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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

RAFAEL ESTRELA CANTO

A CAMINHO DO BEM SUPREMO

RIO DE JANEIRO

2015
Rafael Estrela Canto

A CAMINHO DO BEM SUPREMO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF), Instituto


de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Filipe Ceppas de Carvalho e Faria

Rio de Janeiro
2015
Rafael Estrela Canto

A CAMINHO DO BEM SUPREMO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF), Instituto


de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Banca Examinadora:

____________________________________________________________
Prof. Dr. Filipe Ceppas de Carvalho e Faria (Orientador)
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGF/
UFRJ

____________________________________________________________
Prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGF/
UFRJ

___________________________________________________________
Prof. Dr. Fernando José Fagundes Ribeiro
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal Fluminense – PGFI/ UFF

____________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Celso Pinho
Faculdade de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ

____________________________________________________________
Prof. Dr. Juliana Merçon
Instituto de Investigações em Educação da Universidade Veracruzana no México – U.V.
Para os meus pais, Luiza Laura e José Augusto, com amor.
AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF/UFRJ)


por ter me aceito como estudante de doutorado. Da mesma forma, agradeço à CAPES pela bolsa
sem a qual tudo teria sido muito mais difícil. Agradeço também especialmente ao Prof. Filipe
Ceppas, por ter me acolhido e me motivado mesmo na reta final, assim como a todos os demais
professores que participaram da minha formação e aos que aceitaram participar de minha banca
examinadora. São muitos também os familiares e amigos que participaram de maneira
importante de minha vida ao longo desses quatro anos, mas, para não cometer nenhuma injustiça,
não citarei nenhum nome em específico. A todos agradeço pelas mais diversas formas de apoio.
RESUMO

A tese consiste em seis capítulos que buscam, através de reflexões diversas, alcançar um
entendimento do aspecto prático da filosofia de Spinoza. As reflexões abrangem alguns pontos
de sua filosofia, e têm como critério de escolha a possibilidade de se perceber através deles
conexões entre o pensamento filosófico e a vida prática. Os dois primeiros capítulos abrangem
questões mais formais da obra, respectivamente, o projeto e o método. O terceiro e o quarto
capítulos têm como tema conceitos que consideramos chaves na nossa investigação: o desejo e a
imaginação. O quinto capítulo contém excursões sobre a linguagem, o seu papel e importância
no pensamento de Spinoza. Todos eles buscam, por diferentes caminhos, tratar do tema da
função prática da filosofia, como caminho para a realização da liberdade humana. No sexto
capítulo, por fim, aproximamos a filosofia de Spinoza à filosofia de Epicuro, mediante a noção
de filosofia como maneira de viver, desenvolvida por Pierre Hadot, para pensar a própria
filosofia de Spinoza segundo esta noção.

Palavras-chave: Spinoza; filosofia; desejo; imaginação; bem supremo.


ABSTRACT

The thesis consists of five chapters that seek, through diverse reflections, to reach an
understanding of the practical aspect of Spinoza’s philosophy. The reflections encompass some
points of his philosophy, and have as criteria of choice the possibility of finding through them
connections between philosophical thought and practical life. The first two chapters encompass
more formal questions of Spinoza’s work: the project and the method, respectively. The third
and the fourth chapters have as theme concepts that we consider key to our investigation: the
desire and the imagination. The fifth chapter consists of excursions about language, its role and
importance in Spinoza’s thought. All of them deal with the theme of the practical use of
philosophy, as a path to the freeing of man. At last, on the sixth chapter we approach Spinoza’s
philosophy to epicurean philosophy, linked by the notion of philosophy as a way of living,
developed by Pierre Hadot, in order to think the own philosophy of Spinoza as a way of living.

Keywords: Spinoza; philosophy; desire; imagination; supreme good.


SUMÁRIO

Introdução............................................................................................................ 11

Capítulo 1: O projeto.......................................................................................... 15
1.1: Introdução................................................................................................. 15
1.2: Método histórico e método geométrico................................................... 16
1.3: O caráter racionalista do projeto............................................................ 19
1.4: O método como caminho.......................................................................... 21
1.5: A ideia......................................................................................................... 26

Capítulo 2: Modelo de pensamento humano e pensamento matemático....... 38


2.1: O pensar matemático............................................................................... 38
2.2: A potência de agir da mente.................................................................... 43
2.3: O método no TTP..................................................................................... 49
2.4: Os preconceitos da razão e o modelo de natureza humana.................. 56

Capítulo 3: O desejo............................................................................................. 69

Capítulo 4: A imaginação.................................................................................... 84
4.1: Reter, explicar, imaginar.......................................................................... 84
4.2: Ser de razão............................................................................................... 85
4.3: Reter........................................................................................................... 91
4.4: Explicar...................................................................................................... 97
4.5: Imaginar..................................................................................................... 102

Capítulo 5: A linguagem...................................................................................... 110


5.1: O problema da linguagem............................................................................ 110
5.2: Uma teoria da interpretação........................................................................ 112
5.3: A natureza da palavra.................................................................................. 117
5.4: O significado.................................................................................................. 126
5.5: As palavras e a filosofia................................................................................ 131

Capítulo 6: Terapêutica....................................................................................... 134


6.1: Os remédios da alma..................................................................................... 134
6.2: A filosofia como maneira de viver............................................................... 140

Conclusão.............................................................................................................. 152

Bibliografia........................................................................................................... 156
Nota:

As referências das obras de Spinoza serão feitas utilizando-se das abreviaturas listadas
abaixo, seguidas da página do livro do qual foram retiradas. Para a Ética, utilizamos como
padrão de citação a edição de 2001 da Autêntica Editora, versão unilíngue. Para o Tratado
Teológico-Político, a edição da Ed. Martins Fontes, o mesmo para o Tratado Político. Para O
Breve Tratado, Tratado da correção do Intelecto, Princípios de Filosofia Cartesiana,
Pensamentos Metafísicos e Correspondência, utilizamos as traduções da edição das obras
completas de Spinoza da editora Perspectiva. Quanto à grafia do nome do filósofo, optamos por
Spinoza, e não por Espinosa, por uma simples questão de gosto. Para os outros autores e obras
seguimos o padrão AUTOR, Ano, Página.

Abreviaturas

Kv – Breve Tratado

PPC – Princípios de Filosofia Cartesiana

PM – Pensamentos Metafísicos

TIE – Tratado da Correção do Intelecto

TTP – Tratado Teológico-Político

E – Ética

TP – Tratado Político

C – Correspondência
Introdução

Esta tese procura averiguar algumas possibilidades interpretativas da obra spinozana


com a finalidade de compreender a importância do uso da imaginação e da linguagem, desde
o projeto ou concepção de sua filosofia e do seu método – o que constitui os dois primeiros
capítulos da tese –, como temas preambulares, até o desenvolvimento de tópicos mais
complexos como o desejo e a estrutura da imaginação (respectivamente os temas dos terceiro
e quarto capítulos). O percurso continua com considerações sobre a linguagem (quinto
capítulo), em relação à qual tomamos a liberdade de desenvolver ideias que não têm como
suporte uma teoria da linguagem feita por Spinoza, pois que este não formulou nenhuma
explicitamente, mas que acreditamos mesmo assim estarem fundamentadas na letra dos seus
textos. Por fim, lidamos diretamente com a noção de filosofia em Spinoza como maneira de
viver, concepção desenvolvida pelas pesquisas sobre filosofia antiga de Pierre Hadot.
Feito este breve resumo, gostaríamos de fazer algumas considerações de caráter
introdutório sobre cada um dos capítulos em específico.
O primeiro capítulo, que se chama “O projeto”, tem como foco acentuar não o método,
mas a necessidade de um método, seu como e seu por quê, isto é, acentuar o que a filosofia de
Spinoza projeta na direção do seu desenvolvimento subsequente. Neste sentido, procuraremos
mostrar algumas razões para que se possa ler tanto a Ética quanto o Tratado Teológico-
Político como partes de um mesmo projeto, e, igualmente, que o método empregado numa e
noutra obra possam ser igualmente compreendidos a partir da unidade desse projeto. Além
disso, pretendemos mostrar que o método para Spinoza se funda no reconhecimento da ideia
verdadeira dada e que, do ponto de vista do método filosófico, deve-se seguir dela, de maneira
racional, um aumento do conhecimento da realidade das coisas segundo seus princípios.
Antes de mais nada, contudo, segundo consta no Tratado da correção do intelecto, como
gérmen da execução do método, é preciso que se seja capaz de distinguir a ideia verdadeira
daquelas que não o são, isto é, mesmo sem ainda a certeza se é de fato possível o
reconhecimento da ideia verdadeira. O capítulo aproxima-se do fim com um contraste entre o
ponto de partida da filosofia spinozana e o ponto de partida da filosofia de Descartes,
estritamente segundo o aspecto da natureza da ideia. Na esteira desta distinção, apresenta-se,
mediante uma rápida menção a Santo Agostinho, a noção de vontade que não condiz com
aquela presente na filosofia de Spinoza, pois a questão da vontade, a nosso ver, está
estreitamente vinculada à natureza da ideia. Este capítulo não explica todos esses pontos até

11
as suas razões mais fortes, mas os apresenta suficientemente para que deem caminho a uma
outra questão que precisa ser separadamente tratada a fim de que eles mesmos possam ser
melhor entendidos.
O segundo capítulo é uma reflexão sobre a importância da geometria como modelo do
pensamento. O mote do capítulo é a afirmação de Spinoza, segundo a qual a verdade ficaria
para sempre oculta, “se a matemática, que se ocupa não de fins, mas apenas das essências das
figuras e de suas propriedades, não tivesse mostrado aos homens outra norma de verdade” (E
I, Apêndice, p. 43). A norma de verdade da matemática seria, de acordo com a nossa leitura, o
entendimento das coisas pela sua causa genética. Além disso, considerando o fato de que a
finalidade do projeto filosófico spinozano seria o conhecimento da união da mente com o todo
da natureza, se o método, tal como o estudamos no capítulo 1, consiste em partir da ideia
verdadeira dada, então este deverá auxiliar no conhecimento da mente humana pela sua
essência e pelas suas propriedades, da mesma forma que as figuras geométricas não são
conhecidas senão pelas suas propriedades internas. Assim, veremos que, ao mesmo tempo que
a matemática serve de modelo para os procedimentos do intelecto, Spinoza concebe um
modelo de natureza humana que não tem por função ser a imagem imitável de um ser humano
perfeito, mas um conjunto de conhecimentos dos modos de funcionamento da mente à medida
em que são úteis para o exercício da virtude.
O capítulo seguinte toma os dois anteriores como ponto de partida para falar
diretamente da essência do homem: o desejo. Segundo Spinoza, todo ser é definido pela sua
potência, e ao mesmo tempo que cada essência é singular, diferentes seres podem
compartilhar entre as suas potências individuais propriedades comuns que servem igualmente
para explicar (ao menos ate certo ponto) sua existência. A essência dos indivíduos humanos, à
medida em que ela é conhecida pelas propriedades comuns daqueles estando eles conscientes
das suas ações, é o desejo. Spinoza afirma que “o desejo é a própria essência do homem,
enquanto esta é concebida como determinada [...] a agir de alguma maneira” (E III, def. dos
afetos 1, p. 140). Disto depreendemos que o desejo está no fundamento de todas as ações
humanas, ou seja, que ele é a causa genética de todas as ações e, portanto, apenas ele pode ser
a norma de verdade do “valor” das ações, se são estas virtudes ou vícios. Como, entretanto, o
desejo não é compreendido por Spinoza como arbitrário nem como absoluto, ele só pode ser
entendido “em virtude de uma dada afecção qualquer de si própria [essência humana]”
(idem), afecção esta que segue, assim como todas as modificações na natureza, a mesma

12
ordem originada em Deus. Se, por conseguinte, nenhuma Ética é possível sem um projeto e
um método, também não o seria sem o conhecimento adequado do fundamento das ações.
O desejo por sua vez articula-se com a imaginação, pois que ele não existe
concretamente na vida humana sem as afecções ou modificações do corpo e da mente
humanos no contato com outros seres. A imaginação é o nome genérico do conjunto das
imagens das afecções do corpo produzidas pela mente segundo a mesma ordem e conexão
com que as afecções do corpo são produzidas, isto é, de acordo com as mesmas leis naturais,
embora segundo atributos distintos. A imaginação, contudo, tal como definida por Spinoza,
não é o conhecimento dessas afecções pela sua ordem natural, mas tal como o corpo
individual de cada mente é modificado. Por esta razão, o desejo, tal como ele existe na vida
ordinária, é muito mais conhecido pelas suas imagens que pela sua ideia adequada. Assim, as
definições dos afetos (em especial as paixões) são o conhecimento destes de acordo com as
mesmas operações de produção das imagens, pois, com exceção do amor de Deus (que não é
uma paixão, mas uma ação), mesmo os afetos alegres não existem senão como afecções que,
com exceção do conhecimento por suas propriedades comuns, só podem ser conhecidos
inadequadamente. Estas operações compõem o tema do quarto capítulo.
No quinto capítulo aproximamo-nos o máximo possível da zona de contato entre a
ideia e a imagem, o intelecto e a imaginação, assim como das afecções da mente e das do
corpo: a linguagem. Não é nosso intuito escrutinar uma possível teoria da linguagem na
filosofia de Spinoza, nem sequer tentar erguer uma, é nosso problema, no entanto, examinar a
função da linguagem dentro do pensamento spinozano, levando em consideração que ele
existe para nós tal como fora escrito. Consideramos que, da mesma maneira que Spinoza
investigou a natureza das Escrituras por meio de um exame do funcionamento da linguagem
na qual ela fora escrita, podemos tirar daí algumas reflexões sobre a natureza da Ética, seja
pela maneira com que fora escrita (à moda dos geômetras), seja pela necessidade mesma de
que todo conhecimento humano, mesmo o mais elevado (terceiro gênero), precisa passar, ao
menos como a experiência comum parece indicar, pelo uso das palavras. Estas, como
veremos, ao mesmo tempo que são corpos (sons e/ou figuras), são também ideias (imagens
mentais), e não existem senão sendo ao mesmo tempo uma e outra coisa unidas pelos
conceitos que representam. Deste modo, a linguagem aparece em todos os pontos da filosofia
de Spinoza, tanto como fonte de confusão, à medida em que distrai o intelecto do conceito,
quanto fonte inauguradora das atividades humanas, isto é, como palavra dada na vida comum
em sociedade. Assim, apesar de a lei humana não ser um império dentro do império da

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natureza, ou seja, de não anular as leis naturais infinitas, mas respeitá-las, as ações humanas
não seriam compreensíveis sem que tivessem elas o seu fundamento auto-regulamentador.
Seria próprio da natureza humana pôr suas próprias leis e, além disso, pô-las em palavras.
O quinto capítulo é concluído com algumas considerações sobre a relação entre a
linguagem e a filosofia, tal como esta é elaborada e entendida por Spinoza. Acreditamos que
nestas considerações, ainda que breves, pois não pretendemos nos estender
desnecessariamente e cair na prolixidade, os temas dos capítulos anteriores encontrarão a sua
justificativa. Para que isto não passe desapercebido, consideramos adequado lembrar que,
neste trabalho, optamos por manter à vista a ideia de que a filosofia de Spinoza nos chegou
apenas pelos seus textos, de modo que mantivemos o interesse sobre como o pensamento
filosófico, que se pretende ser o conhecimento das coisas pela sua natureza, pode ser
produzido em palavras, e, mais especificamente, nas palavras de um texto.
O sexto capítulo tematiza o caráter prático da filosofia de Spinoza. Como fonte de
inspiração tivemos a noção de filosofia como maneira de viver, de Pierre Hadot. Exploramos
a relação do spinozismo com o epicurismo, à medida em que Spinoza o reconhece como
predecessor filosófico (os materialistas antigos em geral, na verdade). Desta forma, mediante
a conexão com o epicurismo pudemos, baseado no que Hadot desenvolve em especial sobre o
epicurismo, traçar as proximidades entre Spinoza e o historiador francês. Para tanto,
consideramos também aspectos e fatos da vida de Spinoza, pois, não considerando a Ética, e
toda a sua obra, fruto apenas de interesses teóricos, tentamos ver a sua obra como parte de
uma vida que, digamos, buscava ser aquilo que dizia. Filosoficamente falando, filosofar, em
suma, tanto para Spinoza como para Epicuro, foram neste capítulo vistos como a prática de
regulação dos afetos, a partir da perda do medo da morte.

14
Capítulo 1: O projeto

1.1. Introdução

Via de regra a primeira dificuldade que a Ética de Spinoza apresenta ao seu leitor é a
forma de escrita da obra. Não raro os leitores de primeira viagem surpreendem-se por
encontrar definições, seguidas de axiomas, postulados, proposições, demonstrações, escólios
etc., em suma, a estrutura dos Elementos de Euclides numa obra de filosofia. Sobre esse
sentimento cabe lembrar o que Spinoza diz sobre o espanto1, no Breve Tratado (KV3, p. 91):

Assim também se conta do camponês que estava convencido de que não havia
campos além dos seus e, tendo uma vaca desaparecido, foi obrigado a procurá-la
bem longe, tendo se espantado de que ao redor dos seus próprios campos houvesse
outros em grande quantidade. E certamente a mesma aventura acontece com muitos
filósofos.

A surpresa do camponês não advém do fato de a existência de outros campos ser algo em si
mesmo fantástico e surpreendente, mas da imaginação do camponês, que dispunha
anteriormente o mundo como todo ele consistindo no seu campo, excluindo assim a
possibilidade da existência de outros campos. O espanto, segundo Spinoza, é uma paixão que
surge quando nossas predisposições para o que são as coisas são frustradas diante da
existência de uma outra coisa que as contradiz. Ainda segundo a lógica das paixões, o
camponês pode ser afetado pelo novo campo descoberto pelo menos de duas maneiras: ou por
atração, que é “uma alegria acompanhada da ideia de uma coisa que, por acidente, é causa da
alegria” (E III, def. 8 dos afetos, p. 143), ou por aversão, que é “uma tristeza acompanhada da
ideia de uma coisa que, por acidente, é causa de tristeza” (idem, def. 9 dos afetos). Em outras
palavras: dependendo da relação de simpatia ou antipatia com qualquer outra coisa que
anteriormente o camponês tivesse, a qual, de acordo com a imaginação do camponês
guardasse alguma semelhança com essa novidade que lhe causa admiração, por associação
ele, respectivamente, ou se alegraria e, portanto, se sentiria atraído pelo campo descoberto,
ou, segundo o mesmo raciocínio, se entristeceria e sentiria aversão a ele.
Em situação semelhante à do camponês se encontra o leitor diante das primeiras
páginas da Ética. Uma certa aversão à matemática (difundida de modo considerável

1
No original holandês verwondering, correspondente do alemão Wunder e o inglês Wonder. Ou seja, entenda-se
aqui, no contexto referido, “espanto” por surpresa, admiração, deslumbramento diante do inesperado, não no
sentido de ter admiração por alguém.
15
atualmente na chamada “área de humanas”) pode ser muitas vezes a causa da aversão ao
modo como Spinoza escreveu a sua obra, e, por conseguinte, à própria obra e aos
pensamentos em geral do autor, mesmo sem ter nenhum conhecimento minimamente sólido
sobre ele. Por outro lado, um amante das matemáticas poderia se sentir fortemente atraído
pela obra, mas, ao mesmo tempo, sentir-se frustrado em não encontrar nas páginas da Ética
nem cálculos nem números, ou quaisquer outros elementos que julgasse próprios à
matemática, de modo que também recuasse à sua leitura. Em ambos os casos, a frustração
advém, respectivamente, de, no primeiro caso, se encontrar algo que, por semelhança,
previamente já era tido como causa de tristeza e, de no segundo caso, não se encontrar no
texto de Spinoza o semelhante previamente considerado como causa de alegria.
Concluímos então que, para se entrar na Ética, é preciso ter a calma de entrar em
novos campos e saber pacientemente encontrar o que ele tem a nos oferecer; em outras
palavras, é preciso serenar as paixões, a admiração, a repulsa e a atração apaixonadas, para
dar lugar a uma proximidade menos condicionada e mais livre. Como primeiro passo da
filosofia, Spinoza nos obriga a seguir os seus, acalmar os preconceitos e as paixões, as
predisposições da imaginação e o desejo, pois é assim que diz que a filosofia começa.
Nada de novo, nada de original, no entanto. Desde o início da filosofia na Grécia os
filósofos buscavam formas de superar o senso comum, as opiniões e os preconceitos, a fim de
“lerem” o mundo tal qual ele é, isto é, perceber o ser do mundo em si mesmo, em vez do
mundo segundo as características que o nossos desejos e as nossas paixões a ele atribuem.
Spinoza não quer fazer uma “nova” filosofia, apenas filosofia, e, se ele contradiz seus
antecessores filósofos nesse ou naquele aspecto, não o faz movido pela paixão vulgar de
vingar-se ou de se sobrepor a eles, mas sim por conta daquilo que foi capaz de depreender do
uso da sua razão. Entramos assim na questão do método.

1.2. Método histórico e método geométrico

Consideramos importante não confundir o método filosófico de Spinoza com a forma


expositiva euclidiana da geometria, utilizada na Ética, no sentido de que a Ética não é uma
obra de geometria. Para que isso possa ser compreendido, acreditamos que seja preciso que se
entenda como, para Spinoza, o método geométrico está ligado ao método histórico, utilizado
no Tratado Teológico-Político. Sustentamos que ambos os métodos seguem o mesmo espírito
de um mesmo projeto filosófico, o qual se desdobra na medida em que se conforma ao objeto

16
sobre o qual ele trabalha, muito embora não se possa dizer que rigorosamente sejam um
mesmo método, haja vista que as suas especificidades não podem ser ignoradas.
Se, na Ética, Spinoza tematiza diretamente a liberdade do homem enquanto partícula2
existente na Natureza, porque entendemos que este é o principal tema da obra, no TTP
Spinoza realiza a crítica da realidade concreta, portanto social e política, do mundo humano, a
fim de compreender o funcionamento dos obstáculos que impedem o desenvolvimento
humano à conquista da liberdade, tema também trabalhado na Ética, em especial na quarta
parte. Não se trata, portanto, no TTP, de fundamentar as bases da liberdade humana, na
medida em que o homem existe inserido no todo da Natureza, mas de realizar uma crítica das
práticas que servem de impedimento ao homem de encontrar aquelas bases e, por
conseguinte, de alcançar a liberdade. Ambas as obras fazem parte de um mesmo projeto
filosófico e obedecem, desta maneira, à mesma lógica e modo de proceder, apesar da suas
diferenças específicas3.
Basicamente, no TTP Spinoza critica a teologia e a religião, em especial a judaica e a
cristã, opondo de maneira clara a filosofia àquelas, identificando as primeiras a práticas de
obediência, e a segunda, à prática de liberdade, na medida em que “o objeto da filosofia é a
verdade; o da fé, como ficou abundantemente demonstrado, é apenas a obediência e a
piedade” (TTP, Cap. XIV, p. 179, grifo nosso). Fundamental a esta crítica é o seu caráter
demonstrativo, ao qual retornaremos mais tarde. Previamente, porém, gostaríamos de
mencionar algumas passagens da Crítica da filosofia de Hegel – Introdução, de Karl Marx,
onde se encontra uma clara explicação da necessidade da realização de uma tal crítica. É
sabido que Marx estudou em sua juventude o TTP com muita atenção, legando para nós
inclusive seus cadernos de estudo. Não podemos afirmar com toda a certeza, mas com
razoável probabilidade que a influência de Spinoza pode ser percebida nestas passagens da
Crítica da filosofia de Hegel:

A crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica [...] É este o fundamento da


crítica irreligiosa: o homem faz a religião, a religião não faz o homem [...] A
abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência de sua
felicidade real [...] A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para
que os homens os suportem sem fantasias ou consolo, mas para que lance fora os
grilhões e a flor viva brote. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo

2
“Com efeito, a natureza não está limitada pelas leis da razão humana [...] mas por uma infinidade de outras leis,
que respeitam à ordem eterna de toda a natureza, da qual o homem é uma partícula, e só por cuja necessidade
todos os indivíduos são determinados a existir e a operar de um certo modo” (TP, II, #8, p. 16, grifo nosso).
3  Esta é uma tese que pretendemos defender aqui, e que, de modo algum, é consenso entre os estudiosos da obra

de Spinoza.
17
que pense, atue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e
reconquistou a razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo e, assim, em volta
do seu verdadeiro sol [...] Consequentemente, a tarefa da história, depois que o
outro mundo da verdade se desvaneceu, é estabelecer a verdade deste mundo. A
tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história, é desmascarar a auto-
alienação humana nas suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada
na sua forma sagrada. A crítica do céu transforma-se deste modo em crítica da
terra, a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da
política (MARX, 2005, p. 145-146, grifo nosso).

A transformação da “crítica do céu” em “crítica da terra” se faz justamente


demonstrando que, de acordo com a razão, não se pode encontrar nada que justifique a
existência do Deus pessoal teológico, pois que este é uma antropomorfização da natureza feita
pelo homem com o intuito de estatuir e legitimar o poder de alguns homens sobre os demais,
de modo que a crítica da teologia se transforma em crítica da política, unificando assim ambas
as críticas em uma crítica teológico-política.

O homem, que na realidade fantástica do céu, onde procurara um ser sobre-humano,


encontrou apenas o seu próprio reflexo, já não será tentado a encontrar a aparência
de si mesmo – apenas o não-humano – onde procura e deve procurar a sua autêntica
realidade (ibidem, p. 146).

Na Ética, Spinoza explica que a antropomorfização de Deus ou da Natureza (pois para


ele são sinônimos) é o resultado de um único preconceito do qual todos os outros dependem:
o preconceito da finalidade da existência de todas as coisas4. Deste preconceito – originado
nada mais do que da confusão entre imaginação e intelecto, como todo preconceito –, os
homens passam a crer que “o próprio Deus dirige todas as coisas tendo em vista algum fim
preciso, pois dizem que Deus fez todas as coisas em função do homem, e fez o homem, por
sua vez, para que este lhe prestasse culto” (E I, Apêndice, p. 41). Transpõem, desta maneira, a
prática humana de pôr uma finalidade às suas ações, restrita portanto ao mundo do homem5,
ao ser que desconhece completamente em si esta prática, transformando Deus em uma espécie
de sobre-humano, cuja vontade, ao mesmo tempo que se assemelharia à humana, a
transcenderia. Como resultado desta transposição, todas as coisas existentes seriam regidas de
4
“Ora, todos os preconceitos que me proponho que aqui me proponho a expor dependem de um único, a saber,
que os homens pressupõem, em geral, que todas as coisas naturais agem, tal como eles próprios, em função de
um fim” (E I, Apêndice, p. 41). A razão de termos falado da existência e não da ação de todas as coisas, tem
como justificativa o fato de que, para Spinoza, agir é o ser essencial da potência de cada coisa existente, se
consideradas do ponto de vista da liberdade absoluta de agir da Natureza (ou de Deus) e de sua realidade
suprema, de modo que cada uma obedece irrestritamente ao princípio único e fundamental de toda a Natureza,
que é o esforço de conservação ou perseveração do seu ser.
5
Vale destacar que, apesar de do ponto de vista de Deus não haver finalidade, do ponto de vista humano ela
existe, pois, de acordo com a nossa leitura de Spinoza, a imaginação (e entendemos que toda finalidade é, para
Spinoza, imaginação) não é desprovida de realidade.
18
acordo com a vontade e o desejo humanos, isto é, em função do homem, fazendo de Deus
nada mais do que o seu reflexo. Torna-se óbvio, então, porque uma crítica da religião é,
simultaneamente, uma crítica das práticas dos exercícios de poder pelos homens e, também,
uma tarefa da filosofia na medida em que esta visa a libertação do homem dos grilhões
criados por aquelas práticas de poder, ou seja, na política. Assim, política, teologia e
metafísica reúnem-se num único projeto filosófico crítico-racional, chamado ética.
Consideramos esta uma das chaves para que se possa compreender a conjugação essencial
entre o método histórico adotado no TTP e o método geométrico adotado na Ética.

1.3. O caráter racionalista do projeto

O apêndice da Parte I da Ética serve como ponto de partida para se compreender a


transição entre o domínio estreito dos preconceitos e a clareza racional das ideias. De acordo
com o que já foi dito, para Spinoza, todos os preconceitos “dependem de um único, a saber,
que os homens pressupõem, em geral, que todas as coisas naturais agem, tal como eles
próprios, em função de um fim” (opus cit., p. 41). A crítica a este preconceito será toda
baseada no seguinte princípio que Spinoza considera irrefutável e evidente por si mesmo, o
qual diz que “todos os homens nascem ignorantes das causas das coisas e que todos tendem a
buscar o que lhes é útil, estando conscientes disso”, e que “deve ser reconhecido por todos”
(ibidem, p. 42, grifo nosso). Há, no entanto, dois entendimentos distintos sobre a noção de
utilidade, central na elaboração do princípio: o efetivamente útil e o aparentemente útil6. Esta

6
Na Ética, a distinção entre o efetivamente e o aparentemente úteis pode ser entendida a partir das proposições
20 a 26, da quarta parte. Nestas proposições Spinoza desenvolve, em síntese, o seguinte raciocínio: a potência de
cada um se esforça acima de tudo por conservar o seu ser mediante o que lhe é útil; maior ou menor será a
virtude daquele que cuida ou descuida deste esforço, embora apenas por sua natureza jamais possa desejar o que
lhe não seja útil; disto se segue que é sendo feliz, agindo e vivendo bem que cada um igualmente o deseja e é
dotado de virtude, pois apenas esse esforço, existindo em ato, “é o primeiro e único fundamento da virtude” (E
IV, prop. 22, corol.); no entanto, como fora demonstrado anteriormente, age por virtude aquele que somente “é
determinado a fazer algo porque compreende” (idem, prop. 23), quer dizer, “à medida que é determinado a agir
porque tem ideias adequadas” (idem, dem.); ora, sendo assim, a virtude que consiste em agir, viver e conservar
bem o seu ser não poderia ser ela mesma determinada por nenhuma outra coisa senão pelo esforço de
compreender, pois da essência do homem nada se segue mais de acordo com a sua natureza do que ideias
adequadas; por fim, fica assim demonstrado que “tudo aquilo pelo qual, em virtude da razão, nós nos
esforçamos, não é senão compreender; e a mente, à medida que utiliza a razão, não julga ser-lhe útil senão aquilo
que a conduz a compreender” (E IV, prop. 26). Tendo isto em mente, tudo o mais cai sob a categoria do
aparentemente útil, pois apenas o conhecimento verdadeiro é efetivamente útil. O aparentemente útil, no entanto,
com o resguardo da carga das palavras, não é o ilusório, mas aquilo que está assentado sobre o domínio dos
objetos definidos não pela natureza humana. Por exemplo: embora seja comumente aceito que o cigarro seja
ruim para a saúde, poder-se-ia negá-lo a um paciente terminal como um de seus derradeiros prazeres? Neste
caso, não lhe seria bom e útil fumar? Ou seja, é na relatividade das situações em que os bens mundanos são ditos
bons ou maus que se deve compreender a sua aparente utilidade, dado que, do ponto de vista da virtude, nenhum
19
distinção é consequência da diferenciação que Spinoza faz entre bens mundanos e bem
supremo, questão tratada minuciosamente nos dezessete primeiros parágrafos do Tratado da
correção do intelecto (TIE).
Seguindo a tradição histórico-filosófica e popular, os bens mundanos são reduzidos a
três gêneros: riqueza, fama (ou status social) e prazeres sensuais. Tais bens são por sua
natureza impossíveis de serem possuídos7, dado que são produtos da imaginação e das
paixões, sem existência própria, portanto. Em busca destas coisas, seguem os homens como
doentes imaginários, que não podem na satisfação dos seus apetites por bens incertos
encontrar senão venenos ministrados por médicos charlatães – e até piores em sua doença, tal
a sua cobiça em enriquecer à custa das fraquezas humanas8. Não cabe aqui reproduzir os
argumentos de Spinoza para provar isto, é suficiente por ora que se tenha em mente que a
principal característica desses bens é a sua exterioridade, ou seja, tanto o apetite por eles
quanto a satisfação desses apetites referem-se a coisas que, por sua essência, não são em si
mesmas necessárias ao homem senão como meios, jamais como fins. Tomá-las como fins das
ações é reconhecer nelas a possibilidade de se possuí-las, o que pressupõe que o seu valor
enquanto objeto de desejo resida não no apetite e nas paixões mas como intrínseco a elas.
Assim, se tomadas como fins em si mesmas, essas coisas são mais nocivas do que vantajosas,
porque nisto consiste propriamente o vício: alimentar um apetite que pela natureza daquilo
que apetece não pode jamais ser saciado. São coisas, portanto, cuja utilidade é apenas
aparente.
Por outro lado,

destes está prescrito pela natureza humana em absoluto. O próprio cuidado da saúde (do corpo) Spinoza afirma,
no prefácio da quinta parte, competir à medicina, e não à filosofia, embora esta certamente seja favorável a este
cuidado. A diferença está em que o efetivamente útil deve ser deduzido unicamente da natureza humana, sem
referência a nenhuma finalidade externa. No caso do cuidado do corpo o útil e o inútil deverão ser considerados
a partir da interação particular do corpo com o fator externo, sem que possa excluir este último da avaliação
final. Deduzido unicamente da natureza humana, o efetivamente útil não depende para ser definido senão da
mente humana, a qual por si só, sem ter que se recorrer a nenhum fator externo, é capaz de compreender
adequadamente. Em suma, não é o o quê que se compreende que importa, mas a ação da mente.
7
Por “impossíveis de serem possuídos” queremos dizer que a sua posse deve ser sempre compreendida não
apenas pela presença do objeto possuído, mas também pela imaginação daquele que o possui, pois o objeto não
pode ser possuído senão tendo como motivação o desejo apaixonado determinado por uma ideia inadequada.
Como toda ideia inadequada, o bem comum não é senão um objeto conhecido apenas parcialmente, de modo que
a sua posse, em parte, é menos a sua presença em ato, como ser existente, e mais o resultado da imaginação, pois
nem exclusivamente pela natureza do objeto e nem exclusivamente pela natureza humana se pode deduzir o
desejo de fruí-lo. Possuir nada mais é do que a tentativa vã de ser dono do que sempre, pela sua própria natureza
e potência, será livre.
8
“Ora, os objetos que o vulgo segue não só não fornecem qualquer remédio à conservação de nosso ser, mas a
impedem e, frequentemente, são a causa da perda daqueles que os possuem; são sempre a causa da perda para os
que por eles são possuídos” (TIE, #7, p. 329).
20
como a razão não exige nada que seja contra a natureza, ela exige que cada qual [...]
busque o que lhe seja útil, mas efetivamente útil; que deseje tudo aquilo que,
efetivamente, conduza o homem a uma maior perfeição; e, mais geralmente, que
cada qual se esforce por conservar, tanto quanto está em si, o seu ser (E IV, prop.
18, esc., p. 168, grifo nosso).

Deixaremos de lado por enquanto a explicação do princípio mais geral ao qual Spinoza neste
trecho faz referência, segundo o qual cada ser se esforça sempre ao máximo por conservar o
seu ser. Interessa-nos neste momento que, para ele, o bem efetivamente útil é aquilo que se
busca em conformidade à Natureza, por oposição ao bem aparentemente útil, que é fruto da
sobreposição da subjetividade individual ao todo do qual esta faz parte. Considerando que
nenhum homem tenha existido ou possa existir isolado do convívio de seus pares, a condução
do homem a uma maior perfeição e o esforço em conservar o seu ser, em acordo com a busca
racional pelo que seja efetivamente útil, não é uma busca apenas individual ou de foro íntimo,
mas necessariamente de todos, individual e coletivamente.

Portanto, nada é mais útil ao homem do que o próprio homem. Quero com isso dizer
que os homens não podem aspirar nada que seja mais vantajoso para conservar o seu
ser do que estarem, todos, em concordância em tudo, de maneira que as mentes e os
corpos de todos componham como que uma só mente e um só corpo, e que todos,
em conjunto, se esforcem, tanto quanto possam, por conservar o seu ser, e que
busquem, juntos, o que é de utilidade comum para todos. Disso se segue que os
homens que se regem pela razão, isto é, os homens que buscam, sob a condução da
razão, o que lhes é útil, nada apetecem para si que não desejem também para os
outros e são, por isso, justos, confiáveis e leais. (idem).

Tornar-se útil a si mesmo é o caminho pelo qual o homem gera o poder de governar-se a si
mesmo da melhor forma possível e, também, de alcançar o sumo bem9. Assim, o projeto
filosófico de Spinoza pode ser entendido como sendo racionalista, por oposição ao caráter
vulgar dos preconceitos infundados.

1.4. O método como caminho

Trata-se aqui, neste capítulo, de mostrar como a verdade é intrínseca à ideia, e que não
tem como critério a correspondência ao objeto ou ideado. A importância disso é que o que
está em jogo é por onde a filosofia deve começar, e que o método filosófico, explicado neste
Tratado, e posto em prática na Ética, ou seja, o geométrico, tem como base o mesmo espírito

9  Spinoza
define o sumo bem como sendo “o conhecimento da união que a mente possui com a Natureza” (TIE,
#13, p. 331).  
21
daquele apresentado e desenvolvido no TTP, a saber, que o verdadeiro, para Spinoza, está ao
alcance do pensamento racional.
Para tanto seguiremos o percurso dos parágrafos 33 a 48 do Tratado da correção do
intelecto, em forma de comentários. Os parágrafos anteriores (do TIE) aos que se seguem,
dizem respeito à necessidade de se buscar o sumo bem, por oposição ao valor aparente dos
bens mundanos. Além disso, é tópico essencial para se entender o valor das definições e dos
postulados na Ética e, por conseguinte, entender o método à moda dos geômetras.
[33 - 35] A ideia é algo diferente do ideado. A ideia possui uma essência formal
própria, isto é, a ideia existe enquanto ideia, e, igualmente, não é um corpo. Deste modo, a
ideia verdadeira não é uma abstração do seu ideado, nem proveniente dele, pois existe
enquanto ela mesma, enquanto ideia. A essência objetiva da ideia é aquilo que é afirmado na
sua essência formal, ou seja, a essência formal diz respeito à existência atual da ideia, ao seu
modo de existir, e a essência objetiva é aquilo que é afirmado ou tornado atual, aquilo que,
existindo ou não fora da ideia, está sendo, na ideia, afirmado, não por causa do ideado, mas
por causa da ação da própria mente.
O que é afirmado não é necessariamente um corpo, pode ser também outra ideia, de
modo que, toda esta, é afirmada por outra ideia, e é, por isso, a essência objetiva da ideia da
qual é o ideado. Por exemplo, Pedro, cuja essência formal existe corporalmente fora da ideia.
E também a ideia de Pedro, cuja essência formal é inteiramente diversa da essência formal de
Pedro, e que, em si, tem a essência objetiva de Pedro. Por sua vez, esta ideia está
objetivamente em outra ideia, a qual, formalmente, é diferente da ideia de Pedro. E também,
por sua vez, da ideia da ideia de Pedro há a ideia da ideia da ideia... “Qualquer um pode
experimentá-lo ao ver que, sabendo o que é Pedro, sabe também que sabe, e ainda que sabe
que sabe etc.” (TIE, #34, p. 337). Conclui-se que “para saber, não tenho a necessidade de
saber que sei” (ibidem). Da mesma forma que, para que Pedro exista não é necessário que se
saiba o que é Pedro, não é necessário, para que se saiba o que é Pedro, saber que o sabe. Por
conseguinte, dada a ideia de Pedro, afirma-se Pedro objetivamente em sua ideia, de modo que
é certo que se sabe o que é Pedro, sem necessariamente se saber que o sabe. Esta certeza,
então, “não está em nada fora da própria essência objetiva. Quer dizer que a maneira como
sentimos a essência formal é a própria certeza” (ibidem, #35, p. 337). Aqui, ‘sentir’ não é
utilizado na acepção corrente de um sentir subjetivo ou pessoal, mas o de ser afetado, e, no
caso, ser afetado pela própria mente. Saber é, ao mesmo tempo, a afirmação ou a afecção da
mente, de um lado, e, de outro, o ser afirmado pela própria mente de modo determinado,

22
entendendo-se que o determinado é aquilo que ela particularmente afirma, sua essência
objetiva.
Em relação à verdade da ideia, se a ideia é afecção da mente por ela própria, em outras
palavras, produto de sua atividade, então a ideia é sinal de sua própria verdade, pois que, dada
a ideia verdadeira, ou seja, o que dá no mesmo, afirmada uma determinada essência objetiva,
não é necessária a ideia desta ideia para que seja certo que ela afirme aquilo que ela afirma,
como diz Spinoza (TIE, #35, p. 338): “a certeza e a essência objetiva são idênticas”.
[36 - 38] Em acordo com esta compreensão de certeza, desenvolve Spinoza sua
reflexão sobre o Método. “Como, pois, a verdade não tem qualquer sinal”, o método não
consiste em se procurar um critério ou algo extrínseco à própria essência objetiva que servisse
de sinal para a verdade, pois “o método verdadeiro é o caminho pelo qual a própria verdade,
ou a essência objetiva das coisas, ou suas ideias (tudo isso tem o mesmo significado) seja
procurada na ordem devida” (ibidem, #36, p. 338). Assim, método consiste em “bem entender
o que é uma ideia verdadeira, distinguindo-a das demais percepções” (ibidem, #37, p. 338),
isto é, as ficções em geral. O método, então, não é nenhum critério de verdade, e muito menos
serve de norma de verdade, pois só a ideia verdadeira pode ser norma de verdade – norma,
não critério. Reconhecer a ideia verdadeira, sabendo distingui-la das demais, é a tarefa
primeira do método, o qual, em seguida, fornece regras auxiliares para que, da ideia
verdadeira, se prossiga corretamente na devida ordem ao que se segue dessa ideia. “Disso
resulta que o método não é outra coisa senão o conhecimento ou cognição reflexiva, ou a
ideia da ideia” (ibidem, #38, p. 338). E ainda, “o bom método é, por conseguinte, aquele que
mostra como a mente deve ser dirigida segundo a norma da ideia verdadeira dada” (idem).
Portanto, para que haja o método é preciso que, anteriormente, a ideia verdadeira seja dada,
seja qual for a sua essência objetiva determinada, pois que, não havendo mais do que uma
ordem verdadeira existente, de uma ideia verdadeira qualquer todas as outras podem ser
deduzidas corretamente. Compreendemos, então, que ‘ideia dada’ quer dizer a ideia
concebida unicamente pela ação da mente. Acrescenta-se a isso, perfeitíssimo é o método que
parte da ideia verdadeira dada do Ser perfeitíssimo, pois, se tudo o que existe se explica por
esse Ser, então a esta ideia é a mais apta para conduzir a mente no que tange às demais coisas
existentes. Esta ideia, portanto, como toda ideia verdadeira, não pode ser forjada, mas apenas
dada, e sua negação envolve contradição.
[40] O parágrafo 40 merece ser integralmente reproduzido, porque sintetiza o que seja
o método.

23
Depois, quanto mais a mente sabe das coisas, melhor também ela conhece suas
forças e a ordem da natureza; quanto mais ela conhece suas forças, mais facilmente
ela pode guiar-se e propor-se regras; quanto mais ela conhece a ordem da natureza,
mas facilmente pode se coibir de inutilidades; nisso tudo consiste todo o método
(TIE, # 40, p. 339).

Neste parágrafo Spinoza toca em um ponto muito sensível de sua filosofia, o conceito
de ordem. A ordem da Natureza aparece em consonância ao “propor-se regras” da mente,
quer dizer, a mente, ao prescreve-se a si mesma regras que lhe sirvam de guia, direciona-se
em conformidade à ordem natural das coisas, e este direcionamento é ao mesmo tempo uma
coibição da mente em agir na direção das “inutilidades”, as quais se encontram entre os bens
mundanos anteriormente elencados. O método do saber é também o método do agir. Podemos
disto entrever que a ideia verdadeira dada, independentemente de qual ela seja, é a concepção
mesma de uma ideia no ato de inteleção da mente direcionada em adequação à ordem da
natureza10. Entendemos por esta ordem, vale esclarecê-lo, não a ordem transitiva com que na
imaginação percebemos as coisas, mas a ordem infinita da natureza que, por ser infinita, não
pode ser explicada pelas propriedades dos modos finitos, isto é, não pode ser entendida
segundo propriedades espaço-temporais. A ideia verdadeira dada, seria então, uma concepção
de si, das coisas e da natureza toda do ponto de vista de sua infinitude. Perfeitíssimo seria o
método, portanto, que além de partir da concepção do ponto de vista da infinitude, partisse
também do ponto de vista da infinitude e da eternidade, isto é, da ideia verdadeira de Deus.
[41 e 42] Nada de existente na Natureza não tem relação com alguma outra coisa, pois
“ter comércio com outras coisas é produzir outras ou ser por elas produzido” (TIE, #41, p.
339). Não ter nenhuma relação seria, portanto, absurdo, pois seria afirmar que algo poderia
existir sem que nada o tivesse produzido. Até o Ser perfeitíssimo deve ter uma causa, senão,
não sendo causado, não teria nenhuma relação com as outras coisas e, então, não poderia ser
causa delas também. Mas não é este o ponto aqui. Trata-se, no entanto, da existência de uma
única ordem nas coisas11 e que todas elas estão em relação umas com as outras. Se a ordem,
no que toca ao todo das relações, pudesse ser mais de uma, cada coisa teria que ser
inteiramente diferente do que é, pois nenhuma coisa pode estar fora de relação com as outras,
10
Quando mais a frente Spinoza fala da certeza da existência de si (#54), ele diz o seguinte: “Se a verdade, como
aqui entendida, se manifesta por si, um só exemplo basta, sem outra demonstração” (TIE, p. 343). A ideia de
uma verdade que se manifesta por si, é a ideia de verdade, a nosso ver, como expressão da essência na
existência, portanto, a verdade da ideia de uma coisa existente é a expressão na ideia desta coisa pela sua
essência. Por isso se diz que a ideia verdadeira é dada, e que esta, tal como consideramos neste parágrafo ter bem
exposto, deve poder ser explicada tão-somente pela potência da mente, pois a mente quando em adequação à
ordem da natureza, expressa nas suas ideias esta mesma ordem ao conceber as ideias de maneira adequada.
11
Por ordem das coisas queremos expressar a ordem de todas as coisas segundo qualquer atributo.
24
ou seja, existindo na mesma ordem. Não se deve entender, contudo, a ordem segundo uma
noção cronológica ou temporal. Porque não se trata de uma sequência das coisas no tempo ou
na duração, mas da sua adequação às mesmas regras que constituem e que são constituídas
pela ordem de toda a natureza, não podendo nenhuma coisa existir abstratamente, em
separado das demais, nem mesmo as regras sem a existência daquilo que é por elas regrado.
Pela mesma razão, nada pode existir segundo regras inteiramente distintas das demais coisas,
mas devendo obedecer integral ou parcialmente as mesmas regras que as demais12.
Como Spinoza não considerava que as ideias existem fora da natureza, mas, ao
contrário, têm a sua própria essência formal, o mesmo que se diz sobre os corpos quanto à
ordem comum da Natureza e de suas causas, diz-se das ideias. Ou seja, as ideias devem existir
segundo a mesma ordem que os corpos13, pois o contrário seria afirmar que as ideias
compõem uma outra Natureza diversa da das coisas corporais, e as ideias das ideias uma
terceira Natureza, e assim por diante. O absurdo deste raciocínio reside na impossibilidade de,
dada uma ideia, afirmar-se algo distinto além dela própria, o que não só impediria que as
ideias pudessem estar relacionadas entre si como também que a mente pudesse reconhecer a
existência de si mesma e dos corpos. Por outro lado, a mente – levando em consideração que
ela seja uma ideia e não um corpo –, se não afirmasse nada além de si mesma, não afirmaria,
portanto, coisa alguma, já que a afirmação de uma afirmação, sem que se tenha aquilo que é
afirmado, não é mais do que a repetição de um mesmo ato, sem ter nada que diferencie um do
outro, pois o que diferencia uma ideia da outra não é a sua essência formal, mas a sua essência
objetiva, a qual, necessariamente, deve poder existir formalmente fora dela. Logo, na medida
em que distinguimos várias ideias, não só existem coisas fora da mente como também as
ideias devem estar ordenadas formalmente entre si segundo a mesma ordem que todas as
outras coisas, o que Spinoza resume na proposição 7 do Livro II da Ética da seguinte maneira
(p. 55): “a ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas”.
Conclui-se, então, compreendido o que seja e a necessidade da ordem, que é perfeitíssimo o
Método que parta da ideia que “representa a fonte e a origem de toda a Natureza, para que
essa ideia seja a fonte das outras ideias” (TIE, #42, p. 340).
[43-48] Se, para provar que é correto o entendimento dirigido pela norma da ideia
verdadeira dada fosse necessário um outro entendimento que provasse a correção do primeiro,

12
Por regra entendemos um nome geral para os diversos tipos de regra, inclusive as leis da natureza, tanto as
físicas, quanto a mentais.
13
Ou seja, a ordem dos corpos e das ideias é a ordem de uma e mesma natureza.
25
então para este seria necessário um terceiro entendimento, e assim ao infinito14. Mas isto seria
por em dúvida todo e qualquer entendimento, assim como a verdade de toda e qualquer ideia
e, em consequência, de acordo com o que já foi demonstrado, a realidade mesma de todas as
ideias e também da própria mente. Assim “pois a verdade, como fizemos ver, por si mesma se
desvela [...] para estabelecer a verdade e bons raciocínios, não temos necessidade de outros
instrumentos senão da própria verdade e do bom raciocínio” (ibidem, #44, p. 340). E ainda,

Se, na sequência, alguém estiver cético a respeito desta primeira verdade e de todas
aquelas que deduzimos da primeira norma é porque falará contra sua consciência ou
confessaremos que há homens cuja alma é completamente cega, seja por nascimento,
seja por causa de preconceitos, isto é, por acidentes exteriores (ibidem, #46, p. 341).

1.5. A ideia

Consideramos também importante para se entender o método em Spinoza levarmos


em conta uma distinção crucial entre as filosofias deste e a de Descartes, distinção que se
encontra justamente no começo, na busca e nos primeiros passos do caminho filosófico.
Como não pretendemos esgotar o tema da relação entre os dois filósofos, e nem também
levantar todas as implicações das críticas de Spinoza a Descartes, nos ateremos apenas ao
aspecto, que é tema deste capítulo, do que aqui chamamos de começo da filosofia. Certamente
não começo em sentido temporal, mas em relação àquilo que se encontra de certo modo
predisposto, ou seja, se Descartes compara a ideia a um quadro, interessa-nos a implicação
que isto tem como pressuposto do desenvolvimento filosófico propriamente dito. Acreditamos
que seja inegável que desde o começo das Meditações Metafísicas Descartes já considerava a
ideia como um quadro, e que por Spinoza jamais concebê-la desta maneira, não é de somenos
as suas implicações na própria raíz do seu pensamento.
Cremos que o problema pode ser bem colocado a partir das concepções de erro ou
engano presentes nos dois filósofos. Descartes, na Meditação Primeira, diz que “o menor
motivo de dúvida que aí [nas coisas] encontrar bastará para fazer-me rejeitar todas”
(DESCARTES, 2005, p. 30). A sequência é bem conhecida. Começando pelas propriedades
“secundárias” e sensíveis dos corpos, Descartes põe em dúvida que as coisas sejam tal com
ele as vê, de modo que

14
“A mente deve ser dirigida segundo a norma da ideia verdadeira [...] devemos começar pela ideia dada”
(ibidem, #43, p. 340)
26
todas estas particularidades, a saber, que abrimos os olhos, que remexemos a cabeça,
que estendemos as mãos, e coisas semelhantes, não passam de falsas ilusões; e
pensemos que talvez nossas mãos, assim como todo nosso corpo, não são tais como
os vemos (ibidem, p. 33).

