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DESCONSTRUIR SOKAL?

A REFLEXÃO NA TELA DO DISCURSO / ENTREVISTA

Pierre Bourdieu:
os mandamentos
do intelectual ENDEUSADO OU DETESTADO, a ponto de ser
chamado por seus detratores de Bourdivin,
o sociólogo Pierre Bourdieu, 68, professor
no célebre e prestigioso Collège de France,
reina, para muitos dos seus admiradores,
como o último dos maîtres à penser no país
do intelectual engajado Jean-Paul Sartre,
cujo espectro continua a rondar o imaginá-
rio dos pensadores críticos, dos utopistas de
esquerda, dos nostálgicos da revolução pro-
letária, dos adversários do neoliberalismo e
mesmo dos ressentidos por razões diversas.
Defensor do caráter científico da socio-
logia, adversário do ensaísmo e inimigo dos
“intelectuais da mídia”, Bourdieu, nos últi-
mos anos em luta contra o neoliberalismo,
assumiu posições cada vez mais à esquerda,
chegando a ser rotulado de demagogo e de
populista por alguns dos seus principais
oponentes. Crítico implacável dos privilé-
gios garantidos e transmitidos por institui-
ções, é autor de alguns dos livros socioló-
gicos mais polêmicos dos últimos 40 anos,
entre os quais Os Herdeiros: os estudantes e
a cultura (1964), A Reprodução: elementos de
uma teoria do sistema de ensino, com Jean-
Claude Passeron (1970), A Distinção: crítica
social do juízo (1979), Homo academicus (1984),
A Nobreza de Estado: Grandes Escolas e espírito
de corpo (1989), As Regras da arte: gênese e es-
trutura do campo literário (1992), Sobre a tele-
visão (1996) e A Dominação masculina (1998).
Diretor da revista Actes de la recherche
en sciences sociales, uma das publicações
acadêmicas mais respeitadas do mundo,
e criador da editora Liber Raisons d’Agir,
cujos pequenos livros, em forma de panfle-
tos contundentes, vendem em média 300
mil exemplares, Pierre Bourdieu não teme
atacar as instituições que lhe dão trabalho
e distinção social. Assim, desmontou os
Juremir Machado da Silva mecanismos elitistas e corporativos das
Dr. em Sociologia – Univ. René Descartes, Paris V, Sorbon- principais instâncias de poder no mundo
ne contemporâneo: educação, cultura, posi-

