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Audrei Gesser L| RE Pg AS > De um ideal precario a articulagao 7 do ébvio que ainda precisa ser dito que lingua é essa? na CCRENGAS & PRECONCEITOS EM TORNO DA LINGUA DE SINAIS E DA REALIDADE SURDA celebrado socidlogo Erving Goffman, na ‘madureza de sua obra final, articula 0 ideal de todo palestrante de que a platéia esteja de fato engajada na escuta do que ele diz pelo que diz, e que assim seja levada bem ry além do auditério para os cendios e ocasi- v Ges no mundo onde o tema de que trata se faz vividamente relevante. Além de ser um zs ideal, esse & ainda um ideal precério, por- que escutar é bem mais que ovvir, Fo! num encontro de sala de aula em meados da jé distante década de 1990 que, hoje sei, fui escutado, ¢ o meu ideal precirio tomou con- tormos definidos. Tratava da natureza da linguagem natural humana, me dirigindo a ingressantes no mestrado em inglés da Universidade Federal de Santa Catarina, quando surgiu a questo —fascinante e ainda incrivel- mente desconhecida da platéia — de que as linguas de sinals sfo linguas naturais tio humanas quanto as deriais e que nao se limitam aum cédigo restrito de transposigio das letras do alfabeto. ‘Tive indicios de ter sido escutado logo quando se apresentou diante de mim uma aluna com sua curiosidade, que resulta na presente obra. De um ensaio sobre as questdes suscitadas pela discusso na discipli- na, ela seguiu para localizar os espacos antes invisiveis na universidade, B unas cur inane ase onde a Lipras poderia estar disponivel, ai encontrando a prépria lingua, seus usuarios protagonistas, os surdos, bem como pais e educadores de surdos, e uma prosaica gente como a gente, interessada em conceber um ‘mundo feito também por quem, sem ouvir, pode escutar 0 percurso no parow al, e Audrei engajou-se em pesquisa sistems- tica que indagava como se organizaria uma aula de 11BRAs como lingua adicional para pais e educadores de criangas surdas. 0 trabalho mostrou cenas de sala deaula, como a que tenho registrada na meméria, do profes- sor surdo virado para a lousa, de costas para a turma, & espera de atenco para ser escutado, Aprendemos todos a ver como era preciso que esses aprendizes ouvintes antes de tudo construssem um entendimento do que seria uma lingua nessa até entao insuspeitada modalidade espaciovi- sual. Em meio a isso, Audrei visitava escolas e se aproximava das comuni- dades surdas, de Campinas, SP a Washington, DC. Nessas cidades, as reflexdes no TEL-Unicamp sobre as diversas comu- nhidades sociolinguisticamente complexas no Brasil ea convivéncia em meio a.uma comunidade académica protagonizada por surdos na Universidade Gallaudet ampliaram o universo de escutas proveitosas da autora, amadure- cido em sua tese de doutorado sobre as identidades em jogo quando ouvin- tesaprendem Linras. Por isso, é mais que oportuno que ela venha a piblico nesta obra para dizer um pouco do que, como ela mesma afirma na introdugao, 60 ébvio que ainda prec uuniverso humano que se faz nas Iinguas de sinais, com as linguas de sinais,e particularmente com a Lingua Brasileira de Sinais, essa LIBRAS que nos toca de perto, se soubermos esentar para vé-a. & grande a satisfaglo de ter sido escutado naquela tare na UFSC e de ter participado do inicio do percurso que se revela aqui para tantos quantos venham a escutar ser dito para que mais ouvintes tenham coniecimento do rico Porro ALEGRE, acosro Ds 2009. Introdugao “Nenhuna opi, vera ou fsa, ms conta & opi dominate e gral estahaleceu-se ro rurco eslantaneamente # cont "base nua deroretigo kick paltve. mes a orga de epetigies perarea de abit (ows. spas & Tinga.” Foi este o titulo escolhido para a palestra apresentada por uma linguista em um evento cujo pablico alvo era o estudante do curso de letras. Uma professora que trabalha nna area da surdez, mencionando 0 titulo, fez 0 seguinte comentirio: "De novo? Achel que essa questdo jé estava resolvida!” Foi esse episédio que me veio & mente no momento mesmo em que co- rmecei areler este livro, entio a rematado, e que me fez recomecar justamente ‘partir desse protesto, De fato,o comentario faz sentido, ea sensagoémesmo ade um discurso repetitive. Ainda é preciso afirmar que LiBRAs & lingua? Essa pergunta me faz pensar: na década de 1960, foi conferido & lingua de sinais 0 status lingu(stco,e, ainda hoje, mais de quarenta anos passados, continuamos aafirmar ereafirmar essa legitimidade. A sensardo é mesmo a de um discurso repetitivo, Entretanto, paraa grande maioria,trata-se de uma questo alheia,e pode aparecer como uma novidade que causa certo impacto e surpresa: {Nao adiant, ésemprea mesmecoisa, Quando estamos em um evento que fala para ‘quem estd fora de meio de surdez,cudo énovidaile mesmo! As pessoas flea espon- {das quonde toraars eonhecimentye para quem esti dentro da drea discurso é ‘semprea mesma coisa, fc este cosa Batic, ens tcarios nos repetindo.. Esse comentério pe em palavras minha prépria surpresa, Uma sur- ppresa “de dentro’, que reclama também agora essa mesma repeticao. 