Eliminada a certeza sobre as coisas tal como elas são percebidas pelos sentidos, Descartes
então passa em revista as coisas tais como nós as representamos em pensamento, o que pode
ser considerado independentemente do estado de vigília ou do de sono. Neste momento ele
expõe a sua noção de ideia. Falando das “coisas que nos são representadas no sono”, ele diz
que elas “são como quadros e pinturas” (DESCARTES, 2005, p. 33). Aqui fica pela primeira
vez clara a noção de ideia como representação das coisas e que, do ponto de vista do acerto
ou do erro são neutras, pois que o fato de errarmos ou acertarmos quanto à natureza das
coisas nada teria a ver com o que as ideias representam para nós, mas sim com o nosso
assentimento a elas. Neutralidade e representatividade são características que ficam claras se
tomarmos, por exemplo, a seguinte passagem da Meditação Quarta (2005, p. 88): “pelo só
entendimento, eu não asseguro nem nego coisa alguma, mas concebo somente as ideias das
coisas, que posso assegurar ou negar”. Aqui, dizer “apenas concebo”, é o mesmo que dizer
“apenas me represento” ou “tenho a representação de”, como ao contemplar um quadro. Da
mesma forma, o assentimento ou a negação daquilo que está sendo representado é extrínseco
à representação. Qual então, pois, a origem do erro?

A saber, só do fato de que, sendo a vontade muito mais ampla e extensa do que o
entendimento, não a contenho nos mesmos limites, mas a estendo também às coisas
que não entendo; sendo por si indiferente a elas, ela se descaminha com muita
facilidade e escolhe o mal pelo bem, ou o falso pelo verdadeiro. O que faz que me
engane e que peque (ibidem, p. 90-91).

Ou ainda (ibidem, p. 87-88),

Olhando-me de mais de perto e considerando quais são meus erros (os quais
sozinhos testemunham que há imperfeição em mim), vejo que dependem do
concurso de duas causas, a saber, da potência de conhecer que existe em mim e da
potência de eleger, ou então de meu livre-arbítrio.

E Spinoza conhecia muito bem o que Descartes entendia por erro: “de onde vem que
erramos? E quando ele acha que isso vem do fato de usarmos a vontade livre para dar nosso
assentimento àquilo que percebemos confusamente [...]” (PPC, Intr., p. 168). Resta saber
agora de onde vem a confusão ou a falsidade nas ideias, naquelas que, quando lhes damos

27
assentimentos, nos enganamos. A resposta a esta questão vem da definição de homem em
acordo com a sua finitude:

sou como um meio entre Deus e o nada, ou seja, situado de tal maneira entre o
soberano ser e o não-ser que na verdade nada se encontra em mim que me possa
conduzir ao erro, na medida em que um soberano ser me produziu; mas que, se me
considero participando de alguma forma do nada [...] acho-me exposto a uma
infinidade de faltas, de forma que não devo me espantar se me engano
(DESCARTES, 2005, p. 85).

Segundo Descartes, sendo seres finitos, participamos ao mesmo tempo de Deus e do


nada, e, enquanto nossas ideias têm como origem Deus, são verdadeiras, mas, enquanto elas
também de alguma maneira participam do nada, são confusas e falsas. Acertamos ou nos
enganamos, por outro lado, quando assentimos ou não corretamente sobre as ideias quanto à
sua origem, isto porque, se as ideias forem verdadeiras, as coisas que elas representam
existirão verdadeiramente tal como naquelas são representadas. Esta é a razão porque as
coisas, até Deus ser conhecido verdadeiramente, são postas em dúvida, pois, sem que Deus
tenha sido bem conhecido, nada indica que elas não participem do nada. A hipótese do gênio
maligno na Meditação Primeira tem isto como pano de fundo: se o que as ideias matemáticas
representam são as propriedades da extensão (propriedades primárias dos corpos),
desconhecendo-se contudo a origem ou a causa do conteúdo daquelas ideias, então elas
podem nada representar15, o que faria delas, necessariamente, falsas. Quisemos, com isso,
tornar explícito que o exercício de dúvida que Descartes faz no começo de sua filosofia
pressupõe as noções de erro e de falsidade que acabamos de apresentar, pois, caso não fosse
assim, como ele poderia pôr em dúvida (isto é, não afirmar nem negar ou, simplesmente,
suspender o juízo) as ideias matemáticas, em especial, “verdades tão patentes” como o
número de lados do quadrado e a soma entre dois números inteiros?16. A hipótese do gênio
maligno nega a própria existência das coisas ao lhes conferir um estatuto de nada. Mas o que
justificaria a hipótese do gênio maligno? Justificá-la não é difícil, pois se trata de estender a
dúvida até o seu máximo limite, e ela está à serviço dessa tarefa. Aqui estamos no cerne do
problema. A hipótese do gênio maligno não é arbitrária dentro do raciocínio cartesiano,
porque, sendo as ideias matemáticas como quadros, portanto, representações neutras e

15  “Ora, quem me pode assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu,
nenhum corpo extenso [...] nenhum lugar e que não obstante eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que
tudo isso não me pareça existir de modo diferente do que o vejo?” (DESCARTES, 2005, p. 35, grifos nossos).
16  “Pois, esteja eu acordado ou dormindo, dois e três juntos sempre formarão o número cinco e o quadrado nunca

terá mais do que quatro lados; e não me parece possível que verdades tão patentes possam ser suspeitas de
alguma falsidade ou incerteza” (DESCARTES, 2005, p. 35).
28
estáticas, elas poderiam nos representar coisas que, mesmo que nos parecessem corretas e
verdadeiras, de modo a tentar o nosso assentimento sobre elas, não representassem coisa
alguma, embora coerentes. É este caráter representativo estático das ideias, de estarem entre o
Eu e as coisas que torna todo e qualquer conteúdo seu passível de dúvida, já que o Eu não tem
acesso às coisas senão por meio delas. Assim, o poder de entender pode ser, apenas, no fundo,
um poder de imaginar, de fingir, herança do deus fingidor. E se, o poder de entender e/ou de
imaginar são distintos dos poderes de negar e afirmar, dado que vontade ou livre-arbítrio e
entendimento são faculdades distintas, poderíamos estar sempre a afirmar e negar ficções sem
nenhum valor de verdade. Não à toa, o próximo passo de Descartes será conferir certeza à
afirmação da existência do eu pensante, a partir única e exclusivamente do aspecto formal dos
atos de pensamento, desvinculados dos seus conteúdos representativos.
* * *

Tudo isto, todo este pano de fundo que se encontra no começo da filosofia de
Descartes, Spinoza irá negar, negar desde o começo. Mais uma vez seguiremos o TIE, mais
especificamente do §52 ao §65, onde ele expõe em que consistem a ficção, o erro, a
falsidade, a dúvida, a confusão e o nada, ou seja, todos conceitos que foram utilizados por
Descartes para construir os alicerces da sua filosofia. Procederemos de agora em diante
seguindo o mesmo modelo da seção 1.4, comentando parágrafo por parágrafo.
[52-57] Primeiramente, Spinoza fala das ficções que dizem respeito a coisas
consideradas existentes, para depois passar às essências.
As ideias versam sobre coisas necessárias, impossíveis ou possíveis. A coisa
necessária é “aquela cuja natureza implica contradição com a não existência”; à impossível se
diz que a sua “natureza implica contradição com a existência”; e a possível é aquela “cuja
existência não implica contradição com a existência ou com a não existência” (TIE, #53, p.
343). Se Pedro está agora em casa ou no trabalho, e se não tenho nenhuma razão sobre onde
ele esteja, posso apenas fingir que está num ou noutro lugar. São possibilidades que, para
mim, dizem mais respeito à minha ignorância do que a Pedro. E mesmo que estivesse na casa
de Pedro ao seu lado, não é pela natureza de Pedro que concluo que ele está em casa, de modo
que, neste caso, posso sim afirmar onde Pedro está, mas não que lhe seja necessário estar em
casa ou impossível que estivesse em outro lugar, pois que ele esteja em casa continua sendo
apenas uma possibilidade. A mera possibilidade, contudo, volta a apontar para a minha
ignorância, que desconhece as causas externas que determinam a necessidade de Pedro estar

29
em casa. De todo modo, não se segue da natureza de Pedro nem a necessidade nem a
impossibilidade da sua existência, ou ainda dele existir em determinado momento daqui ou
acolá, pois um ser (ou modo) finito como Pedro não existe segundo a necessidade de sua
natureza17 e, por isso, também não pode ser conhecido apenas pela sua natureza: a sua
natureza e a sua existência envolvem naturezas e existências de outros, ou seja, neste último
caso, quanto à existência, também de outros como causa da sua existência. Neste sentido,
quanto à existência de algo possível, posso fingir (“ficcionar”) várias coisas, e nada me
impede que imagine agora Pedro fazendo isto ou aquilo, em sua casa ou na rua.
Entretanto, nem tudo pode ser fingido. É impossível a ficção quando se tem a certeza
da existência de algo pela sua natureza. É o caso da existência de si mesmo, “tão logo sei que
existo, não posso fingir que existo ou não existo” (idem, #54, p. 343); da existência de Deus:
“nem, conhecendo a natureza de Deus, [posso] fingir que existe ou não existe” (ibidem); da
Quimera, “cuja natureza contrasta com a existência” (ibidem); e também de coisas que, por
sua natureza, não podem estabelecer determinadas relações, como “conceber que um elefante
passe pelo buraco de uma agulha” (ibidem). De igual maneira, no caso da existência de um
deus, se ele é onisciente, então “este não poderia, em absoluto, nada fingir” (ibidem). Do que
se conclui que o possível é apenas resultado da ignorância, possibilidade a qual desaparece
junto com aquela. Isto é, o fingimento é uma ficção produzida pela própria mente.
No entanto, há alguns fingimentos que não provêm da ignorância, mas da memória de
erros passados, como, por exemplo, fingir sem o saber que a Terra é plana. Mesmo hoje,
sabendo que ela não o é, posso dizer que ela seja, sem que, com isso, contudo, finja para mim
mesmo que ela seja chata. Fingir para si é impossível se sabemos da impossibilidade ou da
necessidade da existência de algo pela sua natureza ou pelas causas da sua existência, mesmo
que apenas em determinado aspecto, como o formato da Terra. Quando Spinoza fala das
“causas da existência”, ele não se refere necessariamente à existência do todo de algo, pois
que, se a Terra é esférica, isto não se deve ao acaso, mas às causas que determinam de
maneira necessária que a Terra seja assim. Ser esférica diz respeito à existência da Terra,
existência necessariamente esférica, de modo que, considerar uma Terra não esférica,
implicaria contradição em sua natureza, uma impossibilidade. E isto pode ser conhecido ainda
que se ignore vários outros aspectos da Terra. Conceber a ideia falsa, portanto, rigorosamente
de que a Terra é plana é impossível, pois nós só “podemos forjar essa ideia enquanto não
virmos nem impossibilidade nem necessidade” (TIE, #56, p. 344). O mesmo se diz sobre as

17  Para usar uma expressão da Ética: sua essência não envolve a existência.
30
suposições e as hipóteses. Fingir que a sala está escura, quando está clara, ou considerar por
hipótese que não há o atrito do ar no cálculo da queda de um corpo, não são propriamente
fingimentos, o que se faz em ambos os casos é apenas abstrair determinadas coisas ou
aspectos para se considerar mais atentamente outros, ou auxiliar em trazer à memória algo
que não se pode fazer no presente. “Não há nisso qualquer ficção, mas, na verdade, meras
asserções” (ibid., #57, p. 345).
Algo, todavia, vale para todos os casos, a saber “a ficção, da qual falamos aqui, não
alcança as verdades eternas” (ibid., #54, p. 343). Segundo Spinoza,

por verdade eterna entendo a que, sendo afirmativa, jamais pode ser negativa.
Assim, é uma verdade primeira e eterna que Deus é; não é uma verdade eterna que
Adão pense. Que a quimera exista, não é uma verdade eterna, mas não que Adão
não pense (ibidem, p. 343).

Uma verdade eterna pode ser, então, por uma necessidade ou por uma impossibilidade, nunca,
porém, por uma possibilidade, que é o caso de toda ficção.
Spinoza, em 55, adverte que, para o conhecimento adequado da existência de algo, a
coisa “onde for concebida mais particularmente, mais claramente é entendida e mais
dificilmente a atribuímos a algo que não a própria coisa, o que se dá quando não atendemos à
ordem da Natureza”. Isto que dizer que ignoramos a coisa quando desconsideramos a coisa na
ordem da Natureza, e isto se faz quando a tratamos apenas de modo geral. Por exemplo,
continuaríamos ignorando o formato da Terra se não “descêssemos” às suas particularidades e
nos mantivéssemos tão-somente no plano da existência em geral ou dos astros em geral. O
mesmo valeria para a sua essência, se a considerássemos apenas pela ‘natureza do ser’, do que
resultaria a definição ‘a Terra é um ser’. Isto se conclui que, para evitar a ignorância, não
basta considerar a necessidade das coisas, mas também a necessidade delas em suas
particularidades. Fica assim claro que Spinoza não pretende identificar as verdades eternas a
generalidade ou a universais, mostrando que é na particularidade das coisas que melhor as
conhecemos.
[58-65] As ficções que dizem respeito às essências.
Quando se fala de essência, em Spinoza, entenda-se essência objetiva, pois pelas
essências formais somos incapazes de distinguir as ideias. Então, se as ficções sobre a
existência dizem respeito ao modo de existir de cada coisa e também ao seu existir na duração
etc., as ficções sobre a essência, por outro lado, dizem respeito à natureza da coisa
independentemente se ela exista ou não, ou seja, apenas no que diz respeito à sua afirmação
31
na ideia. O que não é alterado pelo fato de, ao mesmo tempo que se considera a sua essência,
a coisa existir simultaneamente. Por exemplo. Uma vez que sabemos ser cada corpo um ente
finito, não podemos afirmar, sem fingir, um corpo infinito, nem também, conhecendo a
essência da mente, afirmar que ela seja corpórea ou quadrada (dado que ser quadrado é
propriedade apenas dos corpos), ou ainda que o nada venha a ser alguma coisa, porque o vir a
ser alguma coisa exige uma causa, e causar é a ação de alguma coisa sobre outra. Assim, se se
afirma, pela mesma razão, que há ideias verdadeiras, isto é, essências objetivas às quais seus
ideados concordem, não se pode afirmar que uma ideia verdadeira seja limitada por uma
ficção, pois isso seria contraditório à essência da ideia verdadeira. Os que pretendem negar o
acesso a ideias verdadeiras, e também a própria existência da verdade, dizem que só há
ficções e que uma ficção pode limitar outra ficção (lembremos do caso do gênio maligno).
Reduz-se então todo o intelecto à atividade de forjar ficções, na medida em que uma ficção
não possa jamais ser limitada ou dirimida por uma ideia verdadeira, fazendo crer que o
intelecto sempre obedeça a seguinte lógica:

Por exemplo, depois de ter forjado (para falar essa linguagem) tal ideia da natureza
do corpo, e tendo-me persuadido, usando de minha liberdade, de que ela existe na
realidade, não me é possível imaginar a ideia de uma mosca infinita e, após ter
imaginado a essência da alma, não posso fazê-la quadrada (TIE, #59, p. 346).

O mesmo seria aplicável no caso de se pretender fingir um quadrado com mais ou menos que
quatro lados e que 2 + 3 não fosse igual a 5. Assim, se toda ideia é uma ficção ou algo cuja
definição é sempre forjada de forma arbitrária, tudo o que se segue é também ficção, embora
obedeça, na sua dedução, a ideia base como norma de verdade. Não há, portanto, nenhum
acesso possível à essência de coisa alguma, pois o intelecto não faz mais do que forjar ficções.
Com intuito de refutar inclusive a possibilidade de se forjar um contexto em que tudo
fosse ficção, em #60 (TIE), Spinoza já parte do fato de que a mente, e só a mente produz as
ideias. Isso é facilmente entendido a partir de dois pontos. I) A essência formal da ideia é uma
afirmação da mente, isto é, nenhuma ideia é dada sem que a sua existência dada tenha como
causa uma outra ideia, e esta uma outra, e assim por diante, isto é, a mente. II) A mente não
pode ser um corpo, pois, se o fosse, não se distinguiria dele, de maneira que, por esta mesma
razão, um corpo não pode causar uma ideia ou, dito de outra forma, afetar a mente. É o que
afirma Spinoza logo no início da Ética, (def. 2, p. 13): “Diz-se finita em seu gênero aquela
coisa que pode ser limitada por outra da mesma natureza [...] um corpo não é limitado por um
pensamento, nem um pensamento por um corpo”. Isto serve para excluir, de saída, dois

32
equívocos: a) Aceitando que as ideias sejam dadas à mente por conta da ação do corpo, ter-se-
ia que admitir como consequência que a afirmação ou ação da mente fosse como que algo
acrescentado às ideias e, por tabela, que a mente fosse capaz por isso de afirmar o nada, ou
antes, de afirmar sem afirmar coisa alguma, o que seria absurdo. Ela teria então uma tal
independência das ideias que, ou ela seria um ente que de tão abstrato e obscuro não teria
definição alguma, ou teríamos que transformá-la em um corpo. Certamente as duas hipóteses
servem apenas para se criar mais confusão. b) A mente não pode suspender verdadeiramente
o juízo – entendendo-se julgar como sinônimo da ação de afirmar –, pois isto implicaria torná-
la inteiramente passiva ou isenta de atividade, o que geraria as mesmas confusões anteriores,
além de ser um atentado à sua própria natureza. Tendo isto em vista, a posição cética (de
suspender o juízo) só poderia se justificar se defendesse “que a alma poderia, por sua própria
força, criar sensações e ideias sem correspondência com as coisas, de tal maneira que se a
considera um Deus” (TCI, #60, p. 346).
Em outras palavras, se as ideias não podem ser produtos senão da mente, e se todas as
ideias fossem ficções, então a mente seria uma fonte absoluta de criação e não obedeceria a
nenhuma ordem a não ser aquela criada espontânea e arbitrariamente por ela mesma. Seria
afirmar que a mente é causa tanto de sua essência quanto de sua existência, portanto, um deus.
Ou ainda, visto de outra forma, para usar a expressão de Spinoza, um império dentro de outro
império – a mente absolutamente autônoma à ordem natural de todas as outras coisas. Assim,
as distinções entre círculo e quadrado ou entre a mente e o corpo estariam fundamentadas
apenas em definições arbitrariamente forjadas, e a sua verdade residiria tão-somente na
coerência lógico-formal de jogos da mente. Ao contrário, como a mente pertence à ordem da
Natureza como todas as coisas, a necessidade com que produz as ideias verdadeiras tem como
fonte a mesma que, pela mesma necessidade, produz tudo o mais, de modo que não podem
discordar quanto à essência daquilo que é pensado por ela. Por conseguinte, a dúvida é apenas
uma percepção confusa das ideias e dissolve-se ao se compreender a ficção dentro da ordem
comum da natureza, ou seja, adequadamente.
Podemos então concluir que, para Spinoza, Descartes jamais poderia pôr em dúvida a
existência da extensão, porque as ideias matemáticas não poderiam ser postas em dúvida, haja
vista que a hipótese do gênio maligno, enquanto hipótese, isto é, uma ficção, não pode, por
natureza, limitar uma ideia verdadeira. É impossível que nos enganemos quanto ao número
dos lados de um quadrado, porque sabemos que para se gerar um quadrado é preciso traçar
quatro linhas na medida em que formem quatro ângulos retos internos. Como fingir que não é

33
assim? Podemos fingir a existência de um quadrado, mas nunca a sua essência. Esta é uma
razão suficiente para Spinoza, logo de início, recusar o procedimento cartesiano da dúvida.
Como vimos, a dúvida, tal como Descartes a exerce, pressupõe que há uma diferença entre a
percepção da ideia e a própria ideia, como a diferença entre a visão e um quadro. Igualmente,
o juízo ou a afirmação da ideia depende da percepção, e, por isso, é algo que se acrescenta à
ideia, portanto, é-lhe extrínseco e possível (em sentido lógico). Assim, Descartes difere o
intelecto da vontade, aquele como capacidade de concepção de ideias e, esta, como
capacidade de afirmar (ou negar) as ideias. Ao contrário, Spinoza nega que o assentimento
possa ser separado da ideia, porque é constitutivo dela, logo, também não fará diferença entre
intelecto e vontade e dirá que são um só18 (Ética). Por todas essas razões, acrescentando o fato
que Spinoza concebe a verdade como intrínseca à ideia e o método consistindo no caminho
seguido de acordo com a ideia verdadeira dada, Spinoza rejeita o método e a filosofia inteira
de Descartes. Na verdade, o que Spinoza faz é levar a cabo um projeto de filosofia
racionalista concebida por Descartes mas não realizada por este. O motivo provável disto é
que Descartes não teria rompido de fato com os fundamentos da tradição judaico-cristã.
Podemos perceber isto facilmente se compararmos pontos fundamentais já mencionados da
filosofia cartesiana com o pensamento de Santo Agostinho. Agostinho, em O Livre-Arbítrio,
diz:
Não nego, é verdade, que o movimento pelo qual a pedra é impelida, como dizes, e
cai para baixo, não lhe pertença; mas isso lhe é natural. Se a alma possuir dessa
mesma forma seu movimento para as coisas inferiores, evidentemente, este também
lhe será natural, e não se poderá censurar, com razão, o fato de ela seguir um
movimento próprio à sua natureza. Porque, mesmo se ela o seguisse para sua própria
perda, seria constrangida pela necessidade da natureza. Assim, pois, se não
hesitamos de declarar culpável esse movimento na alma, para isso é preciso que
neguemos absolutamente que ele lhe seja natural. Por conseguinte, tal movimento
não se assemelha àquele que move a pedra que cai naturalmente [...] Resta, portanto,
que seja próprio da vontade aquele movimento pelo qual ela se afasta do Criador e
dirige-se às criaturas, para usufruir delas. Se, pois, ao declarar esse movimento
culpável (e para ti apenas duvidar disso parecia irrisório), certamente, ele não é
natural, mas voluntário [...] Assim o movimento da pedra é natural e o da alma,
voluntário. Tanto assim que, se fosse dito a pedra cometer pecado porque por seu
próprio peso ela tende para baixo, seríamos julgados, não digo, mais estúpidos do
que uma pedra, mas indiscutivelmente uns loucos. Ao contrário, podemos acusar a
alma de pecado, quando verificamos que claramente ela prefere os bens inferiores,
em abandono dos superiores [...] Assim, todo ensinamento a esse respeito deve ter
como meta: condenar e reprimir tal movimento da queda para os bens mutáveis, e
orientar nossa vontade a escolher os bens eternos, conduzindo-a ao gozo do Bem
imutável (AGOSTINHO, 1995, p. 149).

18
Esta afirmação de que intelecto e vontade são um só é suficiente para nos fazer rever qualquer interpretação
que diga que a vontade para Spinoza é uma ilusão ou inexistente, pois seria o mesmo que dizer que o intelecto
também o é.
34
Tanto para Descartes como para Agostinho o corpóreo é o domínio da necessidade
causal – e isso vale independentemente da visão mecanicista de um e a aristotélica do outro, e
também se o interesse do primeiro é científico e do segundo, moral –, enquanto a alma é o
domínio do arbítrio. Em Agostinho as coisas são apresentadas e o sujeito escolhe entre as
boas e as más, exatamente como se fossem quadros a serem avaliados, ou seja, da mesma
forma que Descartes concebe o juízo sobre as ideias. A distinção entre vontade e intelecto é
também a mesma. E se o objetivo de Agostinho é encontrar a origem do pecado, para
Descartes o que importa é a origem do erro. Ambos resolvem segundo o mesmo raciocínio.
Para Agostinho, Deus não pode ser a causa do pecado humano, porque isso feriria o princípio
de que Deus é sumamente bom, então a natureza humana necessariamente deve ser boa, como
tudo criado por Ele. Por isso ele distingue a natureza do corpo da natureza da alma, de modo a
encontrar a origem do pecado na alma, não exatamente na alma, mas no “mau uso” da
faculdade de escolher com que Deus a criou. O “bom uso” seria aquele para o qual a alma foi
propriamente criada, a saber, agir de acordo com o bem, e o homem não poderia agir bem
verdadeiramente se ele não pudesse também agir mal, pois senão agiria pela mesma
necessidade que o corpo, nem bem nem mal. Igualmente Descartes concebe o erro e o acerto,
igualmente também concebe a mente e o corpo como naturezas distintas (ou seja, como duas
substâncias). Por fim, para ambos, tanto o Bem quanto a certeza são garantidos pela suma
perfeição e suma bondade de Deus.
Isso nos leva mais uma vez a deslumbrar a dimensão da filosofia spinozista. Descartes
buscava a autonomia da razão face às opiniões da tradição e, com isso, buscava libertar-se da
obediência de pensamento medieval, mas acabou por, sem o perceber, repeti-la em seus
aspectos fundamentais. Spinoza o compreendeu e, talvez por isso, tenha feito a busca pela
liberdade o tema central da sua filosofia, ou melhor, a filosofia ela mesma. E, ao mesmo
tempo, pela mesma razão, empreendeu uma das críticas mais ferozes à tradição judaico-cristã
e à tradição dos teólogos já feitas na história.
Assim, Spinoza, em vários aspectos, acaba por se aproximar muito dos gregos, para os
quais, como disse São Paulo, o cristianismo é loucura19. Sêneca, na Carta CI, a Lucílio, cita
um poema de um certo Mecenas que, entre outras coisas, diz (SÊNECA, 2008, p. 103):
“Mesmo na cruz, sobre a estaca / Conserva a minha vida”. Mesmo que Mecenas não tenha
sido cristão, entretanto, seu espírito está bem próximo da valorização do sofrimento ou da
resignação de uma vida na qual o sofrimento esteja permanentemente presente, pois parece

19  “Mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos” (Cor 1,23).
35
desejar o sofrimento. E é justamente isso que pensa Sêneca (ibidem, p. 104): “Daí o torpe
desejo de Mecenas que aceita as enfermidades, as deformações e, por fim, ser pregado na
cruz, contanto que por meio dessas desgraças possa prolongar a vida”. E, grego que era, ao
menos em espírito, Sêneca, confirmando a afirmação de Paulo, diz (ibidem, p. 103): “Mas o
que significam esses vergonhosos versos de inspiração efeminada, esse pacto do medo e da
demência, essa ignominiosa maneira de mendigar a vida?”. Deplorando igualmente essa visão
que encontra positividade no sofrimento e na decadência da condição humana, Spinoza, com
o mesmo desprezo que Sêneca, abre o Tratado Político com estas palavras:

Os filósofos concebem os afetos com que nos debatemos como vícios em que os
homens incorrem por culpa própria. Por esse motivo, costumam rir-se deles, chorá-
los, censurá-los ou (os que querem parecer santos) detestá-los. Creem, assim, fazer
uma coisa divina e atingir o cume da sabedoria quando aprendem a louvar e
múltiplos modos uma natureza humana que não existe em parte alguma e a fustigar
com sentenças aquela que realmente existe. Com efeito, concebem os homens não
como são, mas como gostariam que eles fossem. De onde resulta que, as mais das
vezes, tenham escrito sátira em vez de ética. (TP, 1, #1, p. 5, Grifos nossos.)

Em consonância com o verso de Terêncio, “Homem eu sou, e nada me é alheio”20, as


ações que costumamos julgar más, isto é, as decorrentes das paixões e da ignorância humanas,
para Spinoza são tão humanas quanto as que nascem da razão, de modo que nem o bem nem o
mal são naturais ao homem, assim como o justo e o injusto, a virtude e o vício etc.21.
Buscando antes entendê-las do que julgá-las22, Spinoza não separa a natureza humana, mas
afirma a sua unidade incorporando as paixões e, também, os erros, isto é, nem as paixões nem
o erro são desvios, e também, muito menos, o homem, de qualquer maneira que seja, participa
do nada. Ele é perfeito tal como é, assim como todas as outras coisas e a Natureza inteira. Por
este mesmo motivo, a vontade humana não pode ser absolutamente livre, porque isto seria
retirar o homem de dentro da Natureza e dizer que ele poderia agir mesmo contrariando as
suas leis, o que é absurdo. Em outras palavras. Não é só o corpo que obedece a Natureza, mas
também a mente, e isto porque ambos pertencem à mesma Natureza. Assim como as paixões e
a razão. A filosofia, portanto, ou a Ética, é o entendimento adequado da Natureza, que não é
essencialmente uma teoria, mas o próprio alcance da liberdade e da sabedoria. “É verdade,

20  Citado por Sêneca na carta a Lucílio n° CI (2008, p. 103). Aliás, frase reproduzida por Spinoza quase
literalmente (TTP, 2; 2008, p. 41): “[...]foram, contudo, homens, e nada do que é humano se lhes deve considerar
estranho”.
21  “Porque o homem, quer se conduza pela razão ou só pelo desejo, não age senão segundo as leis e as regras da

natureza” (TP, 2, #5, p. 13).


22  “Procurei escrupulosamente não rir, não chorar, nem detestar as ações humanas, mas entendê-las” (TP, 1, #4,

p. 8).
36
que o muito celebrado Descartes”, por outro lado, embora tenha tentado “explicar os afetos
por suas causas primeiras”, acreditava, porém, que “a mente tem um poder absoluto sobre as
suas próprias ações”, e, por isso, segundo Spinoza “ele nada mais mostrou, em minha opinião,
do que a perspicácia de sua grande inteligência” (EIII, Pref.; 2011, p. 97). Ou seja, no fim das
contas, à semelhança daqueles que querem parecer santos, Descartes apenas teria alcançado
uma aparência de conhecimento da natureza dos afetos, por nenhum outro motivo que aquele
que já apontamos, o de estar sua filosofia fundamentada em pontos centrais sobre as mesmas
bases que os teólogos. E, portanto, se o cristianismo é loucura, assim também o livre-arbítrio
absoluto, o dualismo substancial de corpo e alma, a diferença de intelecto e vontade e a ideia
de uma possível suspensão do juízo serão também loucura.
Com isso, buscamos dar uma ideia e mostrar a importância do método, a amplitude
das criticas e as mudanças de perspectivas que Spinoza efetuou, a fim de tornar claro porque o
método geométrico da Ética e o método histórico do TTP encontram-se no projeto descrito no
TIE, da mesma forma que o método do qual Spinoza fala no TIE está em perfeita consonância
aos desenvolvimentos posteriores de sua filosofia no que toca aos seus traços essenciais, a
saber, a adequação da ideia verdadeira à ordem da natureza e a sua oposição ao método
cartesiano do ponto de vista da natureza da ideia, além da unidade que esses traços compõem
com as críticas à teologia no TTP segundo o método de interpretação da Escritura segundo a
adequação de suas afirmações à natureza da ordem do seu todo (tema que será tratado apenas
mais a frente).

37
Capítulo 2: Modelo de natureza humana e pensamento matemático

Essa razão teria sido, sozinha, realmente


suficiente para que a verdade ficasse para sempre
oculta ao gênero humano, se a matemática, que se
ocupa não de fins, mas apenas das essências das
figuras e de suas propriedades, não tivesse mostrado
aos homens outra norma de verdade.

(Spinoza, Ética I, Apêndice)

Na vida comum somos obrigados a seguir o


partido da verossimilhança; em nossas especulações, é
à verdade que nos prendemos. O homem morreria de
fome e de sede se não quisesse beber e comer senão
após ter conseguido demonstrar perfeitamente que o
alimento e a bebida lhe são úteis.

(Spinoza, Carta 56, a Hugo Boxel)

2.1. O pensar matemático

No Prefácio da Parte III da Ética, Spinoza diz “considerarei as ações e os apetites


humanos exatamente como se fossem uma questão de linhas, de superfícies ou de corpos” (p.
98), e assim procede da mesma maneira que quando tratou de Deus, do corpo e de todas os
demais temas, pois “não deve haver mais do que uma só e mesma maneira de compreender a
natureza das coisas, quaisquer que sejam elas: por meio das leis e regras universais da
natureza” (idem). As leis e as regras da natureza são as causas necessárias segundo as quais
todas as coisas existem e agem, e o meio pelo qual são compreendidas é a matemática. No
caso da realidade corpórea não é difícil compreender essa afirmação. É certo que os nossos
sentidos são cinco e através deles percebemos as coisas segundo diferentes qualidades: cores,
figuras, sonoridades, texturas, gostos, cheiros etc. Quando o cientista, contudo, investiga os
corpos, a produção de cada qualidade dessas será compreendida à luz de relações específicas
que os corpos fora de nós estabelecem com os órgãos dos sentidos, e aquelas variadas
qualidades serão concebidas por uma única: a quantidade. Pode parecer estranho chamar a
quantidade de qualidade, pois estamos acostumados a considerar a qualidade e a quantidade
como opostos, mas isto nos parece equivocado. Entre a luz que reflete em um corpo e a
imagem formada no fundo das retinas por aquela luz refletida incidida sobre os nossos olhos,
há frequências de onda. Igualmente com o som formado pela vibração do aparelho auditivo.
38
Todas as variações de cor e de sonoridade são apenas explicáveis através da medição dessas
ondas, frequências, modificações dos aparelhos sensoriais. A altura, o comprimento, a
velocidade etc., todas essas qualidades são modos da extensão ou extensões determinadas da
matéria. Assim, a quantidade nada mais é do que a qualidade da matéria implicada nas
qualidades percebidas pelos sentidos, de maneira que estas apenas podem ser explicadas por
aquela. A quantidade é um modo infinito da extensão e as regras e leis da natureza física são
expressões da maneira regular com que essa quantidade se desdobra em altura e cumprimento
de onda; quantidades de energia etc.
Sendo a natureza de todas as coisas a natureza de uma única substância – como
Spinoza esperou ter demonstrado na Parte I –, no que diz respeito à natureza expressa
extensamente, suas modificações determinadas e finitas deixam-se conhecer segundo única e
exclusivamente as regras de produção de uma coisa extensa23. O que faz então a matemática?
Poderíamos responder, pela célebre frase de Galileu, que ela é a linguagem com a qual o livro
do mundo corpóreo foi escrito, mas isto nos impediria de pensar a matemática como criação
do intelecto humano, como produto de esforço racional, da mente humana. E isso nos
interessa ainda mais quando um dos principais temas da Ética é a potência da mente humana.
A geometria trabalha num misto de imaginação e raciocínio, exigindo do geômetra o
exercício de ambas as capacidades. Para chegar ao conhecimento das proporções de linhas,
superfícies e volumes, ele precisa antes passar pelas figuras perceptíveis à visão. Ele desenha
e cria imagens de figuras, cortando-as ao meio, inserindo-as umas nas outras, justapondo-as,
compara suas dimensões, mede-as, reposiciona-as. Esse trabalho de artesão que é feito com as
suas mãos não é prescindível. Ele analisa as figuras criadas por ele e tenta descobrir as regras
pelas quais são construídas não levando em conta senão as suas propriedades intrínsecas, sem
haver nenhum compromisso com medidas específicas. Ele busca imitar e reproduzir as
composições espaciais dadas aos seus sentidos à medida que manipula os seus limites,
conforme a relação que as extremidades das figuras têm com seu centro e umas com as outras.
Ao passo que descobre novas formas de composição, ele dá nomes diferentes às figuras,
chamando-as de círculo, quadrado, triângulo etc., assim como as suas variações24. Aos poucos

23
“A natureza é sempre a mesma, e uma só e a mesma, em toda parte, sua virtude e potência de agir. Isto é, as
leis e as regras da natureza [...] são sempre as mesmas em toda parte” (E III, Prefácio, p. 98).
24
Sobre isto, diz Claude-Paul Bruter: “a criação, a invenção das representações, desemprenha um papel dos mais
importantes no progresso da matemática” (BRUTER, 2003, p. 32). Defendendo ainda que na matemática não se
trata de mera apreciação passiva das formas geométricas, a matemática também é um saber experimental, pois
“visa desvendar a estrutura íntima do objeto e fazer aparecer as suas características específicas, o seu modo de
geração; ela procura reconhecer e justificar as diferentes transformações que ele pode operar, individualmente ou
no seio de complexos mais vastos” (idem, p. 35). Levando em consideração, portanto, esse aspecto manuseável
39
encontra a razão naquilo que ele imagina. Assim, o trabalho matemático envolve ao mesmo
tempo o corpo – o seu próprio corpo composto de órgãos receptivos e os corpos externos que
se encontram com o seu – e a mente, que forma imagens desses encontros e age sobre essas
imagens. Por agora é suficiente que formemos uma noção do trabalho do geômetra para
traçarmos em linhas gerais o por quê da escolha de Spinoza pelo modelo geométrico de
escrita da Ética. Deste modo, para o desenvolvimento da geometria, não é preciso preocupar-
se com as quantidades determinadas, as medidas das figuras. Esta é uma preocupação da
aplicação da geometria, quando ela se vale das convenções da aritmética. Não é necessária a
utilização de medidas de coisas, mas apenas de medidas puramente matemáticas, como os
graus de ângulos. Assim, o pi é um número matemático, e não a medida de alguma coisa. Ele
serve para a construção do círculo e para a compreensão de suas propriedades, mas não é ele
mesmo a medida “concreta” de um raio. Se temos um tampo de mesa de madeira redondo e
medimos com uma trena o seu diâmetro, digamos, 2m, sabemos que o seu raio mede 1m,
entretanto, com isso, não conhecemos nada da natureza do círculo por conta dessa medida
específica, ao contrário, conhecíamos antes algo de sua natureza quando sabíamos que uma de
suas propriedades consiste em o raio ser metade do diâmetro. Por outro lado, do
conhecimento dessa propriedade não podemos chegar por dedução à medida daquele tampo
de mesa, embora saibamos que todo objeto circular obedecerá aquela mesma regra.
Interessa-nos aqui apenas visualizar a maneira como o geômetra procede para daí
depreender a maneira geométrica de compreender as coisas, sejam elas quais forem. Quando
Spinoza fala de compreender os afetos humanos como se fossem linhas, superfícies e corpos,
consideramos que ele pretende analisar as regras de composição ou de produção tanto dos
afetos quanto das ações humanas segundo a sua própria operacionalidade. O Livro III é uma
longa e detalhada exposição de como os afetos podem ser deduzidos se conhecemos as suas
propriedades básicas e de como essas podem se combinar sem nenhuma necessidade de se
recorrer a algo alheio a elas. Enquanto texto, obra, a Ética nos apresenta os afetos

da matemática, “cada representação permite observar os objetos a uma luz particular: certas propriedades
revelam-se mais facilmente através do emprego de uma dada representação em vez de uma outra; neste sentido,
a representação torna-se um utensílio de descoberta” (idem). A posição de Charles E. Vaughan, para quem a
escrita geométrica da Ética é uma ilusão – “A forma dedutiva com que, lamentavelmente, Spinoza esforçou-se
para enunciar seu pensamento nesse texto é, na verdade, uma ilusão” – deriva justamente da ideia de que a
matemática independe da experiência, “a ‘dedução’ na teoria política, para Spinoza, é muito diferente da
dedução matemática. Esta última independe da experiência” (em BENJAMIN, 2014, p. 97). Que Spinoza não
julgasse que a matemática fosse independente da experiência é fácil de provar. No Tratado da correção do
intelecto, #23, quando ele explica a diferença dos quatro modos de percepção, ele situa claramente a geometria
no terceiro modo (ou segundo gênero de conhecimento) ao utilizar a “19ª Proposição do livro 7° de Euclides”
como exemplo desse modo de conhecimento. Isto ficará mais claro quando mais a frente neste capítulo
explicarmos em que consiste o conhecimento de segundo gênero e porque ele depende da experiência.
40
representados geometricamente, deduzidos uns dos outros segundo regras intrínsecas a eles e,
portanto, à natureza humana, da mesma maneira que representamos as regras intrínsecas à
natureza dos corpos pela matemática25. Desta maneira, o procedimento geométrico se torna
modelo para a compreensão de coisas não corpóreas, às quais a geometria propriamente dita
não pode ser aplicada, dado que estas – os afetos e as ideias em geral – não possuem extensão.
Deixemos claro que não queremos aqui dizer algo semelhante a o que os positivistas mais
tarde vão propor, não há aqui nenhuma tentativa da parte de Spinoza de transpor o método das
ciências naturais para um outro ‘campo do saber’. Uma hipótese desta já tem como erro
confundir a maneira matemática de pensar com a matemática aplicada. Não se espera aqui
encontrar nenhum correspondente físico das emoções psíquicas e medi-las por meio daquele
com o fim de explicá-las, para usarmos uma linguagem mais moderna. Ao contrário, se
proceder geometricamente é conhecer alguma coisa a partir das suas propriedades intrínsecas,
a mente, não sendo uma coisa extensa, não poderia ser conhecida pelo seu correspondente, o
corpo, porque assim seria conhecida por propriedades extrínsecas à sua natureza.
Dito isto, como estamos entendendo o modo de representação como causa, precisamos
nos aprofundar um pouco na natureza da representação. O verbo representar (representare)
aparece quatro vezes na Ética. A) na Parte I, Apêndice (p. 96): “Com efeito, quando as coisas
estão dispostas de maneira tal que, quando nos são representadas [repraesentatur] pelos
sentidos, podemos facilmente imaginá-las”; B) na Parte II, prop. 17, esc. (p. 68):
“chamaremos de imagens das coisas as afecções do corpo humano, cujas ideias nos
representam [repraesentant] os corpos exteriores como estando presentes, embora eles não
restituam as figuras das coisas”; C) na Parte II, prop. 40, esc. 2 (p. 80): “formamos noções
universais: 1. A partir de coisas singulares, que os sentidos representam [repraesentatis]
mutilada, confusamente, e sem a ordem própria do intelecto”; D) na Parte III, prop. 27, dem.
(p. 116): “as imagens das coisas são afecções do corpo humano, cujas ideias representam
[repraesentant] os corpos exteriores como presentes a nós”. Nota-se que em todos os casos
‘representar’ está ligado a imagens, à imaginação, aos sentidos e às afecções do corpo

25  Temosem mente que estamos falando da causa em sentido genético, e não em sentido transitivo. Por causa
genética entendemos as regras necessárias da produção de alguma coisa, sendo, por isso, intrínseca à coisa. Por
causa transitiva entendemos a causa ocasional situada no tempo e, por isso, extrínseca ao efeito. Ligamos a
noção de causa transitiva à de finalidade, pois, neste caso, o efeito se apresenta como resultado que sucede ao
aparecimento anterior da causa. Já a noção de causa genética que aqui apresentamos faz referência à seguinte
afirmação de Spinoza: a verdade ficaria para sempre oculta aos homens, “se a matemática, que se ocupa não de
fins, mas apenas das essências das figuras e de suas propriedades, não tivesse mostrado aos homens outra norma
de verdade” (E I, Apêndice, p. 43). Ressaltamos o apenas que restringe o conhecimento pela essência, quer
dizer, pela sua causa genética ou imanente, sem a abertura ao além (trans-) fora dessa essência.
41
humano. Segundo (C), a representação é atribuída aos sentidos, que nos representam os
corpos segundo unicamente a ordem das afecções, ou seja, segundo a ordem com que os
sentimos, afirmação corroborada por (A). Já em (D), e ainda em (C), menciona-se a ausência
dos corpos representados pela imaginação, anteriormente representados presentemente pelos
sentidos. Essa possibilidade de tornar uma coisa ausente presente se explica pelo fato de que
no corpo humano, em razão do encontro que ocorreu entre este corpo e outro, tenha se
formado uma afecção, a qual, quando representada por uma ideia, se chama imagem26. A
mente representa com a imagem da afecção entre o corpo humano e o corpo exterior que o
encontrou. Esta imagem, que também é uma ideia, permite, ao mesmo tempo, que a mente
forme uma determinada ideia do corpo humano afetado e uma determinada ideia do corpo
exterior. O corpo exterior não é a causa da ideia que o representa, senão apenas como causa
transitiva da imagem formada no corpo humano27. A imagem é corporal e é sentida, é a figura
na retina, o som no ouvido, a sensação nas mãos etc. que sempre envolve o corpo humano e o
corpo exterior. A relação entre o corpo exterior e a imagem é puramente corporal. A ideia que
representa não restitui a figura ou o som propriamente ditos, porque a figura e o som são
corpos, e não é da natureza da mente produzir corpos. Podemos disso concluir que, embora as
figuras, sons etc. sejam corporais, as suas representações são ações da mente, como toda
ideia, e que, por isso, podemos dizer que a mente se esforça por representar as coisas
singulares, este esforço se torna ainda mais patente quando se considera que aquilo que é
representado está ausente. Talvez por economia dos termos, Spinoza diz que quando a mente
forma a ideia que representa uma imagem ela imagina28. Ou seja, no fim das contas, imaginar,
de modo geral, é o mesmo que representar, seja a imagem a modificação corpórea no aparelho
sensorial, seja a ideia dessa modificação na mente.
Queremos fazer notar que essa representatividade nada tem de estática, como os
quadros de Descartes29, pelo contrário, são dinâmicas e ativas30. Se as ideias são para Spinoza

26
Os “mecanismos” da imaginação serão retomados mais detalhadamente no capítulo quarto. Tratamos deste
tema neste momento de forma mais geral e provisória. Contamos com a compreensão do leitor, pois, caso
fôssemos aqui desenvolver o que extensa e detalhadamente depois faremos, iriamos perder de vista o foco neste
capítulo.
27
Temos aqui mais um sentido para a causa transitiva, a de causa ocasional. Neste caso, o corpo dispõe, junto
com o corpo humano afetado, a ocasião para a formação de determinada imagem. Este sentido, contudo, não é
novo, ele é um aspecto a mais.
28  Ética, II, prop. 17, esc., p. 68-69.  
29  Cf. DESCARTES, 2005, 33-34.
30
É neste mesmo espírito que Paul Ricouer, ao comentar a Poética de Aristóteles, traduz o termo mimesis: "A
mesma marca deve ser conservada na tradução de mimese: quer se diga imitação, quer representação, o que é
preciso entender é a atividade mimética, o processo ativo de imitar ou de representar. É preciso, pois, entender a
imitação ou representação no seu sentido dinâmico de produzir a representação, transposição em obras
42
afirmações da mente, são-no também as representações (ideias-imagens), de modo que não
funcionam como as representações de Descartes, seres passivos à ação da vontade, pois, para
Spinoza, elas são em si mesmas expressões do desejo, da potência de agir da mente31. A
representação traz consigo toda a força peculiar daquele que imagina e jamais pode ser
entendida como cópia. Representar não é sinônimo de reproduzir, mas sinal de apresentar
novamente de uma maneira nova, peculiar, singular. Verifica-se, assim, que a
representatividade em Spinoza dirige-se unicamente para o sensível, ou seja, apenas enquanto
forma ideia de imagens. Para Spinoza, representar não é sinônimo de pensar (embora seja um
modo do pensar), e também não se confunde com a ação de inteligir, é uma ação específica da
mente que, a nosso ver, ele chama de imaginação.

2.2. A potência de agir da mente

Feita esta rápida digressão, Spinoza especifica o propósito da filosofia, que é o seu, o
qual não é nem a arte de cuidar do corpo, porque esta é a medicina, nem a de aperfeiçoar o
intelecto, tarefa que compete à lógica. “Aqui, diz ele, tratarei, portanto, como disse, apenas da
potência da mente, ou da razão, e mostrarei, sobretudo, qual é o grau e a espécie de domínio
que ela tem para refrear e regular os afetos” (E V, Prefácio, p. 213). Neste contexto, o modelo
de natureza humana será pensado a partir da potência de agir da mente. E se “quanto mais
uma coisa tem perfeição, tanto mais age e tanto menos padece e, inversamente, quanto mais
age, tanto mais ela é perfeita” (E V, prop. 40, p. 236), então mais perfeita será a mente que
mais agir e, inversamente, a mente que mais agir será aquela que servirá de modelo. É neste
sentido que o modo de pensar ou método matemático, essa outra norma de verdade, interessa
ao filósofo, mais por ser um modo de agir da mente do que as suas aplicações específicas. A
matemática, por ser a maneira de explicar as coisas pelas suas propriedades intrínsecas, é
também a ação da mente de explicar as coisas de acordo com a sua própria potência. O
intelecto, quando conhece, é causa do seu conhecimento e conhecer é a ação da mente, de
modo que, quando ela age, ela não age segundo regras distintas para diferentes tipos de
objetos, pois as regras e as leis de operação da mente são dela, não dos objetos conhecidos.

representativas" (RICOUER, 1994, p. 58), portanto “está excluída de início [...] toda interpretação de mimese de
Aristóteles em termos de cópia, de réplica do idêntico” (ibidem, p. 60).
31
Para Spinoza, aqueles que confundem as afecções com as ideias dessas afecções, e, por isso, julgam que as
ideias dessas afecções (imagens ou representações) são causadas pelas coisas, “veem as ideias como pinturas
mudas em uma tela e, imbuídos por esse preconceito, não veem que a ideia, enquanto é ideia, envolve afirmação
ou negação” (E II, prop. 49, corol., dem., p. 90)
43
Da mesma maneira que os corpos obedecem todos as mesmas leis e regras infinitas e eternas
da extensão, a mente, quando age, também obedece a leis e regras infinitas e eternas do
pensamento. A matemática, antes de ser conhecimento dos corpos, é conhecimento e, como
conhecimento, como ação da mente, deve ser compreendida segundo seu atributo, o
pensamento, não segundo a extensão32.
Na Ética, Spinoza pretende conhecer a potência de agir da mente humana não na
medida em que ela possa nos fornecer explicações sobre os corpos, mas para saber o quanto
ela é capaz de regular as paixões33. Spinoza resume em três os propósitos das ações humanas:
fama, riqueza e prazer: “As coisas que mais ocorrem na vida [...] ligam-se, pelo que se pode
depreender de suas obras, nestas três: riqueza, honra e concupiscência. Cada uma delas distrai
a mente, que não pode pensar em outro bem” (TIE, #3, 2014a, p. 328). Traduzindo em termos
da Ética, quanto mais os homens agem em busca dessas coisas, menor é a potência de agir de
suas mentes. A distração a que são levados por essas práticas equivale na mente à confusão ou
inadequação das ideias. No sentido oposto, quando a mente se aplica a conhecer ou a proceder
matematicamente, mais concentrada ela está e maior a perfeição da sua potência de agir.
Esses movimentos de distração e con-centração lembram o ajustamento do foco nas lentes da
câmera fotográfica, cuja nitidez da imagem depende da melhor adequação entre as lentes. O

32
A razão de a matemática enquanto produto da mente ser capaz de explicar a extensão, representando esta por
meio de signos (afinal de contas as figuras geométricas, os números etc. são signos), é que, para Spinoza, “a
ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas” (E II, prop. 7, p. 55). Conhecer é
ter a consciência da ordem e conexão adequada das ideias, e o conhecimento é o resultado desse esforço em
ordenar e conectar as ideias. Como pensamento e extensão são atributos de uma mesma substância, tudo o que se
segue, expresso em qualquer atributo, segue-se segundo a mesma necessidade e potência de agir da substância.
Logo, se as ideias são ordenadas e conectadas adequadamente quando a mente age com maior nível de perfeição,
os corpos existentes fora da ideia e pensados objetivamente nelas também existirão necessariamente ordenados e
conectados segundo a mesma necessidade que as suas ideias o são. “Em vez de exprimir a ação total dos objetos,
as ideias verdadeiras exprimem a ação própria do espírito; elas derivam umas das outras a partir do princípio
primeiro e consoante relações que traduzem a conexão real das coisas” (DELBOS, 2002, p. 101). É comum os
comentadores de Spinoza verem a escrita geométrica da Ética como uma forma acrescentada ao conteúdo. Esses
são os casos, segundo Fernando Dias Andrade, Augusto Reynol Filho e Luiz Roberto Takayama (em seus
respectivos artigos), de Leon Roth, Stuart Hampshire e Harry A. Wolfson, para quem a “exposição” geométrica
é proveniente de inseguranças pessoais por sua receptividade ou como mera escolha de estilo literário (como se
literatura e estilo fossem questões de somenos...), ou ainda por razões estratégicas visando a polêmica, o caso de
Carson Mark. Mesmo autores como Kuno Fischer, Jacob Freudenthal e Harold H. Joachim, que não pensavam
ser por razões extrínsecas a escolha da “forma” geométrica, não viam também nela nenhuma necessidade, ou
porque viam na Ética uma descrição do mundo à qual a “exposição” geométrica é conveniente (Fischer e
Freudenthal), ou porque simplesmente se adequava aos propósitos de Spinoza (Joachim). Aquele que mais se
aproxima da nossa posição e com quem mais nos identificamos é Victor Delbos, que, segundo Reynol
(REYNOL FILHO, 1998, p. 29), “se aceitarmos que a constituição da ordem geométrica ocorre como a descreve
Delbos, parece razoável concordar que as conclusões da filosofia de Spinoza – que para ele são verdades – têm
ligação íntima com o processo que as produziu. Sob esta ótica, elas não são meramente enunciadas por um
‘simples procedimento de exposição mais rigoroso que os outros’”. (Para os artigos referidos, cf. Cadernos
Espinosanos, n° 3/1998)
33
Muito embora, no quanto a mente se sabe capaz de conhecer os corpos, conheça ela também a sua própria
potência.
44
foco leva a uma concentração do olhar, enquanto que a falta de foco, à distração do olhar.
(Imagens excessivamente desfocadas podem chegar a causar náusea, que só melhora quando
o olhar consegue repousar sobre imagens focadas.) Podemos antever aqui a ligação que
Spinoza pretende estabelecer entre a “concentração” da mente (aumento da potência de agir) e
a regulação dos afetos, e entre a “distração” da mente (diminuição da potência de agir) e a
desregulação dos afetos. O importante é ressaltar que não são a riqueza, a fama ou o prazer
que são as causas da desregulação dos afetos; eles em si mesmos, como objetos fora da mente,
não são nem bons nem maus, são como quaisquer outras coisas existentes. A causa está na
própria mente que se deixa distrair de si mesma, como diz Delbos,

na medida em que as coisas e os seres não são mais do que porções da natureza, o
grande erro, o erro capital, é imaginar como soberanamente desejáveis coisas que,
acidental e momentaneamente, tocam o nosso desejo; acreditamos que existe uma
ligação sólida entre as coisas assim desejadas e o nosso desejo, mas é justamente o
contrário: o que cria a importância da coisa desejada é o desejo que investimos nela,
é o erro de tomá-la como aquilo que pode nos contentar, nos satisfazer (em
BENJAMIN, 2014, p. 347).