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ção na esfera estatal e mídia. Além disso, da França”? Com certeza, estamos no terre-
a apropriação da cultura como símbolo de no do poder. Mas de qual poder? O poder
distinção é um dos seus temas favoritos universitário, tal qual o analiso no Homo
através do qual pulveriza os modismos, o academicus? Nesse caso, é fácil constatar que
esnobismo e o vazio das elites de plantão. pertencer ao Collège de France, onde, à época
Quanto mais bate nos deslumbrados e nos do meu estudo, se encontravam gente como
afetados, mais é adorado por estes, que en- Dumézil, Lévi-Strauss, Braudel ou Foucault,
contram nele o último baluarte do purismo não garante praticamente nenhuma espécie
intelectual em oposição à vulgaridade da de poder propriamente universitário. En-
indústria cultural. tendo por isso um poder sobre as instâncias
Criador ou disseminador de conceitos de reprodução do corpo docente e mesmo
como “campo” ou “habitus”, Pierre Bour- científico. Os “heréticos consagrados”,
dieu vê os homens em luta permanente pelo como eu os designava, são mais ou menos
prestígio e pela ascensão social. Segundo o excluídos, apesar do prestígio, dessa forma
crítico literário Jean-Marc Biasi, o homem, de poder. E, sem dúvida, isso é uma pena
para Bourdieu, não é o lobo do homem, para a qualidade da vida científica e para os
mas o cão. Em meio a tanta controvérsia, o jovens pesquisadores qualificados que nela
pensador avança e não sem razões. Ele sabe querem se engajar.
e denuncia que um escritor se define, hoje, Falar de poder sobre as instâncias de
mais pelo seu lugar na mídia do que pelo difusão, e em particular na mídia, pertencer
valor da sua obra. Nada que possa surpre- ao Collège de France, pelo prestígio que isso
ender os brasileiros. Glória efêmera, talvez, confere, pode dar certa autoridade junto a
mas não menos rentável. O campo cultural editores e jornalistas. Acho, por exemplo,
aparece como uma espécie de farsa onde que meu amigo Michel Foucault tinha um
cada ator representa o papel que gostaria “poder” desse tipo. Mas esse poder baseado
de encarnar na realidade. O consumidor, no prestígio é pouca coisa quando compara-
porém, já não consegue separar a ficção do do ao que têm certos intelectuais da mídia,
real e aceita a encenação como verdade. ligados por laços orgânicos aos meios da
Nesta entrevista, Pierre Bourdieu re- imprensa e da edição. As Edições Grasset,
toma o percurso do combatente: revisita na França, por exemplo, através dos livros
e desmantela as estratégias de poder que publicados ou suscitados e dos órgãos de
sempre se apresentam como naturais e ne- imprensa controlados por vias diversas,
cessárias. Nada do que é humano lhe é na- L’Evénement du jeudi, Le Point, Le Magazine
tural. Poupado no já célebre “caso Sokal”, littéraire, podem, como se vê atualmente nas
Bourdieu faz o balanço do pensamento campanhas difamatórias sustentadas contra
francês neste final de milênio. Itinerário de mim, tentar fazer triunfar os interesses dos
um serial-killer das idéias. intelectuais da mídia, cujo papel analisei em
Revista FAMECOS: O senhor é con- Sobre a televisão.
siderado como o “intelectual mais poderoso da Os detentores desse poder caracterís-
França”, conforme a recente manchete de capa tico da mídia, assim como os detentores do
da revista L’Evénement du jeudi, e, segundo poder propriamente universitário, podem
outros, como o sociólogo mais importante do não ter nenhum pouco disso que se cha-
mundo. Numa época em que para muitos as ci- ma ordinariamente de prestígio, isso que
ências sociais estão em crise, o caráter científico aparece quando se fala do “sociólogo mais
da sociologia parece-lhe inegável. Pode-se real- importante do mundo”, ou seja, o sociólogo
mente demonstrar essa cientificidade? que mais interessa aos sociólogos em todo
Pierre Bourdieu: Quero deter-me, o mundo. As duas espécies de poder que
antes de tudo, no conteúdo da questão. evoco, universitário ou de mídia, caracteri-
Que significa “intelectual mais poderoso zam-se primeiramente por ser nacionais, isto

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é, reduzidos aos limites da nação, francesa, RF: Professor no Collège de France e in-
no caso, e da língua nacional. Por isso, para telectual reconhecido internacionalmente, todos
medir o “prestígio” ou, mais precisamente, os tipos de conformismo continuam a ser os seus
o capital simbólico dos pesquisadores es- objetos de ataque. O senhor seria, como querem
tudados no Homo academicus, considerei as alguns dos seus detratores, um novo Sartre?
traduções em língua estrangeira, o número Bourdieu: Não tenho nem a preten-
de menções no Citation Index e em outros são nem o desejo de encarnar a figura do
índices de reconhecimento internacional. intelectual total realizada por Sartre. Dito
Desse ponto de vista, os meus “heréticos isso, penso que a minha singularidade no
consagrados” distinguiam-se com clareza campo intelectual francês, e a fortiori mun-
dos universitária ou midiaticamente podero- dial, onde essa figura, apesar de algumas
sos. exceções, entre as quais Chomsky, nunca
Posso agora voltar à questão da cien- teve alta cotação, por razões que se pode
tificidade das ciências sociais e, particu- compreender historicamente, reside na mi-
larmente, da sociologia. Devo salientar, nha vontade de defender a função histórica
antes de tudo, que a sociologia tem o triste do intelectual. Tal qual ela foi inventada na
privilégio de ser a única disciplina para França com Émile Zola e o caso Dreyfus e
a qual essa pergunta nunca pára de ser perpetuada desde Peter Jülich então até Sartre e a luta