0 que vemos é que 0 discursoaparentemente “gasto” faz-se necessério, precisando ser repetido intimeras vezes para que a constituicao social dessa lingua mi- noritaria ocorra, ou seja, para chegarmos a legitimagao e ao reconhecimen- to, por parte da sociedacie como um todo, de que a lingua de sinais é uma \ingua. Certamente-a marca linguistica nao é tinica questo nas discusses sobrea surdiez, mas 6. legitimidade da lingua que confere 20 surdo alguma “libertacio' e distanciamento dos moldes e representaciies até entao exclu- sivamente patolégicos. Tornar visivel a lingua desvia a concepgio da surdez 1 vines que unan ease como deficiéneia — vinculada as lacunas na cognido e no pensamento — para uma concepgao da surdez como diferenca lingufstica e cultural, Qual 6, pois, o objetivo de escrever este livro? Em primeiro lugar, & criar um espaco em que esse tipo de discussio seja pensado. De forma mais geral, 0 desejo do livro origina-se de reflexdes sobre algumas ques- tes relativas 8 drea da surdez, pensando especificamente a relagio do ‘ouvinte com esse outro mundo. 0 momento parece oportuno e particular- ‘mente pertinente, na medida em que decisdes politicas term propiciado um ‘olhar diferenciado para as minorias linguisticas no Brasil. Percebe-se que ‘os discursos sobre o surdo, a Uingua de sinais ea surder, de uma forma am- pliada, ‘abrem-se" para dois mundos desconhecidos entre si: 0 do surdo ‘ent relagéo a0 mundo ouvinte e o do ouvinte em relacao ao mundo surdo. © contetido aqui esbocado pode alcancar diferentes leitores: surdos, ‘owvintes,leigos, profissionals da surdez, estudantes, professores ou simples- mente curiosos. Varias S20 as preocupagSes aqui delineadas. A principal é a de ilustrar falas recorrentes e repetitivas advindas de algumas situagbes de interagdo face a face com/entre surdos e ouvintes para trazer &tona algumas crengas, preconceitos e questionamentns em torno da lingua de sinais e da realidade surda. Essa discussdo & crucial, pis na e através da linguagem esta mos constantemente construindo representagies, crengas ¢ signficados afir~ ‘mados, consumidos, naturalizados e disseminadas na sociedade, nos espacos escolares e familiares, muitas vezes como "normas”e "verdades absolutas’. 0 leitor encontrar neste livro manifestagbes dliscursivas organiza- das em trés capitulos sob forma de perguntas ou afirmagées que venho registrando e acumulando — por meio de conversas formais e informais —nas minhas idas e vindas em contextos de ensino de LIBRAS para ou vintes, em eventos académicas ¢ em interagées cotidianas. 0 leltor po- der vislumbrar no livro um ponto de partida para evocar o Repensar de algumas crengas compartilhadas, praticas, conceitos e posturas & luz. de algumas transformagées que marcam a rea da surdez na atualidade, Ou seje, o que se espera é poder promover um direcionamento para um novo olhar; uma nova forma de narrar a(s) realidade(s) surda(s) ‘Ao recuperar, no titulo, a fala de um pai que confessa seu estranba- mento em relagio & lingua do filho surdo, ao dizer “Luzeas? Que lingua é essa?" quero flagrar o total desconhecimento dessa realidade linguistica, tanto por parte daqueles que convivem de perto com a surdez, quanto por parte da sociedade ouvinte de maneira geral. Além disso, propde-se um es- ppaco de articulac&o em que questées similares possam ser pensadas e, sem evitar seu estranhamento, tornadas mais famifiares. Essa foi a forma en- contrada para também sensibilizar ouvintes sobre um munda surdo desco- hecido e complexa. Como disse 0 poeta Leopardi, a forsa de repeticbes,e, portanto, de habito’ podem ser criadas oportunidades para reflexdes e mu: ‘dangas sobre algumas opinides e também crencas daqueles que nZo esto ‘ou nunca estiveram em contato como surdo, a lingua de sinais ea surde. lingua _desinai ac vez eum ine atl eat sey babe em seu eto eral para ce” ss Leteh A lingua de sinais é universal? ma das crengas mais recorrentes quando se fala em lingua de sinais é que ela é uni- versal. Uma ver que essa universalidade std ancorada na ideta de que toda lingua de sinais & um “cédigo” simplificado apre- endido e transmitido aos surdos de forma geral, € muito comum pensar que todos os surdos falam a mesma lingua em qualquer parte do mundo. Ora, sabemos que nas co- munidades de linguas orais, cada pafs, por exemplo, tem sua(s) prépria(s) lingua(s). Embora se possa tracar um his ‘6rico das origens e apontar possivets parentescos e semelhangas no ni- vel estrutural das linguas humanas (sejam elas orais ou de sinais), alguns fatores favorecem a diversificagao ¢ a mudanca da lingua dentro de uma comumidade lingu(stica, como, por exemplo, a extensio e @ descontinui- dade territorial, além dos contatos com outras linguas. Com a Iingua de sinais ni é diferente: nos Estados Unidos, os sur dos “falam’"a lingua americana de sinais; na Franga, a lingua francesa de

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