A mente distraída é como um motorista que, por se perder em devaneios sobre o


volante, esquece a ação de dirigir e corre risco de acidente, ou como alguém que sob o efeito
de uma droga muito forte perde a regulação sobre o próprio corpo. Uma das características da
concentração da mente é a perseverança na ação. O indivíduo que apenas busca aqueles bens
é um indivíduo que se perde nas suas ações, pois a finalidade da ação seria sempre algo
exterior e fora do alcance do poder da mente, de maneira que quando a mente se distrai, ela
cria seu próprio veneno, mas o remédio para a distração deve criar também ela mesma34, basta
que se esforce por buscar um bem pelo qual ela nunca se esforce em vão e que valha segundo
a sua própria medida. Este bem, naturalmente, só pode ser um conhecimento, conhecimento
este que, no TIE Spinoza chama de “conhecimento da união que a mente possui com toda a
natureza” (SPINOZA, 2014a, p. 331). Determinado a alcançar esse bem, Spinoza concebe que
todos os esforços da sua mente devam ser dirigidos a esse fim, fim que a mente almeja e que
deve estar completamente ao alcance do seu próprio esforço.

De onde já se poderá ver que queria dirigir todas as ciências a um só fim e um só


escopo, que é o de chegar a essa suprema perfeição humana da qual falávamos.
Tudo o que nas ciências não nos impele adiante precisa ser rejeitado como inútil; em

34
“Não se pode imaginar nenhum outro remédio que dependa de nosso poder que seja melhor para os afetos do
que aquele que consiste no verdadeiro conhecimento deles, pois não existe nenhuma outra potência da mente que
não seja a de pensar e de formar ideias adequadas” (E V, prop. 4, esc., p. 218).
45
uma palavra, todos os nossos esforços e nossas cogitações estão dirigidas a esse fim
(ibidem, p. 331)

É neste sentido que a matemática aparece na filosofia de Spinoza, apenas na medida


em que ela contribui para se alcançar o sumo bem, e essa contribuição se dá pelo modo com
que ela representa a natureza e que, por conseguinte, representa também as leis e as regras do
intelecto. Desta maneira, o que se evidencia pela escolha 35 do modo geométrico de
representar é o fato de que o modelo de natureza humana que se busca não é concebido como
extrínseco à ação de alcançá-lo, mas é ele mesmo pensado a partir da própria ação da mente
que se esforça para alcançar o maior grau de perfeição. Como diz Delbos (DELBOS, 2005, p.
346), “a Ética de Spinoza não consiste em mostrar que devemos realizar um ideal: todo ideal
colocado fora de nós é uma ficção abstrata. Ela consiste em explicar, por causas definidas,
como passamos da servidão das paixões à liberdade da razão”. E o melhor meio de
representar, isto é, expor por meio de signos, é mediante a sucessão de definições a
proposições, de proposições a demonstrações etc., sucessão esta que nada mais é do que uma
forma de representar, no caso da matemática propriamente dita, a adequação das coisas entre
si segundo a quantidade, e, no caso da filosofia, a adequação das ideias entre si quando
concebidas clara e distintamente. Na medida em que a adequação dos corpos não pode ser
entendida por outra necessidade senão pela mesma com que se entende a adequação entre as
ideias, Spinoza pôde conceber a unidade existente entre a Natureza e a mente pelo próprio
aumento de realidade que a mente alcança ao proceder matematicamente36.
O modelo de natureza humana, então, representa ao mesmo tempo aquilo que ele
busca e aquilo que ele se torna, da mesma maneira que o filósofo é aquele que encontra a
filosofia ao fazer filosofia e o sábio aquele que encontra a sabedoria ao agir sabiamente, ou
seja, um modelo concebido não como um ideal além da ação de buscá-lo, exterior à ação, mas
imanente a ela. De acordo com essa interpretação de que o modelo de natureza humana não
seja nem uma “imagem”, nem uma “ideia universal de uma essência universal”, nem um
“transcendental”, nem “um gênero nem uma espécie”, ou seja, que ele não seja “uma imagem
nascida da comparação imaginativa de coisas particulares numerosas que a imaginação
confunde e generaliza numa abstração” (CHAUÍ, 2011, p. 231), Marilena Chauí, a partir da
reapropriação que Spinoza faz dos termos “bom” e “mau”, compreende que enquanto estes
termos forem apenas imagens das coisas, eles estão presos à relatividade das interações
35
Talvez seja até equivocado falar de ‘escolha’ neste caso, pois para Spinoza a maneira geométrica de pensar
aparece como indispensável e mesmo necessária, segundo o modo como coloca as suas questões.
36
A ponto de afirmar que “a natureza inteira é um só indivíduo" (E II, prop. 13, lema 7, esc., p. 65).
46
correntes entre as coisas na vida mundana. Contudo, à medida em que eles “se referem à
qualidade dos afetos segundo nos permitam ou nos impeçam de realizar ações” (idem, p.
232), eles servem como “moderados dos afetos”, quer dizer, diretrizes para o que é
efetivamente útil (conforme a definição que demos no capítulo anterior). Bom e mau “não são
conhecimento de essências singulares, mas de relações necessárias entre as partes singulares”
(idem), ou seja, são noções comuns, “notio communis, ideia adequada das propriedades
comuns que existem igualmente no todo e em suas partes” (idem, p. 231), tal qual o
conhecimento das propriedades das figuras geométricas e o das propriedades das proporções
na aritmética37. Assim, tal qual a matemática usa das representações ou imagens (figuras,
números etc.), não pelas suas semelhanças entre si, mas pelas propriedades da natureza da
extensão, o modelo de natureza humana usa as representações de bom e de mau na medida em
que eles traduzem as propriedades da natureza do pensamento dentro daquilo que
efetivamente se mostra conforme às necessidades da natureza humana. O modelo, por
conseguinte, é ao mesmo tempo conhecimento e diretriz de ação.
Essa duplicidade também se encontra no bem supremo, que é ao mesmo tempo
conhecimento e afeto, ciência e amor de Deus38. O conhecimento de Deus ou da união da
mente com a natureza inteira é um bem desejável39 e, enquanto tal, está diretamente ligado à
variação da nossa potência de agir. “É o que se pode, aliás, deduzir também do fato de a
perfeição do homem aumentar ou diminuir em função da natureza e perfeição da coisa que ele
mais ama” (TTP, Cap. IV, p. 69, grifo nosso). O verbo “deduzir”, a nosso ver, é utilizado
porque, para Spinoza, a escolha pelo sumo bem como aquilo a que se deve mais buscar e
esforçar-se por alcançar é necessariamente um esforço racional, e porque, ao se buscar “a
certeza que afasta efetivamente toda dúvida” (idem, p. 69), isto é, que afasta toda
parcialidade, confusão e distração da mente, põe-se no caminho da felicidade e perfeição
humanas, as quais “dependem exclusivamente do conhecimento de Deus” (ibidem, p. 69).
Não há outro caminho, felicidade e conhecimento claro e distinto são indissociáveis40.

37
Trata-se do conhecimento de segundo gênero, exemplificado por Spinoza pela Proposição 19 do livro 7 dos
Elementos de Euclides, no qual “os matemáticos [...] sabem que números são proporcionais entre si; e eles o
concluem da natureza da proporcionalidade e desta propriedade que lhe pertence, a de que o produto do primeiro
e do quarto termos iguala o produto do segundo pelo terceiro” (TIE, #24). Por propriedade, portanto, Spinoza
parece compreender aquelas regras ou leis da Natureza que devem ser explicadas como modos infinitos dos
atributos da substância.
38
“O nosso supremo bem e a nossa felicidade resumem-se, pois, no conhecimento e amor de Deus” (TTP, Cap.
IV, p. 69)
39
O desejo, propriamente, é o tema do terceiro capítulo.
40
Os filósofos são “os que cultivam a verdadeira ciência e a verdadeira vida” (TTP, Cap. II, p. 32).
47
A dedução, portanto, é mais do que um procedimento lógico, porque de fato há entre a
coisa amada e a variação de perfeição do amante uma relação necessária, real, que se
evidencia afetivamente. As dúvidas não recaem sobre os afetos, porém sobre as coisas ligadas
a eles, porque, mesmo que seus objetos não existam, o afeto é indubitável. A certeza que
envolve todo afeto, no entanto, como se pode ver, não recai necessariamente sobre o seu
objeto, assim, a ideia ligada ao afeto pode ser obscura e indistinta, na medida em que a
relação entre o objeto e o afeto é duvidosa, indiscernível e confusa. Logo, o aumento de
perfeição necessariamente envolve ao mesmo tempo um aumento de clareza e distinção do
conhecimento do objeto desejado e do desejo associado ao objeto. Tudo o que promove esse
aumento de perfeição, por sua vez, será considerado bom, e tudo o que impede, mau, sem que,
contudo, nada possa ser identificado em absoluto com ou com outro, pois toda potência é
singular. Como noção comum, o modelo não é propriamente o conhecimento do singular. O
conhecimento do singular é aquele da união com Deus, para o qual o conhecimento modelar
da natureza humana parece ser apenas o caminho.
Já nos Princípios de filosofia cartesiana Spinoza tinha clareza dessa distinção. Em
primeiro lugar, “existe um Ser todo perfeito, pelo poder de quem todas as coisas são
produzidas e conservadas” (Introdução, p. 167-168) e que, portanto, está em nossa origem,
pois nós, enquanto “coisas” que existem na natureza, somos também produzidos e
conservados pela potência desse Ser. Em segundo lugar, “dissemos que tudo era incerto
enquanto ignorássemos nossa origem” (ibidem, p. 168), ou seja, enquanto ignoramos a
natureza de Deus. Sendo assim, o único caminho existente é o que “possamos formar uma
concepção de Deus [...] que nos obrigue a afirmar que ele é soberanamente verídico” (ibidem,
p. 170). Formada a ideia de Deus, portanto, a veracidade desta ideia e da realidade que ela
representa não é arbitrária, mas condicionada pela sua absoluta veracidade. Por fim, “desde
que tenhamos formado essa ideia, a razão que tínhamos de duvidar das verdades matemáticas
será suprimida” (ibidem, p. 170).
É certo que o caminho descrito aqui condiz, talvez, mais com aquele percorrido por
Descartes nas Meditações que aquele da Ética, entretanto, Descartes e Spinoza parecem
comungar da ideia de que a certeza matemática não pertence apenas ao domínio estrito do
cálculo e da geometria, mas à própria mente enquanto esta concebe seja o que for clara e
distintamente. A ideia cartesiana de que do conhecimento de Deus depende toda a certeza é
por Spinoza repetida (TTP, Cap. IV, p. 69): “sem Deus nada pode existir nem ser concebido,
já porque podemos duvidar de tudo enquanto não tivermos de Deus uma ideia clara e

48
distinta”. Da mesma maneira que para Descartes, para Spinoza Deus é a potência da
existência e persistência de todas as coisas – que no processo dedutivo da Ética funciona
como premissa fundamental básica41 –, e do conhecimento de Deus depende o conhecimento
claro e distinto de todas as coisas. Essa ideia central do cartesianismo, ao que tudo indica,
Spinoza irá manter, apesar de apenas na medida em que ele se volta mais para a ação da
mente. Por esta razão ele irá menos se preocupar com a matemática propriamente dita, para se
ocupar mais do procedimento matemático, que consiste em partir de premissas certas e
deduzir delas verdades eternas, ou seja, a matemática revela ao homem que racionalmente, à
medida em que o homem conhece as coisas por noções comuns, não é apenas o seu
conhecimento das coisas que progride, mas também a sua potência de agir aumenta. É na
ênfase a este último ponto que, a nosso ver, Spinoza se afasta definitivamente de Descartes.

2.3. O método no TTP

O procedimento matemático consiste em conhecer as regras de produção de uma coisa


a partir das suas propriedades intrínsecas e, como todas as coisas existem segundo a mesma
potência de Deus, não importa qual seja a natureza particular da coisa, o modo de
conhecimento racional desta permanecerá, em linhas gerais, o mesmo. Quando Spinoza
analisa a Escritura e se pergunta se nela se encontra algum conhecimento verdadeiro, o
método que se propõe mantém aquela mesma característica central do método matemático:
“mostro qual o método a seguir na interpretação da Escritura e bem assim todo o
conhecimento, sobre esta ou sobre as coisas espirituais, se deve extrair dela mesma e não
daquilo que conhecemos pela luz natural” (TTP, Prefácio, p. 12, grifo nosso). No caso da
Escritura, querer interpretá-la pela luz natural é tentar forçar o seu texto a dizer coisas que não
pertencem à sua natureza42. Conhecer a Escritura extraindo dela mesma o conhecimento que
contém é levar em consideração que aquilo que está em seu fundamento é a revelação, as
revelações dos profetas. Ora, a revelação difere por natureza do conhecimento originado na

41  “Após
termos criado o método, vimos, quarto, que para que fosse o mais perfeito, era preciso que tivéssemos
a ideia do ser mais perfeito. Desde o início, é preciso a máxima observação, antes de alcançarmos, o mais
rapidamente possível, o conhecimento de tal ser” (TIE, #49, p. 342).
42
“É, de fato, surpreendente a facilidade com que toda a gente se persuadiu de que os profetas sabiam tudo
quanto o entendimento humano pode atingir, e, como se julga preferível, apesar de certas passagens da Escritura
dizerem claramente que eles ignoravam algumas coisas, confessar que não se entendem essas passagens a
admitir que os profetas ignoraram algo. Ou, então, as pessoas esforçam-se por torturar as palavras da Escritura a
ver se as obrigam a dizer o que, manifestamente, elas não querem dizer” (TTP, Cap II, p.39).

49
razão ou na luz natural, e, sendo que não era objetivo dos profetas demonstrarem coisa
alguma a partir de conhecimentos evidentes e universais, conhecer o conteúdo do texto
sagrado implica em levar em consideração este fato de que o seu conteúdo não foi engendrado
racionalmente. Se os seus autores afirmaram que aquilo que ali expõem foi conhecido por
revelação, não se deve esperar que junto às suas afirmações sejam expostas as suas razões e
muito menos que elas possam ser deduzidas por qualquer um que se esforce por compreender
as coisas clara e distintamente, dado que Deus, ao revelar seus propósitos a alguns, não
revelou também os seus motivos, os quais permaneceram escondidos longe do alcance da
razão humana.

A Escritura expõe e ensina as coisas de maneira que possam ser facilmente


percebidas por qualquer pessoa. Dito de outro modo, ela não as deduz e encadeia a
partir de axiomas e definições, mas limita-se a dizê-las de um modo simples, além
de quê, em abono de suas palavras, utiliza exclusivamente a experiência, isto é, os
milagres e os relatos históricos, os quais, por sua vez, estão também escritos num
estilo e em frases destinadas a emocionar os ânimos do vulgo” (TTP, Cap. XIII, p.
207).

A maneira ou o estilo com que a Escritura fora escrita está ligado diretamente à
finalidade a que se propõe. Proceder por demonstração a partir de evidências racionais
certamente não constitui o estilo de escrita da Escritura; no entanto, além disso, evidencia-se
assim que o estilo de escrita, para Spinoza, não está desvinculado daquilo que se diz, como se
fosse mera forma comunicativa escolhida ao sabor do gosto do escritor; pelo contrário, está
necessariamente adequado aos propósitos do texto. É fácil identificar em que consiste esse
estilo, cuja característica principal é emocionar os ânimos do receptor: a retórica, a qual, em
suas características principais, não difere daquela sobre a qual Aristóteles escreveu (2000, p.
3): “visto que a retórica tem como fim um julgamento [...] é necessário não só atentar para o
discurso [...] mas também pôr-se a si próprio e ao juiz em certas disposições”, disposições
essas que nada mais são do que as modificações de ânimo, as chamadas paixões. Sua fonte,
portanto, é a experiência, que, para Spinoza, nada mais significa que o mundo da ordem das
afecções, e não o da ordem do intelecto. Não é de se admirar que uma obra que tem por
finalidade submeter os homens à obediência dos seus mandamentos tenha como foco
principal influenciar os seus ânimos, de modo a mantê-los restritos ao domínio das afecções.
É certo que do ponto de vista meramente das afecções a natureza se mostre arbitrária e
desconexa em seu interior, pois nada pela imaginação se nos mostra rigorosamente
necessário, isto é, segundo leis comuns, mas isto não quer dizer que essa realidade arbitrária

50
seja simplesmente dada, pois o fato é que ela, ao contrário, é também produzida pela
imaginação, e, na medida em que os homens aprendem a dominar a técnica de influenciar a
imaginação alheia a produzir imagens ordenadas segundo a influência que exerce sobre seu
ânimo, aprendem a ordenar a realidade segundo a ordenação que conseguem imprimir nas
paixões do receptor.
A arte da retórica consiste justamente nisso, em, através do discurso, conseguir
influenciar o ânimo do ouvinte/leitor ao ponto de este estar disposto de tal maneira que venha
a concordar (ou discordar, se for o caso) com o orador, concordância esta que nada tem a ver
necessariamente com a razão, mas, em primeiro lugar, com uma certa maneira de ‘ver’ as
coisas. O julgamento do qual fala Aristóteles nada mais é do que a opinião formada de acordo
com essa maneira de ver, de imaginar as coisas. Assim, acreditando que as coisas elas
mesmas existem ordenadas daquela maneira com que imagina, tanto o retórico quanto seu
receptor julgarão ou emitirão opiniões conformes a esse estado de cosias. É justamente este o
caso dos profetas, que, segundo Spinoza, apenas imaginavam as coisas “reveladas” por Deus,
e que, como não poderia ser diferente, escreveram o texto da Escritura de acordo com esse
mesmo espírito imaginativo e retórico. Desta maneira, aquele que se propõe a interpretar a
Escritura não pode desconsiderar o seu estilo e deve adotar como método de leitura o respeito
à sua natureza específica. O caráter singular e inovador com que Spinoza leu a Escritura se
deve justamente a tomá-la ‘ao pé da letra’, verificando assim, de imediato, que seu texto não
se propõe em momento algum a demonstrar qualquer coisa segundo a luz natural. Isto não
quer dizer, contudo, que a interpretação da Escritura seja também ela, necessariamente,
apenas um trabalho imaginativo. Spinoza não obedece a Escritura, ele não toma como
princípio que sua origem seja transcendente e absolutamente verdadeira. Em contrapartida,
ele revela, valendo-se das próprias palavras do texto, os julgamentos ali presentes, os quais,
pela arte dos profetas, espera-se que sejam difundidos entre os homens. O procedimento de
exposição desses julgamentos retirados de dentro do texto é, por isso mesmo, dedutivo e
demonstrativo, pois que tem como ponto de partida os fundamentos a partir dos quais o
discurso profético se desenvolve. Naturalmente que esses fundamentos são distintos daqueles
da filosofia.
“Os fundamentos da filosofia são as noções comuns, devendo toda ela ser deduzida
a partir apenas da natureza; os da fé, por seu turno, são as narrativas históricas e a
língua, pelo que não podemos deduzi-la senão da Escritura e da revelação, conforme
demonstramos no capítulo VII” (TTP, Cap. XIV, p. 222, grifo nosso).

51
A diferença de objeto não altera, portanto, essencialmente o método. O fato de o TTP
não estar escrito seguindo o mesmo modelo matemático que a Ética, não significa que o
procedimento matemático, tal como o definimos anteriormente, esteja ausente. O fato de o
‘livro da natureza’ ser escrito segundo fundamentos distintos daqueles a partir dos quais a
Escritura foi escrita, não significa que a Escritura internamente não se desenvolva
coerentemente aos seus próprios fundamentos, que seus elementos não possam ser deduzidos
e demonstrados por esses mesmos fundamentos. Ora, que os profetas não tenham mais do que
imaginado as coisas é algo que se deduz do texto sagrado, cuja “dificuldade em compreender
[...] reside unicamente na língua e não na transcendência do assunto” (idem, Cap. XIII, p.
207). A Escritura não opera por noções comuns e a sua ordem obedece aos critérios da língua,
não aos do intelecto. Interpretá-la consiste então em partir da compreensão da ordenação
própria da língua na qual foi escrita, ordenação que não é demonstrativa-racional, mas
narrativa. Os relatos de fatos históricos e de fatos sobrenaturais (os milagres) da Escritura são
ficções destinadas à catequização moral e apenas dentro desse seu propósito, apenas restrito a
isso que de fato se propõe, é que reside a sua positividade. Esperar que se possa encontrar aí
qualquer demonstração ou interesse puramente intelectual, como pretendem os teólogos, é
forçar e deturpar o seu sentido.

Desse modo, quer dizer, se na interpretação da Escritura e na discussão do seu


conteúdo não se admitirem outros princípios nem outros dados além dos que se
podem extrair dela mesma e da sua história, estaremos procedendo sem perigo de
errar e poderemos discutir com tanta segurança as coisas que ultrapassam a nossa
compreensão como aquelas que conhecemos pela luz natural. No entanto, e para que
fique claro que essa via é, não só a correta, mas também a única, além de estar em
conformidade com o método de interpretação da natureza, é preciso notar que a
Escritura trata frequentemente de coisas que não podem deduzir-se dos princípios
conhecidos pela luz natural. Com efeito, ela compõe-se em boa parte de histórias e
revelações; ora, as histórias contêm principalmente milagres, isto é, descrições de
fatos insólitos da natureza adaptados às opiniões e à mentalidade dos historiadores
que as escreveram; as revelações, por seu turno, estão também adaptadas às opiniões
dos profetas e ultrapassam realmente a compreensão humana. Daí que o
conhecimento de todas essas coisas, ou seja, de quase tudo o que vem na Escritura,
deva investigar-se unicamente na própria Escritura, do mesmo modo que o
conhecimento da natureza se investiga na própria natureza (idem, Cap. VII, p. 116,
grifo nosso).

Embora as narrativas sejam compostas arbitrariamente segundo a imaginação do


profeta, elas não deixam de ser necessárias do ponto de vista da sua finalidade. O profeta não
imaginou simplesmente qualquer coisa, a Escritura não é um amontoado sem sentido de
imagens e palavras, ela permanece em toda a sua extensão fiel aos seus fundamentos. De
acordo com a passagem acima, Spinoza fala de método e interpretação de maneira quase
52
indistinta, pois, ao que tudo indica, o método é método de interpretação e, nesse sentido, tanto
a natureza quanto a Bíblia, quando percebidas pelos olhos da razão, são interpretadas pelo
mesmo método. No TIE ele diz que “o método verdadeiro é o caminho pelo qual a própria
verdade, ou a essência objetiva das coisas, ou suas ideias (tudo isso tem o mesmo
significado), seja procurada na ordem devida” (#36, p. 338). É certo que aqui ele se refere ao
método da filosofia de interpretação da natureza, mas podemos perfeitamente aplicá-lo à
interpretação da Escritura, não a partir, naturalmente, de um ideia verdadeira dada, mas a
partir da ideia que lhe serve de fundamento – que lhe confere unidade, portanto. Podemos
depreender disto que as ficções não são carentes de ordenação, se consideradas do seu próprio
ponto de vista, e embora não sirvam de explicação das coisas43, orientam de uma certa
maneira as afecções do corpo. Ou seja, a ideia que representa a finalidade que serve de
fundamento à Escritura não apenas é princípio de ordenação das suas ficções, como também é
princípio de ordenação das afecções daquele que é afetado pela mesma44. E nisso reside o seu
caráter retórico de influenciar os ânimos de seus leitores, no mesmo espírito com que Moisés
buscou influenciar o povo hebreu quando lhe pregava com as tábuas em mãos do alto de um
palanque. É desta maneira que a interpretação racional da Bíblia, isto é, compreendê-la pelos
seus princípios (e interpretar, para Spinoza, parece significar justamente isto), também é situá-
la em seu contexto histórico, no qual a criação das suas ficções se justifica como necessária
no momento em que, sem elas, o povo hebreu poderia não ter sobrevivido. Talvez seja
possível, a partir disto, traçar um paralelo entre a história e as ficções individuais, porque, da
mesma maneira que “a revelação variava de profeta para profeta, conforme o seu
temperamento, a sua imaginação e as opiniões que anteriormente perfilhava” (TTP, Cap. II,
p.35), a mesma revelação devia variar conforme o público ao qual o profeta se destinava, de
sorte que deveriam compartilhar – os indivíduos que compunham o público entre si e mais o
profeta – de imaginação, temperamento e opiniões semelhantes, ou ainda elementos ou de
certos modos de afetar e ser afetado que previamente já fossem compartilhados em

43
“Em primeiro lugar, digo apenas que é uma concatenação de ideias [...] e não que é uma concatenação de
ideias, as quais explicam a natureza dessas coisas. Pois, trata-se, na realidade, das ideias das afecções do corpo
humano, as quais envolvem tanto a natureza do corpo humano quanto a natureza dos corpos exteriores. Em
segundo lugar, digo que essa concatenação se faz segundo a ordem e a concatenação das afecções do corpo
humano, para distingui-la da concatenação das ideias que se faz segundo a ordem do intelecto” (E II, prop. 18,
esc., p. 69)
44  As ideais que representam finalidades são elas mesmas ficções – todas as causas finais não passam de ficções

humanas” (E I, Apêndice, p. 44) –, ou seja, imaginações. Como imaginações, naturalmente, não representam a
disposição das próprias coisas, mas apenas das afecções do próprio corpo. A origem dos preconceitos e do erro
residem justamente aí, isto é, quando se “julgas as coisas de acordo com a disposição de seu cérebro, ou melhor,
toma as afecções de sua imaginação pelas próprias coisas” (ibidem, p. 44). Entretanto, a ordem da imaginação
por si só não envolve nenhum erro, mas uma virtude (cf. E II, prop. 17, esc., p. 68-69).
53
comunidade45. Assim, diferentemente da ordem do intelecto, “ordem pela qual a mente
percebe as coisas por suas causas primeiras, e que é a mesma em todos os homens” (E II,
prop. 18, esc., p. 69), a ordem das afecções varia de pessoa para pessoa, assim como de grupo
de pessoas para grupo de pessoas, enquanto se os considera como um só indivíduo, e não dá a
conhecer as coisas pelas suas causas primeiras, mas tão-somente pelas causas restritamente
ligadas àquela pessoa ou àquele grupo, como no caso dos judeus, as quais apenas a eles as leis
do Antigo Testamento foram reveladas e prescritas46; de tal modo essas revelações pertenciam
a um corpo de uma comunidade, que “um indivíduo judeu, considerado isoladamente e à
margem da sociedade e do Estado, não usufrui de nenhum dom divino que o coloque acima
dos outros, nem existe nenhuma diferença entre ele e um pagão” (TTP, Cap. III, p. 57).
Mas se o método é o mesmo para interpretação da Escritura e da natureza, como se
entende a afirmação de Spinoza no Prefácio ao TTP?

Uma vez apresentados os fundamentos da fé, concluo, finalmente, que o


conhecimento revelado não tem outra finalidade senão a obediência e que, tanto pela
finalidade como pelos fundamentos e pelo método, ele é completamente diferente do
conhecimento natural, não tendo nada em comum com este, pois cada qual ocupa a
sua área sem que o outro se insurja e sem que nenhum tenha de se considerar
subordinado (p. 12)

Diante dessa passagem parece termos apenas duas opções de interpretação: ou Spinoza se
contradiz de fato ou ele estava preocupado neste momento com outra coisa, que seja, deixar
clara a distinção radical entre filosofia e teologia a fim de evitar confusões. Entretanto,
consideramos que nenhuma das duas respostas é satisfatória. A verdade, a nosso ver, é que
nessa passagem Spinoza não fala de duas aplicações do mesmo método racional, mas de dois
métodos distintos de interpretação. De um lado, o método filosófico, que conhece as coisas
pela luz natural e que se fundamenta sobre uma ideia verdadeira, e do outro lado o método
teológico, que conhece as coisas pela fé e se fundamenta sobre as revelações dadas pelos
profetas, o qual, embora não seja o método verdadeiro, nem por isso não é método. Portanto,
não há nem contradição entre as diversas passagens e nem o dizer a mesma coisa com
intenções diferentes, pois são de fato coisas distintas que estão sendo ditas – embora ainda

45  “Se alguém foi afetado, de alegria ou de tristeza, por um outro, cujo grupo social ou nacional é diferente do
seu, alegria ou tristeza que vem acompanhada, como causa, da ideia desse outro, associada à designação genérica
desse grupo, ele não apenas amará ou odiará esse outro, mas também todos os que pertencem ao mesmo grupo”
(E III, prop. 46, p.128).  
46  “As leis do Antigo Testamento não foram reveladas e prescritas senão aos judeus” (TTP, Cap. III, p. 55)  

54
assim Spinoza possa ter aproveitado uma oportunidade para reforçar a fronteira radical
existente entre filosofia e teologia. Dissipado o problema, podemos seguir adiante.
A finalidade presente no método bíblico e no conhecimento pela fé é a obediência, ou
seja, “obedecer inteiramente a Deus, praticando a justiça e a caridade” (TTP, Prefácio, p. 12).
Entretanto, como já vimos, esse conhecimento não é comum ao intelecto de todos os homens
e, por conseguinte, não pode ser alcançado pelo esforço racional que parte de uma ideia
verdadeira dada acessível a todos. O seu conhecimento depende da aceitação da palavra do
profeta, a qual não consiste no mero assentimento, mas na comunhão de determinados afetos
e afecções ligados a uma mesma representação: a imagem de Deus ou, simplesmente, a sua
palavra. Através da fala e de imagens como no sonho, Deus se apresenta aos homens por
intermédio das capacidades mediúnicas dos profetas dizendo a eles o que devem fazer e a que
e a quem seguir. Por sua vez, sendo a palavra do profeta o mesmo que a palavra divina, o
restante dos homens devem seguir os profetas como se seguissem ao próprio Deus. Como o
valor dessas palavras reside unicamente na confiabilidade emprestada aos profetas, esses
mesmos devem servir de exemplo de seguidores daquilo que dizem. Desta maneira, entende-
se que “Deus não exige aos homens, através dos profetas, que conheçam dele outra coisa que
não seja a sua divina justiça e caridade, quer dizer, aqueles atributos que os homens podem
imitar mediante uma certa regra de vida” (idem, Cap. XIII, p. 211, grifo nosso). Isto
corresponde ao primeiro dos fundamentos da Escritura e que nada mais é do que a sua
finalidade: “Existe um Deus, isto é, um ser supremo, sumamente justo e misericordioso,
modelo da verdadeira vida: com efeito, quem não sabe ou não acredita que ele exista não lhe
pode obedecer ou reconhecê-lo como juiz” (ibidem, p. 212, grifo nosso). A obediência
consiste no cumprimento de uma certa regra de vida, na conduta atenta aos mandamentos de
Deus, que são baseados na justiça e na caridade. O conjunto dos mandamentos, expressos
tanto de maneira direta, discursiva, quanto por narrativas, compõem o modelo da verdadeira
vida, isto é, aquela vida regrada pelos deveres ditados via profética. Em vida, os profetas e os
sábios, como Moisés e Salomão, e, no cristianismo, Cristo e os santos, são exemplos de
homens que viveram segundo esse modelo e, por isso, são eles mesmos modelos para o
restante dos homens. Prestar obediência a esse modelo e aos seus exemplos é abdicar em parte
de julgar por si mesmo as próprias ações, pois obedecer significa justamente reconhecer
aquele a quem se obedece como juiz de suas ações.
Essa relação entre o seguidor e o modelo Spinoza caracteriza como imitativa. Neste
caso, imitar significa agir pelo exemplo de, tornar-se a si mesmo o exemplo de um modelo.

55
Ora, não seria possível imitar se o modelo fosse reconhecido pelo conhecimento racional que,
por sua natureza, exige esforço próprio, destarte, autonomia, ser juiz de si. É a mesma
distinção que Spinoza faz entre ‘estar sob a jurisdição de si’ e ‘estar sob a jurisdição de
outrem’: “cada um está sob jurisdição de outrem na medida em que está sob o poder de
outrem, e está sob jurisdição de si próprio na medida em que [...] pode viver segundo o seu
próprio engenho” (TP, II, #9, 2009, p. 16-17). Não viver segundo seu próprio engenho ou,
simplesmente, não ser juiz de si mesmo é o mesmo que estar sob o poder de outrem ou sob o
julgamento de outrem 47 . Esse poder e esse julgamento, entretanto, não são entidades
puramente abstratas ou transcendentes que ultrapassem o poder da nossa percepção, e nem tão
difíceis que exijam muito esforço intelectual, eles devem ser suficientemente acessíveis ao
vulgo para que este possa reconhecê-lo e, acima de tudo, segui-lo.
De tudo isto se conclui que o modelo de obediência deve ser sensível, imaginativo,
facilmente retível pela memória e reproduzível, o que não seria possível se ele não fosse
representado de alguma maneira. É suficiente como exemplo lembrarmo-nos do teatro
catequético de José de Anchieta no Brasil colônia. A representatividade é, portanto, atributo
inescapável do modelo. Como vimos, entretanto, o modelo de natureza humana apresentado
na Ética não parece ser de mesma ordem, e com isso podemos perceber diferentes usos da
representação, sem que esta deixe de estar presente.

2.4. Os preceitos da razão e o modelo de natureza humana

O melhor que podemos fazer, enquanto não temos um conhecimento perfeito de


nossos afetos, é conceber um princípio correto de viver, ou seja, regras seguras de
vida, confiá-las à memória, e aplicá-las continuamente aos casos particulares que,
com frequência, se apresentam na vida, para que nossa imaginação seja, assim,
profundamente afetada por elas, de maneira que estejam sempre à nossa disposição.
Por exemplo, estabelecemos, entre as regras de vida, que o ódio deve ser combatido
com o amor ou com a generosidade, em vez de ser retribuído com um ódio
recíproco. Entretanto, para que esse preceito da razão esteja sempre à nossa
disposição quando dele precisarmos, deve-se pensar e refletir sobre as ofensas
costumeiras dos homens, bem como sobre a maneira e a via pelas quais elas podem
ser mais efetivamente rebatidas por meio da generosidade. Ligaremos, assim, a
imagem da ofensa à imaginação dessa regra, e ela estará sempre à nossa disposição
quando nos infligirem uma tal ofensa. Pois, se também tivermos à disposição o
princípio de nossa verdadeira utilidade [...] Assim, quem tentar regular seus afetos e
apetites exclusivamente por amor à liberdade, se esforçará, tanto quanto puder, por

47
Por esta mesma razão, Spinoza diz que Deus não poderia agir tendo em vista o bem, porque seria “supor a
existência, fora de Deus, de alguma coisa que não depende dele, uma coisa que, a operar, ele toma como modelo
[...] Mas isso não significa senão submeter Deus ao destino” que é o que há de “mais absurdo a respeito de Deus,
que é a causa primeira e única causa livre” (E I, prop. 33, esc. 2, p. 40). O par de verbos ‘submeter/livre’ fala por
si.
56
conhecer as virtudes e as suas causas [...] Quem observar com cuidado essas coisas
(na verdade, elas não são difíceis) e praticá-las poderá, em pouco tempo, dirigir a
maioria das suas ações sob o comando da razão (E V, prop. 10, esc., p. 222, grifos
nossos).

Nesta esclarecedora passagem reencontramos a mesma referência às tais ‘regras de


vida’ e, mais uma vez, elas aparecem ligadas à imaginação. Logo de início é dito que essas
regras não são um conhecimento perfeito das coisas, pois que devemos lançar mão delas
justamente na falta deste conhecimento. Enquanto conhecimento imperfeito, entretanto, não
parecer ser por oposição ao perfeito, pois que, ao que tudo indica, quanto mais e mais
aperfeiçoadamente se o pratica, mais as ações fundamentadas por aqueles preceitos serão
dirigidas sob o comando da razão. Isto se deve ao fato de que os preceitos não são criados
aleatoriamente e que eles próprios não são imaginações. Spinoza deixa claro que de um lado
há a regra e, de outro, a imaginação dessa regra.
Como são formadas então essas regras? Podemos dizer com segurança que elas
funcionam como princípios das ações que são noções comuns, como já vimos anteriormente,
do bom e do mau. Convém tratar do pano de fundo de onde se tira a certeza dessas noções.
Tendo sido demonstrado que a substância é absolutamente livre e que, por isso, age
absolutamente em adequação à sua natureza, ela, e todos os seres que necessariamente
existem somente nela, não pode senão afirmar absolutamente a sua existência; da mesma
forma é próprio de cada ser particular também ter por essência a afirmação da sua existência e
buscar agir em conformidade à sua natureza, não absolutamente, mas enquanto são finitos em
seu gênero. Deste modo, todo princípio de ação ou de afirmação de sua essência (pois é nisso
que consiste a ação, “agir segundo a razão” e “fazer aquilo que se segue da necessidade de
nossa natureza, considerada em si só” 48 ) deve existir adequadamente à necessidade de
afirmação da substância, ou seja, os princípios racionais são modificações particulares do
princípio da perseveração em seu ser na medida em que são princípios de seres particulares
que compreendem a si mesmos como causas adequadas daquilo que se sucede fora deles49.
As ações distinguem-se das paixões segundo o critério da origem da determinação
daquilo que fazemos e do que se sucede ao que fazemos. No primeiro caso, a determinação é
racional e pode ser compreendida apenas pela essência daquele que age, no segundo, a
determinação é confusa e não pode ser compreendida apenas pela essência daquele que faz,
mas precisa ser compreendida também pela essência de um outro que afeta o primeiro. Em

48 E IV, prop. 59, dem., p. 195.


49  Cf.  E
III, def. 2, p. 98.
57
outras palavras, na ação o agente tem consciência do por quê daquilo que faz, e na paixão o
agente desconhece a razão do que faz. Como, no entanto, é impossível que a cada vez que
alguém faça alguma coisa se medite sobre, Spinoza entende a necessidade de se recorrer à
imaginação e à memória para que se possa sempre agir em conformidade à razão. A formação
dos princípios depende da reflexão sobre as causas da virtude e sobre o que nos faz agir mais
em conformidade ao aumento da nossa potência (ou, simplesmente, à necessidade da nossa
natureza). Segundo o exemplo que Spinoza fornece na passagem acima, reconhecemos que
em certas situações ora respondemos a uma ofensa com outra ofensa, ou por ódio, ora com
generosidade, ou por amor. O ódio é um afeto triste e, como afeto triste, é sempre uma
diminuição da potência de agir e que também jamais pode estar em conformidade a uma outra
potência, pois “o ódio é aumentado pelo ódio recíproco” (E III, prop. 43, p. 127). A
necessidade com que A age e B age são, como já fora dito, modos de uma mesma necessidade
da natureza de uma mesma substância, logo não podem conformar-se senão na medida em
que agem por amor. Assim, é preciso uma regra de vida que nos leve sempre a agirmos por
amor à uma ofensa recebida. Spinoza, no entanto, não crê que o “agir por amor” provenha de
um esforço meramente ‘subjetivo’, por isso é preciso “refletir sobre as ofensas costumeiras
dos homens”, é preciso refletir sobre as experiências em que as ofensas ocorrem. Ora, já
vimos que os homens entristecem-se apenas porque buscam bens incertos. Fazer o mau a um
outro não pode ter como determinação senão um afeto triste, isto é, um desconhecimento da
razão segundo a qual faz o que faz, isto significa que só faz o mau ou ofende porque estava
em busca de um bem incerto. Ele então odeia aquele que julga ser um outro a causa da sua
tristeza50 e, por isso, não percebe a necessidade com que foi afetado, não percebe que a
verdadeira causa é a necessidade com que aquilo que buscava atingir não poder ser jamais
absolutamente conquistado. “Com efeito, vemos que a tristeza advinda da perda de um bem
diminui assim que o homem que o perdeu dá-se conta de que não havia nenhum meio de
poder conservá-lo” (E V, prop. 6, esc., p. 219). É o caso de todos os bens mundanos que já
enumeramos. Da mesma maneira com que “ninguém sente pena de uma criança por ela não
saber falar, andar, raciocinar” (idem), porque é da natureza da criança que ela não saiba
nenhuma dessas coisas e que isso não possa ser alterado sem com isso destruir a própria
criança, não se pode esperar que aquilo que escapa à nossa regulação possa depender
exclusivamente desta mesma regulação, pois, pela mesma razão, é da natureza dos bens

50 E III, def. 7 dos afetos, p. 105.


58
mundanos serem entes de imaginação e, por isso, estarem sujeitos ao acaso das nossas
afecções.
Esses são de fato exemplos facilmente observáveis na experiência, assim como muitos
outros, e neles pode-se observar também as várias maneiras com que os homens respondem às
situações que lhes são desfavoráveis. Tais exemplos servem de imagens de como os homens
podem agir conscientes ou não da necessidade em que as coisas existem, o que nos permite
separar os exemplos que nos são úteis para agirmos em conformidade à razão e os que nos são
úteis como contraexemplos dessa mesma conformidade51. Essas distinções nada mais são do
que a formação de ideias adequadas ao nosso esforço de agir racionalmente. Trata-se do
conhecimento de segundo gênero, que consiste em formar “noções comuns e ideias adequadas
das propriedades das coisas” (E II, prop.40, esc. 2, p. 81). A necessidade com que os bens
mundanos são sempre alcançáveis apenas parcialmente, ou com que sempre são passíveis de
perda, é uma noção comum a toda espécie de bens e é um conhecimento que parte do
conhecimento da ordem eterna das coisas, isto é, a partir do conhecimento segundo os
atributos às modificações infinitas desses atributos nas quais as coisas particulares existem.
Isto serve, em primeiro lugar, para mostrar que o conhecimento de segundo gênero não exclui
o de primeiro gênero, mas antes o incorpora, sem, com isso, suprimir a atividade da
imaginação ou superá-lo de alguma forma. E é isso que queremos destacar do trecho que ora
estamos comentando. O que afirmamos é que, no conhecimento de segundo gênero, o
intelecto e a imaginação operam em unidade, como se fossem uma só coisa, sem que com isso
cada um perca a sua natureza, da mesma forma que, por analogia, o homem é a união de
corpo e mente, sem que corpo e mente tenham cada um a sua natureza particular alterada. No
escólio da proposição 59 da quarta parte da Ética, Spinoza explica isso da seguinte maneira
(p. 195, grifo nosso): “Podemos, assim, ser determinados a uma só e mesma ação, tanto por
causa de imagens de coisas que concebemos confusamente, quanto por imagens de coisas
que concebemos clara e distintamente”. Note-se que mesmo quando concebemos clara e
distintamente as coisas, isto é, as conhecemos por uma noção comum, ainda assim a ação é
causada pela imagem que temos das coisas. A noção comum então não é a causa única da
ação, ela é a causa apenas na medida em que ela nos faz perceber clara e distintamente a
imagem das coisas que determina a nossa ação, ação esta que ainda assim poderia ser
realizada sem a presença de nenhuma noção comum, porque, embora percebida obscura e

51  Notar
que os onze primeiros parágrafos do TIE são dedicados a traçar distinções desse tipo, justamente quando
Spinoza descreve o início do seu percurso filosófico.
59
confusamente, a imagem/causa poderia ser a mesma. Em outras palavras: a ordem das nossas
afecções não necessariamente concorda com a ordem do intelecto somente quando este age
sobre aquelas, a conformidade pode haver sem que ela seja percebida adequadamente, daí a
oscilação do ânimo quando entregue apenas à imaginação 52 . Essa é a diferença entre
adequação e conformidade. A adequação é sempre entendida do ponto de vista das
necessidades da natureza em questão, e, por isso, à ação sempre correspondem princípios
racionais, enquanto que a conformidade é oscilante e a correspondência da ação a princípios
racionais é apenas possível.
Ainda Em E IV, escólio da prop. 59, encontramos o exemplo da ação de golpear.
Primeiro, se apenas considerada fisicamente, a ação em “que o homem levanta o braço, cerra
o punho e move, com força, todo o braço pra baixo, é uma virtude que se concebe por causa
da estrutura do corpo humano” (p. 195), ou seja mecanicamente, explicável apenas pelas leis
dos corpos. Por outro lado, “se um homem, levado pela ira ou pelo ódio” é levado a essa
mesma ação, “isso ocorre [...] porque uma só e mesma ação pode estar associada às mais
diversas imagens de coisas” (idem, p. 195). Neste segundo caso, a mesma ação está sendo
compreendida pelo afeto associado a ela, ou seja, pela mente, mas não enquanto movimento
corporal – pois este só pode ser explicado pela física e por um outro corpo –, e apenas
enquanto a ideia desse movimento é afetada por uma outra ideia (como, por exemplo, a ideia
de violência ou de brutalidade, ou a ideia de uma outra coisa que o agente julgasse causa da
sua tristeza). A relação entre a ideia da ação e a ação corporal é meramente de conformidade,
jamais de necessidade, porque uma não pode ser causa da outra. Pela mesma razão, “a todas
as ações às quais somos determinados, em virtude de um afeto que é uma paixão, podemos
ser determinados, sem esse afeto, pela razão” (ibidem). Ou seja, a mesma ação corporal pode
estar associada a uma paixão, alegre ou triste, ou à razão53. Em outras palavras: as nossas

52  Não é nenhum defeito da imaginação que ela nos deixe à mercê dos “ventos contrários” (Cf. E II, prop. 17,
esc., p. 68-69). A representação das coisas segundo a ordem das afecções é, ao contrário, a sua virtude, porque
sem essas representações não teríamos consciência das coisas particulares e, por conseguinte, não poderíamos
distingui-las pelas suas propriedades, o que, em última instância, nos impediria de formar noções comuns –
afinal de contas, na ausência das coisas particulares que percebemos por conta das afecções do nosso corpo e
imaginadas pela mente, as noções comuns seriam noções de quê? Que coisas distintas teriam propriedades
comuns?
53  Ao que nos parece, a distinção recai sobre os graus de clareza e distinção que o agente tem das causas daquela

ação. Quando afetado de uma paixão triste, o agente percebe a ação apenas confusa e obscuramente, e, portanto,
ignora as causas da sua ação. Quando afetado de uma paixão alegre, “à medida que a alegria é boa, ela concorda
com a razão” (E IV, prop. 59, dem., p. 195), e como se trata de ações particulares, não se pode falar aqui da
alegria ativa, porque esta, enquanto conhecimento imediato da unidade da natureza, não pode ser associada a
uma ação particular. A ação aqui é vista do ponto de vista da mente, de modo que daqui em diante, quando se
falar de ação, estamos falando apenas da ação da mente, ou seja, disto: se eu julgo que determinada coisa é causa
da minha alegria, refiro-me, na verdade, não à coisa, mas à imagem da coisa que é um modo da minha mente
60
ações podem ser determinadas pela concatenação das nossas afecções ordenadas tanto pelo
intelecto quanto pela imaginação e, no caso desta última, tanto de maneira que eleve a nossa
potência de agir – no caso das paixões alegres – quanto que a faça diminuir – no caso das
paixões tristes. É, portanto, virtude da imaginação quando ela dispõe as nossas afecções de
modo que elas expressem um aumento da potência de agir.
Spinoza explica como a imaginação opera ao ordenar as nossas afecções. Em primeiro
lugar, essa ordenação ocorre por repetição e hábito, porque apenas através da criação de uma
memória que podemos ser afetados sem que o objeto que nos afete esteja presente54. A
memória é criada pela repetição de afecções ocasionadas por coisas que afetam o corpo
simultaneamente, como a presença do sol e a luminosidade da Terra. A repetição dessas duas
coisas que afetam o corpo comumente em simultâneo faz com que a mente as imagine sempre
juntas quando estão ausentes da percepção dos sentidos e, quando uma é percebida sem a
outra, a imaginação logo se ocupa de tornar a outra presente, ou seja, de recordá-la55. Isto quer
dizer que a imagem de uma estará sempre à disposição da mente quando da presença da
outra. De igual maneira, a mente será afetada pelo mesmo afeto associado a uma das coisas
quando a outra se faz presente ou a imagina, e isto ocorre por causa da repetição ou hábito
com que as duas coisas afetam em simultâneo. Mas, além de ser por afetarem
simultaneamente, pode ser simplesmente pelas semelhanças que uma tem com a outra:
“Simplesmente por imaginarmos que uma coisa tem algo de semelhante com um objeto que
habitualmente afeta a mente de alegria ou de tristeza [...] amaremos, ainda assim, aquela coisa
ou a odiaremos” (E III, prop. 16, p. 110). Por exemplo, alguém que seja pobre e avaro julgará
o rico como a causa da sua tristeza, justamente porque toda vez que for afetado pela imagem
do dinheiro que lhe falta, a associará à imagem do rico e o condenará por abuso do dinheiro.
“Da mesma maneira, também os que foram mal acolhidos por sua amante não pensam senão
na inconstância, na perfídia e nos outros proclamados defeitos das mulheres, todos os quais
são imediatamente esquecidos tão logo são de novo acolhidos pela amante” (E V, prop.10,
esc., p. 222). Temos aqui exemplos do que nas comédias são chamados de tipos. São

estar afetada, e que, ao mesmo tempo, corresponde a uma marca ou imagem presente no meu corpo causada pela
coisa. Da mesma maneira, se golpeio com a minha mão, digo apenas que foi uma ação boa ou má pela maneira
como a minha mente foi afetada da imagem desse movimento, porque ser bom ou mau significa estar de acordo
ou não ao meu desejo.  
54  “E, assim, cada um, dependendo de como se habituou a unir e a concatenar as imagens das coisas, passará de

um certo pensamento a este ou àquele outro” (E II, prop. 18, esc., p. 70)
55  “Mas (por hipótese), o corpo foi, naquela primeira vez, arranjado de tal maneira que a mente imaginou dois

corpos ao mesmo tempo. Portanto, agora, ela imaginará, igualmente, dois ao mesmo tempo, e sempre que
imaginar um deles, imediatamente se recordará também do outro” (E II, prop. 18, p. 69).
61
protótipos ou modelos do “avaro pobre” e do “enamorado ressentido”. Enquanto modelos eles
têm uma espécie de existência quase autônoma dos indivíduos particulares avaros e
enamorados, são ficções, abstrações que nos permitem formar noções comuns e entender
como as ações desses tipos são ocasionadas. Na comédia diferentes personagens representam
diferentes pessoas que, em contextos, épocas e lugares diferentes agem de maneira muito
semelhante e pelos mesmo motivos. A maneira como na comédia as ações são tratadas faz os
personagens parecem máquinas que agem por algum automatismo do qual eles não têm a
menor consciência, levando-os de um lado para o outro em situações desconcertantes como se
fossem meras coisas movidas mecanicamente56.
Nos parece nada distante aquilo que Bergson fala do “mecânico sobreposto ao vivo”,
segundo o qual “rimos sempre que uma pessoa nos dá a impressão de coisa” (BERGSON,
2001, p. 43):
já não é vida, é automatismo instalado na vida, imitando a vida. É comicidade. Por
isso certos gestos, dos quais não pensamos em rir, tornam-se risíveis quando
alguém os imita [...] Quero dizer que de nossos gestos só pode ser imitado o que
eles têm de mecanicamente uniforme e, por isso mesmo, de estranho à nossa
personalidade viva. Imitar uma pessoa é depreender a parcela de automatismo que
esta deixou introduzir-se em si. Logo, por definição mesmo, é torná-la cômica, e
não é de surpreender que a imitação provoque o riso (BERGSON, 2001, p. 24)

O modelo do qual estamos tratando aqui é o da imitação de seres particulares únicos


(vivos, na linguagem de Bergson) como se esses fossem sistemas fechados, máquinas
passíveis de reprodução e sem identidade particular. Certamente, uma ficção, mas nem por
isso sem nenhuma referência real às pessoas imitadas, pois existe nessas pessoas uma parcela
existente de automatismo e que, segundo Spinoza, nada mais seria do que a explicação das
causas que as determinam a agir quando estão ignorantes de si. São modelos da natureza do
avaro, do enamorado etc. Por exemplo, para todos os homens a definição de amor é a mesma,
isto é, a operação pela qual os homens amam alguma coisa não varia e, por esta perspectiva
parcial, agem como autômatos inconscientes das causas das suas ações. Os homens agem de
tal maneira que “se lhes provamos algo, não sabem se a argumentação é probatória ou
deficiente. Se negam, concedem ou se opõem, não sabem que negam, que concedem ou se
opõem. Por esse motivo, encontram-se no estado de autômatos, que carecem de toda razão”
(TIE, #47, p. 341). São indivíduos abandonados à imaginação e à paixão, cujas ideias que têm
das próprias ações não passam de amontoados confusos e obscuros de imagens. Porém, como

56  “Pelo
que ficou dito, fica evidente que somos agitados pelas causas exteriores de muitas maneiras e que, como
ondas do mar agitadas por ventos contrários, somos jogados de um lado para o outro, ignorantes de nossa sorte e
de nosso destino” (E III, prop. 59, esc., p. 139).  
62
já vimos, nem sempre somos inconscientes das causas das nossas ações, pois as imagens que
determinam nossas ações nem sempre são ordenadas apenas pela ordem com que os sentidos
do corpo são afetados, como no exemplo do sol e da luz, isto é, pela maneira com que
inconscientemente nos habituamos a associar as imagens das coisas.
Nem todas as nossas ações, todavia, são determinadas por imagens das quais temos
apenas uma consciência obscura e confusa: “podemos, assim, ser determinados [...] por
imagens de coisas que concebemos claramente” (E IV, prop. 59, esc., p. 195). Em outras
palavras, nem todos os modelos são de ações determinadas por imagens confusas, a própria
explicação do modo de operação do avaro, sendo ainda o seu modelo, é o conhecimento
adequado do conjunto de mecanismos ou regras segundo os quais ele age. Da mesma maneira
que um círculo se forma pelo movimento de uma linha em torno de um dos seus dois pontos
extremos fixado no centro. É concebível, por conseguinte, um modelo do homem que age
racionalmente, um modelo de natureza humana e, mais do que concebível, desejável.