posta, quando, em dos intelectuais con-


realidade, ela nada tra a tortura na Ar-
tem a invejar, bem ao gélia. Ou seja, a idéia
contrário, das outras de que o intelectual
ciências sociais; nem se define como aque-
quanto aos métodos, le que, apoiado num
modelização, uso capital de reconheci-
da estatística, técni- mento e de compe-
cas de coleta de da- tência, adquirido no
dos, nem quanto ao campo literário ou
conceitos e teorias, filosófico, como Zola,
especialmente a et- Gide ou Sartre, ou
nologia e a história. no campo científico,
A comparação com como Chomsky, hoje,
a economia exigiria ou baseado nos valo-
uma análise mais complexa. Penso, de fato, res correntes nesses universos, como a ver-
que a sociologia é uma ciência cumulativa dade, intervém de forma pontual no campo
e nunca tive nenhuma pretensão à origi- político, sem se converter em político.
nalidade absoluta reivindicada, a meu ver Essa definição de intelectual nada tem
de maneira bastante ingênua, por certos de anódino e, entre todas as boas razões
filósofos contemporâneos, principalmente que os intelectuais da mídia, isto é, os “in-
os que são classificados com freqüência na telectuais” feitos por e para a mídia, têm
categoria dos “pós-modernos”. Sempre ten- para me detestar, a mais evidente é, sem
tei integrar, sem dúvida ao custo de gran- dúvida, a minha obstinação em lembrá-los
des esforços, as aquisições de tendências disso. Sartre não acumulou o seu capital
tradicionalmente consideradas como anta- simbólico assinando petições, conduzindo
gônicas; além disso, a sociologia possui um manifestações ou vendendo o Libération na
instrumental teórico ao mesmo tempo mais rua, menos ainda aparecendo na televisão,
complexo, mais unificado e mais ajustado mas escrevendo romances, peças de teatro
ao real do que o das demais ciências sociais, e obras filosóficas. Não é por uma forma
inclusive a economia. qualquer de conservadorismo aristocrático
que acho necessário defender a antiga de-

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finição de intelectual. A competência espe- intelectual, mas também sob o efeito do
cífica e o capital simbólico adquiridos num desencantamento ligado à melhoria das
campo autônomo representam a condição condições de existência das profissões inte-
de autonomia dos intelectuais em relação aos lectuais — com os tours de conferências e os
poderes, especialmente políticos. Trata-se rendosos cursos nos Estados Unidos, mais
da capacidade deles de resistir ao confor- a colaboração regular com jornais ou heb-
mismo e a todas as formas de dependência domadários — ou à queda do movimento
e de servilismo, como as do comentarista, “comunista” internacional e nacional, os
sob retribuição, da vida política, ou do ex- intelectuais, pouco a pouco, renderam-se à
pert disposto a justificar qualquer política, visão neoliberal. Com freqüência, de ma-
ou a do animador frívolo, tipicamente fran- neira tão mais radical e total quanto maior
cês, que, sob a cobertura da leveza, da ele- era a adesão à mitologia “comunista”. Entre
gância e da liberdade transgressora, ratifica os fatores que determinaram essa conver-
ou aceita a ordem do mundo como ela é. são coletiva de boa parte dos intelectuais
RF: Com o caso Sokal se anunciou por franceses, embora a maioria dos países eu-
toda parte a decadência do pensamento francês ropeus tenha sofrido evolução análoga, não
e de certas imposturas atribuídas a ele. É o pen- se pode esquecer a ação deliberada e orga-
samento francês que está em crise ou certa idéia nizada de um certo número de indivíduos
da vida intelectual e do papel dos maîtres à e de instituições, think tanks organizados e
penser? financiados pelas grandes fundações ame-
Bourdieu: Não sou um incondicio- ricanas, revistas, colóquios, seminários, etc.
nal do pensamento francês, sobretudo nos O livrinho de Keith Dixon, Os Evangelistas
aspectos paródicos que Sokal e Bricmont, do mercado, que vamos publicar na coleção
com razão, denunciaram; os quais desabro- “Razões de agir”, descreve bem esse pro-
charam em certas formas de cultural studies. cesso no caso da Inglaterra. Mas tivemos
Dito isso, para além das imposturas e das o equivalente disso na França com o Con-
aproximações pretensiosas do falso radica- gresso para a liberdade da cultura, com a
lismo, que alguns franceses, como Jacques revista Preuves e com Raymond Aron. Seria
Bouveresse, já tinham submetido, desde necessário realizar uma pesquisa semelhan-
muito tempo, à crítica, existem também na te quanto à América Latina e, em especial,
filosofia francesa dos anos 70 e especial- ao Brasil. Em geral, seria preciso descrever
mente em Gilles Deleuze e Michel Foucault, sociologicamente as vias, com freqüência
inovações teóricas e conquistas intelectuais tortuosas e dissimuladas, tomadas pelo
de primeira grandeza, ligadas, sem dúvida, imperialismo propriamente cultural. Apre-
à preocupação de desempenhar o papel sentei, com Loïc Wacquant, um primeiro
de intelectual à antiga. Essas inovações e esboço de tal análise num artigo intitulado
essas conquistas, condenadas pelos peque- “Sobre as astúcias da razão imperialista”,
nos ensaístas conservadores sob o nome de publicado na edição de março de 1998 de
“pensamento 68”, merecem, assim como Actes de la recherche en sciences sociales.
o espírito de subversão que lhes serve de RF: Num dos seus últimos livros, Contre-
princípio, ser defendidas contra o retorno à feux, o senhor pretende, conforme o subtítulo da
falsa neutralidade ética do expert ou do scho- obra, apresentar uma análise capaz de “servir à
lar, simples máscara da submissão à ordem resistência contra a invasão neoliberal”. Alguns
estabelecida. dos seus críticos, entre os quais Olivier Mongin
RF: Os intelectuais traíram novamente e Jeannine Verdoux-Leroux, acusam-no de po-
a vocação crítica que deve caracterizá-los ao pulismo e de demagogia. Qual a sua aposta: a
aceitar como verdade os cânticos da ideologia construção de uma sociedade comunista ou um
neoliberal? novo investimento no Welfare state?
Bourdieu: Creio que, por preguiça Bourdieu: Acho que o senhor leu

