ser
humano, que fizeram deste debate algo tão intenso, ainda são muito atuais. Eichmann foi
julgado na corte dos vitoriosos e uma filósofa, no papel de repórter, entre tantos, foi capaz de
apontar suas irregularidades e defender o que acreditava ser justo.
O distanciamento temporal do evento nos aproxima da versão de Hannah Arendt. Para
observar o todo, com maior facilidade, é necessário se afastar. Apesar de vítima do
antissemitismo, a filósofa foi capaz de criar este mirante, que permitiu observar e pintar um
Eichmann que apenas ela via na década de 1960, um nazista através das lentes do próximo
século. Apesar do amadurecimento da tese de Arendt, infelizmente, a banalidade do mal
torna-se cada vez mais contemporânea.
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TAVARES, Frederico de Melo. B; SCHWAAB, Reges (Org.). A revista e seu jornalismo.
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ANEXO A - PRIMEIRA PÁGINA DE "EICHMANN EM JERUSALÉM"


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ANEXO B - PRIMEIRA PÁGINA DO TEXTO DE NORMAN PODHORETZ

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