Assim, quem tenta regular seus afetos e apetites exclusivamente por amor à
liberdade, se esforçará, tanto quanto puder, por conhecer as virtudes e as suas
causas, e por encher o ânimo de gáudio que nasce do verdadeiro conhecimento delas
e não, absolutamente, por considerar os defeitos dos homens, nem por humilhá-los,
nem por se alegrar com uma falsa aparência de liberdade. Quem observar com
cuidado essas coisas (na verdade, elas não são difíceis) e praticá-las poderá, em
pouco tempo, dirigir a maioria de suas ações sob o comando da razão (E V, prop. 10,
esc., p. 222)

E, igualmente,

Do mesmo modo, para acabar com o medo é preciso pensar com firmeza, quer dizer,
é preciso enumerar e imaginar, com frequência, os perigos da vida e a melhor
maneira de evitá-los e superá-los por meio da coragem e da fortaleza. Deve-se
observar, entretanto, que ao ordenar nossos pensamentos e imaginações, devemos
levar sempre em consideração aquilo que cada coisa tem de bom, para que sejamos,
assim, sempre determinados a agir segundo o afeto da alegria (idem).

Aquele que ama a liberdade se esforça por determinar as suas ações por imagens
claras e distintas, imagens ordenadas pelo intelecto segundo aquilo que se observa e
compreende como bom. Esta é uma prática que inclui o conhecimento tanto daquilo que é
bom ou aumenta a potência de agir, quanto daquilo que é mau e a diminui. É importante aqui
observar o papel da experiência que, como bem destaca Lívio Teixeira, pode ser observada de
dentro e de fora:

63
Neste escólio [de E II, prop. XXIX) Espinosa declara que só quando percebemos as
coisas segundo a ordem comum da natureza é que essas percepções são confusas e
mutiladas; isso porque nesse caso nossa mente é determinada de fora pelo encontro
fortuito das coisas. Porém, nossas percepções das coisas exteriores podem ser claras
e distintas quando a mente as considera de dentro, isto é, quando considera a um
tempo várias coisas para entender as conformidades, diferenças e oposições que
existem entre elas. Assim a observação ou a experiência dirigida pela inteligência
pode levar-nos ao conhecimento. As proposições XXXVII-XL, logo em seguida, nos
mostram que este conhecimento é o das ‘noções comuns’, quer dizer, é o
conhecimento adequado, não das essências, mas das propriedades das coisas, que é
o segundo gênero de conhecimento. Assim, Espinosa admite sem dúvida que
cheguemos a esse gênero de conhecimento por meio de uma elaboração feita pela
inteligência dos dados sensíveis, ainda que não pela indução e generalização dos
dados sensíveis, mas pela formulação, a respeito das coisas, de propriedades de tipo
matemático (SPINOZA, 2004, p. LII-LIII).

A mente que determina de dentro nada mais é do que a mente que age e, portanto, intelige ou
conhece intelectualmente as afecções do seu corpo e, de igual maneira, as coisas que o
afetam. Pela extensão, tem-se o conhecimento dos objetos pelas leis eternas e fixas de
movimento e repouso da natureza corpórea e, pelo pensamento, o conhecimento dos afetos
pelas leis eternas e fixas da natureza pensante. Em ambos os casos, como já vimos, o
conhecimento é matemático, isto é, segundo as leis de produção das coisas e dos afetos. Este
conhecimento, e isso é inevitável de se notar, não pode ser alcançado sem a observação da
experiência, pois que se trata do conhecimento das existências particulares e das
particularidades ou propriedades dos entes finitos, conhecimento que não é alcançado
mediante abstração ou indução daquilo que se percebe pelos sentidos.
Os afetos humanos obedecem, tanto quanto os corpos, leis eternas e fixas, as quais,
naturalmente, enquanto são conhecidas apenas pelo atributo do qual são modos, são
inteiramente distintas daquelas leis dos corpos. A utilidade do conhecimento das leis da
mente, do ponto de vista do bem viver, é a possibilidade de utilizá-las à favor do aumento da
quantidade de afetos alegres. Além disso, amparado por representações conformes a eles,
serve para que na vida cotidiana ajamos em maior adequação à liberdade. Assim, o
conhecimento de primeiro gênero pode ser útil à liberdade do homem na medida em que é
capaz de representar verdadeiramente as ações livres compreendidas segundo noções comuns
seguras. Por meio desse conhecimento é possível entender a necessidade de se esforçar por
ser afetado de afetos alegres e de como eles são produzidos, e mais, de criar mecanismos para
que possamos pôr esse esforço em prática. Esses mecanismos são os princípios ou regras
verdadeiras de vida, que permitem conceber a mente como um autômato espiritual57.

57  Cf. TIE, #85, p. 357.


64
O autômato espiritual difere daquele autômato falado anteriormente e essa diferença é
entendida segundo quais leis a mente obedece. Quando o homem age conscientemente, ele
conhece a causa da sua ação, ou seja, sua ação é concebida pelas leis da mente e por nenhuma
outra. Do conhecimento dessas leis ele é capaz de formular preceitos conformes ao
conhecimento racional facilmente acessíveis à imaginação, tornando-os mais disponíveis e
presentes à medida que habitua-se a eles. Dessa maneira, será capaz de responder
racionalmente às coisas automaticamente, sem a necessidade de a cada instante fazer passar as
suas ações pelo crivo da reflexão. À diferença do automatismo ‘maquinal’, o automatismo
espiritual exige constantemente a prática intelectual de observar as coisas e refletir sobre as
causas dos afetos associados a elas. O automatismo espiritual é uma espécie de autonomia da
mente, uma regulação de si por um esforço que vem de dentro para nos dispormos na vida de
maneira mais forte e potente. Neste sentido, Spinoza parece retomar uma antiga tradição
filosófica que, segundo Pierre Hadot, remonta à antiga filosofia grega. Para este, o discurso
filosófico era pelos gregos também entendido como exercício espiritual, diferentemente da
concepção moderna de filosofia como teoria.

En fait, c’est toute la philosophie qui est exercice, aussi bien le discours
d’enseignement que le discours intérieur qui oriente notre action [...] Il y a même
pour cela une formule consacrée, un terme grec qui est employé très souvent par
Épictète dans son Manuel : epilegein, c’est-à-dire ‘ajouter à la situation un discours
intérieur’. Par exemple, on se dit à soi-même une maxime comme : ‘Il ne faut pas
vouloir que ce qui arrive n’arrive pas, mais il faut vouloir que ce qui arrive arrive
comme il arrive’ 58. Ce sont des formules intérieures que l’on emploie, et qui
changent la disposition de l’individu (HADOT, 2003, p. 145-146).

O que Hadot chama de máxima e fórmula nada mais parecem ser do que os princípios
e regras já por nós mencionados, e a sua caracterização como discurso interior não parece ser
nada muito diferente daquele outro, chamado ‘de dentro’, por Spinoza. O autômato espiritual
nada mais é do que o homem disposto pelo intelecto. Se a imaginação está entregue apenas a
si mesma, o conhecimento que a mente tem das coisas está restrito à ordem das afecções do
corpo, que, do ponto de vista da mente, é arbitrária. Vimos que as leis naturais do corpo são
inteiramente diversas das da mente, por isso, deixar que a mente se guie apenas pelas imagens
das afecções ocasionadas pelo encontro do corpo com outros corpos, é entregá-la a leis
estranhas que lhe vêm inteiramente de fora sem nenhuma conexão com as verdadeiras causas

58  Comparar
com o exemplo que Spinoza dá de regra de vida: “o ódio deve ser combatido com o amor ou com a
generosidade, em vez de ser retribuído cm um ódio recíproco” (E V, prop.10, esc., p. 221). Não é inegável a
semelhança?
65
dos afetos. E isto, segundo o TIE, é uma parte do escopo da própria filosofia: “o escopo é ter
ideias claras e distintas, quer dizer, tais como provêm apenas da mente e não dos movimentos
fortuitos feitos pelo corpo” (TIE, #91, p. 358). A proveniência do ‘puro pensamento’
significaria, na linguagem da Ética, o esforço da mente, cujo ‘movimento’ é de dentro para
fora. Vimos que a produção de ideias claras e distintas não exclui e nem supera a imaginação,
mas, no caso do segundo gênero de conhecimento, é uma ordenação racional das imagens e
que, para a sua efetividade prática na vida cotidiana, depende também da formulação de
preceitos formados por imagens que determinam as ações em conformidade à razão.
A afirmação de Spinoza de que “na vida comum somos obrigados a seguir o partido da
verossimilhança; em nossas especulações, é à verdade que nos prendemos” (Correspondência,
Carta 56, p. 237, grifo nosso) está em perfeita sintonia com o conceito de representação que
ao longo deste ensaio defendemos. Recorreremos a um contemporâneo de Spinoza, o teórico
do teatro Hedelin D’Aubignac, que, em sua obra Prática do teatro, de 1657, define o conceito
de representação no âmbito da arte, definição esta, a nosso ver, bastante pertinente para a
questão. Há duas passagens do texto de D’Aubignac que, combinadas, sintetizam o que o
autor entende por verdade e verossimilhança, assim como a relação entre ambas. Primeiro ele
diz que “o poeta só trabalha sobre a ação como verdadeira, apenas na medida em que ela pode
ser representada” (D’AUBIGNAC, 1996, p. 96) e, depois, que “isto não quer dizer que as
coisas verdadeiras e possíveis sejam banidas do teatro; mas só aí recebidas enquanto tiverem
verossimilhança” (idem, p. 98-99). Separamos de um lado a ação, que pode ser verdadeira ou
falsa e, de outro, a representação, podendo ser verossímil ou inverossímil. A ação é o
movimento da história contada pelo poeta, é a substância dessa história, na medida em que
esta se compõe de acontecimentos que se sucedem no tempo, e os acontecimentos nada mais
são do que as ações dos personagens que realizam a história. Em outras palavras, é a realidade
representada, que existe verdadeira e naturalmente. A representação, por outro lado, é a
maneira como essa realidade é apresentada em um poema e em um espetáculo. Sem poder ir
contra a verdade das coisas, contudo, o mero modo como verdadeiramente as coisas
acontecem não é suficiente para torná-la agradável a um público, é preciso que ela seja
verossímil. A verossimilhança, portanto, é o quanto aquelas coisas verdadeiras compõem a
unidade de uma obra e atendem às expectativas dos sentimentos e ideais mais nobres. O que é
preciso frisar da concepção de D’Aubignac é que o verossímil não se opõe ao verdadeiro, é
apenas uma maneira de representar o verdadeiro. Da mesma maneira, para Spinoza, as noções
comuns que nos representam adequadamente as propriedades das coisas, apesar de não serem

66
o conhecimento das essências, não são menos verdadeiras por isso. Apesar de, para
D’Aubignac, que tem o teatro em mente, o verossímil vir em primeiro lugar, a
verossimilhança não pode existir sem que ela seja, ao mesmo tempo, verdadeira, ou seja, o
verossímil nada mais é do que o próprio verdadeiro quando útil ao poeta. O verdadeiro, por
sua vez, diz respeito à ação que não pode jamais contrariar a natureza das coisas, isto é, a ação
que não é impossível de existir.
Para Spinoza, por sua vez, o verdadeiro diz respeito à concordância que a ideia
adequada necessariamente deve ter com o seu objeto59, o que, do ponto de vista da vida
prática e cotidiana significa uma maior regulação sobre os afetos60. Por isso, ainda que não
sejamos capazes de demonstrar a verdade “concordemos que, na falta de demonstrações,
devamos nos contentar com verossimilhanças” pois “o que pode ser contradito é semelhante
não ao verdadeiro, mas ao falso” (C, Carta 56, p. 237). Nesta mesma carta Spinoza dá um
exemplo do que entende por verossímil:

se digo, por exemplo, que Pedro encontra-se entre os vivos, pois o vi ontem em boa
saúde, o que afirmo é certamente verossímil, na medida em que ninguém pode me
contradizer. Mas se alguém disse que na véspera viu Pedro em estado de síncope e
acredita ter morrido, ele faz com que minha afirmação pareça falsa (idem).

A verossimilhança, portanto, está em relação direta com a experiência e consiste na verdade


que não contradiz a experiência. O exemplo é bastante cotidiano, no entanto a definição
poderia bem ser estendida à ciência, não certamente enquanto conhece as coisas pelas leis da
natureza, mas enquanto ela depende da experiência para comprovar o conhecimento destas. A
semelhança com o verdadeiro tem, pois, a sua utilidade e, por esta razão, não se opõe ao
conhecimento verdadeiro, mas antes o auxilia.
Depreendemos disto que, tanto para o conhecimento dos corpos quanto para o
conhecimento da mente, a representação é imprescindível e, por esta mesma razão, o modelo
geométrico da natureza e o modelo de natureza humana não são meras abstrações que teriam
como função, respectivamente, obrigar os corpos e a mente a obedecer normas que a eles
gostaríamos de impor de fora para dentro, ao contrário, são auxiliares necessários do
conhecimento verdadeiro das coisas e da liberdade das ações, de dentro para fora. Enquanto

59  “Não reconheço qualquer diferença entre a ideia verdadeira e a ideia adequada, senão que a palavra verdade
relaciona-se apenas à concordância da ideia com seu objeto, enquanto que a palavra adequada relaciona-se com a
natureza da ideia em si mesma. Não há, portanto, qualquer diferença entre uma ideia verdadeira e uma adequada,
além dessa relação extrínseca” (C, Carta 60, p. 248). Cf. E I, ax. 6, e II, def. 4.
60  “À medida que a mente compreende as coisas como necessárias, ela tem um maior poder sobre os seus afetos,

ou seja, deles padece menos” (E V, prop.6, p. 216).


67
modelos, as regras de ação estão à serviço do conhecimento e da liberdade, devendo sempre
que necessário, serem revistas e corrigidas, e só têm o seu valor porque estão a favor de uma
ação maior e mais potente que é a perfeição humana. Escolhido pelo mesmo objetivo, a nosso
ver, foi o modelo geométrico de escrita da Ética, o qual, ao mesmo tempo que serve para
expressar o procedimento racional por demonstração, cumpre também a função retórica de
afetar a imaginação do leitor de uma tal maneira que sirva de auxílio ao conhecimento
intelectual61.
De acordo com esse movimento dedutivo de conhecimento das coisas pelas suas
propriedades a mente se esforça cada vez mais livremente para criar por si mesma regras de
vida, de maneira que diferem muito daquelas proferidas pelos profetas, apesar de terem
formas semelhantes, pois não são criadas para serem, como as destes, obedecidas, elas são
criadas pelo reconhecimento racional da sua necessidade do ponto de vista da finalidade a que
se propôs. A própria ideia de uma finalidade inserida bem no meio de um percurso racional,
onde claramente a noção de causa final não tem nenhuma realidade positiva, pois seria
contraditório afirmar que Deus age por qualquer coisa que transcendesse a ele, não contradiz
o escopo da Ética na medida em que o modelo de natureza humana é verossímil e não
contradiz o verdadeiro. A Ética, enquanto texto escrito, não poderia afetar o seu leitor senão
corporalmente, já que “a essência das palavras e das imagens é constituída exclusivamente de
movimentos corporais, os quais não envolvem, de nenhuma maneira, o conceito do
pensamento” (E II, prop.49, esc., p. 90), ou, ainda, “as palavras são parte da imaginação”
(TIE, #88, p. 357) e “a imaginação só é afetada por coisas corpóreas” (idem, #81, p. 355), do
que podemos facilmente concluir que as palavras são coisas corpóreas62.
Assim, o texto da Ética pode apenas afetar a imaginação do leitor, não pode lhe
transmitir nenhum conceito. Os conceitos expressos na Ética terão sempre que ser produzidos
pelo leitor, pelo esforço de sua própria mente. Em última instância isso que dizer que o livro
Ética é um modelo da prática filosófica, um modelo não a ser seguido, muito menos
obedecido, mas a ser devidamente usado como instrumento por aquele que busca auxílios
para a realização do seu próprio percurso. Spinoza inicia o Tratado da correção do intelecto
afirmando que reconheceu para si a necessidade de buscar um bem que não fosse vão e fútil:
“após a experiência ter-me ensinado que tudo o que ocorre de mais frequente na vida
ordinária é vão e fútil [...] resolvi indagar se existia algum objeto que fosse um bem

61
Afirmamos isto apenas na medida em que a linguagem, seja escrita ou oral, é composta de signos que afetam
de determinada maneira os sentidos, e, portanto, a imaginação.
62
Voltaremos ao tema da linguagem mais detalhadamente no capítulo cinco.
68
verdadeiro” (#1, p. 327). A leitura da Ética pode bem ser a experiência que nos ensine sobre a
futilidade dos bens mundanos.

69
Capítulo 3: O desejo

Quando Spinoza se interroga sobre o sumo bem, ele resume o problema da seguinte
maneira: “nossa felicidade e infelicidade residem em apenas um ponto: a que qualidade de
objetos aderimos por amor?” (TIE, #9, p. 329). E ele o responde assim: “o amor de uma coisa
eterna e infinita só alimenta a alma de alegria, isenta de toda tristeza, o que deve ser
grandemente desejável e procurado com todas as forças” (TIE, #10, p. 330, grifo nosso).
Logo em seguida ele declara a fragilidade de sua vontade diante do poder necessário para se
conquistar uma tal felicidade: “Não é sem razão que uso destas palavras: se pudesse
seriamente deliberar” (idem). Não é, portanto, pelo simples fato de querer aquilo que é
“grandemente desejável” que se o encontra, pois é preciso o uso de todas as forças para este
feito. Isso que se deseja, em suma, podemos então inferir, é uma “coisa eterna e infinita”,
inacessível pelas vias do arbítrio e difícil de ser encontrada. Permitir-nos-emos a seguir alguns
raciocínios sobre o tema com alguma liberdade no uso dos termos.
O que diremos adiante será baseado nos dez primeiros parágrafos do Tratado da
correção do intelecto. O texto está escrito em primeira pessoa e, como não julgamos que seja
mero efeito de retórica, nesse texto Spinoza fala dele mesmo, de sua experiência pessoal.
Nesses parágrafos ele conta a sua história de como se pôs na busca do conhecimento
verdadeiro. Ele se pergunta por um novo modo de vida, que é introduzido como um bem
verdadeiro: “resolvi indagar se existia algum objeto que fosse um bem verdadeiro” (TIE, #1,
p. 327). Este bem é descrito logo a seguir como “incerto”, cuja busca implicaria “perder uma
coisa certa” (idem, #2). Descrevendo-se inquieto quanto a se iria chegar de fato a esse novo
modo de vida “ou pelo menos à certeza a seu respeito” (idem, #3, p. 328), ele afirma que
“sem mudar a ordem anterior e a conduta comum de minha existência” (idem), ou seja, de sua
própria vida de indivíduo chamado Baruch Spinoza, ele confessa “tentei muitas vezes
frustradamente” (idem, grifo nosso). Em resumo, ele está descrevendo que, em sua história
pessoal, decidiu buscar um bem que seria mais valioso que os bens aos quais estava até então
usufruindo, e que, sem ter com isto aberto mão das “comodidades que se tiram da honra e da
riqueza” (idem, #2, p. 327), viu se frustrarem as suas tentativas de encontrar este bem. Assim
também viu nascer nele a tristeza por conta dessa frustração, porque “se em alguma ocasião
nos frustramos em nossa esperança, então nasce uma extrema tristeza” (idem, #5, p. 328). Por
ver-se continuamente frustrado, ou seja, triste, na esperança de obter tais bens, Spinoza
decidiu, pelo que indica seu relato, que ele depositou a sua esperança em um outro bem, o

70
qual não poderia ocasionar-lhe novamente tal frustração. E ele descreve essa busca como um
caso de vida ou morte:

Via-me, com efeito, em um perigo extremo e forçado a procurar, com todas as


forças, um remédio, ainda que incerto, assim como um enfermo que possui uma
afecção mortal, que vê a morte iminente se não emprega um remédio, e está coagido
a procurá-lo, anda que seja incerto, pois toda a sua esperança nele está (TIE, #7, p.
329, grifo nosso).

Como vimos, pelas próprias palavras de Spinoza, procurar esse bem implica nutrir a
esperança por ele e, ao mesmo tempo, não mais esperar de outros bens que eles não possam
mais frustrá-lo, ou seja, em outras palavras, não esperar mais da honra e da riqueza, assim
como dos bens ligados aos prazeres sensuais, que eles sejam suficientes ou capazes de
satisfazer a sua investigação. Utilizamos o termo “satisfação”, portanto, sem nenhuma
contrariedade ao texto spinozano, na medida em que por ele designamos o oposto da
frustração. Isto é, quem não se frustra, se satisfaz, e vice-versa. Assim, quem não tem a
esperança frustrada, tem a esperança satisfeita. Poderíamos, em vez da palavra “satisfação”,
utilizar a palavra “realização”, pois, segundo Spinoza, “a esperança é uma alegria instável,
surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida” (E
III, def. dos afetos 12, p. 143, grifo nosso). Entretanto, resolvemos mantar a palavra satisfação
por envolver a relação da esperança com o desejo, o que explicaremos a seguir. A partir do
que diz Spinoza, “não há menos exemplos de homens que, para conquistar ou conservar a
honra, sofreram miseravelmente” (TIE, #8, p. 329), a frustração advém da incapacidade de
conquistar o bem esperado ou de conservar o bem presentemente usufruído, o que em ambos
os casos implica uma perda63 no presente ou no futuro deste bem. Ou seja, a frustração da
esperança implica uma perda, seja pela esperança de conservar um bem ou de conquistá-lo.
De todo modo, a esperança, como afeto do ânimo, é uma forma de alegria (“alegria instável”)
e, portanto, uma forma de variação do desejo, pois, sendo a alegria “a passagem do homem de
uma perfeição menor para uma maior” (E III, def. dos afetos 2, p. 141), e que “o desejo é a
própria essência do homem” (idem, def. dos afetos 1, p. 140), então a esperança, como forma
de alegria, é uma forma de passagem do desejo de uma perfeição menor para uma maior (ou
seja, considerando que o desejo seja a própria essência do homem). Estabelecido então que a
esperança é uma variação do desejo, podemos falar então, sem ferir as palavras de Spinoza,
que a não realização da esperança é uma frustração do desejo. Gostaríamos de, ao longo do
63
Nos consideramos autorizados a falar de perda, porque Spinoza afirma: “não causará dano um objeto não
amado [...] não sentiremos tristeza se vier a se perder” (idem, #9, grifo nosso).
71
capítulo, ter a liberdade de usar as os termos “frustração”, “satisfação”, “perda” para explicar
o nosso pensamento sobre a filosofia de Spinoza, no que toca, ao menos, ao desejo. Além
desses termos, gostaríamos também de acrescentar o termo “procurar”, como ação própria do
desejo, ou seja, do ponto de vista do próprio desejo, não há indivíduo que deseje sem esperar
tê-lo realizado (ou satisfeito), pois, o contrário, seria uma contradição em termos. Assim, todo
desejo implica uma procura pelo seu objeto ou bem de satisfação, como uma coisa eterna e
infinita, “que deve ser grandemente desejável e procurada com todas as forças” (TIE, #10, p.
330).
Feitas essas ressalvas quanto ao uso dos termos, gostaríamos de dar prosseguimento à
exposição do que consideramos ser o pensamento de Spinoza, a partir desses textos referidos.
Por que razão, no entanto, Spinoza procura uma coisa eterna e infinita e não uma
temporal e finita? Spinoza explica que buscou satisfazer o seu desejo com todo o tipo de
coisas que normalmente são buscadas por todos os homens, e que, por isso são consideradas
por eles bens supremos (leia-se: objetos desejáveis por si mesmos) 64 . O fato é que a
inquietação de Spinoza está ligada aos bens que são comumente desejados pelos homens:
“Após a experiência ter me ensinado que tudo o que ocorre de mais frequente na vida
ordinária é vão e fútil [...] resolvi enfim indagar se existia algum objeto que fosse um bem
verdadeiro” (TIE, #2, p. 327, grifo nosso). Ora, os objetos da “vida ordinária” são “aquelas
coisas que mais ocorrem na vida” (idem, #3, p. 328) e podem ser resumidas “pelo que se pode
depreender de suas obras, nestas três: riqueza, honra e concupiscência” (ibidem). Em suma,
todas as coisas temporais e finitas: dinheiro, fama social e objeto de prazer sensual.
Todos eles, a saber, tudo que é finito e temporal é insuficiente para satisfazer o desejo
de Spinoza. Isso, diz Spinoza, ele o percebe por uma insatisfação que provém da
“experiência” e “de suas obras”, isto é, ele percebe que tudo o mais de finito e temporal que
existe é apenas variação de tudo aquilo que ele mesmo já experimentara como objeto de
satisfação do desejo e, por isso, descobre que nenhum desse tipo de objeto é capaz de
satisfazer o seu desejo, ou seja, nenhum deles é o objeto verdadeiro, o objeto próprio

64
A nosso ver, não há nenhuma dificuldade no texto spinozano que nos impeça de chamar de bem o objeto do
desejo, pois por bem ele parece entender tudo o que é desejável. De um ponto de vista meramente nominal,
pode-se facilmente discernir coisas desejáveis pelo seu próprio valor de coisas que são desejáveis pelo valor de
meio para outras coisas. À primeira classe de coisas dá-se o nome de sumo bem porque acima delas nada mais é
desejável – não que nada mais seja desejável, mas apenas que elas não indicam nada além delas para ser
desejado. Por outro lado, os chamados bens ordinários são sempre sinais de outros bens, eles formam uma
espécie de rede na qual um está sempre a reenviar ao outro, de modo que o seu valor (o de ser desejável) é
sempre medido pelo outro. Em suma: por bem se entende o que é desejável, o objeto do desejo, de duas formas:
por si e pelo outro.
72
adequado ao seu desejo. Segue-se disso que ele deseja algo que não pode ser finito (o
infinito); e que não pode ser temporal (o eterno). Entretanto, desejar um não parece uma
contradição: como se pode desejar aquilo que não é? Seria uma desejo de nada? Impossível,
pois, ao menos segundo a letra spinozana, todo desejo é desejo de alguma coisa, e Spinoza o
reconhece, o que se atesta por suas próprias palavras: é “uma coisa eterna e infinita”. Iremos
considerar que seja uma coisa existente, afim de nos atermos às suas próprias palavras, e, em
vez de cairmos em uma especulação talvez interminável, iremos considerar que não é um
nada aquilo que Spinoza diz desejar, mas uma coisa que é eterna e infinita não porque não é
finita e temporal, e sim por que ser eterno e infinito é algo de positivo, afirmativo, real. Pelo
menos é exatamente o que Spinoza parece conceber: que uma coisa eterna e infinita é uma
coisa real, existente e afirmativa.
Por outro lado, justamente as coisas ordinárias não parecem ser tão afirmativas e
existentes, pois elas estão ligadas à insatisfação e esta é um sintoma de algo que antes se tinha
e que depois deixou de se ter, ou seja, que não durou suficientemente. Nos Pensamentos
Metafísicos, ele diz que a duração “é o atributo sob o qual nós concebemos a existência das
coisas criadas na medida em que elas perseveram na sua existência atual” (Cap. IV, p. 275).
Já em E III, prop. 7, ele diz (p. 105): “O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar
em seu ser nada mais é do que a sua essência atual”. Como atributo de uma coisa particular,
então, a duração de uma coisa, por assim dizer, é justamente o quanto essa coisa, no total da
sua existência, perseverou na sua essência atual. Além disso, como ainda ele afirma que o
esforço em perseverar é a sua essência atual, o que definiria a coisa, portanto, seria o seu
próprio esforço, o qual, no que diz respeito à sua existência, é a própria duração da coisa.
Podemos assim concluir que a duração é a própria existência da coisa e que o tempo é uma
medida sua: “Para determinar a duração de uma coisa agora, nós a comparamos à duração das
coisas que têm um movimento invariável e determinado, e essa comparação denomina-se
tempo” (PM, cap. IV, p. 275) , e ainda, “é um modo de pensar que serve para a explicação da
duração” (idem). O tempo, como medida da duração, não tem realidade própria, ele não
existe, o que existe é a coisa medida, a duração. Por isto, na Ética, ele diz (prop. 8, p. 105) “O
esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser não envolve nenhum tempo
finito, mas um tempo indefinido”. ‘Não envolve’ quer dizer: o tempo não pertence, não é
imanente, interior ao esforço de perseverar, ele lhe é exterior (ou seja, o tempo enquanto
medida por algo exterior), e a razão disto está na demonstração desta mesma proposição:

73
Com efeito, se envolvesse um tempo limitado, que determinasse a duração da coisa,
seguir-se-ia, então, exclusivamente da própria potência pela qual a coisa existe, que,
após esse tempo limitado, ela não poderia mais existir, devendo se destruir. Mas isso
é absurdo. [...] ela continuará, em virtude da mesma potência pela qual ela existe
agora, a existir indefinidamente, desde que não seja destruída por nenhuma causa
exterior (E III, prop. 8, dem., p. 105, grifo nosso).

Ora, se o que a coisa é, é justamente o seu esforço, a potência do seu esforço não pode
ser dirigida de tal modo que esse esforço rume à frustração (o não encontro com o objeto).
Sem o objeto, não há esforço pelo objeto, e sem esforço, não há sujeito que se esforça, porque
quem se esforça se esforça por alguma coisa, e não por uma ‘não-coisa’. Assim, é interior ao
agente a busca pelo objeto, e como seu objeto não pode ser uma não-coisa, então a motivação
do agente não pode ser a de destruir, nem a autodestruição, porque destruir algo é uma forma
de negação da existência de uma coisa65. Como vimos, ao contrário, o desejo é sempre
afirmativo, ele busca afirmar seu objeto, jamais negá-lo66. Por isso, a potência do desejo é o
grau do esforço em durar, é o quanto de perseverança de uma coisa concebida pela duração de
seu esforço em satisfazer-se67: esforça-se por algo; e quanto mais persiste, mais potente é o
esforço; quanto maior a potência da duração, mais forte a perseverança do esforço. Como esse
esforço não se dirige ao vazio, é sempre a possibilidade do encontro com o objeto a condição
para a continuidade da duração da própria existência atual daquele que deseja, pois a
existência atual de um homem particular é definida exclusivamente pelo desejo. O tempo de
existência desse homem, o quanto ele vive, está, portanto, apesar de não ser determinado pela
sua essência, em estreita conexão com a existência efetiva da possibilidade de satisfação do
seu desejo. Podemos perceber isto pelo que Spinoza fala do suicídio.

Ninguém, portanto, a não ser que seja dominado por causas exteriores e contrárias à
sua natureza, descuida-se de desejar o que lhe é útil, ou seja, de conservar o seu ser.
Quero, com isso, dizer que não é pela necessidade de sua natureza, mas coagido por
causas exteriores, que alguém se recusa a se alimentar ou se suicida, o que pode
ocorrer de muitas maneiras. Assim, alguém se suicida coagido por outro, que lhe
torce a mão direita, a qual, por acaso, segurava urna espada, obrigando-o a dirigi-la

65
(E III, prop. 4, p. 104) “Nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior”. Demonstração da
mesma proposição: “Pois a definição de uma coisa qualquer afirma a sua essência; ela não a nega. Ou seja, ela
põe a sua essência; ela não a retira”.
66
Esta proposição leva em consideração o fato de que a negação é uma forma de privação, e não de existência.
Sobre a privação como forma de ficção, conferir mais adiante o quarto capítulo desta tese.
67
Falamos da duração em sentido muito concreto, como quando Spinoza fala sobre quando estava no começo da
instituição de sua nova vida – “pensava seriamente na instituição de uma nova vida” (TIE, #11, p. 330). Neste
início de jornada, ele relata que “no começo, os intervalos foram raros e de curta duração, mas na medida em
que o verdadeiro bem me foi sendo conhecido, mais e mais, tornaram-se eles mais frequentes e de maior
duração” (idem, grifo nosso). Do mesmo modo, o tempo a que nos referimos, é apenas uma medida da duração.
A duração, portanto, diz respeito à perseverança de uma ação, e o tempo à medida da duração dessa ação. Isso
será mais detalhadamente explicado no próximo capítulo, quando tratarmos da imaginação.
74
contra o próprio coração. Ou, se é obrigado, como Sêneca, pelo mandato de um
tirano, a abrir as próprias veias, por desejar evitar, por meio de um mal menor, um
mal maior. Ou, enfim, porque causas exteriores ocultas dispõem sua imaginação e
afetam seu corpo de tal maneira que este assume uma segunda natureza, contrária à
primeira, natureza cuja ideia não pode existir na mente. Que o homem, entretanto, se
esforce, pela necessidade de sua natureza, a não existir ou a adquirir outra forma, é
algo tão impossível quanto fazer que alguma coisa se faça do nada, como qualquer
um, com um mínimo de reflexão, pode ver. (E IV, prop. 20, esc., p. 170).

A possibilidade de satisfação do desejo é a relação entre o desejo e as causas


exteriores. Compreendemos as causas exteriores de que fala Spinoza como tudo o que existe e
é diferente do indivíduo desejante e que sobre ele atua na direção contrária, ou seja, se o
desejo atua de dentro para fora, as coisas exteriores que o cercam atuam, em relação a ele, de
fora para dentro. Exterior e interior são, assim, apenas referências relativas no campo de
atuação dos seres particulares, de modo que a contrariedade não existe em termos absolutos e,
por isso, pode ser sempre transformada em convergência, pois “é totalmente impossível que
não precisemos de nada que nos seja exterior para conservar o nosso ser, e que vivamos de
maneira que não tenhamos nenhuma troca com as coisas que estão fora de nós” (idem, prop.
18, esc., p. 169). O suicida, seja por razões reais ou imaginárias, encontra-se em tal relação de
contrariedade a tudo o que lhe é exterior que não concebe mais meios existentes exteriores a
ele que o permitam conservar o seu ser. Em uma situação como esta, o suicida não encontra
mais nenhuma possibilidade de satisfação do desejo. A necessidade de coisas reais para com
as quais o desejo possa satisfazer-se é tal que na sua ausência completa o indivíduo, em
alguns casos, se vê forçado a retirar a própria vida, pois os meios de conservação nada mais
são do que os objetos do desejo. O suicídio, portanto, é sempre uma ação contrária à cada
natureza particular, pois a perseverança em seu ser é inerente a cada indivíduo, igualmente
presente em todos os seres existentes, devido à própria natureza da potência de ser da
Natureza. Os seres particulares, finitos e limitados, não existem sem trocarem entre si, sendo a
troca ela mesma a condição de realização de suas potências individuais, ou de seus desejos,
no caso do ser humano. Desta forma, do ponto de vista da troca, a finitude e a limitação
inerentes a cada ser humano não são entendidas como carências ou faltas, pelo contrário, pois
dada a natureza de cada ser individual, a possibilidade de interação é afirmação de sua própria
natureza, de modo que “certamente o nosso intelecto seria mais imperfeito se a mente
existisse sozinha e não compreendesse nada além dela própria” (E IV, prop. 18, esc., p. 169).
Dessa perspectiva, é inconcebível um desejo que não tenha algum “alvo” exterior, seja ele
qual for. O encontro ou a troca são consumadas na convergência entre potências (à princípio,
75
talvez, contrárias) que se identificam quando desejam em comum um mesmo objeto.
Os desejos, segundo Spinoza, podem ser entendidos de duas maneiras: como ações ou
como paixões. Como ações, encontramos os “desejos que se seguem de nossa natureza, de
maneira tal que podem ser compreendidos exclusivamente por meio dela, são os que estão
relacionados à mente, à medida que esta é concebida como consistindo de ideias adequadas”
(E IV, Apêndice, Cap. 2, p. 204). Talvez este seja o ponto mais delicado da filosofia de
Spinoza, pois parece ser justamente nisto que ele chama peculiarmente de ações o que vem a
ser o mais alto grau de conhecimento alcançável, no qual a mente conceberia todas as coisas
do ponto de vista da eternidade. É talvez nas ações que encontraremos aquele objeto eterno e
infinito do desejo do qual falamos há pouco. Deixemos, entretanto, este ponto no momento de
lado e nos voltemos para os outros desejos, as chamadas paixões, que “indicam, ao contrário,
a nossa impotência e um conhecimento mutilado” (idem).
Pelas paixões, nós, seres humanos, nos compreendemos “enquanto somos uma parte
da natureza, a qual não pode ser concebida adequadamente por si só, sem os outros
indivíduos” (E IV, Apêndice, Cap. 2, p. 204), de modo que “a força e a expansão desses
desejos devem ser definidas não pela potência humana, mas pela potência das coisas que
estão fora de nós” (idem). Assim, todos os afetos humanos são definidos por Spinoza ao
longo da Ética como variações do desejo, e, no caso das paixões, variações do desejo
definidos por objetos exteriores. Sendo a alegria e a tristeza, respectivamente, os afetos de
aumento e diminuição da potência de agir, a alegria e a tristeza são o próprio “desejo ou o
apetite, enquanto ele é aumentado ou diminuído, estimulado ou refreado por causas
exteriores, isto é, é a própria natureza de cada um” (E III, prop. 57, dem., p. 138). Levando
em consideração que Spinoza haja concebido um modelo de natureza humana e que este
oferece os parâmetros do conhecimento do bem e do mal, como vimos no capítulo anterior, as
variações do desejo serão aumentos ou diminuições conforme dirijam mais ou menos os
indivíduos à realização daquele modelo. Podemos definir sinteticamente o modelo a partir
daquilo que é o mais útil para homem, que seja, o próprio homem68. Pela mesma lógica, mais
úteis ainda são “os homens que se regem pela razão, isto é, os homens que buscam, sob a
condução da razão, o que lhes é útil, [pois] nada apetecem para si que não desejem também
para os outros e são, por isso, justos, confiáveis e leais” (E IV, prop. 18, esc., p. 169). Por esta
razão, todos os afetos ditos alegres serão considerados bons, e os ditos tristes, maus. Mesmo

68
“Nada é mais útil ao homem do que o próprio homem” (E IV, prop. 18, esc., p. 169).

76
sendo paixões, as paixões alegres denotam um aumento das condições de conservação tanto
daquele ser que a sente quanto daqueles com quem ele convive em comunidade, ou seja, as
paixões alegres são também um índice de melhores condições reais de satisfação do desejo,
ou, em outras palavras, de realização da potência, à medida em que necessariamente nas
paixões não se pode desconsiderar os objetos exteriores pelos quais se está sendo afetado69.
Levando em consideração as paixões, o ânimo é sempre oscilante, de acordo com a
variação do desejo e de seus objetos. Podemos também entender isso de um ponto de vista
gramatical, na medida em podemos dizer que o desejo varia nos homens em gênero, número e
grau: em gênero e espécie (cada homem um espécime do gênero humano), em quantidade
discreta (diferentes objetos) e em quantidade contínua (variação do esforço)70. Essas variações
recebem diferentes nomes conforme o desejo é um esforço a mais ou um esforço a menos, é
mais ou menos bem sucedido – isto, claro, do ponto de vista da presença ou da ausência da
coisa objetivada por ele. Isso certamente explica porque a ideia é sempre uma afirmação de
seu objeto, porque o desejo afirma o objeto não por que a coisa objetivada fora dele está
presente, mas pela ideia dessa coisa na mente71, que é expressão da coisa impressa no seu
corpo (o corpo da mesma mente), “quer o homem esteja consciente do seu apetite ou não” (E
III, def. dos afetos 1, exp., p. 141). Segundo a sexta definição da Parte II (p. 52), “por
realidade e por perfeição compreendo a mesma coisa” e, segundo as definições de alegria e
tristeza (E III, def. dos afetos 2, p. 141), “a alegria é a passagem do homem de uma perfeição
menor a uma perfeição maior” e “a tristeza é a passagem do homem de uma perfeição maior a
69
“A natureza de cada paixão deve necessariamente ser explicada de maneira que exprima a natureza do objeto
pelo qual somos afetados” (E III, prop. 56, dem., p. 136)
70
É de se notar que, na língua, apenas os verbos e os advérbios não sofrem quaisquer variações de gênero,
número e grau. O verbo é sempre a expressão de uma ação, e a ação, do ponto de vista do seu sujeito, é sempre
presente. Quando se diz, por exemplo, “João comeu a maçã”, mesmo que o verbo comer esteja no passado, ele
indica não que João estava ao passado da maçã, mas que o sujeito da enunciação da frase (no caso, eu que a
escrevo) é que, em relação a João, está no presente, e João, que se diz estar no passado, está no presente ausente.
João, contudo, ao comer a maçã, a comia como coisa presente e, a sua ação, por conseguinte, só podia ser atual.
Pela mesma razão os advérbios não variam, pois indicam apenas qualidades ou propriedades das ações, apenas
evidenciando algum detalhe da ação quando executada: “João comeu lentamente a maçã”: qualidade do tempo
em relação à duração da ação; “João comeu ontem a maçã”: qualidade do tempo em relação ao qual a ação se
realizou; “João comeu aqui a maçã”: qualidade do espaço em relação ao qual a ação se realizou etc. Os
advérbios são indicações sobre as condições espaço-temporais sob as quais a ação se realiza e também sobre as
modalidades de relações que ela tem com outras ações e coisas. Aquilo que varia em gênero, número e grau só
pode ser, portanto, os sujeitos e os objetos das ações, assim como suas qualidades, os adjetivos, porque tais
variações acontecem pela sua natureza apenas no tempo e no espaço, tal como os homens e os outros seres neles
existem. A variação do desejo em gênero, número e grau é, por assim dizer, não propriamente uma variação sua,
mas da percepção ou da consciência do desejo, por meio da relação que se concebe entre ele, o desejo, e as
coisas fora dele. O desejo varia somente se a essência de uma coisa for concebida pela sua potência de agir e que
esta não seja a de uma potência absoluta, mas a de um sujeito que se distingue de outros em face dos quais lhe
sejam objetos. O desejo é, por consequência, necessariamente o desejo de um sujeito por um objeto. A
substância, por outro lado, que age absolutamente sem que seja por meio de algo exterior, deseja por si mesma.
71
Em outras palavras: não há objeto do desejo sem a sua afirmação na mente, isto é, sem o ser objetivo da ideia.
77
uma perfeição menor (idem, def. 3)”72. O que é, no entanto, a realização do desejo?
Sabemos que o desejo tem um objeto e que este objeto pode tanto estar presente
quanto ausente da presença do sujeito desejante73, e que não altera a positividade do desejo e
nem a sua ligação com o objeto. É a consciência da positividade do ser objetivo da ideia, isto
é, da ideia de algo enquanto ideia, que inaugura o desejo pelo objeto: o objeto do desejo é
sempre posto pelo desejo e o desejo, por sua vez, é também sempre a proposição determinada
do desejo. Em relação ao objeto, Spinoza diz “pertencer à essência de uma certa coisa aquilo
que, se dado, a coisa é necessariamente posta e que, se retirado, a coisa é necessariamente
retirada” (E II, def. 2, p. 51), pertence à essência da potência humana que o desejo, se dado, o
seu objeto seja necessariamente posto e que, se o desejo for retirado, o objeto também o seja;
e vice-versa “aquilo sem o qual a coisa não pode existir” (idem), isto é, o desejo é a potência
que sem objeto não pode existir, pois o desejo é por definição a potência de agir humana
consciente da relação de si própria com algo de distinto dela mesma. Assim, a realidade do
desejo consiste na afirmação da coisa na ideia como objeto. O objeto é posto pela mente e não
meramente dado, de modo que o desejo implica sempre uma ação do sujeito desejante.
Quando dizemos “posto”, com isso não queremos dizer que a mente cria do nada o objeto do
desejo, pelo contrário, queremos dizer apenas que, mesmo sendo o corpo afetado, aquilo que
o afetou e que vem a ser objeto do desejo necessariamente, para ser objeto do desejo, precisa
ser de alguma maneira afirmado pela mente. É o que depreendemos desta passagem: “os
modos do pensar tais como o amor, o desejo, ou qualquer outro que se designa pelo nome de
afeto do ânimo, não podem existir se não existir, no mesmo indivíduo, a ideia da coisa amada,
desejada, etc.” (E II, ax. 3, p. 52). A “coisa amada”, isto é, o objeto do amor, ou “ a coisa
desejada”, o objeto do desejo, enquanto coisas existentes fora do indivíduo, não seriam
objetos do amor ou do desejo se não houvesse as suas ideias na mente do mesmo indivíduo
que as ama ou deseja. De modo geral, como toda alegria e tristeza, assim como todo amor e

72
De acordo com o dicionário online Gaffiot (1934, p. 1146), perfectio significa “complet achèvement”, e
perfector/perfectrix: “celui/celle qui fait complètement”. Vê-se assim claramente por que Spinoza diz que
perfeição e realidade são a mesma coisa. Ele simplesmente entendeu esses termos em seu sentido literal de
realização em fazer algo por completo, ou seja, “quem decidiu fazer alguma coisa e a concluiu, dirá que ela está
perfeita”. Por sua vez, perfeição e realização também são sinônimos de satisfação, na medida em que uma coisa
perfeita é aquela que satisfaz sua definição. Novamente segundo o dicionário Gaffiot (ibidem, p. 483), do latim
definitio, definição significa “action de fixer des limites, délimitation” e “indication précise, détermination”. De
maneira geral, definição e perfeição chegam a ser quase sinônimos, pois em ambos os termos o que está em jogo
é a completude de uma coisa do ponto de vista do fechamento ou precisão dos seus limites.
73
No capítulo quatro, sobre a imaginação, voltaremos a falar mais detalhadamente da presença e da ausência do
objeto. Como no momento nos referimos principalmente às paixões, e estas são afetos que envolvem afecções do
corpo, além da mente (por oposição às ações, que são afetos exclusivos da mente), e necessariamente são ideias
inadequadas, seus objetos são concebidos sempre em parte pela imaginação.
78
todo ódio e demais afetos que são formas de alegria e tristeza, são variações do desejo,
podemos afirmar que toda coisa existente que esteja ligada a algum afeto do ânimo é objeto
do desejo. O mesmo se pode afirmar em relação a todos os afetos tristes, pois negar uma coisa
não é privação do desejo pela coisa, pois que o ato de negar é tão real quanto o de afirmar e
ambos são modos de ser da imaginação (positividade da imaginação). Como diz Spinoza, “a
privação nada é” (E III, def. dos afetos 3, exp., p. 141), sendo a negação de uma coisa antes de
mais nada a afirmação de uma outra como objeto de desejo e que, na ordem das afecções,
exclui a primeira. Grosso modo, não se nega propriamente coisa alguma, apenas se afirma
uma outra que exclui a primeira; a negação é uma espécie de ‘efeito colateral’ do ato
desejante, não a sua ausência.
Do que se conclui que a realidade do desejo é sempre atuante e a sua variação nada
mais é do que o grau de consciência de sua potência conforme a natureza da coisa que dele é
objeto. O desejo rejeita a coisa que não serve para ele de objeto com o mesmo grau de esforço
com que busca aquela que lhe serve. A variação então é sentida de várias maneiras conforme
for o movimento do esforço em relação à coisa: de busca ou de rejeição, afirmação ou
negação (imaginação; imagem); de direção em relação à variedade de coisas que satisfazem
um mesmo objeto (explicação; número); de intensidade na busca ou na rejeição pela
consideração da natureza determinada da coisa objetivamente representada (explicação;
medida ou grandeza contínua); de duração do movimento, seja no ato de buscar ou de rejeitar
a coisa (explicação; tempo); e de impressão da coisa na memória enquanto exemplar de uma
classe de objetos (retenção; gênero e espécie). A cada uma dessas modalidades de variação
Spinoza chama de afeto, não do ponto de vista de suas causas, mas sim do de sua sensação ou
consciência imediata.
A perfeição do homem então está ligada à satisfação do seu desejo, a qual é sentida
mais quando da consciência da afirmação do seu objeto. Coisas impossíveis de existir não
podem ser objeto de um desejo realizável, mas apenas de um desejo que na consciência se
mostra confuso em relação ao seu objeto e, por esta razão, parece a si mesmo imperfeito,
incompleto e, por fim, inalcançável. A coisa ausente, portanto, não é positivamente algo que
falta ao desejo, pois que, como vimos, se a privação nada é, ao desejo privado nada falta do
ponto de vista de sua própria potência, mas, ao contrário, a falta é uma tristeza cuja gênese
reside na desconsideração do próprio desejo. O sentimento da falta é justamente o oposto da
satisfação consigo mesmo: “A satisfação consigo mesmo é uma alegria que surge porque o

79
homem considera a si próprio e a sua potência de agir” (E III, def. dos afetos 25, p. 146). A
falta e a realização do desejo estão assim diretamente ligadas à consciência do desejo.
O que parece ser é que sempre que se esforça por algo, a atenção da mente é voltada
para o seu objetivo. Se o esforço no corpo se mostra no apetite pela coisa, na mente ele
aparece como atenção, porque a atenção nada mais é do que a afirmação da ideia da coisa, a
presença da coisa na consciência. Então, quanto mais varia o objeto, mais a atenção da mente
varia. Daquelas três coisas, a riqueza, a honra e a concupiscência, “cada uma delas distrai a
mente, que não pode pensar em outro bem” (TIE, # 5, p. 328). É exatamente como desviantes
da atenção, ou seja, distrações, que Spinoza vai qualificar cada uma delas: “No atinente à
libido, a alma é suspensa [...] e está impedida ao máximo de cogitar outro bem [...] se não
suspende o pensamento, o perturba e o embota” (ibidem, p. 328, grifos nossos); “a honra
distrai o espírito [...] a honra, enfim, é um grande impedimento” (idem, # 4, grifos nossos); “a
persecução da honra e da riqueza não absorve menos o espírito; a da riqueza sobretudo”
(ibidem, grifo nosso). Entretanto, “com um pouco mais atenção, reconheci primeiramente que
se eu renunciasse a tudo e me dedicasse à instituição da nova vida” (ibid., # 6, p. 329, grifos
nossos).
A variação de objeto do esforço desejante, enquanto objeto da consciência, significa a
presença do objeto na ideia de uma mente humana que a concebe. Por sua vez, a ideia de se
ter a ideia de um objeto é uma ideia na qual a ideia de se ter a ideia de um objeto existe
objetivamente; em outras palavras, é ser ciente do objeto (ideia do objeto) e ser ciente do
esforço pelo objeto (ideia da ideia do objeto). A ideia da ideia é a consciência da diferença
entre o esforço, de um lado, e o objeto, de outro, na medida em que o esforço é o ser atual da
ideia, o ato propositivo, formal da ideia, e o objeto é o ser objetivo, o proposto da ideia. Isto é
possível porque “a ideia, enquanto possui uma essência formal, pode ser o objeto de uma
outra essência objetiva” (TIE, # 33, p. 337), pois, sendo a ideia “uma coisa distinta de seu
ideado – ela será em si mesma algo de inteligível” (idem, p. 336-337).
Disto entendemos que a variação do objeto é também variação da ideia do objeto – e
mais, a variação é também da ideia que se tem da ideia do objeto, isto é, do esforço enquanto
deste se tem consciência na mente, ou seja, a percepção atual da ideia do objeto. Disso se
conclui que, quanto mais o objeto varia, mais a ideia do objeto varia, e, havendo tal flutuação
entre o esforço e o seu objeto, a potência do esforço varia conforme o desejo é satisfeito ou
não, e que esta variação não é apenas das coisas fora do sujeito, mas também de suas ideias.
Isto quer dizer que a variação de objetos pode acontecer mesmo que estes enquanto coisas

80
externas não estejam presentes, e que presença da ideia na consciência é suficiente,
naturalmente, não para que o desejo seja satisfeito, mas para que ele exista. Assim, a depender
da natureza da coisa objetivamente representada na ideia, o esforço pela coisa pode ter sua
realização de fato na união com a coisa ou continuar irrealizado. A questão então parece ser,
para Spinoza, a de saber se há algo que satisfaça o desejo sem que haja essa diferença entre a
sua presença na ideia e a sua ausência como ideado. Obviamente, se a coisa é alcançável, a
potência do desejo por ela aumenta conforme ela se torna mais presente e, ao contrário,
quanto mais há obstáculos para ser alcançada, mais a potência do desejo diminui ou é
refreada, sem que, com isso, o desejo necessariamente desapareça. A consciência de um
desejo cujas forças não são suficientes é, naturalmente, uma consciência triste (como no caso
do suicida), e a ideia da união do esforço com a coisa objetivada (a ideia da ideia da ideia)
será, necessariamente, confusa.
A diminuição de potência significa então que o esforço está diante de uma
impossibilidade de avançar, está impedido, está diante de um obstáculo. A tristeza, que “é um
ato pelo qual a potência de agir do homem é diminuída ou refreada” (E III, def. dos afetos 3,
exp., p. 141), é o sentimento desse impedimento, desse freio. Tristeza, portanto, é o nome
genérico para o sentimento de insatisfação do desejo. O homem que varia muito de objeto do
desejo, portanto, se entristece, enquanto que, por inferência, o homem cujo objeto do desejo
(realizável) mais permanece, se alegra. É a atenção continuamente dirigida para um mesmo
objeto que faz o esforço avançar, mas se esse objeto for finito, o objeto necessariamente varia,
pois ele mesmo não persevera infinitamente em seu ser e a sua própria potência é finita. Logo,
o objeto mais desejável, pelo qual mais vale a pena se esforçar, deve ser infinito, por não ser
limitado por nenhuma outra coisa, assim como eterno, por não ser limitado pela duração.
Apenas desta maneira a potência do esforço pode se estender ao máximo grau de si mesma,
justamente na medida em que ela deixa de se medir temporal e espacialmente. A potência,
quando livre de medidas espaço-temporais alheias, é medida de si e está no reto caminho de
sua realização.
Spinoza chega à conclusão de que é preciso, dado o objetivo de se alcançar o sumo
bem, renunciar ao desejo pelas coisas espaço-temporais, renunciar não por inteiro, claro, pois
que ele mesmo enquanto ser finito não deixa de ser espaço-temporal, mas apenas na medida
em que elas não sejam consideradas sumos bens: “ao contrário, se as procurarmos como
meios, não ultrapassarão um certo limite e, longe de prejudicar, contribuirão bastante para o
alcance do fim a que se propõem” (TIE, # 11, p. 330).