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demais as “críticas” que me são dirigidas à demagogia populista. O final dessa inter-
de todos os lados, as quais não se tornam venção é consagrado a um alerta contra a
mais verdadeiras pelo simples fato de ser tentação do populismo e a uma exortação
incansavelmente repetidas pelos intelectu- aos intelectuais para que protejam a auto-
ais jornalistas e pelos jornalistas intelectuais nomia necessária ao cumprimento da fun-
que passam mais tempo a ler uns aos outros ção específica de analistas engajados.
do que a ler os autores dos quais devem fa- RF: Crítico do marxismo simplista, que
lar. Marxismo, leninismo, estruturo-marxis- reduz o simbólico ao econômico, o senhor não
mo, quanto ao aspecto teórico, são algumas poupa os profissionais da doxa de todos os gêne-
dessas tantas “correntes de pensamento” ros. Como ser intelectual crítico e engajado, na
das quais nunca parei de me dissociar, oral- atualidade, sem cair na demagogia ou na nostal-
mente ou por escrito, em especial no tempo gia do paraíso proletário?
em que delas se reclamavam muitos dos Bourdieu: Nunca experimentei a
que hoje me colam etiquetas. O mesmo va- nostalgia do paraíso proletário na terra nem
le para populismo, irrealismo, utopismo, aderi à utopia da sociedade comunista e
quanto ao aspecto político. não vou começar agora, depois de tantos
Eu poderia retomar cada uma dessas esforços e de trabalho para descobrir as ru-
acusações — pois se está em plena lógica des realidades Cláudiado mundo social. Não se é
Rodrigues

do processo, mesmo obrigado a escolher


se cada um se justi- entre o utopismo ir-
fica com a necessi- responsável e o fa-
dade de processar o talismo sociologista.
suposto procurador Muito menos entre a
— e mostrar que já expectativa do futu-
disse e escrevi expli- ro radioso da socie-
citamente, inúmeras dade comunista e a
vezes, o contrário. É defesa das conquista
o caso, por exemplo, do Welfare state; tam-
da acusação de po- pouco entre o fata-
pulismo, repetida à lismo marxista e o
exaustão por consti- fatalismo neoliberal;
tuir, devido às suas nem entre a defesa
conotações encober- de fato arcaica do Es-
tas, o estigma mais infamante — esquerda tado nacional e o sonho, realmente fantásti-
vermelha e esquerda parda, Partido comu- co, do Estado mundial. Todas essas alterna-
nista e Front National, Lênin e Céline; em tivas, nas quais se tenta aprisionar qualquer
suma: racismo. Deixo de lado, não podendo projeto nuançado e construtivo, não passam
supor que jornalistas e ensaístas tenham de maneiras de justificar como inevitável a
lido as análises críticas do populismo que adesão ao statu quo neoliberal, o que se po-
desenvolvi longamente nas Meditações pas- deria chamar de laisser-faire do laisser-faire.
calianas. Ou então bastaria retomar o texto, RF: O senhor denuncia de forma arrasa-
transcrito em Contre-feux, do discurso que dora o trabalho da mídia para impor a inexora-
pronunciei na Gare de Lyon, em Paris, em bilidade da globalização e sonha com um Estado
dezembro de 1995, cercado de represen- mundial capaz de enfrentar o universo do mer-
tantes de todos os movimentos sociais e de cado. Como realizar essa utopia?
todas as associações militantes, na presença Bourdieu: Em verdade, apesar do
de uma massa tipicamente “popular” de que dizem os fatalistas da liberdade, existe
grevistas, ferroviários ou outros, ou seja, lugar para um utopismo razoável, prote-
numa situação particularmente favorável gido pelo conhecimento da coerção e das
contradições sociais fornecido pelas ciências