81
A que esses bens se propõem? Justamente o de servirem de meios. A importância
desses bens reside no seu poder de sinalização do verdadeiro objeto do desejo. Lembremos
que jamais Spinoza afirmou que eles são apenas fonte de frustração e tristeza, eles mesmos
também podem ser fruídos com alegria e satisfazer muitíssimo o ânimo. Contudo, por sua
natureza finita, de seu prazer, em alguma medida, inevitavelmente se segue a tristeza, pois
lhes é próprio que variem. Enquanto o esforço estiver apenas dirigido a eles, é como se a
mente, oscilando constantemente de ideia, jamais encontrasse um foco pelo qual pudesse
afirmar-se satisfatoriamente. A distração do intelecto é uma confusão tal que a mente não está
agindo de maneira adequada à satisfação do desejo, e acaba por tornar os objetos
impedimentos de sua realização.
Ora, coisa nenhuma é de maneira absoluta impedimento do desejo, e seus obstáculos
são as variações dos objetos no intelecto, que são as ideias dos objetos na mente. Sendo a
ideia do objeto sua afirmação na mente, a ideia do objeto é ela mesma o movimento ou
esforço do desejo na mente; quer dizer, já na concepção de uma coisa como objeto de desejo,
o que se está afirmando é este objeto na ideia, logo o objeto do desejo é sempre o ser objetivo
de uma ideia. Somente desta maneira podemos compreender a relação entre, de um lado, a
atenção e a distração, e, de outro, o favorecimento e o impedimento do desejo, e como o sumo
bem está ligado diretamente a um aumento de atenção, de modo que a natureza da coisa
sumamente desejável é conhecida não pela experiência, mas pela ideia que objetivamente
contém a coisa da qual a mente é estimulada a perseverar na sua atenção a ela.
O importante nisso tudo é que para se encontrar o sumo bem, Spinoza reconhece como
necessária uma correção do intelecto, auxiliada por uma regulação adequada da experiência.
Se é somente tendo como objeto uma coisa infinita e eterna que o desejo pode satisfazer-se ao
máximo contínua e duradouramente, é óbvio que não é na experiência espaço-temporal que se
deve procurá-la, mas na ideia de uma coisa eterna e infinita. Ou seja, esse bem não poder ser
uma coisa para se ter, ele é necessariamente um conhecimento. A correção do intelecto é,
portanto, o caminho pelo qual a atenção progride na medida em que o intelecto vence os
obstáculos do desejo, discernindo o que aponta do que não aponta para o sumo bem. É o
caminho da adequação das ideias para o aumento da potência do esforço, e este caminho é
uma prática de vida, cujos frutos dependem do seu exercício e do emprego das forças
necessárias à sua execução. O fato é que, para Spinoza, o caminho da correção do intelecto –
ou, por que não? o da filosofia – é o caminho da satisfação do desejo:

82
Devemos, pois, nos dedicar, sobretudo, à tarefa de conhecer, tanto quanto possível,
clara e distintamente, cada afeto, para que a mente seja, assim, determinada, em
virtude do afeto, a pensar aquelas cosias que percebe clara e distintamente e nas
quais encontra a máxima satisfação (E V, prop. 4, esc., p. 217, grifo nosso).

Ou então, simplesmente: “a suprema satisfação do ânimo provém do princípio correto


de viver” (E V, prop. 10, esc., p. 221, grifo nosso). Que essa satisfação seja do desejo, se pode
conferir pela prop. 52 da parte IV, a qual diz: “a satisfação consigo mesmo é, na realidade, a
maior coisa que podemos esperar”. Mas, pela sua definição, “a satisfação consigo mesmo é
uma alegria que surge porque o homem considera a si próprio e a sua potência de agir” (E III,
def. 25 dos afetos, grifo nosso). Ora, portanto, sendo a alegria, como vimos, a definição do
desejo à medida que este aumenta, a satisfação consigo mesmo, a máxima satisfação que a
mente encontra à medida que conhece adequadamente é uma satisfação do desejo, como
pretendíamos mostrar. Fica-se, assim, compreendido que a satisfação do desejo por um objeto
eterno e infinito é uma ação da mente, à medida que esta é capaz de formar uma ideia
adequada do ser eterno e infinito, que é Deus. De acordo com a sua definição, “por ideia
adequada compreendo uma ideia que, enquanto considerada em si mesma, sem relação com o
objeto, tem todas as propriedades ou denominações intrínsecas de uma ideia verdadeira” (E II,
def. 4, p. 51). Como, além disso, “por ideia compreendo um conceito da mente, que a mente
forma porque é uma coisa pensante” (E II, def. 3, p. 51), ou seja, por a ideia ser um ato
afirmativo ou propositivo da mente, é justamente quando a mente forma ideias adequadas que
ela age, pois “digo que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo de que somos a
causa adequada” (E III, def. 2, p. 98). E sendo a “causa adequada aquela cujo efeito pode ser
percebido clara e distintamente por ela mesma” (E III, def. 1, p. 98), a mente age quando pode
ser ela mesma unicamente concebida como a causa adequada dos efeitos de suas ações, e
esses efeitos são precisamente as ideias adequadas. Como ainda “as ideias que são adequadas
na mente de alguém são adequadas em Deus” (E III, prop. 1, dem., p. 99), pois a realidade das
mentes particulares tem como causa única a potência de Deus, como tudo o que existe, então
a satisfação suprema do desejo é o grau mais alto de conhecimento74, chamado beatitude75. É
com esta reflexão que Spinoza conclui a Ética, a qual, a nosso ver, parece indicar o propósito
mesmo da sua filosofia. Enquanto o ignorante “se deixa levar apenas pelo apetite lúbrico” (E
V, prop. 42, esc., p. 238), a saber, pelo desejo por coisas que são apenas parcialmente

74
“A virtude suprema da mente consiste conhecer a Deus [...] desse terceiro gênero de conhecimento provém a
maior satisfação que pode existir” (E V, prop. 27, dem., p. 229).
75
“Pois, a beatitude não é senão a própria satisfação do ânimo que provém do conhecimento intuitivo de Deus”
(E IV, Apêndice, cap. 4, p. 205).
83
afirmadas objetivamente pela mente ao imaginar, sendo, assim, “agitado, de muitas maneiras,
pelas causas exteriores, e de nunca gozar da verdadeira satisfação do ânimo” (idem, grifo
nosso), o sábio é aquele que, ao contrário, encontra o gozo e a satisfação do ânimo no
conhecimento do maior gênero, no qual, “consciente de si mesmo, de Deus e das cosias, em
virtude de uma certa necessidade eterna, nunca deixa de ser, mas desfruta, sempre, da
verdadeira satisfação do ânimo” (E V, prop. 42, esc., p. 238), grifo nosso).
Dado que a filosofia, pelo sentido comum e etimológico – do qual consideramos
Spinoza compartilhar, ao menos em suas linhas gerais –, não é a sabedoria, mas o amor à
sabedoria, o sábio seria aquele que, depois de percorrer o caminho da filosofia, ao alcançar a
verdade, a deixaria para trás. Pois, se a filosofia é o conhecimento racional mediante
conceitos, e o conhecimento mais alto é uma intuição, a qual parece ser mais uma sabedoria
do que uma teoria de algo, então parece-nos que a finalidade da filosofia é o seu próprio
término, quando o filósofo não mais sofre, de acordo com a sua antiga condição de amante,
pela ausência da sabedoria, de modo a então passar a desfrutar do conhecimento tão-somente,
levando uma vida na qual “dificilmente tem o ânimo perturbado” (E V, prop. 42, esc., p. 238).
Levando uma vida feliz e tranquila, “porque a mente desfruta desse amor divino ou dessa
beatitude, ela tem o poder de refrear os apetites lúbricos” (idem, dem.), o sábio se distinguiria
do ignorante e do filósofo, pois estes, embora de diferentes formas, padecem.

84
Capítulo 4: A imaginação

4.1. Reter, explicar e imaginar

Este capítulo consiste numa leitura do capítulo primeiro dos Pensamentos metafísicos,
onde Spinoza, segundo a nossa interpretação, expõe de maneira detalhada e sistemática os
modos de ser da imaginação, que são modos do pensar à medida em que a mente concebe
ideias inadequadas. A importância dessa investigação reside na necessidade de se entender a
diferença entre imaginação e entendimento – distinção tão cara e fundamental à filosofia de
Spinoza –, assim como formar deles uma noção comum que seja a compreensão da unidade
da mente. Confiamos na ideia de que compreender a unidade da mente é, ao mesmo tempo,
compreender a união da mente e do corpo, na medida em que a imaginação é justamente isto
que, de maneira confusa, é tanto mente quanto corpo, e que, se entendida adequadamente, é
ela mesma quando conhecida, o conhecimento da união da mente e do corpo. Longe de ser
uma forma de conhecimento que deveria ser eliminada pelo entendimento, a nosso ver, a
imaginação só aparece como grau inferior do conhecimento relativamente à falta do
entendimento dela mesma, e que, em um sentido mais afirmativo que de privação, ela é a
própria demanda pela formação do intelecto. Neste sentido, o conhecimento de si, das coisas e
de Deus necessariamente tem como ponto de partida o conhecimento da união mesma que em
nós já é existente, muito embora, na falta de esforço e de decisão devidos, permaneça confuso
e obscuro. Ora, este ponto de partida, evidentemente, é a imaginação, pois que o
conhecimento verdadeiro não é abstrato e nem transcendente, mas real e imanente na
constituição da natureza humana, enquanto modo de ser da substância. Não sendo, portanto, a
imaginação um modo de ser em nós alheio nem à nossa natureza e nem à Natureza segundo a
qual tudo o que existe existe necessariamente, analisar seus modos de operação é também já
se pôr no caminho de sua compreensão.
Começaremos pela definição de Ser de Razão, segundo a qual imaginar é um modo de
pensar que, juntamente com o reter e o explicar (de acordo com os PM), compõe o que, a
nosso ver, Spinoza, no mais das vezes, chama sinteticamente pelo nome de imaginação:

Vemos, pois, que todas as noções que o vulgo costuma utilizar para explicar a
natureza não passam de modos do imaginar e não indicam a natureza das coisas,
mas apenas a constituição de sua imaginação. E como elas têm nomes, como se
fossem entes que existissem fora da imaginação, chamo-as não entes de razão, mas
entes de imaginação (E I, Apêndice, p. 47)

85
Estas noções, que “não passam de modos do imaginar”, “são considerados pelos
ignorantes como atributos principais das coisas, porque acreditam, como já dissemos, que
todas as coisas foram feitas em função deles” (E I, Apêndice, p. 46). A confusão sobre a
natureza da união da mente e do corpo que acima falamos é exatamente tomar o nome das
coisas pelas próprias coisas, considerar que os modos como costumamos chamá-las são as
causas segundo as quais elas são feitas. Assim, a imaginação, considerada como ente ou ser
de razão, não é ela mesma nem a causa da confusão e nem a confusão ela mesma, mas um
modo de ser da mente e do pensamento cuja natureza não é a de ser o conhecimento adequado
das coisas, sem que, com isso, ela não seja também um conhecimento. O que Spinoza chama
de entes de imaginação, portanto, seriam modos de pensar não desprovidos de utilidade para a
vida, embora esta utilidade não seja a do conhecimento das coisas pelas suas propriedades
comuns. O “vulgo”, entretanto, ao confundir a função da imaginação com a do entendimento,
não apenas ignora o entendimento e as coisas, como também ignora a própria imaginação do
ponto de vista de sua utilidade e natureza: “uma coisa, com efeito, é aplicar-se ao estudo das
cosias e outra estudar os modos segundo os quais nós as percebemos. Confundindo tudo, nós
não poderemos reconhecer nem os modos de perceber nem a própria natureza” (PM I, Cap. I,
p. 264-265)
Nosso texto seguirá a ordem com que Spinoza divide o primeiro capítulo dos
Pensamentos Metafísicos, limitando-nos a comentá-lo para extrair dele o máximo possível
aquilo que Spinoza compreendeu sobre os modos segundo os quais percebemos as coisas, à
medida em que não podemos explicá-las adequadamente somente pela potência da mente.

4.2. Ser de razão

Segundo Spinoza, um Ser de Razão “não é nada mais senão um modo de pensar que
serve para reter, explicar e imaginar mais facilmente as coisas conhecidas” (PM I, Cap. I, p.
262). Começaremos pela definição e descrição de Ser de Razão. Este é uma modificação do
pensamento que se dirige, do ponto de vista da sua utilidade, às coisas em três frentes. Digno
de nota o fato de o Ser de Razão não servir para conhecer coisas novas, mas, outramente, para
fazer as coisas já conhecidas serem mais facilmente retidas, explicadas e imaginadas. Por esta
razão, Spinoza diz que “os Seres de Razão não são ideias das coisas e não podem ser, de
modo algum, classificados entre as ideias” (idem); ou seja, se Spinoza parece reservar o termo

86
‘ideia’ a modos de pensar que não são seres de razão, é porque, ao que dá a entender, ele o
reservou para os modos de pensar que nos dão a conhecer coisas novas. Isto pode ser
explicado pelo fato de as ideias serem sempre ideias de coisas, e, havendo de uma coisa já a
sua ideia, há um motivo lógico para que não se tenha da mesma coisa uma outra ideia além da
sua própria. A ideia, por ser sempre de alguma coisa, o ideado da ideia é o correspondente
objetivo da ideia, de modo que uma outra ideia, no que diz respeito ao seu objeto ou ideado,
terá, necessariamente, também um outro objeto do qual é ideia. Assim, percebe-se que o ser
de razão (como diz seu próprio nome) é de fato um ser, mas o seu ser não é o de ideia, mas o
de razão.
Para entender então em que consiste o ser de razão, restaria saber o que Spinoza quer
dizer, neste contexto, com razão. Mas antes, precisamos retomar a questão sobre em que
sentido os modos do pensamento são ações ou paixões, dos quais a mente tem consciência. Se
o ser de razão e o ser da ideia são dois modos do pensamento, é preciso entender então seu ser
a partir da sua forma mais básica, a de serem afecções de uma mente. Afecções são ou ações
ou paixões, já que as afecções, necessariamente, no ser humano, que é limitado e possui uma
realidade interna e outra externa, são o afetar – forças internas – ou o ser afetado por forças
externas. Diante deste cenário, dada a variedade de relações entre o interno e o externo, tanto
a ação quanto a paixão têm as suas variações, de modo que, para expressá-las, há os verbos
ativos e os verbos passivos76; os primeiros exprimem mais o agente da ação e os segundos
exprimem mais o paciente da ação. Por conseguinte, aqueles verbos que expressam mais do
que outros o agente, são os mais associados a um poder maior das forças internas do sujeito, e
aqueles, contrariamente, que expressam mais o padecimento do sujeito, estão mais associados
a um poder menor das suas forças em relação às forças externas dos outros sobre ele. Por isso
os verbos ativos expressam expansão, abertura, vida, e os passivos, contração, encerramento e
morte. Seus graus variam, e a importância de ambos para os seres humanos é a mesma: como
seres limitados que somos, não podemos nos dar o luxo de uma expansão infinita.
Isto não quer dizer que seja indesejável elevar a potência de agir ao máximo, pois
elevar a potência inclui dizer que o máximo do humano não é infinito e que os seus limites
devem ser respeitados. Neste caso, respeitar os limites significaria tanto não deixar que esses

76
Por verbos nos referimos aqui à expressão das afecções na linguagem, tal como delas somos conscientes
levando em consideração os nomes que lhes damos. No quinto capítulo falaremos mais detalhadamente sobre a
linguagem. Sem querermos, portanto, nos precipitar, cremos que por ora é suficiente para nos fazermos
compreender que a linguagem, a nosso ver, para Spinoza, está estreitamente ligada à imaginação e que, por isso,
expressa sobremaneira as nossas afecções, ou seja, os modos pelos quais afetamos e somos afetados no comércio
com as coisas exteriores.
87
limites contraiam demais e nem que se expandam demais. Não há ser humano sem paixão,
assim como não há um que, em alguma medida, não se reconheça livre. Excesso de paixão é
estar sob excesso de pressão, é o estreitamento dos limites até um ponto em que o
organismo77, como forma de se autorregular, como resposta, empenha excessivamente suas
forças na contenção. É o caso em que as forças externas pressionam ao ponto de as forças
internas voltarem-se contra si mesmas. Como um animal, que capturado por outro mais forte
tem todas as suas forças ativadas em resposta à ameaça iminente, seja liberando toxinas ou
fugindo rapidamente, o ser humano, sentindo-se ameaçado, expande seus nervos ao grau
proporcionalmente inverso do seu medo. No entanto, poder-se-ia dizer que é indiferente a
natureza das forças externas, pois, mesmo que a ameaça seja apenas imaginária, sempre que
se a teme, é porque, de alguma maneira, na realidade ou na imaginação, ela está presente
enquanto ideia. Ou seja, as forças internas podem ser bloqueadas igualmente por uma ameaça
real ou fantasiosa. A nosso ver, o importante é que a sensação não pode, ela mesma, ser
negada, pois ela existe independentemente a que objeto esteja ligada, e o medo, que nada mais
é do que um afeto, é ou a sensação do bloqueio de nossas forças internas ou a da impotência
destas face à presença daquilo que é considerado sua causa; em todo caso, de modo geral, se
trata de uma ameaça externa. Assim, há sempre, inevitavelmente, levando-se em consideração
as limitações de cada indivíduo, a referência a uma força externa maior, mais forte do que a
do indivíduo, à qual ele está sujeito e à qual necessariamente é subjugado ou obediente78. Essa
obediência, contudo, jamais é total, pois isto significaria a morte, e, diante de uma resistência
muito grande às suas forças internas, o organismo pode tornar-se capaz de consumir a si
próprio diante da impossibilidade de consumir um outro.
O ser humano, como todo ser limitado, possui uma mente limitada pelos limites entre
si e o outro. O poder superior das forças internas do ser humano79 em relação aos outros seres,
poderíamos assim dizer, dever-se-ia a ele ser menos limitado pelas forças externas que os
demais, ou seja, ele tem mais consciência de si como agente do que os outros seres, os quais,
enquanto sujeitos, são mais passivos. Esta maior capacidade de agir se expressa como poder
de dominação e de repressão das forças externas, isto é, dos demais seres. O desequilíbrio
dessas forças também faz os homens agirem contra si mesmos. Ignorando a dependência que

77
Acreditamos que a palavra ‘organismo’ seja adequada para expressar de maneira geral qualquer indivíduo pelo
seu aspecto dinâmico, de afetar e ser afetado em uma realidade da qual compartilha com outros indivíduos.
78
Isto pode ser facilmente deduzido de E I, def. 2: “Diz-se finita em seu gênero aquela coisa que pode ser
limitada por outra da mesma natureza. Por exemplo, diz-se que um corpo é finito porque sempre concebemos um
outro maior” (p. 13).
79
Superior, basicamente, por ser consciente de si e do mundo.
88
eles têm dos demais, ignoram o fato de que sem seus semelhantes, eles não poderiam existir,
pois seu organismo psicofísico é constituído dentro deste embate de forças. Quanto mais pode
seu corpo, mais o ser humano é agente e mais tem consciência disso. A consciência humana
expressa, por sua vez, na mesma proporção, um poder de regulação que o homem tem de seu
próprio corpo ausente em qualquer outro ser, por conta da consciência que ele é capaz de ter
dos movimentos do seu corpo no momento mesmo de realização desses movimentos. O ser
humano é muito menos condicionado reflexivamente, no sentido geral de ser um mero
circuito capaz de emitir respostas, do que qualquer outro animal, e isso se dá na mesma
proporção em que ele é capaz de produzir ele mesmo novos padrões de movimento, ou seja,
de se autocondicionar. É o mesmo que dizer que, visto pelo lado oposto, o ser humano é o ser
vivo mais capaz de condicionar os outros às suas necessidades. Entretanto, é preciso o
cuidado de respeitar os limites, para não se tornar vítima de si mesmo e carrasco dos outros.
Digressões à parte, são muitas as expressões do ser agente e do ser passivo: sociais,
metafísicas, psicológicas, morais etc. Interessam-nos, neste instante, as expressões relativas à
mente, aquelas que são as suas modificações: os seres da mente. Deste modo, os seres de
razão, como vimos, são, na mente, a expressão de algum grau de ação e de paixão da mente,
sendo eles mesmos, variações da mente. No que diz respeito à mente, o grau de consciência
do poder do sujeito sobre outros evidencia o aumento ou a diminuição de potência desse
sujeito: quanto maior o poder das forças externas, mais ele é impotente, e quanto menor, mais
ele é potente. Assim, a potência e o poder do homem variam conforme a relação de forças
deste com os outros, e a consciência da mente de sua própria potência é percebida como
maior ou menor clareza e distinção nas ideias.
O que é clareza e distinção? A ideia é forma e objeto, ou seja, a consciência do ser
atual ou formal da ideia é maior quanto mais o seu ser atual representa clara e distintamente o
seu objeto (a saber, enquanto ser objetivo da ideia). A necessidade de se ter presente aos
sentidos o objeto da atenção da mente é devida a uma impotência desta em conceber por si
mesma o objeto. Há de convir que de fato há objetos do pensamento que exigem ser
percebidos pelos sentidos, pois esses objetos são corpos separados do corpo da mente, ou
melhor, são objetos que, para existirem, dependem do contato com outros seres. Da mesma
forma, as suas ideias, para se tornarem claras e distintas, precisam da presença desses objetos
além da sua presença na mente, mas também da sua presença nos órgãos sensitivos do corpo.
Os objetos concebíveis só pela mente, na verdade, não são apenas da mente – pois a mente
não existe sem o corpo de que é ideia –, são apenas da mente quando se opera segundo ideias

89
cujos objetos não são relações entre corpos particulares, ou seja, sob o ponto de vista da sua
multiplicidade tal como percebida pelos sentidos, mas destes corpos sob o ponto de vista da
sua unidade: em suma, daquilo que eles têm em comum.
As ideias são noções comuns da mente quando objetivamente expressam os aspectos
segundo os quais o corpo de que a mente é ideia é percebido como adequado aos demais
corpos; da mesma forma a mente percebe as partes do seus corpo pela sua unidade na qual
existem adequadamente. Quanto mais a mente percebe as partes do corpo pela sua unidade,
mais ela o percebe clara e distintamente, e, igualmente, mais ela tem consciência da sua
própria unidade, que é a ideia clara e distinta de si mesma: a ideia clara e distinta da ideia que
ela é. Assim, a consciência máxima do ser humano é a consciência de si como unidade de
mente e corpo, em que o corpo e a mente são percebidas como expressões de um mesmo ser.
Spinoza considera que, apesar de na sua existência particular o homem precisar
conceber-se dividido entre mente e corpo, na sua essência esta divisão aparece
necessariamente como expressão de um mesmo ser. Sob esta última perspectiva, percebe-se
de uma outra maneira a multiplicidade da existência humana, a diversidade das suas ideias,
ações, paixões e desejos. Ela é concebida pelas suas causas, as quais só poderiam ser
encontradas naquilo que dissesse o ser humano pela sua essência. Deste modo, a diferença
entre ser de razão e ideia não é uma distinção entre coisas, mas entre modos de pensar de uma
mesma mente, a qual não tem uma origem distinta da do corpo. Descarta-se de antemão que o
corpo seja a causa de qualquer um dos modos da mente, pois, caso o fosse, ou o corpo seria
uma coisa diferente da mente, ou, sendo a mesma coisa que ela, esta coisa que é os dois
deveria ter a potência de existir por si mesma, isto é, pela sua própria essência. No primeiro
caso, que o corpo seja uma coisa distinta da mente nada mais é do que uma ideia confusa da
adequação entre um e outro. Ou melhor, em ambos os casos se trata de uma confusão sobre a
sua adequação, pois ambos levam a contradições insolúveis. Se o corpo fosse uma substância
diferente da mente, para que um pudesse ter relação com o outro, seria preciso que fossem os
dois de mesma natureza ou semelhantes, pois coisas de naturezas distintas não podem ser
compreendidas uma pela outra80. Ora, é evidente que entre a mente e o corpo há relações de
dependência, que em alguma medida um é adequado ao outro, portanto seria absurdo dizer
que são coisas em si diferentes. Da mesma forma, se corpo e mente pudessem causar-se
reciprocamente como pertencentes a uma mesma coisa, esta coisa seria capaz de causar-se a si

80
“Não se pode compreender, uma por meio da outra, coisas que nada têm de comum entre si; ou seja, o
conceito de uma não envolve o conceito da outra” (E I, ax. 5, p. 14).
90
mesma ao ponto de ser ela mesma a causa da sua distinção; ora, a existência humana não
prescinde da distinção entre mente e corpo, logo o ser humano seria causa de sua própria
existência, o que também é absurdo, porque então o ser humano seria uma substância.
Conclui-se, então, que nem a mente nem o corpo podem ser a causa um do outro, pois que a
causa do que acontece num e no que acontece noutro é a mesma, quer dizer, ela é a causa da
sua adequação, e não da sua inadequação.
O objeto das ideias claras e distintas do segundo gênero de conhecimento, as noções
comuns, é o que as coisas têm de comum segundo um mesmo atributo81. Deste modo, o ser
objetivo da ideia não é somente um corpo particular, mas corpos concebidos pela ideia de
suas propriedades comuns, as quais não são conhecidas por abstração, mas por dedução
daquilo que deve pertencer à cada coisa particular a partir do atributo do qual se é expressão.
Quanto mais o objeto da ideia é percebido clara e distintamente, mais se tem consciência da
clareza e distinção da ideia.
Entretanto, como vimos, os seres de razão não são ideias, muito embora sejam, tal
como as ideias, modificações da mente. Eles não são ideias porque não representam nenhum
objeto, eles não expressam nenhuma clareza e distinção da união das coisas. Pelo mesmo
motivo, os seres de razão não podem também ser considerados positivamente como confusos
ou inadequados, já que são carentes propriamente de objetividade (“eles também não têm
nenhum objeto que exista necessariamente ou possa existir”82). Os seres de razão, portanto,
não explicam em nenhum grau a união da mente com o corpo, mas, por outro lado, uma
clareza e distinção daquilo que eles são é tarefa da investigação que busca compreendê-los
como expressões do ser da mente. Acreditamos, por conseguinte, ser preciso entender o que
são os seres de razão para que o ser da ideia seja melhor percebido clara e distintamente,
melhor dirigindo a consciência para o conhecimento da adequação do corpo e da mente.
O ser de razão, apesar do nome, não é, ao que tudo indica, a própria razão e nem
pertence a algo que poderíamos chamar de Razão. Em outras palavras, razão aqui não parece
indicar o substantivo de algo, uma coisa ou uma faculdade; razão é adjetivo, é qualificação do
ser do pensamento. Quando digo que a cor dos meus cabelos e dos meus olhos são de

81
“Segue-se disso que existem certas ideias ou noções comuns a todos os homens. Com efeito, todos os corpos
estão em concordância quanto a certos elementos, os quais devem ser percebidos por todos adequadamente, ou
seja, clara e distintamente” (E II, prop. 38, cor., p. 79). À medida em que as ideias são ditas comuns, considera-
se tanto do ponto de vista daqueles que as concebem, os homens, quanto do ponto de vista dos elementos
comuns no seus objetos, pois, tanto os elementos ou propriedades das coisas são percebidos pelo que neles é
adequado ao todo do qual são partes, como são percebidos clara e distintamente pela mente à medida em que
esta concebe as ideias igualmente adequadas ao todo do qual são partes.
82 PM I, Cap. I, p. 263.

91
nascença, com isso pretendo dizer que é próprio dos meus cabelos terem sido determinados a
serem assim desde que o meu corpo foi inicialmente gestado. Quando Spinoza diz, portanto,
Ser de razão, entendemos que estaria falando do que é próprio ao ser racional, pelo menos
quanto a um dos seus modos de ser. E “ser racional” aqui não significaria nada além do que
quando o pensamento age para reter, explicar e imaginar coisas que já lhe são conhecidas, ou
ainda, que já lhe são representadas objetivamente em ideias. Eles pressupõem a ideia, no
entanto expressam operações básicas das ideias, estão ali nas raízes do entendimento, e,
justamente por essa mesma característica, eles são facilmente confundidos com as ideias.
Como diz Spinoza, “a causa que faz com que esses modos de pensar sejam tomados por ideias
de coisas é que eles, provindo e nascendo de ideias de coisas de maneira assaz imediata são
muito facilmente confundidos com elas, a não ser para a mais diligente atenção” (PM I, Cap.
1, p. 263, grifo nosso). Sem deixar de ser, portanto, ações e expressarem a mente ativamente,
sua realidade não é própria, pois que apenas as ideias são propriamente ações ou afirmações
da mente, já que é da natureza da mente ser ideia do corpo. Para se entender melhor o que são
os seres de razão, precisamos ir para o entendimento do seu funcionamento.
Que é então reter, explicar, imaginar?

4.3. Reter

Os primeiros modos de pensar que Spinoza classifica como sendo seres de razão são
aqueles que chamamos de “classes [...] gênero, espécie etc.” (PM I, Cap. I, p. 262). A esses
modos de pensar “os filósofos [...] recorrem quando alguma coisa de novo se lhes oferece”
(idem), ou a eles recorremos todos nós quando nos esforçamos por “reter as coisas mais firme
e facilmente” (ibidem), coisas, as quais, logicamente, que foram oferecidas pelas ideias delas.
Como se pode perceber, não se trata da retenção das próprias coisas, pois aqui se trata de algo
que se faz com as ideias, de organizar as ideias de uma determinada maneira83. O melhor

83
Pascal Sévérac, em seu artigo “A potência da imaginação em Spinoza”, sobre esta questão diz o seguinte:
“Ora, esta compreensão da natureza da esfera não é outra senão o encadeamento de representações – ou ainda, de
imaginações – do semicírculo e de seu movimento, associadas à ideia de esfera que se deseja engendrar [...] Em
suma, sabe-se que talvez nenhuma esfera seja engendrada assim na realidade, mas a imaginação, ou antes, as
imaginações, encadeadas segundo uma ordem para o intelecto, nos permitem perceber uma coisa ‘por suas
causas primeiras’” (MARTINS, 2011, p. 409). Interessa-nos aqui saber o que são as tais ‘imaginações’. De
acordo com as noções de reter, explicar e imaginar, que, a nosso ver, compõem uma descrição de como age a
mente quando imagina (ou seja, considerando a imaginação positivamente), percebemos que, neste uso
específico de razão, a imaginação é ela mesma uma organização das mesmas ideias que o intelecto organiza.
Ora, com isso queremos dizer que tanto a imaginação quanto o intelecto são ações da mente justamente porque a
mente, quando considerada pela sua própria potência, ao agir, não faz senão conformar-se à sua própria natureza.
92
sinônimo para razão, neste caso, é discernimento, “perceber com clareza (características,
diferenças)”84, porque ‘ser a razão de’ é discernir ideias segundo suas diferenças, e não
separar e juntar coisas fora do pensamento. Reter é um ato da mente que discerne as ideias ao
reduzi-las a uma mesma unidade, como uma classe, uma espécie ou um gênero. Esta redução
só existe porque a mente se esforça “para no-las [as coisas (leia-se: as ideias das coisas)]
trazer de volta ao espírito [...] ou para mantê-las no espírito” (PM I, Cap. I, p. 262). Trazer e
manter as ideias “no espírito” significa trazê-las à consciência, caso não estejam atualmente
presentes, e fazer com que permaneçam impressas na mente, condição para que depois
possam ser trazidas de volta à consciência. Trazer de volta uma ideia é lembrar dela,
lembrança a qual só é possível porque a ideia já estava impressa na Memória. Entendemos
memória aqui no sentido que em informática se usa, de disco de memória, ou como nos
instrumentos de gravação de áudio (o vinil, a K-7 ou o CD), que funcionam como disco de
memória fonográfica.
É o que depreendemos do texto: “para reter as coisas [...] e para trazê-las de volta [...]
ou para mantê-las [...] é bastante certo para aqueles que utilizam esta regra bem conhecida da
Memória: para reter uma coisa inteiramente nova e imprimi-la na Memória [...]” (idem, grifo
nosso). As ideias das coisas são impressas na Memória, o que quer dizer que a Memória é o
lugar de impressão das ideias, onde estas são guardadas e retidas. (Dizemos que a memória é

É da natureza da mente conhecer e, sendo a mente ela mesma uma ideia, age adequadamente à sua natureza ao
conhecer a si mesma. Como esta ideia é a ideia de um corpo, envolve necessariamente o conhecimento deste
corpo e de suas afecções o conhecimento de si mesma. Quando, entretanto, esse conhecimento depende da
potência do corpo, de maneira que ela é compreendida não apenas pela sua própria potência, diz-se então que ela
imagina, porque a imaginação é justamente esse conhecimento parcialmente produzido pela mente. Como o
corpo não pode e nem é propriamente causa de nada que ocorre na mente, esse conhecimento necessariamente é
falso. Contudo, as imaginações não deixam de ser elas mesmas ações da mente e, por isso, são facilmente
confundidas com as intelecções. A nosso ver, portanto, a explicação de Sévérac estaria incompleta se ele não
houvesse também notado esse fato: “tomada enquanto tal, a imaginação de uma coisa não poderia ser assimilada
à compreensão desta coisa, na medida em que a mente que imagina não é causa total da imaginação que se forma
nela: sua só natureza não pode explicá-la, e por conseguinte, ela não pode explicar-se a si mesma o que ela pensa
através da imaginação” (idem, p. 406). Falta, a nosso ver, uma consideração mais atenta ao caráter positivo da
imaginação no artigo de Sévérac, o qual não julgamos possível sem a distinção entre o caráter da ideia de dar a
conhecer coisas novas e o caráter da imaginação de partir desse novo já dado pela ideia, pois é justamente neste
aspecto meramente repetitivo da imaginação que ela não é uma compreensão, que é um conhecimento parcial,
confuso, mutilado, inferior, em suma, que ela é percebida negativamente, ou seja, como negação da ideia. Por
outro lado, a ideia é sempre afirmativa justamente porque afirma na mente sempre uma coisa nova, a saber,
compreende algo, traz algo que antes estava escondida à luz da consciência. A imaginação, contudo, é como se
fosse a mente a afirmar algo pelas sombras. Mas o que seriam a memória e a fantasia senão realidades que não
poderiam deixar de existir em um ser limitado como o ser humano? O que seria um homem sem paixão? É do
ponto de vista, portanto, da natureza do homem, de sua potência, que se afirma, com o pleno direito natural de
existir ,que a imaginação, e, com ela, as paixões, as fantasias, o tempo, a história etc., são positivamente
inseparáveis do agir humano. Em outras palavras, o ser humano não existiria se não estivesse sempre às voltas
com as mesmas ideias dadas, retendo-as, explicando-as (no sentido específico da palavra que mais adiante será
tratado) e imaginando-as de infinitas maneiras.
84
Verbete “discernir” no Dicionário Online Caldas Aulete.
93
um local, um “onde”, apenas de maneira aproximada, porém suficiente para nos fazermos
compreender.) Assim, a mente retém as ideias das coisas sempre relacionando-as a outras
com que ela tem familiaridade (entenda-se por mente uma mente particular, a mente de
alguém). É uma regra da mente sempre reter as ideias das coisas por a mente encontrar nelas
características semelhantes às ideias que ela já tinha, reduzindo-as a uma mesma imagem. O
que nos dá a entender que o fato do ato de reter as coisas ser um ato de redução se deve ao
fato de que reter é sempre reduzir o desconhecido ao familiar, a alguma família ou classe de
coisas. Spinoza ainda diz que na redução “nós recorremos a uma outra coisa que nos é
familiar e que concorda com a primeira seja apenas pelo nome, seja na realidade” (PM I, Cap.
I, p. 262). Como exemplo e ilustração disso não há melhor que o que nos fornece o próprio
Spinoza (E II, prop. 18, esc., p. 69-70, grifos nossos):

Compreendemos, assim, claramente, o que é a memória. Não é, com efeito, senão


uma certa concatenação de ideias, as quais envolvem a natureza das coisas
exteriores ao corpo humano, e que se faz, na mente, segundo a ordem e a
concatenação das afecções do corpo humano. Por exemplo, um romano passará
imediatamente do pensamento da palavra pomum [maçã] para o pensamento de
uma fruta, a qual não tem qualquer semelhança com o som assim articulado, nem
qualquer coisa de comum com ele a não ser que o corpo desse homem foi, muitas
vezes, afetado por essas duas coisas, isto é, esse homem ouviu, muitas vezes, a
palavra pomum, ao mesmo tempo que via essa fruta. E, assim, cada um passará de
um pensamento a outro, dependendo de como o hábito tiver ordenado, em seu
corpo, as imagens das coisas. Com efeito, um soldado, por exemplo, ao ver os
rastros de um cavalo sobre a areia, passará imediatamente do pensamento do cavalo
para o pensamento do cavaleiro e, depois, para o pensamento da guerra, etc. Já um
agricultor passará do pensamento do cavalo para o pensamento do arado, do campo,
etc. E, assim, cada um, dependendo de corno se habituou a unir e a concatenar as
imagens das coisas, passará de um certo pensamento a este ou àquele outro.

Em primeiro lugar, a memória é uma concatenação de ideais. Inferimos que, sendo


assim, a memória é uma ideia, porque, não poderia ser outra a sua natureza senão a natureza
da ideia, caso contrário, como ela poderia ser sua concatenação? A memória é, então, um
modo do pensamento, uma determinada afecção da mente. Ao mesmo tempo, a memória é
corpo, pois enquanto afecção a memória é afecção da mente, é afecção à medida em que a
mente percebe as afecções do corpo, das quais ela mesma forma imagens. As ideias
concatenadas na memória são, por conseguinte, as imagens do corpo tal como este é afetado e
percebido pela mente. Por isso, além da memória mental, para Spinoza há também a memória
física.

94
Segundo Deleuze, a dupla envolver e explicar “indicam dois aspectos da expressão”.
Enquanto explicação, a expressão é desenvolvimento (développement), “manifestação do Um
no múltiplo”. Por outro lado, “a expressão múltipla envolve o Um. O Um permanece
envolvido no que se exprime, impresso no que o desenvolve, imanente a tudo o que
manifesta” (DELEUZE, 1968, p. 12, grifo nosso). Envolver, então, de acordo com Deleuze,
significa ser a expressão una do múltiplo, não enquanto o múltiplo subsistisse sem a sua
união, sem a sua unidade, pois o Um não é sem ser o um de vários, de maneira que no
múltiplo o Um esteja impresso. Ora, se é enquanto um que o Um é impresso no múltiplo,
então isso que dizer que em cada parte do múltiplo o Um estará impresso, de modo que ele
também expressa a unidade de cada parte do múltiplo, e assim infinitamente. O um poder ser,
assim, infinito ou finito, de acordo com o ponto de vista da relação entre o todo e as suas
partes, de maneira que o Um de todas as coisas finitas é infinito, e o Um de uma certa
lembrança, por exemplo, é a unidade ou união ou concatenação de ideias particulares de uma
mente particular. Imanente à ideia e envolvido por ela encontramos na memória afecções do
corpo, as quais, sendo imanentes àquela, envolvem a ideia una. Por outro lado, é preciso que o
inverso também seja verdadeiro, caso contrário, entre ideia e afecção do corpo teríamos uma
relação de eminência: a ideia como unidade das afecções do corpo seria assim um gênero das
afecções. Contudo, a concatenação das afecções do corpo não é externa a elas, a concatenação
das afecções do corpo existe também no corpo. O mesmo vale para o múltiplo na ideia, pois
que a ideia una é também uma multiplicidade de ideias. Se isto não fosse verdade, as ideias
em nossas mentes seriam transcendentes à natureza dos corpos, mente e corpo seriam
substâncias diferentes.
Em suma: envolver e desenvolver não são respectivamente ideia e corpo, são dois
aspectos da expressão, a qual pode ser tanto do corpo como da mente, ou seja, não só a mente
é expressão do corpo e o corpo é expressão da ideia, como ainda o corpo é expressão das
partes físicas que ele envolve e a mente é expressão das ideias que ela envolve. Dito de outra
maneira, a memória é o envolvimento de ideias, no qual as ideias estão unidas por
concatenação. A memória é o Um de um múltiplo de ideais, o Um cuja propriedade é a de ser
uma concatenação de ideias, as quais, neste caso, Spinoza chama de imagens. Estas imagens
são a expressão de afecções do corpo, que também no corpo têm a mesma concatenação que
na mente; quer dizer: as imagens concatenadas envolvem objetivamente uma certa
concatenação de afeções no corpo. Na memória se expressa não apenas o múltiplo de
afecções do corpo, mas também a sua unidade, de modo que o Um das imagens é expressão

95
do Um das afecções corporais, e vice-versa; e o múltiplo das imagens é expressão do múltiplo
das afecções corporais, e vice-versa. A existência do ser humano é, por assim dizer,
psicofísica, ou físico-mental. Por esta razão, a memória não é somente uma ideia, ela é
também um corpo.
Spinoza parece indicar que aquilo que no ser humano melhor exprime este seu ser
psicofísico é a linguagem. Ele diz que a palavra é tanto um pensamento (“o pensamento da
palavra pomum”), quanto um corpo, “o som assim articulado”, a articulação da palavra
pomum. As letras articuladas da palavra são afecções do corpo, que poderíamos chamar de
‘sensações sonoras’. A onda mecânica afeta o corpo humano, o qual, provido de um aparelho
capaz de captar a frequência das ondas mecânicas, transforma os estímulos mecânicos em
estímulos elétricos, originados na vibração sutil dos ossinhos do ouvido. Como os estímulos
elétricos, nos seres vivos, são conduzidos por nervos, diz-se que, no ser humano, as afecções
do corpo provocadas mecanicamente por corpos externos são sensações na medida em que o
corpo altera a forma de contato dos corpos segundo as propriedades das partes afetadas.
Segundo as propriedades do ouvido, por exemplo, as sensações provocadas pelo contato dos
estímulos mecânicos externos com o aparelho de audição são chamadas de sons; segundo as
da visão, imagens; segundo as do tato, sensação térmica; as do olfato e as do paladar, cheiro e
sabor. Cada corpo que é afetado e afeta corpos exteriores tem seus meios ou órgãos de
contato, e cada um deles concatena as afecções segundo a sua maneira de concatenar.
No caso da audição, Spinoza diz que a sua concatenação é a articulação do som.
Assim, as afecções do corpo na parte auditiva são a articulação do som, e a imagem na mente
dessa articulação é a concatenação mental de cada parte desse som. Digamos que esse som
articulado seja a palavra maçã. Maçã é tanto uma articulação do som no ouvido quanto uma
ideia dessa concatenação. O mesmo vale para a memória da palavra na mente e no corpo.
Toda vez que se lembra da palavra maçã, o órgão interno da audição é afetado da mesma
maneira que a mente é afetada da ideia dessa palavra. O pensamento da palavra maçã tem
ligação com o pensamento da palavra fruta, na medida em que fruta é gênero de maçã. A
relação de gênero e espécie é a expressão da redução das ideias às semelhanças das
propriedades das coisas representadas nelas objetivamente, cujo papel é o de cumprir a
retenção das ideias das afecções do corpo pela concatenação das suas familiaridades. A
memória da palavra maçã é a concatenação de sons segundo certas familiaridades entre eles
que são ao mesmo tempo variações de graus de familiaridade, ou de gênero e espécie (a
vogal, o fonema, o morfema, a sílaba etc.), na medida em que eles se referem à mente. “É de

96
semelhante maneira [para reter as coisas] que os filósofos reduziram todas as coisas naturais a
certas classes às quais recorrem quando alguma coisa de novo se lhes oferece e que eles
chamam de gênero, espécie etc.” (PM I, Cap. I, p. 262).
No que se refere à articulação dos sons enquanto afecções do corpo, Spinoza diz que o
mesmo homem “ouviu, muitas vezes, a palavra maçã, ao mesmo tempo que via essa fruta”.
Ele chama a atenção para o uso articulado de dois aparelhos sensitivos do corpo, a audição e a
visão. Enquanto na mente a memória concatena a ideia do som da palavra maçã à ideia do
som da palavra fruta, no corpo a memória articula a sonoridade da palavra maçã com a figura
da coisa maçã formada nas retinas. A ideia da fruta maçã é desprovida de figura, porque a
figura é uma realidade física, e o que a ideia da fruta retém é apenas as suas semelhanças,
imago, com outras coisas.
A explicação de Spinoza parece ser bem simples. Num mesmo homem ao mesmo
tempo ele é afetado de um som e de uma figura, o que faz com que, no seu corpo, esse som e
essa figura já estejam de uma certa maneira ordenados, pela sua simultaneidade. Assim,
aquele som que já é uma articulação de partes sonoras e aquela figura que já é também uma
articulação de partes visuais estão ordenados na presença simultânea com que acontecem no
mesmo corpo. A frequência com que dessa maneira afetam o corpo cria nele o hábito de, ao
ouvir o som da palavra maçã, exigir a presença da figura da fruta na visão. Como para a
formação dessa visão é necessária a existência de uma coisa que afete o corpo de determinada
maneira, na ausência desta coisa a ordenação específica das partes visuais da figura da fruta é
estimulada, a ser repetida no corpo pelas impressões que nele ficaram retidas da figura da
fruta. Ora, em relação ao corpo, temos a ordenação de estímulos nervosos gerados por
aparelhos sensitivos de propriedades distintas (olhos e ouvidos). Essa diferença não é
ignorável, pois é o próprio modo de ser do corpo ao reter as impressões das suas afecções. No
que toca à mente, a relação é entre duas imagens de palavras diferentes, na qual uma palavra
está submetida a outra. O que temos aqui, nos dois casos, são jogos distintos de referência.
Num, a palavra maçã serve de sinal para a palavra fruta, na medida em que esta representa
certas propriedades da maçã familiares às propriedades das representações de outras coisas: a
coisa maçã é concebida no pensamento pelo pensamento de outra coisa. Noutro, a palavra
maçã é uma articulação de sons cuja ordenação nervosa inclui pelo hábito, isto é, pela
repetição, a ordenação nervosa da figura da coisa maçã. Ou seja, som e figura reenviam-se
mutuamente como sinais um do outro: “e, assim, cada um, dependendo de como se habituou a

97
unir e a concatenar as imagens das coisas, passará de um certo pensamento a este ou àquele
outro”.
Vemos então uma relação íntima na retenção mnemônica tanto na mente quanto no
corpo com a repetição dos seus elementos, donde a lembrança, que é uma retenção, é ao
mesmo tempo uma reprodução psicofísica de certas impressões, em que a repetição dessas
impressões, por sua vez, é a sua retenção. Pertencem, portanto, à ordem das afecções do corpo
e da mente as lembranças das coisas e não às próprias coisas (quer dizer, apenas na medida
em que não envolvem o corpo do homem afetado, mas envolvem o corpo de outros seres).