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sociais. Teria de repetir aqui tudo o que pela segregação. Creio, ao contrário, que
disse a respeito da economia do bem-estar a prática do esporte, em particular a do
e, mais precisamente, do que poderia ser futebol, nos pequenos clubes amadores,
um Estado europeu e do que ele deveria preenchia, e continua a fazê-lo, mas cada
fazer para contrapor-se à lógica infernal dos vez com mais dificuldade, essa função de
mercados financeiros e à tirania dos bancos integração, especialmente pela oferta de
e dos banqueiros que favorecem a criação, uma via de ascensão social de substituição
tanto pelo laisser-faire quanto por suas in- aos que, na falta de capital cultural herda-
tervenções, das pressões do mercado que do, não estão capacitados para tomar a via
pretendem nos impor sob alegação de que real proposta pela escola. Mas, conforme
se impõem a eles. Observo, de passagem, mostrei num trabalho recente, a submissão
que os mesmos que, há alguns meses, de- crescente do esporte à lógica do comércio,
nunciavam com violência os meus sinais de através da comercialização do espetáculo
alerta contra o neoliberalismo e as minhas esportivo televisionado, tende a cortar a liga-
incitações à criação de um Estado europeu, ção orgânica entre o esporte de alto nível e
converteram-se repentinamente, diante do a prática esportiva de base; ou, de maneira
desabamento da economia russa e das ame- mais precisa, no caso do futebol, entre os
aças representadas por isso à ordem neoli- grandes clubes profissionais, cada vez mais
beral, às necessidades de regulação estatal. transformados em empresas capitalistas,
RF: A mão esquerda do Estado, de acordo por vezes cotadas em bolsa, e os pequenos
com a sua expressão, pode realmente enfrentar clubes amadores, direcionados para objeti-
a mão direita sem recorrer a uma perspectiva vos pedagógicos e sustentados em grande
revolucionária considerada ultrapassada mesmo parte por uma devoção militante. Assim, o
por muitos dos antigos partidos comunistas? verdadeiro percurso que poderia conduzir
Bourdieu: O utopismo razoável deve o garoto das favelas ou das banlieues, desde
alimentar-se do conhecimento das tendên- a pequena equipe local ou da escolinha de
cias para se contrapor a elas. Por exemplo, futebol do clube grande, até a equipe nacio-
as que conduzem as sociedades mais avan- nal e a carreira internacional, está cada vez
çadas do Estado social ao Estado penal mais ameaçado, tanto na realidade quanto
nada têm de fatalidade ou de inexorabilida- nas representações.
de; inscrevem-se numa política econômica Dito isso, o esporte é, junto com a
baseada na ignorância ativa dos custos escola, um dos terrenos onde as tentações
econômicos e sociais das “economias” — no racistas e xenófobas encorajadas pelo Front
sentido da não-despesa — econômicas. Em National podem ser combatidas de maneira
resumo, o dinheiro que não é destinado eficaz. Seria preciso falar também dos me-
para as escolas ou creches, será, cedo ou canismos que favorecem o racismo, e o se-
tarde, para as prisões. xismo, no mundo do trabalho, e dos meios
RF: Intelectual, pesquisador e militante, o eficazes para combatê-los.
senhor combate em favor dos sem-documentos e RF: Com Sobre a televisão, o senhor
de todos os excluídos da sociedade francesa. Com desmantelou a lógica da mídia baseada na mer-
a conquista da Copa do Mundo, falou-se muito cadoria, na circularidade dos temas, nos convi-
numa vitória da França miscigenada. Estaria o dados intercambiáveis, na conivência, na troca
esporte ajudando a enfrentar a atração pela ex- de favores no domínio literário. O mundo cul-
trema direita encarnada no Front National de tural é uma farsa onde os primeiros enganados
Le Pen? são os consumidores, mais ou menos intelectua-
Bourdieu: Não estou seguro que lizados, de obras de alguns autores de referência
se possa conceder ao esporte espetáculo criados pelo marketing das editoras em associa-
a capacidade de integrar, mesmo sim- ção com a imprensa?
bolicamente, uma sociedade ameaçada Bourdieu: A análise crítica do papel