4.4. Explicar

Um ser de razão também serve para explicar as coisas e, assim como quando serve
para reter, serve retendo em vários modos de pensar, como a memória e o gênero, na
explicação ocorre algo semelhante, sendo os seus modos de pensar o tempo, o número e a
medida. Cada um desses modos é um modo que serve para explicar as coisas segundo as suas
afecções em nós: “o tempo serve para a explicação da duração; o número, para a da
quantidade discreta; a medida, para a da quantidade contínua” (PM I, Cap. I p. 262). O que é,
contudo, explicar? Vimos que a explicação (de acordo com a interpretação de Deleuze
adotada por nós) é a expressão enquanto desenvolvimento e, de maneira geral, manifestação
do Um no múltiplo. Assim, o tempo não serve para explicar a duração, no sentido de dizer o
que ela é, porque é a duração que se explica no tempo, ela, enquanto Um, que se expressa na
multiplicidade temporal. Portanto, a duração não é compreendida pelo tempo, mas, ao
contrário, o tempo é compreendido pela duração: a duração que é, em relação ao tempo, una,
ao se mostrar na ordem das afecções múltipla, quer dizer, divisível e composta de partes, é
chamada de tempo.
As partes do tempo, o antes, o agora e o depois, implicam a duração enquanto são
consideradas como partes de uma só coisa, una, indivisível e infinita (não una de uma
infinidade de partes, mas em si mesma una, isto é, sem fins, limites ou partes); entretanto,
consideradas na sua multiplicidade, cada uma dessas partes expressam sua própria unidade: o
passado, o presente e o futuro, como se fossem coisas distintas, cujos respectivos momentos
as envolvem e por elas são compreendidos. Ora, somente para o intelecto de um ser finito,
como o do ser humano, a duração pode se mostrar divisível e composta de partes, pois para
um intelecto infinito nada é compreendido por partes, mas por sua própria infinitude, ou seja,

98
para ele o tempo não existe como propriedade das coisas. Se, então, para um intelecto infinito
não faz sentido dizer que o tempo existe, o tempo só pode existir enquanto tempo para um
intelecto finito, de modo que pode-se dizer que a realidade do tempo não pode existir fora de
um intelecto finito. Mas o tempo, para nós humanos, existe, logo o tempo é um modo de nos
explicarmos a duração, de termos dela uma medida, ou seja, o tempo só existe como uma
imagem das coisas.
Isto quer dizer que a explicação pressupõe de certa maneira a retenção. Ao reter as
impressões das afecções do corpo e correlacioná-las em reduções de gênero e espécie, essas
afecções duram na mente e no corpo, permanecem gravadas neles. A sensação dessa
permanência faz com que se tenha em si a consciência da multiplicidade de afecções como
afecções de um só indivíduo. Como diz Spinoza, “para explicar uma coisa [...] nós a
determinamos por comparação com outra” (PM I, Cap. I, p. 262), ou seja, é apenas na medida
em que as afecções são percebidas pelo indivíduo como uma multiplicidade existente nele
que, por comparação, se pode dizer que elas permanecem múltiplas. O humano percebido na
sua indivisibilidade é explicado pela multiplicidade das suas afecções, o qual, embora
permaneça uno, é múltiplo em comparação às suas afecções. Ora, as afecções são
modificações, logo, ao serem comparadas com uma outra coisa que não se modifica em um
certo aspecto em relação a elas, esta outra coisa serve de medida para elas. Explicar então
nada mais é do que reter as coisas segundo uma certa medida, é compará-las, é comparar
diversas coisas com uma que em relação a elas é invariável, isto é, relativamente invariável,
como o movimento dos astros, ou o ritmo constante da areia caindo em uma ampulheta, ou a
velocidade da luz85. Embora o tempo também afirme algo sobre as próprias coisas, no entanto
em todos esses casos ele sempre vai dizer mais sobre o modo como as coisas nos afetam do
que como elas realmente são86.
Explicar é, portanto, reter as impressões das afecções das coisas segundo uma medida
em comum. Não parece, todavia, que apenas a explicação pressupõe a retenção, mas, se
examinarmos mais de perto, o contrário também parece verdadeiro, que a retenção igualmente

85  Nãoimporta se o movimento dos astros, da areia ou da luz é ou não em si invariável, o que importa é que,
relativamente às demais coisas atuem como tal. Ninguém questiona o fato de que o movimento da Terra em
torno do Sol se mostra como muito mais constante em relação às mudanças que ocorrem sobre a superfície da
Terra, a ponto de parecer, embora provavelmente tenha suas irregularidades, invariável e absolutamente regular.
86  Tampouco quer dizer por isso que o tempo seja mera ilusão. Se fosse o caso seria o mesmo que dizer que as

nossas afecções são ilusões, o que seria absurdo, dado que não conhecemos nossa própria existência senão pelas
nossas próprias afecções. É apenas do ponto de vista da substância que o tempo não existe, da mesma forma que
a nossa idade e todas as nossas afecções que só percebemos no tempo. Ora, não concluímos disso que não
existimos ou que nós mesmos sejamos mera ilusão, conclui-se, em contrapartida, que o nosso ser não é o da
substância, mas o de uma afecção desta, e que, portanto, enquanto afecção, de fato, existe.
99
parece pressupor a explicação. Se, como vimos, não seria possível haver memória sem que
esta retivesse as afecções de acordo com alguma concatenação, então não poderia haver
concatenação sem que as coisas concatenadas tivessem alguma medida, pois, senão, por que
meio elas estariam unidas87? O meio segundo o qual as afecções são unidas em relações de
gênero e espécie é exatamente a medida que elas têm em comum. Ao se dizer ‘cavalo’, a
palavra serve para reter uma diversidade de seres, cuja imagem serve de gênero a estes. As
diversas afecções associadas habitualmente a determinadas coisas fora de nós acabam por
formar uma imagem, a qual, em relação às demais afecções, também habitualmente
associadas às mesmas coisas, serve de medida a elas e, portanto, as explica. Há o cavalo de
ontem, o de agora e o de amanhã, que pode ser o mesmo ou outro (ou até mesmo uma outra
coisa, que possa ser chamada de cavalo), entretanto, há um que em relação aos demais serve
de medida ou modelo, variem aqueles em número no presente ou no tempo, da mesma forma
que o tempo não existe fora do entendimento das coisas impressas em nós, os gêneros e as
espécies também não, pois são apenas modos de dizer as coisas. Daí que pela natureza da
retenção e da explicação como memória e medida das coisas o conhecimento daí proveniente
seja sempre parcialmente confuso, pois que atua apenas relativamente.
É preciso, contudo, entender melhor o que há de comum entre reter e explicar,
investigação esta incontornável se quisermos ter clareza do seu alcance no conhecimento e na
sua utilidade para nós. Para tanto é interessante nos voltarmos mais uma vez para o sentido do
uso do termo razão na expressão ‘Ser de Razão’, que unifica o explicar e o reter como seus
modos.
Em latim, ratio, de acordo com o Dictionnaire Gaffiot Online (1934, p. 1314), tem por
primeiro gênero de significados o de “calcul, supputation”, cálculo, especulação, e o primeiro
exemplo do seu uso é “contar nos dedos da mão”. No segundo gênero de significados ratio
aparece como “faculté de calculer, de raisoner, raison, jugement, inteligence”88. Ratio, do
ponto de vista da ação, significa calcular e, do ponto de vista da capacidade do sujeito de
realizar a ação, significa faculdade de calcular ou, simplesmente, razão. Em latim, calculus
significa “pequena pedra” e também “voto”, cujo sentido é derivado das pequenas pedras
utilizadas na Roma Antiga para registrar o voto. Também de maneira derivada, calculus é a
pedrinha da antiga tábula de calcular, de onde, do ponto de vista do sujeito que mexe as

87  Memóriae medida são, assim, os mecanismos daquilo que caracteriza a imaginação, como diz Vinciguerra:
“imaginar, ele [Spinoza] alega, é produzir cadeias de imagens que seguem a ordem das afecções do corpo”
(tradução nossa de: to imagine, he [Spinoza] claims, is to produce chains of images that follow the order of the
affections of the body) (VINCIGUERRA, 2012, p. 137).
88
Trad. nossa: “faculdade de calcular, de raciocinar, razão, juízo, inteligência”.
100
pedrinhas, encontramos calculator, “aquele que faz as contas”. Assim, se ratio é calcular, isso
quer dizer que a capacidade de fazer contas, seja com pedras ou com os dedos da mão, é, ao
mesmo tempo, uma ação (contar), o produto dessa ação (a conta) e a faculdade presente no
sujeito que calcula (razão). Hipoteticamente, se uma faculdade de calcular existisse sem a
ação de calcular, a faculdade de calcular permaneceria necessariamente para sempre oculta,
pois é só porque existe o sujeito realizador da ação de calcular que se pode dizer que a
faculdade de calcular pertence a esse sujeito. Não faz sentido afirmar que ele possui essa
faculdade quando não há nenhuma ação que a justifique, pois, daquilo que é inteiramente
oculto, nada se poderia dizer e sequer afirmar a sua existência. Do mesmo modo, sem que
houvesse alguém que realizasse a ação de contar, não se poderia dizer que o produto da ação
existe, porque o que seria então uma conta que nada contasse? Concluímos que só
propriamente a ação existe, e que a faculdade e o produto não são nada além de um modo
derivado de se conceber a ação. Não existem, portanto, faculdades ocultas e nem produtos das
ações humanas na natureza sem as mesmas ações de produzi-las. Por este motivo, o ser de
razão é a faculdade de contar as coisas segundo as afecções no corpo e, enquanto tal, não
existe senão como modo de se conceber a ação de contar, de lembrar, de medir etc. Tudo isso,
a nosso ver, está inteiramente de acordo com a filosofia de Spinoza.
Indo mais além, se nos valermos da mão como uma só coisa, então os dedos são partes
que, pela sua semelhança entre si, são considerados igualmente como partes semelhantes da
mão. Abstraídos das suas diferenças, os diferentes dedos são percebidos pelo gênero único de
‘Dedo’ e a sua multiplicidade é percebida como repetição, sucessão e simultaneidade de
vários em um. Concomitantemente, portanto, ao se reter a multiplicidade de dedos pela
unidade de uma mesma mão, a mão, como elemento invariável, serve de medida para os
dedos como partes genericamente iguais. A mão, por sua vez, pode servir de medida tanto
pela sua duração quanto pela sua grandeza ou quantidade. Como medição do ponto de vista
da duração da mão, isto é, da permanência da sua existência ligada à existência dos dedos, a
afecção da mão inteira permanece e as afeções de cada dedo variam em relação a ela como
variação de coisas de um mesmo gênero: eles se repetem enquanto a mão existe, duram
enquanto a mão durar. A partir da grandeza da mão, temos duas possibilidades: ou os dedos
se sucedem como quantidades discretas por conta da sequência com que são percorridos pelo
observador, como elementos iguais de um mesmo gênero de objetos existentes (‘Dedos da
Mão’); ou eles existem simultaneamente como quantidades que continuam uma da outra, que,

101
pelo seu conjunto, formam por comparação ao todo maior da mão o próprio todo cuja soma
são as suas partes iguais.
Vejamos o que Spinoza diz sobre isso na Carta 12, a Lodewijk Meyer (p. 80-81,
grifos nossos):

Se, no entanto, vós perguntais por que somos tão naturalmente levados a dividir a
substância extensa, responderia que é porque a grandeza é concebida por nós de
duas maneiras: abstrata ou superficialmente, tal como no-la representa a imaginação
com o concurso dos sentidos; ou como uma substância, o que só é possível pelo
entendimento. Eis por que, se nós considerarmos a grandeza tal como é representada
pela imaginação, caso mais frequente e mais confortável, nós a acharemos divisível,
finita, composta de partes e múltipla. Ao contrário, se a considerarmos tal como é no
entendimento, e se a coisa é percebida como é em si mesma, algo muito difícil, nós a
encontramos infinita, indivisível e única, tal como antes vos demonstrei
suficientemente.
Agora, pelo fato de podermos delimitar à vontade a Duração e a Grandeza, quando
consideramos estas aqui fora da Substância e nela fazemos abstração do modo como
decorre das coisas eternas, disso provêm o Tempo e a Medida. O Tempo serve para
delimitar a Duração, a Medida para delimitar a Grandeza, de tal sorte que nós as
imaginamos facilmente, tanto quanto seja possível. Depois, pelo fato de que
separamos da Substância até mesmo as afecções da Substância e as repartimos em
classes para imaginá-las o mais facilmente possível, disso advém o Número, com a
ajuda do qual chegamos a determinações precisas. Daí se vê claramente que a
Medida, o Tempo e o Número são apenas maneiras de pensar, ou antes, de imaginar
[...] Os próprios modos da Substância jamais poderão ser conhecidos corretamente
se os confundirmos com esses Seres de razão que são os auxiliares da imaginação.

Encontramos mais uma característica do ser de razão: ele é mais fácil e confortável do
que o entendimento, isto é, a ideia propriamente dita. Não que o ser de razão não seja ele
mesmo uma ideia, entretanto, por não conhecer as coisas como elas são em si mesmas,
Spinoza prefere entendê-lo como uma imagem das coisas. Conhecemos, assim, com o ser de
razão as imagens das coisas tal como elas estão impressas em nós sem que, por meio dessas
imagens, se exija demasiado esforço para que elas sirvam de medida das coisas. Já dizia o
célebre Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas”, mas Spinoza diria, no entanto,
que Protágoras concebera o homem apenas segundo as suas afecções e não o entendera pela
natureza das coisas. Ora, somos mais “naturalmente levados” a dizer as coisas segundo a
medida que delas mais cômoda e facilmente formamos, e esta medida não pode ser outra que
a consciência de como as sentimos e as concatenamos segundo a conveniência dos nossos
afetos. Ser “naturalmente levado” significa, portanto, ser mais propenso a guiar-se pelas
imagens das coisas do que pela natureza própria das coisas, ou, em outras palavras, é mais
fácil deixar-se ser levado pelas afecções das coisas do que levar-se a si mesmo pelo

102
conhecimento dessas afecções segundo a natureza das suas causas. Em suma, é mais fácil
fazer abstração das coisas do que ater-se a elas.
Ser mais fácil não significa, porém, ser desnecessário. Como poderíamos nos dedicar
ao mais difícil senão porque temos o mais fácil para nos sustentar e nele encontrar o conforto
que se precisa para o descanso? Como poderia o matemático avançar sem os números e as
grandezas contínuas das figuras geométricas? E ainda: como poderia o filósofo conhecer as
coisas pelas suas definições reais sem antes delas ter definições meramente nominais? As
imagens são para serem usadas e, se usadas devidamente, podem ser ombros de gigantes.
Como falávamos há pouco, as imagens não são ilusões e nem dizem coisa alguma sobre o que
existe fora de nós adequadamente, elas o dizem e revelam também consigo algo das coisas. O
Tempo e a Medida, ou seja, todas as medidas espaço-temporais, nos auxiliam a conceber as
coisas segundo relações passíveis de serem observadas em todos os corpos. Todos os corpos
existem no tempo e no espaço, todo corpo existe numa certa quantidade numérica, todo corpo
tem um peso, um tamanho, todo corpo existe em algum momento dado do tempo etc. O
caminho científico de observar os corpos segundo essas imagens-medidas conduz ao
conhecimento dos corpos pelas leis infinitas das quais eles são modificações finitas,
conhecimento mais difícil e que exige mais esforço, porque se trata de conhecer as coisas
pelas suas próprias naturezas.
4.5. Imaginar

Como modo de ser de razão, “imaginar não é outra coisa senão sentir os traços
deixados no cérebro pelo movimento dos espíritos, ele próprio excitado pelos objetos” (PM I,
Cap. I, p. 263). Qual a utilidade, portanto, da imaginação?
A imaginação, assim como a retenção e a explicação, é um modo de ser da mente, em
decorrência do qual, do ponto de vista da ação como objeto, corresponde à coisa sobre a qual
a ação recai (o imaginado); ou, caso o sujeito da ação for o outro (um outro ser humano), há a
imagem da ação neste outro, e aquele que antes era sujeito é percebido pelo outro como
objeto (é pelo outro imaginado). Imaginar é, de alguma forma, conceber a distinção entre o
que existe em nós representado e a coisa fora de nós representada, seja esta coisa uma pedra,
o vento ou outro ser humano. O fato é que Spinoza não parece antepor a imagem à coisa fora
de nós como se os dois fossem coisas distintas, mas os concebe como dois modos de ser de
uma mesma coisa: o ser da imagem da coisa e o ser da coisa imaginada. Desta maneira, o
traço é, ao que tudo parece indicar, grosso modo, o próprio ser da afecção, pois, se, de um

103
lado, coisas de fora excitam o corpo – ou o cérebro, centro do sistema nervoso e de regulação
do corpo –, por outro lado o “movimento dos espíritos” fazem o cérebro sentir os traçados no
cérebro, de modo que tanto um quanto outro são modos de ser de um mesmo ‘traçar’ (ação).
Imaginar é, então, a sensação, isto é, o sentir o traço que, no que diz respeito ao sujeito da
ação, é a capacidade de sentir os traços no cérebro, e, no que importa ao objeto, é a sua marca
traçada, sentida no cérebro, parcialmente existente pelo ser afetado do nosso corpo e
parcialmente também pelo afetar de um corpo exterior.
Temos então que o homem é um ser dotado de corpo (cérebro) e de mente. O corpo
sabemos o que é, é esta ‘coisa’ extensa que nós somos e que, em relação à mente, é seu
objeto. O cérebro sabemos que é uma parte desse corpo, a parte que é responsável pela
regulação do sistema nervoso (ou do ‘movimento dos espíritos’). A imaginação, segundo as
descrições de Spinoza, representa a coisa “abstrata e superficialmente”, exige o mínimo de
esforço nosso e se vale do “concurso dos sentidos”. Esta definição da imaginação é suficiente
para entendermos que a ação de imaginar vai tão pouco na direção do entendimento das
coisas que não expressa mais do que uma consciência um tanto quanto confusa da diferença
entre o sujeito e o objeto, e a mente e o corpo. Na falta de uma distinção precisa, se entende
muito pouco da natureza de sua união e, por conseguinte, também muito pouco da natureza da
própria ação de imaginar. É preciso, pois, entender a imaginação, .
Nos Pensamentos Metafísicos, Spinoza, ao menos no começo quando diz o que é o ser
de razão, está mais interessado em dizer para que serve a imaginação do que em dizer para o
que ela não serve. Certamente ela não serve para entender e nem para reter ou explicar as
coisas. O que é, pois, como modo de ser de razão, imaginar?
Mais uma vez recorremos ao texto spinozano: “como, enfim, nós nos acostumamos,
todas as vezes que conhecemos alguma coisa, a figurá-la também por alguma imagem em
nossa imaginação, acontece que nós imaginamos positivamente, como seres, não seres” (PM
I, Cap. 1, p. 263, grifo nosso). Imaginar, por conseguinte, é o costume de figurar alguma coisa
por uma imagem, o que significa dizer simplesmente que a imaginação é o costume de
imaginar imagens de coisas89. Se pensarmos, pela nossa experiência mais simples, em cada
costume de nossas vidas que com o tempo se tornou automático, descobrimos que não temos
mais a consciência da existência desse costume, o que significa dizer que, ao imaginarmos
alguma coisa como de costume, tomamos a imagem da coisa pela coisa ela mesma, pois o

89  “Figurar”
aqui tem o mesmo sentido que ‘formar uma imagem”, considerando que figura e imagem sejam
sinônimo, salvo haja alguma necessidade de determinar ainda mais a sua diferença, o que, a nosso ver, não é o
caso.
104
hábito de imaginar a coisa de determinada maneira é tão automático que a sua sensação é
quase tão viva quanto a sensação de algo presente. Imaginar positivamente um não ser como
ser não é apenas um erro (embora seja, de fato, um erro), é também mostra de que a
imaginação, mesmo que seja a representação confusa das coisas, é uma representação confusa
de nós mesmos enquanto sujeitos da ação de imaginar, pois, se ela é de fato uma ação, ela
sinaliza o sujeito agente, o qual, no entanto, permanece, na imaginação, obscurecido na sua
relação com o objeto. Positivamente quer dizer também que, mesmo sendo uma confusão
tomar a imagem pela coisa mesma, a afirmação como ato, como modo do pensar, é algo de
positivo.
“A mente humana, com efeito, não tem um poder maior de afirmar do que de negar”
(idem), diz Spinoza. Afirmar e negar são ações da mente e, como fora citado anteriormente, a
imaginação é uma afirmação confusa, uma sensação dos traços das coisas em nós. Portanto,
afirmar e negar são modos de ser da ação positiva e real de imaginar, tal como a memória e os
gêneros são modos do reter, e os números e as medidas de quantidade o são do explicar. Por
‘imaginação’ podemos entender então duas coisas: ou a faculdade de imaginar ou a ação
mesma de imaginar. Interessa-nos a ação de imaginar, pois que a ação é propriamente ser,
enquanto que a faculdade e o produto são modos de ser da ação. Imaginar é, por conseguinte,
formar uma imagem, de modo que podemos dizer que a ação de imaginar, mais do que
imaginação (faculdade), é formação de um produto chamado imagem.
Ora, o objeto e o sujeito da ação são, como vimos, relativos um ao outro, sem que haja
por nenhuma razão um sujeito ou um objeto absolutos. A ação, contudo, embora na
imaginação seja “divisível, finita, composta de partes e múltipla”, é ela mesma, do ponto de
vista da substância, “infinita, indivisível e única” (PM I, Cap. 1, p. 263), ou seja, enquanto a
imaginação é ideia (ação da mente), seu ser objetivo é tanto a faculdade quanto o produto da
ação, divisível em sujeito e objeto, um sujeito e vários objetos. Além disso, quando se diz que
na mente são os corpos de fora que são objeto da ideia, imaginar é reter imagens dos corpos;
quando, por outro lado, se diz que a mente compara os corpos de fora com o corpo que ela se
identifica, isto é, ela mesma como que de dentro do seu corpo, imaginar é explicar os corpos
pela sua medida. Porém, se imaginar não é nem a faculdade nem o objeto, mas a formação de
imagens, então se diz que a ação é o ser formal: a ideia. Em outras palavras, a positividade da
imagem é o seu ser formal, é o afirmar uma ideia. Neste sentido, a imagem, como produto da
imaginação, não é propriamente uma ideia, mas um efeito seu; a ação de imaginar, por sua
vez, que é uma ação da mente, ela sim é ideia, de modo que ela não apenas representa os

105
corpos exteriores como também expressa a mente e a substância como modificação do
atributo pensamento.
Ideia e imagem não são seres diferentes, são modos de ser diferentes da mesma coisa.
Diz-se que esta coisa é a mente, porque a mente é o nome que se dá à unidade de um ser
considerado como ser pensante, e a ideia e a imagem são modos de pensar de um ser
pensante. Porém, o homem e, por consequência, a sua mente também, não é ele mesmo uma
substância: “a essência do homem não envolve a existência necessária” (E II, ax. 1, p. 52),
isto é, não pertence ao ser do homem, como a todo ente finito, o ser da substância. Somente a
substância é propriamente coisa (ens) e todas as demais coisas (res) são modificações suas.
Logo, rigorosamente falando, apenas a substância é de fato um ente pensante. Contudo, “o
homem pensa” (idem, ax. 2, p. 52). A mente humana é então um modo do ente pensante, é ela
também, ao menos enquanto aquele ente é considerado pelo atributo do pensamento, coisa
pensante. Por sua vez, sendo modo, a imagem é também um modo do pensamento da coisa
pensante, é ela também constitutiva da mente humana e, portanto, existe. Sendo existente, a
imagem, como tudo o que existe, é uma modificação da substância e, por isso, é uma ação,
pois que a substância é a ação absoluta de existir. A ação da mente expressa um atributo
segundo o qual a substância existe. Ora, pertence à natureza da mente o ser da ideia, logo, a
imagem, enquanto modo de ser da ação de imaginar, existe enquanto modificação do
pensamento, portanto é ideia e, como ideia, é expressão do pensamento. Sendo a mente uma
ideia finita (ideia do corpo), a positividade da imagem é ser ela afirmação do corpo na mente,
mesmo quando, na linguagem, tem a forma da negação. Em outras palavras, se se diz ‘o
homem não é substância’, não se nega a ideia de homem, mas se diz que, ao se afirmar a ideia
de homem, é falso concebê-la como envolvendo o ser da substância. Caso isto não fosse
verdade, ao se afirmar ou conceber a ideia de homem estaríamos ao mesmo tempo negando a
sua existência, ou ainda estaríamos afirmando uma não existência.
Ainda que ‘Homem’ seja uma abstração, ele existe enquanto modo de ser da mente
que exerce a função de representar coisas fora de nós segundo a ordem das nossas afecções.
Sendo assim, se por um lado “a ideia de uma afecção qualquer do corpo humano não envolve
o conhecimento adequado do corpo exterior” (E II, prop. 25, p. 73), por outro, “a mente
humana não percebe nenhum corpo exterior como existente em ato senão por meio das ideias
das afecções de seu próprio corpo” (id., prop. 26, p. 73). Levando ainda em conta que
“quando a mente humana considera os corpos exteriores por meio das ideias das afecções de
seu próprio corpo, dizemos que ela imagina” (id., dem. do cor., p. 73), a positividade da

106
imaginação consiste em ser ela mesma a percepção dos corpos exteriores ao corpo da mente
da qual ela é um modo do pensar. Assim, a inadequação das imagens em relação ao
conhecimento dos corpos exteriores não é uma privação ou uma negação, mas a afirmação na
mente das afecções do corpo: “não há, nas ideias, nada de positivo pelo qual se digam falsas”
(id., prop. 33, p. 77). O mesmo se pode dizer do conhecimento que a mente tem do próprio
corpo, pois esta “não percebe o seu corpo senão por meio dessas ideias das afecções, e é
igualmente apenas por meio dessas afecções que percebe os corpos exteriores” (id., prop. 29,
cor., p. 75).
Diante de tudo isso, podemos dizer que a inadequação do conhecimento imaginativo
exerce um papel fundamental para a existência do ser humano. E se considerarmos que a
consciência não é ela mesma um conhecimento das coisas pelas suas causas, mas a
diferenciação que a mente faz para si mesma do corpo de que é ideia e dos corpos exteriores
ao seu corpo, então a imaginação é o modo mesmo de sentir que se divide entre sentir a si e
sentir o outro. A imaginação cumpre um grande papel porque ela é a consciência imediata da
existência, que não é percebida senão confusamente, embora satisfatoriamente cumpre a sua
função de separar o dentro e o fora, o interno e o externo, o corpo de si e o corpo do outro.
Isto poderia ser compreendido também de outra forma. A imaginação é a parte da
mente humana que perece junto com o corpo90 e que só existe enquanto dura o corpo, de
modo que sem a existência do corpo, a mente “não pode imaginar nada, nem se recordar das
coisas passadas, senão enquanto dura o corpo” (E V, prop. 21, p. 227.). O mesmo se deve
dizer dos afetos, pois “um afeto é, portanto, à medida que indica o estado presente do corpo,
uma imaginação. Por isso, a mente não está submetida aos afetos que estão referidos às
paixões senão enquanto dura o corpo” (E V, prop. 34, dem., p. 232). Assim, sendo a
consciência um estado da mente do seu ser presente, ele não seria possível sem que a mente
fosse ela mesma a ideia do corpo e, concomitantemente, a mente não poderia ter consciência
de si como ideia do corpo se este corpo não fosse conhecido como distinto de outros corpos.
A imaginação, portanto, é a consciência mais imediata da união da mente e do corpo e da
união de ambos com Deus, e só se diz que é um primeiro gênero de conhecimento porque o
homem é capaz de ter uma consciência mais clara e distinta da natureza de sua união com a
Natureza inteira, da qual é uma parte e existe segundo as suas mesmas leis conforme as quais
todas as coisas existem.

90  Cf. E V, prop. 38, esc., p. 234-235.  


107
Esta percepção da imaginação pela sua positividade nos possibilita ainda compreender
que reter, explicar e imaginar são distinções de razão de uma mesma ação da mente cujo
estado é a consciência imediata da existência. A bem dizer, a imaginação é a própria
capacidade da mente humana de distinguir o presente do ausente pela afirmação de ambos. A
mente afirma aquilo que está ausente ou que é sentido como a privação de alguma coisa com
a mesma intensidade com que afirma uma coisa presente91. A distinção entre o presente e o
ausente é, na verdade, a distinção mais fundamental que a mente faz se concebermos que as
distinções de gênero e espécie, de tempo, de medida etc. são modificações daquela e que por
aquela são mais facilmente compreendidas. A imaginação é o que nos faz perceber o elo
fundamental entre os modos de pensar e as modificações do corpo, porque, como já vimos, as
imagens são as sensações dessas afecções, a expressão destas enquanto modificações do
Pensamento. Imaginar é recordar, lembrar, explicar, reter, comparar etc. Por esta razão
Spinoza pode livremente dizer “tudo aquilo que esteja referido à sua memória ou à sua
imaginação” (E V, prop. 39, esc., p. 236, grifo nosso).
Imaginar, por conseguinte, é reter as impressões das coisas enquanto impressões,
recordá-las enquanto recordações etc., o que não seria possível sem que ela fosse ao mesmo
tempo afirmação da existência dos corpos exteriores enquanto ausentes das impressões no
corpo, das recordações etc. O corpo ausente só é ausente porque o é relativamente ao corpo
presente afirmado na imaginação, da mesma forma que o corpo presente só é presente porque
o é relativamente ao corpo cuja presença é negada na imaginação. Afirmar e negar são a
mesma e única ação de distinguir, uma espécie de corte inaugural da consciência, a qual não
poderia existir senão em um ser para o qual corpo e mente fossem, ao menos de maneira
imediata, percebidos como coisas distintas. É natural, portanto, que os homens tendam muito
mais facilmente a conceber o corpo e a mente como mutuamente transcendentes em vez de os
conceberem adequadamente em sua imanência real; mais do que natural, parece necessária
essa distinção se a considerarmos do ponto de vista da sua preservação, pois que, se tudo na
Natureza se esforça por perseverar em seu ser, a espécie humana sequer existiria se, tal como
ela hoje existe, não fosse consequência desse mesmo esforço em durar na existência e que
inclui o conhecimento inadequado da união da mente e do corpo.

91
“Com efeito, a mente não sente menos aquelas coisas que ela concebe pela compreensão do que aquelas que
ela tem na memória” (E V, prop. 23, dem., p. 228, grifo nosso).
108
Todavia, Spinoza enxergou para os homens um poder maior para a sua preservação
que aquele fornecido pela imaginação. Ele percebeu que a consciência pode ser mais potente
e ainda mais útil para a sua perfeição.

Considera-se uma felicidade podermos percorrer, com uma mente sã num corpo são,
toda a trajetória da vida. E, de fato, aquele que, tal como um bebê ou uma criança,
tem um corpo capaz de pouquíssimas coisas e é extremamente dependente das
causas exteriores, tem uma mente que, considerada em si mesma, quase não possui
consciência de si, nem de Deus, nem das coisas. Em troca, aquele que tem um corpo
capaz de muitas cosias, tem uma mente que, considerada em si mesma, possui uma
grande consciência de si, de Deus e das coisas. Assim, esforçamo-nos, nesta vida,
sobretudo, para que o corpo de nossa infância se transforme, tanto quanto o permite
a sua natureza e tanto quanto lhe seja conveniente, em um outro corpo, que seja
capaz de muitas coisas e que esteja referido a uma mente que tenha extrema
consciência de si mesma, de Deus e das coisas; de tal maneira que tudo aquilo que
esteja referido à sua memória ou à sua imaginação não tenha, em comparação com o
seu intelecto, quase nenhuma importância (E V, prop. 39, esc., p. 236)

É digno de nota o tom crescente com que Spinoza qualifica a consciência nesse trecho.
Primeiro uma consciência que “quase” não existe, seguida de uma “grande” e, por fim, a
existência de uma “extrema” consciência de si, de Deus e das coisas. É inevitável, a nosso
ver, a identificação desses três graus ou níveis de consciência com os três gêneros do
conhecimento. Por isso, sem que estejamos nos arriscando demais, podemos dizer que a
imaginação é uma consciência bastante apagada, uma espécie de semi- ou quase-consciência
facilmente reconhecível nas crianças e nos bebês, períodos nos quais o corpo está em seus
primeiros estágios de amadurecimento e possui ainda pouco controle de si. Assim, diz-se que
a imaginação é a mente enquanto esta é a ideia de um corpo extremamente limitado às suas
funções mais básicas e demasiado dependente do auxílio de outros para o cumprimento
destas. Podemos ainda de maneira mais detalhada conceber que a imaginação, à medida que o
corpo se desenvolve e cresce, igualmente progride e se complexifica num processo de
formação da memória e do registro de coisas segundo medidas de tempo e de grandezas.
De comparação em comparação, de medida em medida, de afirmação em afirmação, a
mente segue o caminho de uma consciência maior de si, das coisas e de Deus, se houver a
necessidade de se esforçar por um conhecimento mais claro e distinto de tudo o que ela
concebe na imaginação. Nesta medida, a mente percebe o corpo em relações com os outros
corpos, as quais não são explicadas por encontros mais ou menos casuais e incertos, mas que
se mostram mais estáveis e pertencentes a uma natureza maior que aquela das nossas
afecções. O conhecimento pelas noções comuns, que são as leis ou causas segundo as quais os
infinitos corpos são regidos como pertencentes a um mesmo Todo, é a expressão de uma

109
consciência que percebe um corpo muito mais autônomo e desprendido dos afetos e das
volições da mente, na mesma proporção que a mente percebe a si mesma com maior
autonomia (regulação de si) para ter clareza e distinção de suas ideias. Neste segundo gênero
de conhecimento os homens têm a consciência de que a imaginação é um conhecimento
limitado às afecções do próprio corpo e que, se eles são capazes de conhecer as coisas pelas
causas dessas afecções, é porque eles são, além de imaginativos, seres inteligentes. Este
segundo gênero é a consciência da diferença entre a imaginação e o entendimento, ponto de
partida da filosofia, das ciências, das artes e das liberdades de expressão e ação.
Por fim, há ainda uma “extrema” consciência, segundo a qual a importância da
distinção entre entendimento e imaginação e da distinção das coisas segundo ambos é
nenhuma, pois que “é exatamente da mesma maneira que se ordenam e se concatenam os
pensamentos e as ideias das coisas na mente que também se ordenam e se concatenam as
afecções do corpo, ou seja, as imagens das coisas no corpo” (E V, prop. 1, p. 216). O terceiro
gênero de conhecimento é o “esforço supremo da mente e sua virtude suprema” (id., prop. 25,
p. 228), por ser aquele que expressa a capacidade (ação) da mente de “poder fazer com que
todas as afecções do corpo, ou seja, as imagens das coisas, estejam referidas à ideia de Deus”
(ibid., prop. 14, dem., p. 223).
Sob outro aspecto, acompanhando esse aumento de perfeição do ponto de vista do
corpo, podemos enumerar vários dos seus desenvolvimentos, como o aumento da capacidade
de locomoção, de uso das mãos, tanto na produção quanto na destruição de coisas, de
habilidades como nadar, correr, dançar etc.; aumento na capacidade de sentir, de perceber as
coisas pela audição, a visão, o olfato etc. Não é necessário continuar a enumerá-los, porque
cada um é capaz de facilmente imaginar as inúmeras habilidades que somos capazes de
aprender e aprimorar em relação ao uso de nossos corpos. No entanto, talvez nenhuma delas
se compare a um determinado uso do corpo pelo qual, talvez, todos os outros ganhem um
novo e inédito sentido, e que sem o qual os homens seriam animais entre outros e com o qual
ele pode mais que qualquer outro. Esse poder que os homens dominam com o seu corpo é
aquele que mais se aproxima da atividade mental e que, por isso, mais se confunde com a
imaginação, embora não seja ele mesmo imaginação e nem possa ser medido por nenhum
nível de conhecimento: este poder é a fala, ou, de maneira mais categórica e geral, a
linguagem. Sem dúvida, o poder de falar e de escutar a fala do outro é a principal
característica do alto poder do corpo humano; ele está intimamente vinculado à existência da

110
consciência na mente e exige para existir um alto grau de refinamento no uso de todo o
organismo. Este é o tema do próximo capítulo.

111
Capítulo 5: A linguagem

5.1. O problema da linguagem

Por isso, tal como temos de concluir as definições das coisas naturais a partir das
diversas ações da natureza, assim também é necessário extraí-las das diversas
narrações que a Escritura apresenta de cada fato (TTP, Cap. VII, p. 117).

A julgar pelo que Spinoza diz, “não se pode imaginar nenhum outro remédio que
dependa de nosso poder que seja melhor para os afetos do que aquele que consiste no
verdadeiro conhecimento deles” (E V, prop. 4, esc., p. 218), e levando ainda em conta o
enorme espaço que na Ética as definições dos afetos ocupam, o trabalho de aplicar as palavras
certas que expressem adequadamente o conhecimento verdadeiro intelectual dos afetos faz
parte, sem exagero, da própria tarefa da filosofia em seu sentido mais dinâmico e útil para a
vida92. De uma certa maneira, a filosofia consiste também numa determinada maneira de se
contar as coisas, compondo narrações93 nas quais as palavras operam segundo critérios de
organização que provêm da necessidade de se falar de determinados fatos ou questões
específicos, como, por exemplo, os afetos. Ao narrar, a evocação do objeto depende da
escolha das palavras, fato este que, como atestam as palavras de Spinoza, não escapa nem aos
filósofos: “como o vulgo encontrou primeiro as palavras, que em seguida são empregadas
pelos filósofos, pertence àquele que procura o significado primeiro de uma palavra perguntar-
se o que ela significou para o povo” (PM I, Cap. VI, p. 277-278). Como podemos ver, as
próprias palavras também têm a sua história, ou seja, inevitavelmente, onde há palavras,
parece haver uma narração sendo feita, pois a história é não apenas o que é construído pelas
palavras como também o corpo do qual elas necessariamente são partes. Que os textos
filosóficos e as ideias neles contidas também não escapam à regra, também o podemos
encontrar respaldo no texto spinozano: “com efeito, as ideias não são outra coisa do que
relatos ou histórias da natureza no espírito” (idem, p. 278). Afirmação, sem dúvida, polêmica
92
“E, efetivamente, sem dúvida, a maior parte dos erros consiste apenas em não aplicarmos corretamente os
nomes às coisas” (E II, prop. 47, esc., p. 87).
93
Empregamos aqui o termo ‘narração’ no sentido que Spinoza utiliza no TTP, com sinônimo de ‘história’,
como, por exemplo, “diversas narrações que a Escritura apresenta de cada fato” (TTP, Cap. VII, p. 117).
Acreditamos ser plausível reportar o uso desse termo, assim como seus correlatos, para a Ética, devido ao fato de
que Spinoza compara o a interpretação da Escritura com a da Natureza: “o método de interpretar a Escritura não
difere em nada do método de interpretar a natureza; concorda até inteiramente com ele” (idem, p. 115). Ou
ainda, quando diz: “interpretar a natureza consiste essencialmente em descrever a história da mesma natureza”
(idem, p. 115-116). De onde tiramos que, ao falar da natureza dos afetos, assim como de Deus ou da mente,
Spinoza narra ou conta a história dessas mesmas naturezas, esforçando-se em aplicar as palavras ou os nomes da
maneira mais correta ou adequada possível.
112
e difícil de ser compreendida, da qual retiramos a seguinte pergunta: será a filosofia uma
história do espírito? Abandonemos, no entanto esta questão e avancemos no exame do
tratamento feito por Spinoza da linguagem.
A linguagem, no seu nível mais elementar, é um composto de corpos, “pois a essência
das palavras e das imagens é constituída exclusivamente de movimentos corporais, os quais
não envolvem, de nenhuma maneira, o conceito do pensamento” (E II, prop. 48, esc., p. 90), a
saber, as palavras são constituídas por sons e imagens ligadas aos aparelhos físicos de
audição, visão e fala. Quando se trata de considerar, no entanto, esses corpos como expressões
de significados, a questão é outra e, nas palavras de Spinoza, “pela simples audição, sem que
haja um ato próprio e anterior do intelecto, nada pode ser afetado” (TIE, # 26, p. 335), por
conseguinte, podemos colocar a questão da seguinte maneira: se a presença de um ato do
intelecto anterior confere àqueles corpos o caráter de serem eles corpos linguísticos, ou seja, o
caráter de signos, como, então, isso ocorre?
A linguagem falada também ocorre quando, além da emissão dos fonemas pela boca e
quando da sua recepção pelos ouvidos, em silêncio conosco mesmos temos dentro de nossas
‘cabeças’ em um mesmo indivíduo falante as duas funções presentes: audição e fala, em
palavras nitidamente discerníveis e complexamente trabalhadas. Pela simples experiência
cada um de nós é capaz de reconhecer a existência dessa linguagem que se pratica por meio
desses aparelhos interiores de fala e audição. Que Spinoza reconhece este fato é comprovável
pela identificação que ele faz das palavras com a imaginação: “pode-se, pois, afirmar agora
sem nenhuma reticência que os profetas não perceberam a revelação divina senão através da
imaginação, isto é, mediante palavras ou imagens” (TTP, Cap. I, p. 30, grifo nosso). Como
vimos anteriormente, a imaginação é a capacidade de agir conforme as afecções do corpo são
em nós retidas e reconectadas segundo operações que não provêm apenas dos corpos
exteriores, mas de nós mesmos enquanto agentes propositivos. Com isto queremos propor que
a linguagem talvez seja o poder do homem de regular as afecções do seu corpo, de maneira
que ela, sendo também corpo, seria capaz de modificar a disposição do corpo. Sem querer
confundir palavras e ideias, é evidente que, no entanto, entre elas a conexão é tão forte que
não temos como negar que sem aquelas não teríamos meio de sermos conscientes destas; ou
seja, a linguagem, com a qual contamos histórias e narramos fatos da natureza e dos homens,
está de tal maneira implicada nos atos da mente que somos obrigados a conferir à linguagem
um lugar privilegiado no que diz respeito ao estudo da filosofia.

113
Retornemos à questão principal. Sem dúvida que, quando Spinoza fala de um “ato
anterior do intelecto”, tal ato só pode ser uma ideia. O contexto em que aparece essa
afirmação diz respeito ao conhecimento por ouvir dizer, no qual ele afirma que “apenas por
ouvir dizer, além de ser bastante incerto, não percebemos a essência da coisa”, pois “não
podemos conhecer a existência singular de uma coisa a menos que a sua essência nos seja
conhecida” (TIE, # 26, p. 335). O mero pronunciamento e a mera repetição de palavras não
dão a conhecer coisa alguma, pois que, como as palavras são corpos, e o entendimento é um
ato da mente, elas não constituem por si mesmas nenhum conhecimento, entretanto, mesmo
sem que nos permitam perceber as essências, ouvir (ou ler) as palavras não deixa de ser um
conhecimento de primeiro gênero. O que aconteceria, no entanto, se não nos limitássemos a
apenas receber as palavras ao ouvi-las ou lê-las? O que acontece de diferente quando as
palavras são interpretadas? No sétimo capítulo do Tratado teológico-político encontramos o
que poderíamos chamar de uma teoria da interpretação, segundo a qual as narrações seriam
passíveis de análises metódicas e pelas quais conhecimentos mais elevados que o por ouvir
dizer seriam possíveis.

5.2. Uma teoria da interpretação

Quando lemos um livro em que vêm coisas inacreditáveis ou incompreensíveis, ou


um livro que está escrito em termos extremamente obscuros, se não sabemos quem é
o seu autor, em que época e em que ocasião foi escrito, debalde tentaremos saber ao
certo o seu verdadeiro sentido. Por que, se ignorarmos tudo isso, não podemos de
maneira nenhuma saber qual foi ou qual poderia ser a intenção do autor; pelo
contrário, se o conhecermos exatamente, organizaremos os nossos pensamentos de
forma que não seremos assaltados por nenhum preconceito (TTP, Cap. VII, p. 129,
grifo nosso)

Spinoza parece descrever de maneira geral e elementar a estrutura de qualquer ato


narrativo. Em primeiro lugar, à narração é indispensável a existência de um quem, o autor que
realiza o ato de narrar. Em segundo lugar, ninguém diz coisa alguma sem que a narração não
ocorra em alguma época, isto é, num momento no tempo, e também em alguma ocasião, ou
em um determinado lugar no espaço. Desta maneira, como justamente o que Spinoza pretende
é mostrar que toda narração ocorre por alguém localizado de forma concreta temporal e
espacialmente, o sentido da narração não deverá ser compreendido de forma abstrata, mas
igualmente de forma concreta, a saber, o sentido da narração é o seu endereçamento que,
enquanto ato de um agente concreto, é a intenção do autor. Intenção, portanto, significa a
quem a narração se dirige. Completa-se, assim, com a presença do receptor da fala o contexto
114
básico de toda narração, cuja existência é indispensável para que a interpretação de qualquer
narração possa se realizar sem obscuridade. Em síntese, a linguagem é a ordem das afecções
na qual estão presentes um agente e um receptor da narração, situados ambos em tempo e
espaço determinados, conscientes em algum grau de si, do outro e do contexto no qual ambos
estão inseridos. A mesma estrutura está presente quando a fala é endereçada reflexivamente a
si mesmo, exercendo, neste caso, o mesmo indivíduo as duas funções de falante e receptor.
Como “é muito raro os homens contarem uma coisa tal como ela aconteceu, sem
acrescentar nada da sua opinião pessoal”, de modo que “nas suas crônicas e histórias, os
homens referem mais as suas opiniões do que os próprios fatos ocorridos” (TTP, Cap. VI, p.
108, grifo nosso), o trabalho de interpretação depende da re-contextualização, começando
pela identificação do autor da narração, de sua cultura, sua língua, por fim, de suas opiniões.
As opiniões, por mais pessoais que sejam, inscrevem-se também na ordem comum das
afecções. Toda opinião em alguma medida é familiar, pertence à percepção das coisas por sua
verossimilhança, por isso, “o vulgo habitualmente explica as coisas naturais [...] recorrendo à
memória para se recordar de um caso semelhante que lhe seja familiar” (TTP, Cap. VI, grifo
nosso). Trata-se do conhecimento por ouvir dizer, que tem como modo de operação a
repetição do que os outros dizem. Ora, o semelhante é sempre o já conhecido, por isso na
opinião sempre repetimos aquele mesmo gravado na memória. Pela opinião, ‘encaixamos’,
por assim dizer, o dessemelhante nos mesmos gêneros ou classes de coisas com os quais
estamos habituados a perceber tanto nós mesmos quanto as demais coisas fora de nós. Isto
explica porque “o homem comum julga que entende bem uma coisa quando não fica
admirado com ela” (idem, p. 99), pois, caso contrário, se algo lhe aparece como
desconhecido, isto é, lhe causa admiração, é porque contrasta com a familiaridade pela qual
está acostumado a julgar as coisas94.

94
A repetição no ouvir dizer é, para Spinoza, uma espécie de autoengano: “os homens agem, em tudo, em
função de um fim, quer dizer, em função da coisa útil que apetecem [...] É por isso que, quanto às coisas
acabadas, eles buscam, sempre, apenas as causas finais, satisfazendo-se, por não terem qualquer outro motivo
para duvidar, em saber delas por ouvir dizer. Se, entretanto, não puderem saber dessas causas por ouvirem de
outrem, só lhes resta o recurso de se voltarem para si mesmos e refletirem sobre os fins que habitualmente os
determinam a fazer coisas similares e, assim, necessariamente, acabam por julgar a inclinação alheia pela sua
própria” (E I, Apêndice, p. 42). A falta das palavras de outrem – a falta dos parâmetros fornecidos por outrem
aos quais se está habituado a acatar – acaba por promover o engano de atribuir aos outros e às outras coisas as
mesmas inclinações reconhecidas em si mesmo. Neste caso, não seria ainda recorrer a antigas opiniões, a antigos
dizeres outrora ouvidos? Afinal de contas, não julgam a partir das outras coisas similares que estão habituados a
fazer? Estas suas inclinações, portanto, que atribuem ao outro são elas mesmas predisposições a outros fazeres
habituais. O fim da ação é a própria coisa que desperta o apetite por ela. Os apetites ou inclinações, supõem
erroneamente os homens, têm como causa as coisas que consideram os fins de suas ações. E como ligam-se por
hábito sempre às mesmas coisas (aquelas que disseram ser boas, isto é, apetecíveis, úteis), consideram pela
mesma força desse hábito que os outros igualmente estão inclinados a elas, da mesma forma que toda coisa
115
Na presença do desconhecido, o corpo é afetado de forma não familiar, e o espanto ou
admiração decorrente dessa afecção abre dois caminhos possíveis e por si já exclui a
possibilidade de permanecermos indiferentes diante de sua causa: ou recuamos e a
encaixamos no familiar, ou avançamos e nos pomos na observação da coisa mesma. Em
outras palavras: ou obscurecemos a coisa retirando-a de seu próprio contexto e contamos para
nós mesmos a sua história segundo as mesmas palavras com que estamos habituados a nos
contar o que são as coisas, ou tentamos esclarecê-la buscando as palavras que sirvam para
expressar a coisa segundo seu próprio contexto o máximo possível. Neste último caso, temos
a interpretação. Está-se, assim, em uma encruzilhada onde é preciso tomar uma decisão, a
decisão de prosseguir rumo ao desconhecido e se esforçar por elaborar a história autêntica da
causa do espanto, ou, fazer como o camponês, que julgava que o mundo inteiro se resumia aos
seus campos, e repetir a história familiar dos mesmos preconceitos de sempre.