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da televisão é um elemento capital da luta invasão da televisão e da visão da mídia.
contra a imposição da visão dominante do De fato, vê-se cada vez mais o desenvol-
mundo social e do seu devir. O mais impor- vimento de uma produção “média”, no
tante consiste na influência que a televisão duplo sentido de intermediário e também
exerce sobre a totalidade do jornalismo e, de medíocre, entre a má ciência e o mau
através dele, sobre o conjunto da produção jornalismo, e não, como a boa vulgarização,
cultural. A lógica do comércio, simboliza- entre os sábios e os que desejam aprender.
da pelos índices de audiência, do sucesso Os editores, guiados pelo interesse exclu-
comercial, da venda e do marketing, como sivo do sucesso comercial, associam-se a
meio específico para atingir esses fins pu- autores “da mídia”, os detentores de uma
ramente temporais, impôs-se aos poucos; notoriedade adquirida previamente na
em certos casos, através das editoras e dos mídia: jornalistas, ensaístas, painelistas de
produtores estreitamente associados à im- televisão, etc. Isso para cobrir os mostrado-
prensa, como os filósofos e os escritores da res das livrarias de obras que fazem circular
mídia aos quais me referia; mas também os “preconceitos” e os lugares-comuns da
através de outras vias. Essa lógica se impôs doxa semi-erudita. Em particular, o peque-
em primeiro lugar ao campo filosófico, com no lote de falsos problemas partilhados
os “novos filósofos”, e ao campo literário, pelo universo político-jornalístico — Estado
com os grandes best-sellers internacionais e ou mercado, eutanásia ou obsessão terapêu-
o que Pascale Casanova chamou de world tica — que servem também de pretexto às
fiction, ou seja, em especial os romances aca- dissertações dos filósofos de televisão.
dêmicos à David Lodge ou Umberto Eco; O chamado “pensamento único” é me-
mas ela atingiu também o campo jurídico, nos uma temática do que uma problemática
com os processos sensacionalistas arbitra- comum. A dificuldade para estabelecer a
dos pela mídia, e no próprio campo cientí- comunicação com os jornalistas concerne,
fico, com a intrusão da notoriedade jorna- em essência, para o pesquisador, à neces-
lística na avaliação dos cientistas e das suas sidade deste de não se perder na conversa
obras. Para o aprofundamento da questão, fiada, de poder furar a proteção dos luga-
só posso remeter ao meu livro Sobre a televi- res-comuns, os tópicos e problemas genera-
são, no qual descrevo todos esses processos, lizantes propostos, com toda inocência, pelo
e sobretudo ao número especial de Actes em campo jornalístico. Dito isso, tais processos
que diversos pesquisadores, entre os quais conduzem à manutenção da ameaça cres-
Patrick Champagne e Rémi Lenoir, analisa- cente que pesa sobre a autonomia do pen-
ram o efeito da influência ou da dominação samento — científico, artístico ou qualquer
da televisão em diferentes campos. outro. Quando não se tem a possibilidade
RF: Em As Regras da arte, o senhor de censurar pura e simplesmente o pensa-
mostrou que não basta a obra para impor um mento “autêntico”, em nome das exigências
autor; é preciso também um contexto favorável. da clareza e da simplicidade, denunciam-se,
Não existe sucesso sem um capital social prévio. em função do caráter inutilmente enfado-
Atualmente as editoras preferem publicar obras nho, os textos e os autores que respeitam as
medíocres de personalidades da mídia, deten- exigências de suas disciplinas. Esse é ape-
toras de capital seguro, pois a imprensa não nas um dos exemplos desses abusos de po-
vacilará em promover os seus representantes. O der simbólicos que ameaçam a autonomia
imaginário da mídia está anexando a literatura e indispensável à realização da lógica especí-
as ciências humanas em nome da “clareza”, da fica dos diferentes campos, como a importa-
suposta vontade do consumidor e da rejeição à ção peremptória de critérios de julgamento
“chatice”? não pertinentes.
Bourdieu: Tudo isso corresponde a RF: O senhor afirma que os intelectuais
um dos efeitos, num campo particular, da devem lutar contra o “bombardeio” da mídia
que fornece, a cada dia, em nome do diverti-

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mento, uma visão reducionista das realidades uma loja da moda chamada Habitus...
sociais, como a fábula da “princesa do povo”. De RF: Seus “livrinhos”, rejeitados ou com-
que maneira os intelectuais, excluídos da mídia, batidos pela mídia, vendem-se aos milhares de
podem combater a lógica que esta impõe? exemplar. No último, o senhor se volta para A
Bourdieu: Trata-se, efetivamente, Dominação masculina e mostra-se grande
de uma questão difícil. Creio, ao contrário admirador de Virginia Woolf. A arte é mais
do sugerido pelos jornalistas que vêem poderosa do que a sociologia para dar conta do
uma contradição no fato de se ir à televisão vivido?
quando dela se é crítico, que é possível, Bourdieu: Acontece, de fato, de
desejável e necessário recorrer à mídia, em os escritores captarem, por suas próprias
certas ocasiões, com discernimento, para vias, coisas que escapam mesmo à análise
combater os efeitos funestos da própria sociológica mais fina. Tentei demonstrar
mídia. Sob a condição, claro, de se estar em isso nos casos de Flaubert, de Faulkner ou
medida de garantir à mensagem um mí- mesmo de Mallarmé, o qual viu muito bem
nimo de eficácia; portanto de controlar, ao o segredo mais bem guardado do campo li-
menos parcialmente, o processo de difusão terário, ao mesmo tempo que o protegeu da
jornalística, o que pressupõe não ter como divulgação profanadora, “ímpia”, através
único objetivo “aparecer na televisão”, ser do esoterismo da expressão. O mesmo vale
visto e valorizar-se. É preciso ter bastante para muitos outros. Seria preciso analisar a
poder para impor condições. Estas duas úl- diferença muito profunda que separa a ma-
timas coisas estão em parte ligadas. Foi por nifestação literária da descoberta científica.
isso que Kundera, em conseqüência de dife- RF: Em A Dominação masculina, o
rentes desventuras com jornalistas, decidiu senhor diz que quase o mesmo comportamento
não conceder mais entrevistas, ou somente — sorrir, baixar os olhos, aceitar as interrupções
por escrito e a partir de questões realmente — é exigido das mulheres cabilas e das ameri-
pertinentes para ele. Mas o que se admite canas ou européias. O feminismo não mudou
ao escritor, em nome do direito à forma, di- realmente o Ocidente nos últimos 30 ou 40 anos
ficilmente se concederá ao historiador ou ao como pensam muitos intelectuais, inclusive a
sociólogo, em relação aos quais cada um se historiadora Michelle Perrot?
sente no direito de copidescá-los de manei- Bourdieu: Por que simplificar a esse
ra mais ou menos livre. ponto o que eu disse? As coisas, evidente-
RF: O estudo da economia das trocas mente, mudaram, sob o efeito de diferentes
simbólicas é uma das suas marcas. Com A Dis- fatores, dentre os quais o mais importante
tinção, o senhor desmascarou todo um universo certamente não é, sem dúvida, o feminismo,
entregue às ilusões da objetividade do gosto e às mas antes certas contradições do sistema
ideologias do universalismo útil aos esquemas escolar — especialmente nas suas relações
de dominação social. Não lhe parece que certas com o mundo do trabalho — do qual o
“vanguardas” e intelectuais da moda utilizam próprio feminismo é, com certeza, por um
a sua obra para simular uma consciência e afir- lado, a expressão. Certas coisas realmente
mar-se ainda mais pela apropriação da “cultura fundamentais, nas estruturas sociais e nas
necessária” para se impor socialmente? Em re- estruturas cognitivas, perpetuaram-se, sob
sumo: a leitura de Pierre Bourdieu como signo uma forma idêntica ou transformada. Por
de distinção social? exemplo, a oposição entre o duro e o mole,
Bourdieu: Não há, sem dúvida, o seco e o úmido, central na cosmologia me-
quase nada que não possa funcionar como diterrânea, encontra-se no seio do mundo
signo de distinção social, voluntária ou universitário ou mesmo científico sob a for-
involuntariamente. Não vejo por que meu ma da dicotomia entre as disciplinas literá-
livro, A Distinção, seria uma exceção. Existe rias e as científicas; estas, consideradas hard,
numa cidade alemã, não sei mais em qual, muito em especial a matemática, sendo