Na realidade, assim como o método de interpretar a natureza consiste


essencialmente em descrever a história da mesma natureza e concluir daí, com base
em dados certos, as definições das coisas naturais, também para interpretar a
Escritura é necessário elaborar a sua história autêntica e, depois, com base em
dados e princípios certos, deduzir daí como legítima consequência o pensamento dos
seus autores. Desse modo, quer dizer, se na interpretação da Escritura e na discussão
do seu conteúdo não se admitirem outros princípios nem outros dados além dos que
se podem extrair dela mesma e da sua história, estamos procedendo sem perigo de
errar e poderemos discutir com tanta segurança as coisas que ultrapassam a nossa
compreensão como aquelas que conhecemos pela luz natural (TTP, Cap. VII, p. 115-
116, grifo nosso)

Consideremos então que exista um modo de conhecer as coisas segundo princípios


extraídos da natureza delas, que descreva a história autêntica das coisas e que permita
elaborar um conhecimento necessariamente verdadeiro delas. Tratar-se-ia de escrever uma
história baseada no reconhecimento dos seus autores pelas suas obras, tal como quando lemos
um livro e nos esforçamos por entender o que o autor quis dizer, prestando atenção ao uso e

diferente será contada entre as outras habituais, reduzindo-a às similaridades que ela tem com essas outras. O
fato de todo esse processo estar presente no conhecimento por ouvir dizer nos permite conjecturar se esse
‘autoengano’ não consistiria num modo de contar as coisas por um uso habitual de palavras, que formariam uma
narração comum cuja história estaria sempre a se repetir, reafirmando assim os mesmos preconceitos, as mesmas
inclinações. (Em português temos os verbos ‘contar’ e ‘narrar’ bem diferentes um do outro. Interessante,
contudo, os mesmos em alemão, respectivamente zählen e erzählen, cuja diferença seria do segundo para o
primeiro um ‘contar de novo’. A propósito, vale lembrar que Walter Benjamin, em O narrador, diz que “contar
histórias sempre foi a arte de contá-las de novo” (BENJAMIN, 1994, p. 205). O verbo zählen é empregado na
contagem numérica (número = Zahl), como ‘contar’. Em português, a expressão ‘pode contar comigo’ pode ser
entendida como ‘dentre os elementos que vão formar esse conjunto, pode contar a minha pessoa como mais um
elemento’. ‘Contar’ seria, então, situar algo num contexto ao qual passa a pertencer, uma família, como a família
dos números. A história, por sua vez, seria esse mesmo percurso de passar de deslocado a contado entre outros
(ou o inverso), realizar esse mesmo percurso, não, no entanto, no campo das ações, mas no das palavras, que
substituiriam aquelas. Narrar seria contar de novo uma mesma coisa, repetir uma ação em palavras.)
116
ao emprego das palavras escolhidas por ele: a natureza e as obras devem ser conhecidas pela
atenção dirigida ao seu modo próprio de atuar. Nisto, pelo que entendemos das palavras de
Spinoza, consiste precisamente o trabalho de interpretação.
Segundo o Dictionnaire online Gaffiot (1934, p. 844), intérprete, do latim interpres,
significa “agent entre deux parties, intermédiaire, médiateur, négociateur” [agente entre duas
partes, intermediário, mediador, negociante]. Interpretar seria, pois, este pôr-se entre a
natureza das coisas e as próprias coisas, de modo a servir de mediador para que estas sejam
percebidas à luz daquela, isto é, reconstituir o todo do qual as suas duas partes, antes da
elaboração, eram percebidas obscuramente. Ora, nisso parece consistir justamente escrever a
história das coisas: a escrita da história não seria nada mais do que situar novamente as coisas
no contexto onde elas foram encontradas de modo a poderem ser conhecidas junto com as
partes com as quais formam um todo.
Conhecer, poderíamos assim dizer, é interpretar. Interpretar a Escritura é conhecer o
significado das ações ali descritas pela recondução das suas palavras ao contexto no qual elas
tiveram origem. Assim, em se tratando de ações humanas, o seu contexto é o de uma língua,
isto é, de uma cultura e de um povo determinados. Em se tratando das coisas naturais, o seu
contexto é a Natureza toda de acordo com as suas leis infinitas. Em ambos os casos, o
conhecimento não é dado, não é conquistado sem esforço e dificuldade. Ao contrário da
imaginação, que é um conhecimento fácil pelo acomodamento das coisas em ideias
preconcebidas, o entendimento exige a decisão de seguir o caminho traçado pelas próprias
coisas, encontrando alegria no desconhecido, enfrentando o medo e não recuando diante do
espanto.
Cada ato de entendimento seria, por assim dizer, começar a filosofia novamente. Sem
que seja por mero jogo de palavras, o conhecimento é sempre o reconhecimento do outro a
quem se aproxima por amor95. Com efeito, o enamoramento pelo objeto do conhecimento não
seria possível se este não fosse, a princípio, desconhecido, pois o amor é, antes de mais nada,
uma paixão e, como toda paixão, é um conhecimento inadequado do objeto. O amor “é uma
alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior” (idem, def. dos afetos 6 p. 142). O
objeto do amor, por conseguinte, mesmo que conhecido confusa e parcialmente, é
minimamente conhecido, pois que não se pode amar, “se não existir, no mesmo indivíduo, a
ideia da coisa amada” (E II, ax. 3, p. 52). “Vemos, além disso, que aquele que ama esforça-se,
necessariamente, por ter presente e conservar a coisa que ama” (E III, prop. 13, esc., p. 108-

95  “O reconhecimento é o amor por alguém que fez bem a um outro” (E III, def. dos afetos 19, p. 145).
117
109), diz Spinoza. Contar uma história seria também, assim, manter presente a coisa amada.
Tanto no primeiro (ouvir dizer) quanto no segundo gênero (noções comuns) de conhecimento
a aproximação do objeto envolveria o amor como afeto por algo exterior que em algum
momento fora desconhecida. O amor seria, então, o que aproximaria o homem do diferente
dele, tornando-o familiar ao imaginá-lo repetidamente pelas similaridades habituais e
compreendendo-o pela sua natureza própria ao interpretá-lo.
A propósito, gostaríamos de fazer uma distinção entre a admiração e o espanto, que
anteriormente foram dados como sinônimos, mas que agora importa serem diferenciados.
Spinoza fala de uma relação com a coisa amada que é a de um afeto como que entre o espanto
e o amor, que não é ainda a consideração da coisa como causa da alegria, e nem também a
surpresa do espanto. Trata-se de um afeto sutil, que prepara o surgimento do amor; um afeto
que, como uma porta entre o amante e a coisa desconhecida, os separa ao mesmo tempo que
fornece-lhes o acesso. Sem pressa, aquele que sente este afeto deixa-se imaginar a presença da
coisa desconhecida sem atribuir-lhe o poder de causa, permanece dela, assim, ainda distante o
suficiente para somente admirá-la: “a admiração é a imaginação de alguma coisa à qual a
mente se mantém fixada porque essa imaginação singular não tem qualquer conexão com as
demais” (E III, def. dos afetos 4, p. 142). Ainda sem nome para a coisa, tem-se nome, no
entanto, para o afeto, o afeto por uma coisa completamente não familiar, sem conexão com as
demais. Aqui parece haver uma certa regulação da inclinação pela coisa, que seria um não
fazer aquilo que habitualmente se faria. Deste modo, a nosso ver, a admiração é o caminho
para o conhecimento verdadeiro, é o sentimento do entre: é já interpretação. Do latim pretium
– “valeur d’une chose, prix [...] argent” (GAFFIOT, 1934, p. 1236) – interpretar é negociar o
valor de duas coisas mediante uma terceira, que lhes serve de moeda de troca. Por
conseguinte, temos, de um lado, o agente do conhecimento, e, do outro, o objeto do
conhecimento, e, entre eles, o termo comum, que, a partir de agora, identificaremos com a
palavra. A natureza da palavra não é tão simples, embora, como já dissemos, ela consista
apenas em traços sonoros e/ou visuais, que, como também já vimos, sem um ato anterior do
intelecto, contudo, é apenas um corpo a mais (desprovida de significado ou função
linguística). Mas, ao mesmo tempo, nos parece ser impossível conceber a ação intelectual sem
a presença da palavra. As histórias que contamos se valem de palavras habituais, de
construções narrativas habituais, mediante as quais, como moedas, trocamos a experiência
presente singular por uma experiência mediante a qual a presente, atual e singular, seria uma
parte e que por aquela seria medida. Na interpretação, contudo, essa troca parece ser

118
negociada, como se o processo habitual fosse temporariamente interrompido para se negociar
com maior cautela. Essa seria uma outra forma de ver a diferença entre o espanto e a
admiração, entre o primeiro e o segundo gêneros de conhecimento e o ouvir dizer e a
interpretação.
5.3. A natureza da palavra

Vimos que a palavra é corpo e, como tudo o que ocorre no corpo, lhe corresponde uma
ideia na mente, na qual ela é pensada objetivamente96. A palavra é a imagem produzida de
acordo com normas que não existem senão dentro de uma comunidade humana, ela é a
expressão mesma da comunidade fora da qual, para Spinoza, o ser humano não existe. A
palavra é a obra comum de um povo, o produto de sua aliança, o nome, por assim dizer, que
todos da mesma comunidade carregam desde a sua origem. Desta maneira, como “não se
pode conhecer ninguém a não ser pelas suas obras” (TTP, Cap. V, p. 93), para se conhecer um
povo, é preciso conhecer a sua língua, pois a língua talvez seja a principal obra de um povo.
Por isso Spinoza determina que, para interpretar a Escritura, é preciso, em primeiro lugar,
antes de mais nada “incluir a natureza e as propriedades da língua em que foram escritos os
livros da Escritura e em que os seus autores falavam habitualmente” (id., Cap. VII, p. 117).
Viver em sociedade significa viver com outros sob uma lei ou direito comum. Um
homem sem lei é inconcebível. Homens que vivessem em comunidade sem a presença da lei
por eles estatuída97, não difeririam dos animais em nada, pois todos os seus atos seriam
explicáveis tão-somente pelo instinto. (Entendemos aqui o termo instinto não no seu sentido
estrito de programa biológico; instinto para nós aqui tem um significado mais amplo, significa
o ato de repetir uma mesma ação previamente convencionada sem que em momento algum
esta ação seja acompanhada da consciência de sua repetição.) Isso, acreditamos, ficará mais
claro à luz da distinção que Émile Benveniste faz entre a comunicação animal e a linguagem
humana. Nos valemos a seguir desta distinção por acreditarmos que, como tentamos esboçar o

96
Quando dizemos que a palavra é produzida pelo corpo, nos referimos com isso tanto à palavra ‘dita pra fora’
pelo som da boca ou por qualquer outro sinal físico, como a palavra escrita ou sinais com as mão, quanto à
palavra ‘dita para dentro’, aquela que se tem acesso apenas quando para o externo nos silenciamos, a palavra
‘dentro da cabeça’. A palavra dita para dentro não é o ser objetivo da ideia, a palavra não é ideia, é a imagem da
palavra, não enquanto esta imagem é explicada pelo pensamento, mas pela extensão. O ser objetivo da ideia é
uma realidade mental que pertence à ideia e que não se assemelha à palavra em nada, mas que é a imagem da
palavra no pensamento. Como imagem no pensamento, o ser objetivo da ideia da palavra não está nem no tempo
nem no espaço, pois que tempo e espaço são medidas da extensão e da duração das coisas explicadas pela
extensão.
97  “Com efeito, os homens são constituídos de tal maneira que não podem viver sem algum direito comum” (TP

I, # 3, p. 7).
119
que poderia se chamar uma teoria da linguagem em Spinoza, a teoria linguística de
Benveniste se adequa bem, pelo menos na presente questão, à ideia que formamos do
pensamento spinozano sobre a linguagem.
Segundo Benveniste, a linguagem pode ser definida basicamente pela “capacidade de
formular e de interpretar um ‘signo’ que remete a uma certa ‘realidade’, a memória da
experiência e a aptidão para decompô-la” (BENVENISTE, 1976, p. 64). Assim, as abelhas, a
princípio, também seriam dotadas de linguagem. Segundo as pesquisas que o linguista
descreve, as abelhas são capazes de repassar informações sobre a presença de alimento, de
modo que uma abelha pode, tendo antes detectado em determinado local o alimento, voltar à
comunidade e, através de alguns sinais corporais (semelhantes a uma dança), comunicar às
demais companheiras com precisão onde elas devem colhê-lo. Toda essa experiência satisfaz
aquelas condições de linguagem. A abelha destinatária formula um signo (os movimentos
regulares da ‘dança’), o qual remete a uma outra coisa na realidade (o alimento), ao mesmo
tempo que o signo é ele mesmo o registro (memória) da experiência. As outras abelha, por sua
vez, são capazes de reconhecer a ‘dança’ como signo (interpretá-lo) e de retirar dele as
informações da realidade que ele carrega consigo (decompô-lo). Assim,

a situação e a função são as de uma linguagem, no sentido de que o sistema é válido


no interior de uma comunidade determinada e de que cada membro dessa
comunidade tem aptidões para empregá-lo ou compreendê-lo nos mesmos termos
[distância e direção do alimento] (BENVENISTE, 1976, p. 64)

Porém,

Uma diferença capital aparece na situação em que se dá a comunicação. A


mensagem das abelhas não provoca nenhuma resposta do ambiente mas apenas uma
certa conduta, que não é uma resposta. Isso significa que as abelhas não conhecem o
diálogo, que é a condição da linguagem humana. Falamos com outros que falam,
essa é a realidade humana [...] sendo a resposta uma reação linguística a outra
manifestação linguística [...] A abelha não constrói uma mensagem a partir de outra
mensagem. Cada uma das que, alertadas pela dança da primeira, saem e vão
alimentar-se no ponto indicado, reproduz quando volta a mesma informação, não a
partir da primeira mensagem, mas a partir da realidade que acaba de comprovar.
Ora, o caráter da linguagem é o de propiciar um substituto da experiência que seja
adequado para ser transmitido sem fim no tempo e no espaço, o que é o típico do
nosso simbolismo e o fundamento da tradição linguística (idem, p. 65, grifo nosso)

Apesar de haver, de fato, um processo de comunicação entre abelhas, conclui


Benveniste que essa comunicação não chega a constituir uma linguagem, de modo que
aquelas condições básicas, na verdade, são antes as condições da comunicação. A linguagem,

120
então, não participa da comunicação, mas antes o contrário, a comunicação participa da
linguagem, pois a comunicação se satisfaz com a reprodução de uma ação mediante um
signo, enquanto que a linguagem substitui a experiência sinalizada tornando esta presente. Na
linguagem, o signo é descolado da experiência à qual ele estava originalmente vinculado,
dando ao signo uma existência autônoma e um valor próprio. O signo linguístico, a palavra,
exerce a função de substituto porque é percebido como uma terceira coisa ao lado da
experiência referente (‘correspondente na realidade’, objeto) e da experiência presente dos
falantes (comunidade linguística, sujeito), como um terceiro campo de experiência autônomo.
O instinto animal abarca, portanto, a comunicação, na medida em que ele é a reprodução de
uma ação, mas sem que entre a ação presente e a ação passada, da qual aquela é como que
uma cópia desta, haja qualquer elemento intermediário que seja ele mesmo ligado a uma
terceira ação distinta das outras duas.
O signo linguístico é, então, uma espécie de corte entre duas ações instintivas, que
gera uma diferença tal que uma não é mais a mera ‘cópia’ ou reprodução da outra, mas ações
percebidas distintamente no tempo e no espaço, em contextos próprios, únicos e
irreproduzíveis. A palavra é o entre, a moeda de troca entre experiências ou ações distantes
entre si no tempo e no espaço, que, no mesmo ato pelo qual as distancia e as põe em “épocas”
e “ocasiões” distintas, as reaproxima na qualidade de enunciação presente “sem fim no tempo
e no espaço”. O sujeito que agora fala de uma outra ação, de uma outra experiência e num
outro contexto, no ato mesmo da enunciação ele realiza uma ação que constitui uma
experiência e um contexto diferentes daqueles representados no enunciado. A linguagem é
então uma obra humana que expressa de maneira dual a própria natureza humana, porque ao
mesmo tempo que a linguagem expressa a liberdade humana de produzir, de propor uma
ordem nova e diferente daquela do instinto, por meio da organização de suas afecções
temporal e espacialmente como elementos de uma mesma “história”, a linguagem pressupõe a
reprodução por parte dos falantes dos mesmos signos segundo os mesmos usos e as mesmas
regras que todos seguem em comunidade de forma quase instintiva.
Um outro aspecto da palavra é o de ela ser a palavra dada, de servir de selo (ou
símbolo) do pacto de união entre os homens. Sendo assim, as palavras tanto unem quanto
desunem os homens, pela mesma razão que a liberdade humana – cujo princípio é o direito
natural de cada homem poder lutar pela preservação de sua vida – seria impossível sem que
cada indivíduo estivesse igualmente sob a legislação de um direito comum que restringe seus
direitos naturais. Mesmo não sendo o próprio direito ou lei, a palavra dada, pelas suas

121
implicações e consequências práticas, como pode se ver pela experiência ordinária, exerce
função social semelhante, embora de caráter mais provisório e menos estável. Ela está,
portanto, a nosso ver, para o direito civil como o ouvir dizer está para o conhecimento.

Os homens, sem o auxílio mútuo, dificilmente podem sustentar a vida e cultivar a


mente. E, assim, concluímos que o direito de natureza, que é próprio do gênero
humano, dificilmente pode conceber-se a não ser onde os homens têm direitos
comuns e podem, juntos [...] viver segundo o parecer comum de todos eles. Com
efeito, quanto mais forem os que assim se põem de acordo, mais direito têm todos
juntos. E se é por esta razão, a saber, porque os homens no estado natural
dificilmente podem estar sob jurisdição de si próprios, que os escolásticos querem
chamar ao homem um animal social, nada tenho a objetar-lhes (TP II, # 15, p. 19)

Com os devidos resguardos, a ambiguidade da expressão ‘animal social’98 une dois


termos tão contraditórios que serve para dirigir nossa atenção para a ambiguidade presente na
natureza humana, a qual em nenhum outro lugar se mostra de maneira mais forte talvez do
que na palavra. Quantas pessoas não pararam alguma vez para contemplar a vida das abelhas,
mesmo que apenas na imaginação, e chegaram à conclusão de que, pela sua harmonia e
eficiência de vida em sociedade, elas são superiores aos homens99. Não há, de fato, conflito
dentro da sociedade das abelhas que seja movido pelo rancor, a inveja, a ambição etc., como
há nas relações humanas. A vida em sociedade para os homens, apesar de necessária para a
espécie, muitas vezes aos indivíduos é sentida como um fardo do qual desejam se libertar.
Assim, o isolamento chega a se tornar um ideal e o ascetismo a maior das virtudes. Esse
sentimento de solidão as abelhas, contudo, jamais o sentiram e jamais o sentirão, pois estar
sozinho pressupõe a consciência da diferença do estar consigo mesmo e o estar com os outros;
pressupõe, de maneira geral, estar consciente. O indivíduo humano vive essa ambiguidade de
ao mesmo tempo estar só e estar junto aos outros, de ter de si um direito inalienável pela sua
vida, ao mesmo tempo que este direito está submetido a um direito comum, o qual permite,
em parte, que a sua própria vida esteja sob o direito de outrem. Ora, tal como as abelhas, os
homens, se não tivessem consciência, viveriam talvez em bando da mesma maneira que os
outros animais, movidos nem pelo amor nem pelo ódio, movidos porém somente pelo
instinto, pois o amor e o ódio pressupõem a consciência da diferença entre o objeto do afeto, e
o afeto pelo objeto. Logo, o estado de natureza do homem não é um estado prévio, no tempo,
nem em que todos se amavam e nem em que se odiavam numa guerra constante, e nem

98
Sobre o uso dessa expressão em Spinoza, cf. TP II, # 15, p. 19.
99
“Todos veem com admiração, nos animais, maneiras de ser e de agir que reprovam nos homens, tais como as
guerras a que se livram as abelhas [...] desprezíveis na humanidade, são coisas que nos parecem juntar-se à
perfeição dos animais” (Carta 19, p. 107).
122
também que fossem livres por viverem sozinhos na floresta, já que isso nada mais é do que
uma fantasia motivada pelo desejo de isolamento (o qual provavelmente só existe por parte de
um homem que se sente conscientemente oprimido vivendo em sociedade). Do mesmo modo,
a diferença entre alegria e tristeza não existiria sem a consciência da potência de agir de si
mesmo. O estado de natureza do homem só pode existir enquanto o ser humano existe, e o ser
humano não existe sem a ambiguidade de ser, ao mesmo tempo, autômato e livre, instinto e
decisão. Por isso que “não está em poder de cada homem usar sempre da razão e estar no
nível supremo da liberdade humana” (TP II, # 8, p. 15), pois os homens estão igualmente
sujeitos a desejar as coisas conforme elas se mostrem pela sua razão quanto a partir das
afecções a que está exposto.

Não podemos admitir nenhuma diferença entre os desejos que em nós são gerados
pela razão e os que são gerados por outras causas, pois tanto esses como aqueles são
efeitos da natureza e explicam a força natural pela qual o homem se esforça por
perseverar no seu ser. O homem, com efeito, seja sábio ou ignorante, é parte da
natureza e tudo aquilo por que cada um é determinado a agir deve atribuir-se à
potência da natureza (TP II, # 5, p. 13).

Isto por que

A natureza não está limitada pelas leis da razão humana, as quais não se destinam
senão à verdadeira utilidade e à conservação dos homens, mas por uma infinidade de
outras leis, que respeitam a ordem eterna de toda a natureza, da qual o homem é uma
partícula, e só por cuja necessidade os indivíduos são determinados a existir e a
operar de um certo modo (idem, # 8, p. 16).

Entre a necessidade natural e a consciência da individualidade do seu desejo, o


homem é marcado pela palavra, a palavra da lei comum100. Como o nome próprio que separa
o indivíduo dos demais, ao mesmo tempo que reconhece o pertencimento à mesma família,
grupo, origem, sociedade, a palavra da lei é também testemunha do pacto social. Os homens,
por outro lado, reproduzem em sociedade a necessidade das leis naturais às quais estão
100
Não queremos reduzir as leis humanas a palavras, mas consideramos que, em alguma medida, toda lei
envolve uma palavra dada que, a princípio, não deveria ser quebrada. Sobre o quebrar a palavra dada, cf. TP III,
# 17, p. 34-35. O tradutor do Tratado Político, Diogo Pires Aurélio, em nota de rodapé explica o termo: “no
original ab alicuius fide. Traduzimos fide por ‘lealdade’, ou, em contextos bem definidos, por ‘palavra dada’,
duas das acepções do termo em latim que aparecem frequentemente no léxico político” (opus cit., nota 6, p. 9).
No mesmo parágrafo em que Pires comenta, Spinoza afirma que a salvação de um estado não pode depender da
lealdade ou da palavra dada por alguém, pois a fortaleza na manutenção da palavra é virtude privada, enquanto
que ao estado importa a segurança. Aqui podemos perceber que na vida do estado a palavra tem tanta
importância quanto no conhecimento por ouvir dizer, a saber, não muita. Por isso, a letra da lei, para ter vigor,
tem que valer mais do que como mera palavra, entretanto, nem por isso, se pode prescindir, a nosso ver, do uso
da palavra. Neste caso, como dissemos anteriormente, é no seu valor simbólico, de selo, que a palavra importa,
cuja fragilidade ou vigor certamente não dependem dela.
123
inevitavelmente sujeitos, ou, por uma outra perspectiva, essas leis estão também representadas
na letra da lei, na palavra, na linguagem, ao mesmo tempo que convive lado a lado com a
liberdade que os homens têm de serem autores da mesma lei. Igualmente, os homens, ao
obedecerem às regras da língua, expressam ao mesmo tempo as suas particularidades e a sua
liberdade de pensamento. Como uma mão que tanto serve para afagar quanto para apedrejar, a
palavra representa concomitantemente a concórdia e a discórdia, pois tanto a paz como a
guerra iniciam e terminam identicamente por uma palavra dada. Em nenhum dos casos,
porém, os homens estão agindo contra a natureza, pois essa ambiguidade, para Spinoza, é a
sua natureza, é um modo determinado de ser da substância. Assim, ao mesmo tempo que “se
dois se põem de acordo e juntam forças, juntos podem mais” (TP II, # 13, p. 18), os mesmos
dois homens “são tanto mais de temer quanto mais podem e quanto mais hábeis e astutos são
que os restantes animais [...] são por natureza inimigos” (idem, # 14, p. 18-19). A lei
representa esses dois polos, porque ao mesmo tempo que funda e garante a coesão social,
defende os homens de si mesmos exigindo deles obediência. Não haveria, portanto,
paradoxalmente, liberdade no Estado sem obediência, e vice-versa.
Por esta mesma razão, quanto à interpretação da lei, “não podemos conceber que a
cada cidadão seja lícito interpretar os decretos ou direitos da cidade. Porque, se tal fosse lícito
[...] cada um poderia [...] desculpar ou dourar seus atos com uma aparência de direito” (TP III,
# 4, p. 27, grifo nosso). Ora, o que Spinoza a nosso ver diz é que a interpretação da lei é algo
de diferente da lei. A letra da lei só permanece a mesma (guardada seja em uma tábua, em
autos, na memória ou em livros), porque a lei não pode ser alterada ao sabor dos arbítrios
individuais. Da mesma forma, o significado das palavras da lei, na medida em que é outra
coisa de diferente daquelas, precisa, para ser o menos oscilante possível e útil ao resguardo da
lei, por sua vez, de critérios igualmente acessíveis por meio da palavra, na forma de códigos
legais, cânones etc. A interpretação da lei não se dá, portanto, sem a mediação da palavra, seja
oral ou escrita, já que a lei por intermédio da palavra é tomada como coisa autônoma, isto é,
como lei, no sentido forte do termo. A lei comum do Estado é expressão da necessidade
natural de vivermos em sociedade, ela é tão inquestionável quanto à sua existência (seja ela
qual for) como qualquer outra lei da natureza. A palavra da lei, por esse motivo, não poderia
ser alterada, assim como as suas interpretações, sem que a própria lei corresse o risco de ser
suprimida. Por mais que a palavra por si mesma não valha, do ponto de vista do direito,
grande coisa, enquanto representação do acordo comum, não poderia, a nosso ver, ser
quebrada ou mudada sem ao mesmo tempo causar interferência naquele acordo, da mesma

124
forma que no conhecimento, por mais que uma definição seja apenas nominal, não significa
que o nome da definição possa ser constantemente alterado sem com isso trazer alguma
confusão ao conhecimento do objeto. É certo que o nome não é a própria definição, contudo,
na comunicação, no livro, no discurso, a representa.
Constatamos, portanto, que, para Spinoza, às palavras está sempre ligada uma certa
noção de uso, seja no contexto do conhecimento, seja no contexto da política. A forma das
palavras e os seus usos podem variar, as suas gramáticas variam, mas nunca deixará de haver
na vida humana línguas, palavras e usos destas segundo alguma gramática. Esse caráter da
palavra de ser inalienável ao homem (mesmo que a palavra às vezes faça o homem sentir-se
alienado das coisas) é o que faz da linguagem necessária, apesar de estar sempre presa à
imaginação e limitada em seu poder político. É interessante notar que tanto no contexto do
conhecimento quanto no do político a palavra aparece mais associada em Spinoza ao domínio
da vida privada. Diferentemente da noção comum, a imaginação diz mais do indivíduo
afetado que da coisa que o afetou, da mesma maneira que a intenção pessoal daquele que
apenas promete por palavra dada tem menos valor de direito que o contrato fundamentado na
lei comum do Estado. Tentaremos no ater a seguir ao que, no entanto, a palavra tem de
comum e de público, mesmo que limitadamente. Acreditamos que, compreendendo esse lado
não arbitrário da linguagem, possamos também lançar maior luz à importância da imaginação
no processo do conhecimento.

As palavras só possuem determinado significado em função da maneira como se


usam; se, de acordo com essa sua utilização, elas vêm ordenadas de forma que
sugiram a quem as lê sentimentos devotos, tais palavras serão sagradas, bem como o
livro que resulta dessa disposição. Mas, se elas depois deixarem de ser usadas, a
ponto de já não terem nenhum significado, ou se o livro for totalmente esquecido,
seja pela malícia dos homens, seja por já não se precisar mais dele, então, quer as
palavras quer o livro não têm mais nenhuma utilidade nem réstea de santidade. Se,
então, enfim, as mesmas palavras forem dispostas de outra maneira, ou se a norma
em vigor lhes atribuir um significado oposto [...] nada, em si mesmo, é sagrado,
profano ou impuro, e que só em função da mente o poderá ser (TTP, Cap. XII, p.
198-199, grifo nosso).

Neste trecho podemos ver como estão conectados o significado, a utilidade e a


influência das palavras no ânimo. Em primeiro lugar, o significado está ligado aos afetos
(modificações do ânimo) gerados pela disposição das palavras. Como as palavras não são
utilizadas sem uma ordem – e esta ordem é o próprio caráter narrativo no qual, de acordo com
o conceito aqui apresentado de narração, elas sempre estão quando com sentido são proferidas
–, a sua disposição não é aleatória, mas está ligada à utilidade ou finalidade para a qual são
125
destinadas. Assim, o significado das palavras decorre do seu uso, o qual está de acordo com a
utilidade das próprias coisas, como, por exemplo, “um romano passará imediatamente do
pensamento da palavra pomum para o pensamento de uma fruta”, ou ainda “um soldado ao
ver os rastros de um cavalo sobre a areia, passará imediatamente do pensamento do cavalo
para o pensamento do cavaleiro [...] já um agricultor [...] para o pensamento do arado” (E II,
prop. 18, esc., p. 70) e assim por diante. A razão disso é que “cada um, dependendo de como
se habituou a unir e a concatenar as imagens das coisas, passará de um certo pensamento a
este ou àquele outro” (idem). As palavras estão diretamente ligadas às imagens das coisas
pelo hábito de como são concatenadas tanto no corpo quanto na mente. Poderíamos, por conta
disso, falar até de uma história dos hábitos, que nos levaria a uma história dos modos de sentir
e pensar as coisas habitualmente em um determinado contexto social ou temporal101. Em
suma, podemos dizer que as palavras fazem parte dos nossos hábitos e, consequentemente, os
seus significados também.
Além disso, o significado da palavra, de acordo com o texto de Spinoza, seria o ato
próprio e anterior do intelecto sem o qual a palavra não existe, é o que em função da mente
algo é profano ou sagrado (considerando-se que sagrado e profano sejam significados).
Significar, literalmente, quer dizer ‘ser signo de’. Signo é uma marca qualquer que diferencia
duas coisas de mesma natureza ou que aproxima coisas de naturezas distintas, de maneira
direta ou de maneira indireta, ou como ‘sinal de’ ou como ‘símbolo de’102, respectivamente. A

101
Evidentemente estas últimas afirmações são apenas inferências retiradas por nós do texto de Spinoza, sem que
ele mesmo as haja feito. Seguimos, no entanto, o raciocínio que, tal como a Escritura é composta por histórias,
ela mesma, enquanto livro, tem a sua história, fato este reconhecido pelo próprio Spinoza: “tudo isso, sublinho,
deve estar incluído na história da Escritura” (TTP, Cap. VII, p. 119). O mesmo se dá com o significado das
palavras, pois, para conhecê-lo bem “importa também saber em que ocasião, em que época e para que nação ou
século foram escritos todos esses pensamentos” (idem, p. 120). Anteriormente, no capítulo dois, vimos que, para
Spinoza, o método de interpretação da natureza e o da Escritura são o mesmo. Sendo assim, quando ele diz que
“tal como temos que concluir as definições das coisas naturais a partir das diversas ações da natureza, assim
também é necessário extraí-las das diversas narrações que a Escritura apresenta de cada fato” (idem, p. 117,
grifo nosso), ao equiparar ações e narrações, podemos dizer que as primeiras dizem respeito à natureza como um
todo e as segundas seriam as ações no que dizem respeito ao mundo dos homens. Portanto, como as narrações
seriam histórias das ações humanas, interpretamos as ações humanas segundo as palavras usadas para contá-las,
ou seja, o significado das palavras é, ao mesmo tempo, o significado das ações humanas. Que os afetos são, por
Spinoza, associados aos costumes do mundo das ações humanas, podemos perceber quando ele diz: “Na
verdade, o costume e a religião não são os mesmos para todos. Pelo contrário, o que para uns é sagrado, para
outros é profano, e o que para uns é respeitoso, para outros é desrespeitoso. Assim, dependendo de como cada
um foi educado, arrepende-se de uma ação ou gloria-se por tê-la praticado” (E III, def. dos afetos 27, p. 146).
Arrependimento e glória, sagrado e profano, respeitoso e desrespeitoso são nomes ou palavras que usamos para
significar ações humanas. Assim, distinguimos os afetos pelos significados das ações humanas, isto é, das
histórias do mundo humano, tal como as ações dos profetas narradas na Escritura. Isto, cremos, serve para
fundamentar que poderia haver uma história dos afetos humanos.
102
Os termos aqui utilizados não estão seguindo rigorosamente nenhuma teoria filosófica ou linguística
específicas, nem também o vocabulário spinozano. Utilizamo-los de maneira livre e unicamente com o fim de
126
fumaça é sinal do fogo, funciona como uma seta que direciona um observador a encontrar,
por meio da fumaça, o fogo. A fumaça é o que está entre o observador e o fogo, é o terceiro
termo entre coisas de naturezas distintas (homem e fogo), sendo ela mesma distinta destas. A
sinalização é então uma relação entre duas coisas distintas que se comunicam por meio de
uma terceira também distinta, de modo que observador, sinal e objeto são os três componentes
da sinalização.
Além da sinalização, como dissemos, temos o símbolo. O símbolo, tal como o sinal, e
porque tal como ele é um signo, é um terceiro termo na comunicação de duas outras coisas;
diferentemente do sinal, porém, ele não é dado externa e naturalmente ao homem, mas
produzido103 por este. O símbolo é qualquer coisa dada na natureza, mas manipulada de tal
maneira pela ação humana que esta lhe deixa uma marca, ou que transforma a própria coisa
em marca, como um corte numa árvore ou uma pedra deslocada usada como referência para
separar territórios e semelhantes. A relação entre o signo e a coisa referente, em contraste à
sinalização, é diferente na relação simbólica. Na sinalização, o signo é uma coisa dada e que
não foi produzida pelo homem, como a luz é sinal da presença do sol e o vento é sinal de
chuva. Diferentemente, com o símbolo aquilo que serve de signo é algo que, para existir,
depende da ação humana, é um artifício humano, uma obra, e, como artifício humano,
funciona como um substituto da coisa dada naturalmente, e quanto mais estiver sob a
regulação e o alcance do homem, mais seu uso é eficiente. Ora, aquilo que, sem dúvida, mais
está sob a regulação do homem, como matéria dada e manipulável, do ponto de vista da sua
transformação em signo, é a sua voz, por ser feita de matéria volátil e altamente maleável. É
muito mais simples, econômico e prático usar da palavra do que de gesto ou sinais de fumaça.
Usamos de outros recursos apenas na falta ou na impossibilidade de uso da voz. Sinais de
fumaça são úteis quando as distâncias são muito grandes ou o silêncio precisa ser respeitado,
mas se a palavra puder ser usada, certamente seria bem mais cômodo, fácil e útil.
A palavra seria, então, o símbolo por excelência, ou melhor, a voz seria a coisa que
mais usamos para exercer a função de símbolo, os sons articulados que servem de terceiro
termo para outras duas. Entre o sujeito falante e o objeto está a palavra, esta coisa criada pelo
homem para servir a ele de meio termo na comunicação com o fora. A palavra, no entanto, é
apenas matéria, ondas sonoras, oscilação mecânica do ar, portanto, esta matéria, para que seja

expor da melhor maneira possível nosso entendimento do pensamento de Spinoza, embora a noção de signo
como terceiro termo está largamente presente em sua obra.
103
Quando dizemos ‘produzido’ queremos especificamente dizer o que é feito pelo homem envolvendo alguma
arte ou técnica. Um simples grito ou grunhido, portanto, não poderia ser o caso, a não ser que o grito houvesse
sido previamente planejado e, por isso, fizesse parte de um contexto elaborado.
127
palavra, precisa ser marcada, modificada pelo homem para que se torne símbolo de uma
outra, para que se torne elo conectivo entre o sujeito falante, ou observador, e o objeto da fala.
As articulações sonoras que formam a estrutura material da língua obedecem a todas as leis
das coisas extensas, não sendo elas, então, as responsáveis pelo significado. Signo, sinal e
símbolo são funções que uma mesma coisa pode exercer de diferentes maneiras, e o
significado não poderia ser uma quarta função e nem o próprio símbolo, pois ele não é uma
coisa corporal, ele é, porém, um ato do intelecto de pôr-se como sujeito face a um objeto por
meio de um terceiro termo.

5.4. O significado

O significado, pelo que já foi dito, podemos dizer que seria um modo do pensamento,
ele seria uma ideia da união entre duas coisas por meio de um signo, a ideia que
objetivamente representa duas ou mais coisas conectadas por uma única que lhes é comum.
Sem dúvida, não sendo o significado algo de corpóreo, ele só pode ser uma ideia. Entretanto,
como ele se encaixa entre as noções comuns e as imagens? Iremos recorrer a seguir a algumas
passagens da obra spinozana onde encontramos a noção de significado.
Comecemos por algumas distinções que Spinoza faz. Em primeiro lugar, “meu
objetivo não é, entretanto, o de explicar o significado das palavras, mas de explicar a natureza
das coisas” (E III, def. dos afetos 20, p. 145). Considerando que no campo do conhecimento a
natureza das coisas é a sua definição, poderíamos inicialmente considerar que: o significado
está para as palavras como a definição está para o conhecimento das coisas e, em terceiro
lugar, a natureza (ou essência) está para as próprias coisas. Da continuidade do texto citado
acima, podemos inferir que o significado, por sua vez, pode ser dividido em dois tipos:
“designando-as [as coisas] por vocábulos que tenham, no uso corrente, um significado que
não se afaste inteiramente daquele que quero atribuir-lhes” (idem), a saber: o significado
correspondente ao uso corrente das palavras e o significado atribuído de acordo com o uso
específico determinado por alguém. Além destes dois, de acordo com outra passagem, parece
haver um terceiro: “se alguém observa uma obra que não se parece como nada que tenha visto
e, além disso, não está ciente da ideia do artificie, não saberá, certamente, se a obra é perfeita
ou imperfeita. Este parece ter sido o significado original desses vocábulos” (E IV, Prefácio, p.
155). Spinoza faz referência a um contexto específico do uso das palavras ‘perfeito’ e

128
‘imperfeito’, do qual elas teriam se originado, segundo o qual elas significariam meramente a
conclusão ou não de uma obra de acordo com o que seu produtor havia planejado. Mais tarde,
como Spinoza explica na sequência do texto, os homens passaram a empregar esses vocábulos
referindo-se a modelos universais a partir dos quais as coisas chamadas perfeitas e imperfeitas
ultrapassariam as coisas produzidas do ponto de vista do seu artificie, as quais, poderíamos
dizer, ganharam novos significados derivados. Em suma, os significados podem ser quatro:
corrente, atribuído, original e derivado. Voltaremos ainda a eles.
Em outra passagem Spinoza diz: “é preciso também fazer uma cuidadosa distinção
entre as ideias e as palavras pelas quais significamos as coisas. Pois muitos – seja por
confundirem inteiramente essas três coisas, quer dizer, as imagens, as palavras e as ideias
[...]” (E II, prop. 49, esc., p. 90). Como vimos tanto no segundo quanto no quarto capítulos, a
imagem é ambiguamente tratada por Spinoza ora como ideia ora como corpo, ora como
afecção da mente, ora como afecção do corpo, pois em alguns momentos é a ideia mutilada e
inadequada e em outros a modificação dos órgãos dos sentidos (imagem na retina, sons etc.).
A palavra, por outro lado, já o sabemos, é indubitavelmente corpo. Nesta passagem em
especial, ao fazer a diferença entre imagem e palavra, interpretamos a imagem como
modificação da mente, tal como foi tratado no capítulo anterior. Entre a imagem e a ideia, um
dos aspectos que as diferenciam pode ser entendido pelo que se lê: “aqueles que julgam que
as ideias consistem nas imagens [...] estão convencidos de que essas ideias das coisas das
quais não podemos formar nenhuma imagem que se lhes assemelhe não são ideias” (E II,
prop. 19, esc., p. 90, grifo nosso). A ideia, “enquanto é ideia, envolve uma afirmação ou
negação” (idem), isto é, da coisa de que a ideia é, portanto, ela não é um significado que
atribuímos à coisa ou “ficções que que fabricamos pelo livre arbítrio da vontade” (idem), pois
a relação da ideia com a coisa é de afirmação de sua natureza, e a relação, por outro lado, da
imagem com a coisa, é de semelhança. A imaginação, como vimos Spinoza dizer nos
Pensamentos metafísicos, é uma afirmação, entretanto, não da natureza da coisa, mas de
propriedades suas de acordo com o hábito e a repetição pelos quais as coisas são aproximadas
de acordo com medidas retiradas dos modos como somos por elas afetados. Assim, pela
imagem que temos de uma coisa não conhecemos a sua natureza, mas apenas semelhanças
com outras coisas das quais também formamos imagens.
Entretanto, Spinoza, no mesmo escólio, afirma: “a essência das palavras e das imagens
é constituída exclusivamente de movimentos corporais, os quais não envolvem, de nenhuma
maneira, o conceito do pensamento” (idem). De acordo com a nossa leitura, nesta passagem

129
Spinoza chama de imagem as modificações dos órgãos dos sentidos, muito embora já tenha
em outra passagem dito que as imagens são as ideias dessas modificações. De toda maneira,
essa ambiguidade da imagem se deve, tal como o entendemos, ao fato de que mesmo as ideias
das modificações do corpo seguem a ordem das afecções, de modo que aquilo que
representam, em parte, é constituído pelos movimentos corporais. Se isto for verdade, então
poderíamos dizer que a palavra e a imagem são constituídas distintamente pelos movimentos
corporais, e que apenas pelo que diferem da ideia podem ser ambas constituídas igualmente.
Feitas essas ressalvas, gostaríamos agora de esboçar a interpretação de que o significado
pertenceria ao domínio da imagem, tal como as palavras ao domínio das afecções corporais e
a ideia ao domínio do conceito.
De acordo com Lorenzo Vinciguerra, o significado para Spinoza é uma concatenação
de imagens: “como Spinoza parece indicar, o significado de uma imagem não é dado por uma
imagem isolada, mas somente por uma concatenação, uma interconexão ou cadeia de
imagens. Como resultado, o sonus articulatos ou o pomum não tem significado até estar
conectado a outra imagem” (VINCIGUERRA, 2012, p. 137)104. Vinciguerra chama a palavra
de imagem, do que não discordamos, porém gostaríamos de precisar. A palavra é um som
articulado, uma modificação do corpo da qual a mente tem uma ideia. A ideia da palavra não
é o seu significado, mas a sua imagem105. Desta mesma imagem, por sua vez, também temos
uma ideia, pois “a mente humana percebe não apenas as afecções do corpo, mas também as
ideias dessas afecções” (E II, prop. 22, p. 71). Como diz Vinciguerra, o significado é dado
pelas imagens, o que, a nosso ver, quer dizer que se a ideia pela qual percebemos as imagens
das palavras representa objetivamente uma concatenação de imagens, o significado é esta
própria concatenação enquanto percebida pela mente. Ora, a ideia propriamente é um conceito
da mente, como faz questão de definir Spinoza: “digo conceito e não percepção, porque a
palavra percepção parece indicar que a mente é passiva relativamente ao objeto, enquanto
conceito parece exprimir uma ação da mente” (E II, def. 3, p. 51); a ideia, por assim dizer, não
é dada pelo que a mente percebe das afecções do corpo, mas pelo que a mente compreende
daquilo que ela percebe. Parece, todavia, que nem toda ideia é imagem apenas quando é ideia
das afecções do corpo, porque quando a mente percebe as ideias dessas afecções ela também,
ao que tudo indica, imagina, se entendemos que toda ideia inadequada é uma ideia da
104
Traduzido por nós do inglês: as Spinoza seems to indicate, the meaning of an image is not given with one
isolated image, but only by a concatenatio, an interconnection or chain os images. As a result, the sonus
articulatus or the pomum is meaningless until it is connected to another image.
105
“Quando a mente humana considera os corpos exteriores [p. ex., as palavras] por meio das ideias das afecções
de seu próprio corpo, dizemos que ela imagina” (E II, prop. 26, dem. do cor., p. 74).
130
imaginação: “a ideia da ideia de uma afecção qualquer do corpo humano não envolve o
conhecimento adequado da mente humana” (E II, prop. 29, p. 75). E, pelo mesmo motivo,
“enquanto tem essas ideias, a mente não tem, de si própria, nem de seu corpo, nem dos corpos
exteriores, um conhecimento adequado, mas apenas um conhecimento mutilado e confuso”
(idem, cor.). Em outras palavras, a ideia da concatenação de palavras é ela mesma também
uma imagem, uma ideia mutilada e confusa que não serve para explicar a natureza das coisas,
e que, por isso, a mente conhece apenas pelas suas semelhanças. Desta maneira, as ideias das
ideias das palavras são a percepção de afecções pelas suas semelhanças, que incluem tanto os
padrões de articulação dos sons quanto os usos desses sons.
Discordamos de Vinciguerra quando este diz que “as representações ou significados
das coisas são formados de ideias de imagens e não das imagens elas mesmas. Estritamente
falando, o poder de imaginar, tal como o poder de fazer sentido, é uma virtude da mente”
(opus cit, p. 136)106. Como diz Spinoza, “o fato é que ninguém determinou, até agora, o que
pode o corpo”, o qual “por si só [...] é capaz de muitas coisas que surpreendem a sua própria
mente” (E III, prop. 2, esc., p. 101), como, por exemplo, “não está sob o livre poder da mente
esquecer ou lembrar alguma coisa”, nem “falar nenhuma palavra sem que tenhamos dela uma
lembrança prévia”, e nem ainda “está sob o poder da mente [...] calar ou falar aquilo do qual
nos lembramos” (idem, p. 103). Como dizer, então, que pertence exclusivamente à mente o
poder de fazer sentido como se fossem os conceitos que fizessem sentido, e não as palavras e
as imagens? Quando Spinoza investiga a Escritura, ele diferencia o sentido da verdade do
texto, e chega mesmo a dizer que eles podem ser opostos, sem que um anule o outro.

Assim, quando estamos investigando o sentido da Escritura, há que evitar a todo


custo deixarmo-nos influenciar pelo nosso raciocínio (para não falar dos nossos
preconceitos), porquanto ele assenta nos princípios do conhecimento natural. Para
não confundirmos o verdadeiro sentido com a verdade das coisas, deveremos
examiná-lo com base unicamente na norma linguística ou num raciocínio que tenha
por único fundamento a Escritura [...] Expressões como as de Moisés [...] atendemos
apenas ao significado das palavras [...] Mesmo quando o sentido literal repugna à
luz natural, devemos mantê-lo, a não ser que esteja em flagrante contradição com os
princípios e os fundamentos tirados da história da Escritura” (TTP, Cap. VII, p.
118).

Como podemos ver, são muitas as palavras que podem ser ditas, que têm sentido, mas
que no entanto não expressam nenhum conceito da mente. O sentido ou significado das
palavras independe de qualquer ação exclusiva da mente, mas, ao contrário, depende da mente

106
Trad. de: representations or meanings of things are made up of ideas of images and not of the images
themselves. Strictly speaking, the power of imagining, as a power of making sense, is a virtue of the mind.
131
apenas parcialmente, à medida em que esta percebe as palavras, sem necessitar formar
nenhum conceito a partir das ideias delas. Vinciguerra baseia a sua afirmação no escólio de E
II, 17, onde Spinoza diz que é virtude da mente imaginar “coisas inexistentes como se lhe
estivessem presentes” quando tem consciência da sua não existência. Entretanto, continua
Spinoza, “sobretudo se essa faculdade de imaginar dependesse exclusivamente de sua
natureza” (p. 69, grifo nosso). Ora, ela não depende exclusivamente, por isso não se poderia
dizer que o fazer sentido é uma virtude exclusiva da mente. Pelo contrário, defendemos que o
significado (e nisto sim parece que estamos de acordo com Vinciguerra107) depende de um
intérprete, isto é, de uma mente humana capaz de perceber uma concatenação de imagens por
um nome comum, mas de forma alguma que o significado seja produzido ou inventado pelo
intérprete. Caso fosse assim, Spinoza não poderia falar de um sentido da Escritura que
pudesse ser percebido pela sua própria letra embasada em seus próprios fundamentos.
De certo modo, o significado das palavras não é tão diferente da memória, porque a
memória “não é, com efeito, senão uma certa concatenação de ideias” (E II, prop. 18, esc., p.
69). A diferença do significado para a memória, a nosso ver, reside em o significado ser uma
espécie de unidade de memória, um certo todo de lembranças de alguma maneira orientadas
numa mesma direção, num mesmo sentido. A verdade é que sabemos muito pouco sobre
como o sentido é produzido e de como ele parece depender pouco das ações conscientes da
mente. Como o sentido é criado pela mera sucessão de imagens visuais e quanto do
significado das palavras é determinado pelos movimentos do nosso corpo, do seu poder sobre
a nossa memória etc.? A atitude de atribuir significados específicos às palavras, que seria o
mais próximo de uma ação da mente, pressupõe a lembrança de uma palavra ouvida
anteriormente, como, em outros termos sintetiza Vinciguerra: “nos tornamos corpos falantes
porque somos afetados por outros corpos falantes” (opus cit., p. 133)108. Por ouvir dizer (ou
ler) existimos dentro de uma cadeia comum de usos e de articulações das palavras
extremamente complexa e dela retiramos todas as palavras que utilizamos, com todas
derivações e deslocamentos de uso que alteram os seus significados. Assim, se o significado é
original ou derivado, corrente ou atribuído, é apenas uma questão de ponto de vista no interior
da comunidade falante, na qual as palavras circulam como que vivas e por si mesmas. O
significado não seria, então, uma ideia que formamos para o qual escolhemos palavras, ele
seria a imagem mesma de uma determinada concatenação de palavras que apreendemos de

107
“Traços se tornam signos tão logo são interpretados” (VINCIGUERRA, 2012, p. 136). Trad. de: marks
become signs as soos as they get interpreted.
108
Trad. de: we become speaking bodies because we are affected by other speaking bodies.
132
uma só vez pelo nome (ou, simplesmente, por uma outra palavra). A palavra maçã, pelo seu
uso, por todos os hábitos que deles participa, é já a evocação, para os falantes (ou intérpretes)
do português, de dezenas de outras imagens, incluindo palavras, figuras, sons, cheiros,
sabores etc. ao mesmo tempo, sem que se tenha consciência de cada uma delas em separado.
Rigorosamente falando, o significado de maçã é essa própria cadeia de imagens “contida” na
palavra, e não é outra coisa que a relação mesma de uma imagem com outras imagens às
quais serve de nome ou de signo dentro de um contexto de comunidade linguística. O
significado, portanto, seria o produto de uma repetição conjunta entre homens, ou seja, um
hábito comunitário, um costume que os homens praticam, passando de geração em geração,
sem saber o por quê ou como ou quando começou, o qual, como todo hábito, pouco depende
de nossas vontades e capacidades intelectuais.
5.5. As palavras e a filosofia

A filosofia tem como meta o conhecimento das coisas não por ouvir dizer, mas pelas
suas essências verdadeiras. Portanto, como busca da verdade, o pensamento filosófico não
deve estar preso a uma época ou nação, ele deve ser, ao contrário, universal. Em outras
palavras, o pensamento filosófico é voltado para “o que é comum a todas as coisas, e que
existe igualmente na parte e no todo” (E II, prop. 37, p. 78). Assim, não importa que coisa o
filósofo investigue, seja a Natureza, seja um texto sagrado, o intuito permanecerá o mesmo:
“da mesma forma que ao estudar as coisas naturais procuramos, primeiro que tudo, aquelas
que são absolutamente universais e comuns a toda natureza [...] também na história da
Escritura é preciso, antes de tudo, procurar aquilo que é mais universal” (TTP, Cap. VII, p.
120). Como podemos ver, embora o que seja comum a tudo o seja por natureza e não por
semelhança, é possível encontrar nas histórias contadas por nós (por exemplo, na história da
Escritura) o universal. Para isso, em parte, depende o modo como são utilizadas as palavras.
Em primeiro lugar, para se entender como, para Spinoza, na história da Escritura (e
gostaríamos que tal possa se estender para quaisquer histórias) possa se encontrar o
universal109, cremos que aquilo que Spinoza afirma sobre a diferença do significado das
palavras e do significado das frases deve ser tomado como princípio de investigação:

109
O mesmo procedimento serviria, portanto, para negar a presença do universal, caso ali ele não pudesse, pela
natureza do texto, ser encontrado. É por esta razão que acreditamos ser possível estender o que Spinoza fala da
Escritura para todo e qualquer texto, literário ou filosófico, sagrado ou profano.
133
De fato, é impossível que alguma vez tenha havido alguém que achasse utilidade em
alterar o significado de uma palavra, embora seja frequente isso acontecer com o
sentido das frases. Até porque é muito difícil: quem quisesse alterar o significado de
uma palavra terá simultaneamente de explicar, de acordo com a maneira de ser e a
mentalidade de cada um, todos os autores que escreveram na mesma língua e que
empregaram essa palavra na sua acepção tradicional, ou então, teria de os falsificar
com maior cautela. Depois, a língua é tanto do vulgo como dos sábios, enquanto o
sentido dos textos e dos livros só os sábios os possuem. É fácil, portanto, entender
que os sábios podiam alterar ou corromper o significado de uma frase [...] mas não o
significado das palavras (idem, p. 124).