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tidas por “ressecantes” e pouco adequadas mo”, neo ou paleo, para legitimar-se. Apre-
para as mulheres, fadadas ao soft. Muitas sentei, parece-me, os princípios de uma
coisas mudaram mas, sem dúvida, não tan- análise da sedução capaz de ser, ao mesmo
to quando se possa crer tomando por base tempo, realmente compreensiva e objetiva
indicativos superficiais, não necessariamen- na descrição da injunção em forma de dou-
te relativos aos pontos mais importantes. ble bind continuamente dirigida à mulher:
Além disso, as diferenças deslocaram-se e seja aberta e fechada, ofereça-se e recuse-
a distância tende a mantê-las como numa se, seja acessível e inacessível, prometida e
corrida de obstáculos. Tanto é assim que proibida.
os trabalhos de historiadores como Michel- RF: As mulheres continuam, conforme a
le Perrot, por quem tenho a maior estima, sua análise, a ser dominadas em casa e no tra-
sobre a história das mulheres, revelam a balho. A virilidade dos homens persiste como o
questão das condições históricas da des-his- signo de uma superioridade sempre em busca de
torização da diferença, através da história reprodução. A descoberta do Viagra representa
— no sentido de produto da história e não um convite aos prazeres do sexo ou um novo
da natureza — entre os gêneros. instrumento de confirmação da potência, ainda
RF: Mais uma vez, no caso, o senhor mos- que artificial, masculina?
tra a lógica da distinção, com a recusa da vulga- Bourdieu: Em princípio, baseado no
ridade das microssaias ou dos decotes demasiado conhecimento que tenho do uso de afro-
generosos, como uma forma de impor um mo- disíacos nas sociedades masculinas, tendo
delo de comportamento. No seu entender, a saia a pensar que o Viagra poderia ter como
preenche uma função semelhante à da batina dos função, sobretudo, suspender a ansiedade
padres. O corpo das mulheres continua, apesar ligada à necessidade de afirmar a qualquer
do discurso da liberação, a ser adestrado para preço a virilidade e através disso a superio-
aceitar a dominação masculina? ridade masculina. Mas é, sem dúvida, mui-
Bourdieu: O que denominamos de to mais complicado do que isso e somente
“feminilidade” é o produto de um adestra- uma análise estatística permitiria descrever,
mento permanente do corpo e das inces- em toda a sua complexidade e diversidade,■
santes chamadas à ordem, entre os quais o os usos sociais desse gadget fisiológico.
mais importante, por ser inerte e reificado, RF: Adversário da Europa do capital, o
é a vestimenta. Seria preciso construir ou senhor pensa em ser candidato nas próximas
ler a história da roupa feminina, desde as eleições européias? Por qual partido?
formas caricaturais mais complicadas, a Bourdieu — Se o senhor leu e enten-
ponto de impedirem ou tornar difíceis os deu o que nunca parei de dizer e de escre-
deslocamentos elementares, até as mais ver a respeito da necessária autonomia dos
simples, como uma história do adestramen- intelectuais, deve saber que essa questão
to do corpo feminino, tratando-a como um não faz sentido.
capítulo da história da educação. RF: Nada lhe escapa: educação, mídia, me-
RF: Ao citar Lucien Bianco, “as armas do canismos de distinção social, a miséria mundial,
fraco sempre são armas fracas”, o senhor refuta as elites, as relações entre homens e mulheres,
qualquer idéia de dominação do homem pela mu- o mito do amor romântico, as regras da arte. O
lher através da sedução ou de qualquer outro ar- intelectual deve caracterizar-se pela rejeição às
tifício “feminino”. A originalidade do seu novo zonas de sombra e pela busca, contra tudo e to-
trabalho encontra-se no combate a esse tipo de dos, das Luzes?
noção cada vez mais em voga? Bourdieu: Sim, creio nas luzes, mas
Bourdieu: As astúcias da razão mas- a nova Aufklärung, que tem a minha admi-
culina são inumeráveis e bem que eu gos- ração, só pode realmente esclarecer se ilu-
taria de ter analisado todas as razões e as mina a si mesma. Quero dizer com isso que
racionalizações de que se arma o “machis- a razão argumentativa, capaz de nada dei-

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 10 • junho 1999 • semestral 15


xar na sombra, deve ser também capaz de
voltar para si mesma a sua lucidez crítica e
de compreender que um certo racionalismo
pode, por vezes, ser fator de obscurantismo

Nota

Esta entrevista foi publicada em parte no Caderno Mais da


Folha de São Paulo de 07/02/1999

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