As palavras pertencem a uma tradição, a qual, por sua vez, pertence a uma
coletividade na qual tanto os doutos quanto o vulgo participam. Assim, o significado das
palavras não é arbitrariamente decidido, porém produzido ao longo do convívio e das
necessidades dos indivíduos daquela coletividade. As frases, por outro lado, podem alterar o
significado das palavras, entretanto, não enquanto estas pertencem à coletividade, mas
enquanto elas estão submetidas às regras de sentido daquelas frases. Ora, o texto é um todo
organizado de frases. A investigação da Escritura, que é um texto, é, então, a investigação das
suas regras intrínsecas, ou seja, do seu modo de operar na construção das frases, e, também,
ao mesmo tempo, a investigação do contexto histórico-social no qual foi escrita110. Pois,
sendo as palavras produzidas pela coletividade, os sábios e profetas também escreveram a
Escritura utilizando-se das mesmas palavras utilizadas pelo povo, de modo que, confrontando
o significado das palavras tal como utilizadas de maneira comum pelo povo hebraico111 com
as mesmas palavras no contexto da Escritura, poder-se-ia chegar ao significado universal das
mesmas.
Disso tudo podemos concluir que, não tendo razões para duvidar, com a filosofia se
passa o mesmo. O filósofo, ao empregar as palavras, deve saber reconhecer os seus
significados de acordo com a sua compreensibilidade universal; ou seja, mesmo sendo
impossível uma clareza absoluta, deve se esforçar ao máximo por ela, a fim de que suas
palavras tenham maximamente valor público. O mesmo podemos também entender pelo seu
oposto: a narração de cunho privado. Por exemplo, “os relatos sobre os fantasmas e os
espectros” (C, Carta 52, p. 222). Esses relatos se opõem ao discurso filosófico por serem
motivados pelo “desejo que os homens têm de contar as coisas não como são, mas como eles
quereriam que elas fossem” (idem). Ora, o desejo filosófico é o desejo pela verdade das
coisas, ou seja, pelo conhecimento das coisas segundo a sua natureza, e não segundo a
110
“Importa também saber em que ocasião, em que época e para que nação ou século foram escritos todos esses
ensinamentos” (TTP, Cap. VII, p. 120).
111
“Somos obrigados pelo nosso método a supor como isenta de corrupção uma tradição dos judeus, a saber, o
significado das palavras da língua hebraica que deles recebemos” (TTP, Cap. VII, p. 124).
134
vontade arbitrária. No caso dos relatos, “na ausência de outras testemunhas além dos próprios
narradores, que podem inventar à vontade, ajuntar ou suprimir circunstâncias ao bel-prazer,
sem ter medo de contraditor” (idem), a verdade da narração depende da credibilidade do
indivíduo que a conta. É possível, assim, generalizar a ideia de que a narração cuja verdade
depende do crédito que se dá ao seu narrador compõe o texto do tipo privado. Por outro lado,
a narração ou discurso filosófico se caracterizaria pela sua publicidade, ou seja, pelo seu apelo
à razão, à medida em que cada um, de acordo com o seu próprio intelecto, seria capaz de
testemunhar as mesmas coisas segundo as mesmas regras ou critérios. Para tanto, o sentido
das frases não pode depender de um conhecimento acessível apenas a um ou poucos
indivíduos, pois, se fosse o caso – como acontece com o sentido da Escritura, o qual fica
restrito à confiabilidade do caráter sagrado das mentes dos sacerdotes – ele não seria válido
para todos, a não ser à medida em que o intelecto de cada um possa ser considerado
igualmente como partes de um mesmo todo, a saber, do intelecto divino.
Deste modo, é preciso que o significado das palavras seja devidamente esclarecido. E
é isso o que justamente parece fazer Spinoza ao estruturar a Ética a partir de definições
nominais, pois, da clareza do uso das palavras se pode, então, pela linguagem, filosofar. O
que Spinoza, a nosso ver, parece demonstrar com a Ética é a possibilidade de um uso da
linguagem pelo qual se torna manifesto o uso universal da razão, não pela simples leitura do
seu texto, o que equivaleria ao ouvir dizer, mas à atenção às coisas mesmas, sobre as quais ele
fala. Como uma narração que prescinde da confiabilidade na pessoa de Spinoza, espera-se
poder, a partir de suas palavras, entrar em contato com aquilo que, para ser conhecido,
depende, no entanto, apenas do uso adequado dos nossos intelectos, pois a ideia verdadeira é
comum a todas as mentes humanas. Esta parece ser justamente a outra norma de verdade que
a matemática ensinou aos homens, além daquela da semelhança (cf. E I, Apêndice, p. 43).
Pois, assim como a dedução das propriedades das figuras geométricas é igualmente acessível
a todo aquele que nela se empenhar, as propriedades da mente humana, que dizem respeito ao
seu modo definido e determinado de operar como parte da Natureza, igualmente também o
podem ser deduzidas por qualquer intelecto empenhado, como o podemos atestar na Ética ao
longo da parte II, a partir da proposição 19.

135
6. Terapêutica

6.1. Os remédios da alma

Ao contrário dos animais, os homens são dotados do poder de decisão. A palavra que
instaura o corte na vida instintiva e que gera o ser humano como ser simbólico tem valor de
lei, lei que depende não da necessidade natural a que todos os outros seres estão sujeitos, mas
da decisão humana de tomar as rédeas do seu próprio destino e de se dar o direito de agir de
acordo com a liberdade de sua própria potência.

A palavra lei, tomada em sentido absoluto, significa aquilo que faz um indivíduo, ou
todos, ou alguns de uma mesma espécie, agir sempre de uma certa e determinada
maneira. A lei depende, ou da necessidade natural, ou da decisão do homem. A lei
que depende da necessidade natural é aquela que deriva necessariamente da própria
natureza, ou seja, da definição da coisa; a que depende de uma decisão humana, e à
qual se chamaria com mais propriedade direito, é aquela que os homens, para tornar
a vida mais segura e mais cômoda, ou por outro motivo qualquer, prescrevem a si e
aos outros (TTP, Cap. IV, p. 66, grifo nosso).

A lei humana, fruto da decisão humana de tornar a vida mais segura e cômoda, incide
diretamente sobre os meios dos quais dependem a segurança e a conservação dos indivíduos
que em comunidade são, uns em relação aos outros, possíveis inimigos, pois, do ponto de
vista da vida pública, não se pode esperar que as suas vontades estejam sempre de acordo.
Deste modo, cada indivíduo é um para o outro um fator externo sobre o qual não se pode
regular, pois a vontade do outro participa daquilo que Spinoza chama de fortuna, ou seja, a
roda dos acontecimentos imprevisíveis. Por conseguinte, tal como acontece com a lei, que
separa a regulação feita pelo indivíduo (regulação interna) da regulação feita pela sociedade
(regulação externa), todas as coisas podem estar, pelo menos em algum aspecto, sob a
regulação da natureza humana, e em outro aspecto, não.
Spinoza divide, assim, as coisas que servem como meios úteis para a vida entre
externas – “os meios que servem para se viver em segurança e para a conservação do corpo
residem sobretudo nas coisas exteriores a nós e, por isso, chamam-se dons da fortuna” (idem,
Cap. III, p. 53), ou seja, “tudo aquilo que resulta em seu benefício mas é produzido pela
potência de causas exteriores” (idem, p. 52) – e internas, que são “tudo quanto a natureza
humana, apenas com a sua própria potência, pode fazer para conservar o seu ser” (ibidem, p.
52). Segundo Spinoza, são três os objetivos que se pode verdadeiramente desejar; “conhecer
as coisas pelas sua causas primeiras; dominar as paixões, ou seja, adquirir o hábito da virtude”
136
(ibidem, p. 53), sendo que, dos três, os dois primeiros dependeriam da regulação ou auxílio
interno112. O terceiro objetivo é a segurança e a saúde, que dependem, como vimos, da
fortuna. Em relação à segurança e à saúde, segundo Spinoza, os homens não podem senão
precaver-se, e a melhor forma de prevenção é a obediência a leis justas, assim como a
aquisição de hábitos adequados a uma vida tranquila. Porém, em relação ao conhecimento das
causas e ao domínio das paixões, isto cada homem pode conquistar simplesmente pelo reto
uso de seu intelecto. Considerando ainda que o domínio das paixões é também um
conhecimento, não há nada mais desejável e de acordo com a potência humana do que o
conhecimento racional. Portanto, é sobre o auxílio interno que devemos debruçar a nossa
atenção.
Como já fora dito, para Spinoza o conhecimento mais importante é aquele da natureza
dos afetos. Em mais de um momento, de forma recorrente, Spinoza chama esse conhecimento
de remédio das paixões. As paixões, que podem ser alegras ou tristes, para nós podem ser,
portanto, ora boas, quer dizer, úteis para a conservação de nosso ser, ora más, quer dizer,
nocivas à conservação. O conhecimento dos afetos é a regulação das paixões, de tal modo que
elas, pela sua oscilação, pelo enfraquecimento do ânimo quando tristes e pela fugacidade
quando alegres, sejam remediadas e utilizadas a favor do aumento de perfeição de sua
potência. Se, então, de um lado, é importante a decisão de se organizar a vida e garantir a sua
segurança pela lei, de outro lado, cada homem, garantida minimamente suas condições de
subsistência e paz social, encontra no conhecimento e na razão a fonte de regras para uma
vida feliz e livre. Aquele que se põe no caminho do conhecimento tomou uma decisão, a
decisão de viver na fruição do maior bem que se pode almejar: a beatitude ou a tranquilidade
de alma.

Assim, na vida, é útil, sobretudo, aperfeiçoar, tanto quanto pudermos, o intelecto ou


a razão, e nisso, exclusivamente, consiste a suprema felicidade ou beatitude do
homem [...] Por isso, o fim último do homem que se conduz pela razão, isto é, o seu
desejo supremo, por meio do qual procura regular todos os outros, é aquele que o

112
“Podemos chamar auxílio interno de Deus a tudo quanto a natureza humana, apenas com a sua própria
potência, pode fazer para conservar o seu ser; auxílio externo, por sua vez, é tudo aquilo que resulta em seu
benefício mas é produzido pela potência de causas exteriores [...] Finalmente, por fortuna entendo unicamente o
governo de Deus na medida em que dirige as coisas humanas por causas exteriores imprevistas” (TTP, Cap. III,
p. 52). Utilizamos o termo ‘regulação’ no sentido de ‘estar em poder de’. Quando interna, a regulação significa a
natureza humana enquanto está em poder de sua própria conservação. Assim, regulação interna e auxílio interno
de Deus significam o mesmo. O auxílio externo parece ser justamente o que na Ética são as paixões alegres, ou
seja, afecções favoráveis à conservação mas que não provêm da regulação interna. Por fim, a fortuna seria o que
chamamos de regulação externa, tanto quando estamos em poder de algo de outra natureza que nos é favorável,
como no auxílio externo, quanto quando estamos em poder de algo cuja natureza nos é desfavorável (paixões
tristes).
137
leva a conceber, adequadamente, a si mesmo e a todas as coisas que podem ser
abrangidas sob seu intelecto (E IV, Apêndice, Cap. 4, p. 205)

Para explicar como o homem pode alcançar esse fim último, Spinoza lança mão de
uma analogia com as ferramentas utilizadas pelo artesão no seu trabalho de fabricação: “o
entendimento, por sua potência nativa, elabora instrumentos intelectuais com os quais
aumenta suas forças para concluir outras obras intelectuais” (TIE, #31, p. 336). É interessante
notar, neste ponto, como a filosofia de Spinoza pode ser percebida em estreita conexão com a
sua vida. Steven Nadler, seu biógrafo, por exemplo, escreve: “em 1665, [Spinoza] escrevia a
Oldenburg, com evidente deleite, acerca de alguns novos instrumentos de que tinha ouvido
falar” (NADLER, 2003, p. 190). Esses instrumentos eram microscópios e telescópios, ou seja,
instrumentos ligados à ótica. Nadler conta ainda que Spinoza “dominou solidamente as teorias
da Ótica e a Física da luz correntes na altura” (idem), o que o levou a ter “um reconhecido
talento na Ótica prática” e “a ser enaltecido por alguns especialistas reconhecidos, devido à
sua perícia no fabrico de lentes e instrumentos” (idem), fato registrado em carta escrita por
Huygens, importante físico da época: “as [lentes] que o Judeu de Voorburg utiliza nos seus
microscópios têm um polimento admirável” (idem) 113. Reencontraremos ao longo deste
capítulo outras evidências da conexão direta de sua filosofia com sua vida, o que, a nosso ver,
serve para confirmar a nossa compreensão da filosofia de Spinoza como, valendo-nos do
termo de Pierre Hadot, modo de vida ou maneira de viver.

Quero dizer que o discurso filosófico deve ser compreendido na perspectiva do


modo de vida no qual ele é ao mesmo tempo o meio e a expressão e, em
consequência, que a filosofia é, antes de tudo uma maneira de viver, mas está
estreitamente vinculada ao discurso filosófico [...] A filosofia não é senão o
exercício preparatório para a sabedoria (HADOT, 2008, p. 18)

Voltaremos ainda reiteradamente sobre a questão da relação entre vida e discurso


filosófico. Por enquanto, retornemos à noção instrumento intelectual e auxílio interno. Em
nota, explica Spinoza que “por potência nativa entendo o que não nos é causado por fatores
externos” (TIE, #31, p. 336). Diferentemente dos “instrumentos naturais”, com os quais os
homens concluíram obras “mais difíceis com menos trabalho” (idem), e para o qual a
113
Esta relação entre o trabalho manual de artesão e o trabalho intelectual de filósofo, encarnada no Spinoza ao
mesmo tempo filósofo e polidor de lentes, Machado de Assis a imortalizou neste belo soneto: “Gosto de ver-te
grave e solitário / Sob o fumo de esquálida candeia, / Nas mãos a ferramenta de operário, / e na cabeça a
coruscante ideia. / E enquanto o pensamento delineia / Uma filosofia, o pão diário / A tua mão a labutar granjeia
/ E achas na independência o teu salário. / Soem cá fora agitações e lutas, / Sibile o bafo aspérrimo do inverno, /
Tu trabalhas, tu pensas, e executas. / Sóbrio, tranquilo, desvelado e terno, / A lei comum, e morres, e transmutas
/ O suado labor no prêmio eterno”.
138
disponibilidade da matéria depende de fatores externos, o trabalho intelectual retira do próprio
intelecto a matéria de suas obras. No entanto, tanto no trabalho corporal quanto no trabalho
intelectual, a noção de uma evolução, digamos, técnica, está igualmente presente, pois do
mesmo modo os homens alcançam maior perfeição em suas obras à medida que as realizam
com menos trabalho: “indo assim, por degraus, de trabalhos mais simples aos instrumentos, e
dos instrumentos a outros trabalhos e instrumentos, por um progresso constante” (idem), os
homens também igualmente progridem na investigação intelectual, pois, daquela sua potência
nativa a partir da qual elabora instrumentos intelectuais, “destas últimas, ele [o homem] retira
outros instrumentos, quer dizer, o poder de operar investigações ulteriores, e assim continua
gradativamente a progredir até atingir o cume da sapiência” (idem).
Ora, a matéria do intelecto sobre o qual seus instrumentos operam só pode ser algo
que está sob o poder exclusivo das forças da mente humana, e isto não pode ser outra coisa
senão a ideia, pois que própria mente é ela mesma uma ideia. Este processo de progressão do
conhecimento a partir do trabalho sobre a ideia, como o artesão que trabalha sobre o cristal ou
o barro, é justamente o que tentamos descrever no capítulo dois desta tese, ou seja, o percurso
filosófico que parte da ideia verdadeira dada e que progride à medida em que compreende o
método de investigação alicerçado por aquela ideia. Como, entretanto, a filosofia não se
restringe a um discurso teórico de explicação das coisas, além das ferramentas lógicas, que
constituem parte do método, há as ferramentas práticas através das quais os remédios para as
paixões são produzidos e que permitem uma progressão na regulação do afetos. Cremos que,
à luz destas considerações, fica claro como o processo de investigação filosófica, isto é, de
conhecimento de todas as coisas que podem ser abrangidas pelo intelecto, fez parte do
processo de desenvolvimento pessoal de Spinoza. Como podemos atestar pelas suas palavras,
ele mesmo percebeu que, segundo seu esforço e perseverança, ele progredia conjuntamente
tanto no conhecimento quanto na instituição de uma vida nova, à medida em que se
aproximava da fruição do verdadeiro bem (cf. capítulo 3): “no começo, os intervalos foram
raros e de curta duração, mas na medida em que o verdadeiro bem me foi sendo conhecido,
mais e mais, tornaram-se eles mais frequentes e de maior duração” (TIE, #11, p. 330).
Essas conquistas, no entanto, encontravam-se sempre ameaçadas por cogitações que
desviavam a mente para aquelas coisas, a saber, “a aquisição de dinheiro, a libido e a glória”
(idem), que eram prejudiciais quando “procuradas por si mesmas, e não como meios em vista
de outro fim” (idem). Spinoza se via como um enfermo que, para vencer esses obstáculos
contrários à sua saúde, precisava de um remédio para lhe curar:

139
Via-me, com efeito, em um perigo extremo e forçado a procurar, com todas as
forças, um remédio, ainda que incerto, assim como um enfermo que possui uma
afecção mortal, que vê a morte iminente se não emprega um remédio, e está coagido
a procurá-lo, ainda que seja incerto, pois toda a sua esperança está nele (TIE, # 7, p.
329, grifo nosso).

A dificuldade reside no fato de que procurar aquelas coisas como fins em si mesmas não é
algo que possa depender apenas de uma deliberação espontânea da vontade. Como diz
Spinoza, “um afeto não pode ser refreado nem anulado senão por um afeto contrário e mais
forte do que o afeto a ser refreado” (E IV, prop. 7, p. 162). Isto é, a um ganancioso não basta
querer deixar de desejar o dinheiro como o fim último das suas ações, pois a ganância, como
afeto do seu desejo, envolve a ideia na mente do seu objeto, de tal maneira que apenas uma
outra ideia que exclua a existência daquele objeto pode afetar o desejo diferentemente. Assim,
o remédio deve ser “o modo de curar e purificar o entendimento, tanto quanto se possa” (TIE,
#16, p. 331). Não sendo, portanto, uma coisa, o remédio para as infelicidades do desejo
errante – que é também o mesmo remédio para a cura e purificação do intelecto – não pode
ser mera e passivamente usufruído, como uma pílula. O remédio é, portanto, alguma forma de
atividade, ou é ele mesmo um aumento da potência de agir.
Podemos então dividir o remédio em dois tipos: aquele que prescinde do
conhecimento verdadeiro e é retirado da experiência, necessário, no entanto, como
preparatório ao conhecimento da verdade; e aquele que provém propriamente do
conhecimento verdadeiro da natureza humana e que é ele mesmo, por conseguinte, o
conhecimento adequado dos afetos. O primeiro tipo consiste basicamente em uma meditação
assídua, que tem como única finalidade reforçar a atenção contra a distração, a perturbação e
o embotamento da mente (cf. TIE #3 a #7, p. 327-328), que ainda resiste ao fluir114 do
trabalho intelectual. A meditação serve para aprofundar a deliberação ou resolução de
abandonar um mal certo em troca de um bem cujo valor seja certo por si mesmo (embora
incerto de ser alcançado): “uma meditação assídua convenceu-me, em seguida, que, se
pudesse deliberar profundamente, abandonaria um mal certo por um bem certo” (TIE, #7, p.
329). Neste bem certo, Spinoza diz depositar “toda a sua esperança” (idem). Porém, como ele
mesmo afirma, “a esperança é uma alegria instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou

114
É interessante a metáfora do fluir, utilizada em uma passagem do TTP por Spinoza. Lá, ele diz: “uma vez
suficientemente conhecida a doutrina universal da Escritura, deve-se passar depois a outros assuntos que, sendo
embora menos universais [...] derivam, qual riacho, daquela doutrina universal” (TTP, Cap. VII, p. 121, grifo
nosso). É como se tudo se tratasse não de fazer algo novo, mas de simplesmente liberar o intelecto dos seus
impedimentos e deixá-lo fluir, qual riacho, no caminho ordenado das ideias adequadas.
140
passada, de cuja realização temos alguma dúvida” (E III, def. dos afetos 12, p. 143), ou seja,
pela deliberação em esperar por aquele bem, não se está isento das flutuações pela dúvida de
sua realização. Deste modo, como é da natureza do sumo bem que ele seja um fim em si
mesmo, a sua aquisição depende do conhecimento do Ser supremo, pois toda ideia verdadeira
deve poder ser deduzida da ideia verdadeira do ser mais perfeito. O remédio, portanto, mais
forte e eficaz do que a deliberação profunda, é o conhecimento da natureza de Deus, à medida
em que este permite a mente ter mais ideias adequadas e, logo, maior regulação dos seus
afetos por afetos mais fortes ligados à ideia de Deus115. Isto não que dizer que a deliberação
não tenha a sua importância, pois, na falta do conhecimento certo da existência de Deus, vale-
se de seu conhecimento duvidoso, que, apesar disso, aponta em sua direção, pois

para todo empreendimento dessa natureza uma meditação assídua e a máxima


firmeza de desígnio são indispensáveis e que não se pode satisfazer essas condições
senão instituindo certa regra de vida e prescrevendo a si mesmo um alvo bem
determinado (C, Carta 37, p. 182, grifo nosso).

Assim, o conhecimento que progride, segundo um método que forneça as ferramentas


adequadas ao seu aumento de perfeição – ferramentas às quais incluímos a deliberação ou
decisão profunda, o reconhecimento da ideia verdadeira dada e o conhecimento da ideia
verdadeira de Deus –, é aquilo que Spinoza chamou de auxílio interno, que, ao contrário dos
auxílios externos, encontra-se sob o exclusivo poder da mente humana: “todas as percepções
claras e distintas que formamos dependem de nossa exclusiva natureza que está em nós e não
reconhece nenhuma causa exterior” (idem, p. 181). Spinoza ainda compara o processo de
conquista desse conhecimento à arte, e parece mesmo conceber a filosofia – o conhecimento
progressivo à sabedoria – como uma prática semelhante à do artesão, que precisa saber
precaver-se e lidar com os acidentes da matéria aos quais está continuamente exposto em seu
trabalho: “assim como nossos corpos, nossas almas estão expostas aos acidentes e nossos
pensamentos são dirigidos mais pelo acaso que pela arte” (C, Carta 37, p. 181, grifo nosso).
Contudo, a comparação tem seus limites, porque “o entendimento não é como o corpo
exposto aos acidentes” (idem), ou seja, é possível “um método pelo qual podemos dirigir e
encadear nossas percepções claras e distintas” (idem) sem que a atenção da mente, dirigida
adequadamente, seja constantemente distraída por acidentes. De certa maneira, é como se,

115
“Quanto mais ideias inadequadas a mente tem, tanto maior é o número de paixões a que é submetida; e,
contrariamente, quanto mais ideias adequadas tem, tanto mais ela age” (E III, prop. 1, cor., p. 100). E ainda:
“Duvidamos da existência de Deus e, consequentemente, duvidamos de tudo, enquanto dele tivermos, não uma
ideia clara e distinta, mas apenas uma ideia confusa” (TTP, Cap. VI, anotação VI, p. 99).
141
talvez, a limitação que o artesão encontra na matéria – como Spinoza devia encontrar ao polir
lentes, as quais indefinidamente sempre apresentariam na superfície uma nova aresta
obstruindo a curva perfeita – fosse, pelo intelecto, superada, e a potência de agir do homem
encontrasse um caminho para experimentar a liberdade de Deus.

6.2. A filosofia como maneira de viver

A ideia da filosofia como remédio dos males das paixões não é nova e muito menos
inventada por Spinoza. De acordo com o que Spinoza diz na Carta 56, podemos com um grau
suficiente de firmeza afirmar que ele se vincula historicamente ao pensamento materialista
antigo, a saber “Epicuro, Demócrito, Lucrécio ou qualquer um dos atomistas e partidários dos
átomos” (C, p. 238). De acordo com fragmentos de textos, citados por Paul Nizan, para os
epicuristas a maioria dos homens sofre de doenças, “como de uma epidemia, das suas falsas
crenças sobre o mundo, e o mal impera, porque, por imitação, eles [os homens] comunicam
entre si o mal uns aos outros”116 (NIZAN, 1971, p. 43). Aqueles mesmos hábitos, portanto,
responsáveis pela conservação da espécie, ao garantirem a coesão, a estabilidade e segurança
dos cidadãos na vida em sociedade, são também responsáveis pela proliferação de um mal
cuja nocividade consiste no rebaixamento geral das potências de agir, o qual, em outras
palavras, consiste nos impedimentos de satisfação do desejo. Parece haver algo de inevitável
no surgimento dessa doença, porque sem os hábitos adquiridos pela repetição de
comportamentos e ações, a palavra comum que fundamenta a existência do animal social
homem não seria possível (como vimos no capítulo anterior). A imitação ou emulação dos
afetos117 aparece, então, como condição necessária para a conservação dos homens, pois sem
ela sequer existiria comunicação e comunidade entre eles. Assim, também pela sua própria
natureza os homens criam as suas doenças, as quais, por terem origem nas suas ações, podem
ser, a princípio, remediadas igualmente por uma transformação nos modos de agir.
Tal como vimos em Spinoza, Epicuro parece ter posto o problema de maneira
semelhante, e também elaborou um remédio, o chamado tetrapharmakon. Como o nome faz

116
Tradução nossa de: comme d’une épidémie, de leurs fausses croyances sur le monde, et le mal empire, car,
par imitation, ils se communiquent le mal les uns aux autres
117
“Essa imitação dos afetos [...] Se referida ao desejo, chama-se emulação, a qual não é, assim, nada mais do
que o desejo de alguma coisa, o qual se produz em nós por imaginarmos que outros, semelhantes a nós, têm esse
mesmo desejo” (E III, prop. 27, esc., p. 116). A emulação dos afetos é, em parte, o que costumamos
normalmente chamar de simpatia, ou seja, a capacidade de se afetar pelo afeto do outro. Sem essa capacidade
imitativa, seríamos, provavelmente, uns em relação aos outros, apáticos, e, consequentemente, incapazes, por
falta de necessidade, de formar uma comunidade. Em fim, não seríamos sequer humanos, a princípio.
142
entender, o remédio se divide em quatro proposições ou regras de vida para a conduta das
ações. Dois deles, a nosso ver, se encaixam perfeitamente aos propósitos da meditação
assídua e preparatória ao conhecimento verdadeiro: “é possível esperar pela felicidade, é
possível suportar a dor” 118 (NIZAN, 1971, p. 43). Mesmo que do ponto de vista do
entendimento a felicidade ainda seja incerta, entretanto é perfeitamente racional buscá-la e
nutrir a esperança de encontrá-la; pela mesma razão, o esforço em afastar a dor e as paixões
tristes, que obliteram o entendimento, se mostram, pela simples experiência de pôr-se no
caminho do conhecimento verdadeiro, perfeitamente suportáveis. Mais uma vez voltamos
para aquela passagem já citada:

Apenas via que, enquanto a mente se voltava para essas cogitações, se afastava
daquelas outras e pensava seriamente na instituição de uma nova vida, o que me foi
de grande consolo; via que os males não possuíam uma tal condição que não
pudessem ceder aos remédios. No começo, os intervalos foram raros e de curta
duração, mas na medida em que o verdadeiro bem me foi sendo conhecido, mais e
mais, tornaram-se eles mais frequentes e de maior duração (SPINOZA, 2014a, p.
330, grifo nosso).

É interessante notar que o verdadeiro bem não parece ser algo que se alcança ao final
de um processo de conhecimento, mas é ele mesmo a completude desse processo que se
desenvolve, de pouco em pouco, desde o seu início, quer dizer, desde o movimento inicial de
decidir nele se pôr; por isso, já é ele mesmo a conquista do verdadeiro bem, mesmo que ainda
de maneira incompleta do ponto de vista do modelo. A completude do conhecimento é o grau
máximo de perfeição que cada potência pode atingir. A ideia de uma potência modelo à qual
todos teriam como referência não pode ser senão abstrata e confusa, pois as potências variam
tanto quanto variam os indivíduos na Natureza, de modo que o máximo de cada potência não
pode ser medido por uma outra. No entanto, nem por isso um modelo é inútil do ponto de
vista da necessidade de, estando a pessoa seriamente debilitada pelos vícios, tê-lo em vista
como consolo e esperança para a ação. Um modelo de natureza humana não deve ser criado,
por conseguinte, para ser alcançado ou realizado perfeitamente, pois que cabe a cada
indivíduo reconhecer pela sua potência o seu máximo de realização. De certa maneira,
podemos assim dizer, alcançar a completude do conhecimento verdadeiro é subverter e jogar
fora o modelo pelo qual inicialmente o caminho para ele foi inaugurado. O modelo não é um
teste a ser superado e nem o objetivo em si a ser alcançado, sua utilidade reside somente em
servir em determinado momento, enquanto ideal a ser alcançado, para manter como hábito a

118
Tradução nossa de: on peut atteindre le bonheur, on peut supporter la douler.
143
esperança na felicidade e a confiança na superação da dor. O que Spinoza espera é,
justamente, o que, segundo Pierre Hadot, Epicuro também esperava, a saber, que “o homem
deve ser senhor de seus desejos” (HADOT, 2008, p. 177). Assim, o verdadeiro bem é cada
vez mais alcançado quanto mais o homem se torna senhor dos seus desejos ou capaz de
regular seus afetos, o que, do ponto de vista do modelo, significa estar mais próximo de
alcançá-lo ou superá-lo.
Como não há remédio sem doença, cabe também, por outro lado, entender o que seria
para Spinoza a doença. A nosso ver, de acordo com a filosofia de Spinoza, a doença da alma
(ou do ânimo) é a privação do uso adequado do intelecto, privação esta que Spinoza chama de
delírio. O estado de delírio é aquele em que na mente predomina a inadequação entre as
ideias, ou seja, no qual a mente está toda entregue à imaginação: “trata-se de uma espécie de
delírio, pois o homem sonha de olhos abertos que tem sob seu poder todas aquelas coisas que
estão ao seu alcance apenas na imaginação, considerando-as, assim, como reais” (E III, prop.
26, esc., p. 116). Essas coisas, que estão apenas ao alcance da imaginação, são aqueles
mesmos bens aparentes dos quais já falamos: a riqueza, a concupiscência e a honra119. Estes
bens comuns não devem ser buscados como fins em si mesmos, pois a sua natureza é a de
serem meios para o verdadeiro conhecimento. Por conseguinte, o caminho do conhecimento
verdadeiro não pode ser outra coisa senão ele mesmo a regulação ou moderação da busca por
esses bens. Além disso, a natureza desses bens, arriscamos dizer, assemelha-se à natureza da
palavra, pois ela também, enquanto símbolo, é meio para as coisas externas existentes.
Consideramos que a relação desses bens com a palavra se torna ainda mais estreita se
prestarmos atenção aos dois primeiros remédios que Spinoza enumera na Ética,

Reuni, até aqui, todos os remédios para os afetos, ou seja, tudo aquilo que a mente,
considerada em si só, pode contra os afetos; o que torna claro que o poder da mente
sobre os afetos consiste: 1. No próprio conhecimento dos afetos. 2. Em que a mente
faz uma separação entre os afetos e o pensamento de uma causa exterior que nós
imaginamos confusamente” (E V, prop. 20, esc., p. 225)

A confusão característica do delírio é a falta de discernimento entre os afetos e as


ideias de suas causas exteriores. Consequentemente, então, o remédio para o sofrimento e a
dor é a clareza do que externamente pode ser entendido como sua causa e também a clareza
do poder que o intelecto, pelo seu uso exclusivo, pode ter sobre o desejo ligado àquela causa.
Ora, como boa parte dos males provêm das próprias ações humanas e do seio das exigências
119
“Mas, na verdade, a avareza, a ambição e a luxúria são espécies de delírio, ainda que não sejam contadas
entre as doenças” (E IV, prop. 44, esc., p. 186).
144
sociais, é evidente que estes males não são separados do exercício da palavra, pois é pela
instituição desta que eles existem. Logo, a mesma palavra que abre o homem para o outro e
para o exterior em relação a si, e que também o faz consciente do seu próprio interior e de si
mesmo, gera simultaneamente o conflito, o qual podemos resumir como consistindo na
confusão entre causas internas e causas externas. Assim, talvez, o sofrimento humano, que
não seja oriundo de inevitáveis calamidades naturais, pode ter a sua origem no uso das
palavras e, consequentemente, por elas mesmas pode encontrar o seu remédio.
De acordo com Spinoza, é pela palavra que o conhecimento do bem e do mal existe,
pois se o “o bem e o mal [...] não designam nada de positivo a respeito das coisas,
consideradas em si mesmas, e nada mais são do que modos do pensar ou de noções, que
formamos por compararmos as coisas entre si” (E IV, Prefácio, p.157), bem e mal não são
senão nomes pelos quais designamos o que é útil e o que não é útil para as ações. Ora, quando
considerados pela regulação interna “as nossas ações – isto é, aqueles desejos que são
definidos pela potência do homem, ou seja, pela razão – são sempre boas, enquanto as outras
tanto podem ser boas como más” (E IV, Apêndice, p. 204). À medida, portanto, que
chamamos boas e más as coisas definidas não pela potência de agir do homem, pode-se dizer
que, por comparação entre elas, são tais ou quais boas ou más. E como não podemos
prescindir das coisas, às quais, à medida em que lhes atribuímos o poder de causa da alegria e
da tristeza do ânimo, mesmo sendo apenas nomes, bem e mal “entretanto, mesmo assim [...]
nos será útil conservar esses vocábulos” (idem, p. 157, grifo nosso.). Qual seria então o
critério para distinguir as sensações e saber quais delas indicam que algo no nosso corpo de
positivo ou de negativo acontece em relação à nossa potência? A dor, como sensação de
diminuição da potência de agir não pode ser algo cuja essência seja verdadeiramente
afirmada, pois que ela é apenas a privação da ação e, por isso, enquanto privação, não existe
positivamente. A dor é má porque assim chamamos certas sensações que indicam a presença
de algo que impede a ação ou a atenção. Nem sempre, contudo, temos consciência daquilo
que impede, nem sempre a nossa percepção está atenta a isso, mesmo assim é importante que
jamais identifiquemos a dor a um bem, e nem o prazer a um mal, pois que toda alegria é o
sentimento da potência aumentada. Por isso é sempre útil que haja um nome para a
diversidade de afetos alegres, pois eles são sinais daquilo que é útil à conservação da potência
de agir. Assim, bem é tudo “aquilo que sabemos, com certeza, nos ser útil” (ibidem, p. 158) e
mal tudo “aquilo que sabemos, com certeza, nos impedir que desfrutemos de algum bem”
(ibidem, p. 158). Que aquilo que é útil e aquilo que impede são coisas relativas, isto é certo,

145
são noções ligadas ao hábito e falam muito mais da maneira como somos afetados do que dos
corpos pelas suas causas. Ora, mas aí também reside a meditação assídua da virtude, porque a
virtude é o cultivo de bons hábitos, de regras de vida que sejam condizentes à necessidade de
agir e úteis à sua prática cotidiana. É preciso ser capaz de dizer para si mesmo com certeza
‘isto é bom, isto é mau’, com a finalidade de manter ativa a atenção ao que as sensações do
corpo nos podem indicar da nossa potência.
Para Spinoza, a confusão do que é bom e do que é mau relativamente à potência está
intimamente ligada à crença no sobrenatural e nas qualidades ocultas que a medicina e a
religião às vezes gostam de inventar. Spinoza se conecta à tradição materialista da antiguidade
ao conceber que tudo é regido pelas mesmas leis naturais e que nada existe e opera fora delas.
Semelhante visão de mundo é o que, segundo Nizan, estava presente entre os epicuristas:

estava assim dado um mundo sem finalidade, sem providência, sem destino, no qual
não operam senão causas mecânicas, e o acaso, onde a alma mesma e os deuses
eram descritos como edifícios complexos de átomos materiais [...] todo esse
universo sem mistério120 (NIZAN, 1971, p. 31).

A descrição que Nizan faz do epicurismo bem que poderia ser uma descrição do
spinozismo – se formos capazes de abstrair o fato de que para os epicuristas a mente ou alma
também era composta por átomos materiais –, pois temos aí quase os mesmos elementos
presentes, entre os quais: a ficcionalidade de toda finalidade, de toda providência e de toda
causa que não seja compreensível pelos mesmos princípios racionais de todas as coisas. Isso
se reflete numa mudança radical da maneira de se ver o mundo. Libertando o mundo de um
Deus ou deuses voluntariosos e antropomórficos, Spinoza, assim como Epicuro, encontrariam
na divindade apenas a fonte da liberdade e da felicidade. Se Deus é absolutamente livre, como
ele poderia nos coagir nos submetendo à sua vontade? É justamente essa mudança de visão de
mundo que Pierre Hadot, na sua leitura que busca reabilitar o caráter prático das filosofias
antigas, parece admirar no epicurismo: “essa é uma das grandes intuições de Epicuro: ele não
concebe a divindade como um poder de criar, de dominar, de impor sua vontade aos
inferiores, mas como a perfeição de ser supremo: felicidade, indestrutibilidade, beleza, prazer,
tranquilidade” (HADOT, 2008, p. 180).
A grande semelhança entre a filosofia de Spinoza e a de Epicuro, quanto a este ponto,
pode ser percebida pela comparação de suas próprias palavras. Assim como Epicuro diz que,
120
Tradução nossa de: Ainsi était donné un monde sans finalité, sans providence, sans destin, où ne jouaient que
des causes mécaniques, et le hasard, où l’âme même et les dieux étaient décrits comme des édifices complexes
d’atomes matériels [...] tout cet univers sans mytères.
146
Os deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos deles; já a
imagem que deles faz a maioria das pessoas, essa não existe: as pessoas não
costumam preservar a noção que têm dos deuses. Ímpio não é quem rejeita os deuses
em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa
maioria. Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em
noções inatas, mas em opiniões falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores
malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons (EPICURO, 1997, p. 25)

Spinoza diz:

E é por isso que quem quer que busque as verdadeiras causas dos milagres e se
esforce por compreender as coisas naturais como um sábio, em vez de se deslumbrar
como um tolo, é tido, aqui e ali, por herege e ímpio, sendo como tal proclamado por
aqueles que o vulgo adora como intérpretes da natureza e dos deuses (E I, Apêndice,
p. 45)

Ou seja, do ponto de vista vulgar, ímpio não é aquele que atribui aos deuses falsas qualidades,
como a capacidade de intervir no curso natural das coisas arbitrariamente, causando bem ou
mal aos homens, mas aquele que conhece a Deus segundo o que a sua razão permite conhecê-
lo clara e distintamente. Segundo Spinoza, não há outro motivo para se continuar sustentando
essas imagens deturpadas da divindade que a manutenção da autoridade que elas conferem a
alguns. O poder da autoridade subjuga as vontades de acordo com interesses que nada têm a
ver com as verdadeiras causas naturais dos fatos. Quando indivíduos se colocam à frente dos
acontecimentos, dos textos sagrados e das obras filosóficas como intérpretes imprescindíveis
para a sua compreensão, ou seja, como seus legítimos procuradores, estes mesmos
acontecimentos e textos passam a ter um peso sobre os indivíduos que os impedem de
perceber aquelas coisas de maneira diferente da que os seus intérpretes impõem. Desta forma,
até mesmo textos filosóficos, como os de Platão e Aristóteles podem se transformar em fonte
de ignorância e dominação:

A autoridade de Platão, de Aristóteles etc. não tem grande peso para mim: ficaria
surpreso se vós alegásseis Epicuro, Demócrito, Lucrécio ou qualquer um dos
atomistas e partidários dos átomos. Não há nada de espantoso em que homens que
acreditaram em qualidades ocultas, em espécies intencionais, em formas
substanciais e mil outras bagatelas [e que] tenham imaginado espectros e espíritos e
dado crédito a velhas matronas para enfraquecer a autoridade de Demócrito (C,
Carta 56, p. 238).

147
Não à toa os dois outros remédios que Epicuro prescreve são 1. “Não há nada a temer
dos deuses”121 e 2. “Não há nada a temer da morte”122 (NIZAN, 1971, p. 43), porque, para
Epicuro, o temor aos deuses e à morte são a fonte de todo o sofrimento123. Para Spinoza, por
sua vez, as ideias dos deuses e da morte não podem provir senão da imaginação de traços no
corpo de coisas ausentes e que a mente inadequadamente as confunde com existências
presentes, de modo que são “modos que o espírito usa para negar, tais, por exemplo, como a
cegueira, a extremidade ou o fim, o termo, as trevas etc.” (PM I, Cap. 1, p. 263). Negar, neste
caso, é afirmar o que não está presente como se existisse enquanto ausência, como a ausência
de limites, de visão de luz, de vida, de necessidade natural etc. A esses dois remédios de
Epicuro, a nosso ver, corresponde o remédio que é o conhecimento verdadeiro, pois apenas
com o uso racional do intelecto se pode ter a certeza da unidade da natureza e da necessidade
única com que todas as existem124. O conhecimento da natureza do Ser, portanto, é o primeiro
a ser buscado porque dele depende a cura dos males que provêm da crença em deuses e na
morte. Apenas, então, através do estímulo assíduo de nossa potência, proporcionado pelo
discernimento do bom e do mau, é que podemos agir cada vez mais de maneira adequada à
conservação da vida e do seu aperfeiçoamento natural. Esta potência alegre é o desejo de
viver sem nenhuma finalidade para além da própria vida.
Para os epicuristas, a liberdade está associada à supressão do medo. E de todos os
medos, aquele que estaria na base de todos os outros é o medo da morte: “como mostra
Lucrécio com muito vigo, é o medo da morte que está na base de todas as paixões que tornam
os homens infelizes” (HADOT, 2008, p. 175). Por que o medo da morte? O que o medo da
morte tem de especial em relação aos outros medos? Epicuro diz que “a morte é justamente a
privação das sensações” (EPICURO, 1997, p. 27), e ainda, que as sensações, que basicamente
são variações de sofrimento e prazer, são relativas umas às outras: “sentimos necessidade do
prazer somente quando sofremos pela ausência do prazer, mas quando não sofremos não
sentimos mais necessidade do prazer” (citado em HADOT, 2008, p. 172). Assim, a ausência
do prazer gera a necessidade de prazer, e esta necessidade é sentida com sofrimento, dado que
este seria justamente a ausência do prazer. O sofrimento, então, gera a necessidade pelo
prazer, o qual, paradoxalmente, só é buscado porque está ausente. Além disso, a perspectiva
121
Tradução nossa de: Il n’y a rien à craindre des dieux.
122
Tradução nossa de: Il n’y a rien à craindre de la mort.
123
“Assim, de um lado, o homem não teme os deuses, pois eles não exercem nenhuma ação sobre o mundo e
sobre os homens, e, de outro, o homem não deve mais temer a morte, porque a alma, composta de átomos,
desagrega-se como o corpo, quando morre, e perde toda a sensibilidade” (HADOT, 2008, p. 178).
124
“Pois eles sabem que, uma vez suprimida a ignorância, desaparece também essa estupefação, ou seja, o único
meio que eles têm para argumentar e para manter a autoridade” (E I, Apêndice, p. 45).
148
do prazer, que no momento de sofrimento está ausente, leva ao medo de ele não vir a se tornar
presente, de não ser alcançado. Esse medo, por sua vez, se transforma no medo de uma vida
de sofrimento, privada de prazer. Estando o prazer ausente da vida, por hipótese, teme-se que,
ao morrer, cesse completamente todo e qualquer prazer. Daí que, sendo a morte a privação
das sensações, o medo da morte é o medo presente de uma vida sem prazeres.
Considerando que Spinoza tenha se inspirado nessas ideias e que, em sua filosofia,
isso que Epicuro chama de prazer e sofrimento, Spinoza chama de alegria e tristeza,
acreditamos obter uma comparação plausível. Sendo a esperança a expectativa de uma alegria
futura e sendo o medo a expectativa de uma tristeza futura (cf. def. dos afetos 12 e 13), e
ainda que o futuro é uma imagem que criamos por comparação entre as imagens presentes125,
então os objetos da esperança e do medo não existem fora da imaginação. O que faz, no
entanto, o homem esperar ou temer? Assim como o prazer e o sofrimento para Epicuro, para
Spinoza o medo e a esperança também são paixões relativas: “não há esperança sem medo,
nem medo sem esperança” (E III, def. dos afetos 13, exp., p. 144). A razão, portanto, para a
esperança e para o medo deve ser uma mesma e não deve ser atribuída exclusivamente aos
seus respectivos objetos. Acontece que, para Spinoza, toda imagem de algo do passado é ela
mesma, enquanto lembrança, existente no presente, isto é, no momento em que é lembrada.
Desse modo, os afetos associados às imagens de coisas presentes, como a música que agora
deleita os ouvidos, também se associam igualmente às imagens de coisas passadas, como se
estas estivessem presentes da mesma maneira126. A esperança e o medo, por sua vez, como
paixões ligadas a uma coisa futura, são afetos associados a coisas que estão presentes apenas
na imaginação, à medida em que alguma coisa do passado é lembrada e que, tendo sido causa
de tristeza ou de alegria, considerada ainda como possível de se tornar presente novamente,
torna-se razão de medo ou esperança.
Ora, a imaginação não existe sem o corpo, porque as imagens são justamente ideias
das afecções do corpo (cf. capítulo 4). E a morte, segundo Spinoza, “a morte sobrevém
quando suas partes se dispõem de uma maneira tal que adquirem, entre si, outra proporção
entre movimento e repouso” (E IV, prop. 39, esc., p. 183). E se consideramos que “a mente
humana é capaz de perceber muitas coisas, e é tanto mais capaz quanto maior for o número de
maneiras pelas quais seu corpo pode ser arranjado” (E II, prop. 14, p. 66), estando o corpo
morto, isto é, arranjado de maneira na qual os seus sentidos não são mais afetados, a mente,

125
Cf. capítulo 4, sobre a noção de tempo como medida.
126
“O homem é afetado pela imagem de uma coisa passada ou de uma coisa futura do mesmo afeto de alegria ou
de tristeza de que é afetado pela imagem de uma coisa presente” (E III, prop. 18, p. 111).
149
da mesma forma, não percebe mais o corpo, pois está privada daquele capacidade de perceber
as afecções do corpo. Logo, a morte, para Spinoza, assim como para Epicuro, é também
privação das sensações, se entendermos por sensações as imagens na mente das modificações
dos sentidos do corpo. De maneira semelhante, portanto, o medo da morte será o medo da
privação das sensações.
Segundo Hadot, “é para curar o homem desses terrores que Epicuro propõe seu
discurso teórico sobre a física” (HADOT, 2008, p. 175), ou, segundo as palavras do próprio
Epicuro, “não pode afastar o temor que importa para aquilo a que damos maior importância
quem não saiba qual é a natureza do universo e tenha preocupação das fábulas míticas. Por
isso não se podem gozar prazeres puros sem a ciência da natureza” (idem). O conhecimento
da natureza inclui, para Spinoza, o conhecimento da natureza da mente (tema da segunda
parte da Ética), e este está condicionado ao conhecimento da natureza da substância de todas
as coisas (tema que, pela ordem das razões antecede aquele e ocupa a primeira parte da Ética),
isto é, para usar as palavras de Epicuro, à ciência da natureza como um todo. Para Epicuro,
quando o corpo morre, “a alma, composta de átomos, desagrega-se como o corpo, quando
morre, e perde toda sensibilidade” (idem, p. 178, grifo nosso). Como para Spinoza, para
Epicuro, a perda da sensibilidade – ou a perda da imaginação juntamente com a deterioração
dos sentidos do corpo – é a desagregação da alma, a qual, quando vista a partir do Todo
eterno127, tal como compreendido pela ciência da natureza, não mais implica realmente uma
perda, de modo que o medo da morte se torna fundado apenas na imaginação e na
sensibilidade, sem nenhuma base racional. Por esse motivo, o medo da morte, para Spinoza,
existe apenas porque temos uma ideia confusa da duração:

se prestarmos atenção à opinião comum dos homens, veremos que estão, na


realidade, conscientes da eternidade de sua morte, mas que eles a confundem com a
duração e a imputam à imaginação ou à memória, as quais eles acreditam que
subsistem após a morte (E V, prop. 34, esc., p. 232-233).

Não é, pois, coincidência que tanto Spinoza quanto os epicuristas tiveram como
inimigos a teologia cristã, e que Spinoza tenha considerado Paulo o primeiro teólogo. Se
prestarmos atenção, os remédios elaborados por Epicuro e Spinoza são não só incompatíveis
com a doutrina paulina como também o seu oposto, pois o cristianismo enquanto doutrina
religiosa da salvação não pode prescindir do temor a Deus e à morte, da renúncia à felicidade

127
“O Todo [...] é eterno, porquanto o ser não pode ser proveniente do não-ser mais que o não-ser não pode ser
proveniente do ser” (HADOT, 2008, p. 177).
150
terrena e da resignação ao sofrimento em vida. Basicamente, tudo na doutrina cristã gira em
torno da noção de finalidade, segundo a qual todas as nossas ações devem servir para agradar
a Deus, noção esta a qual Spinoza reduz todos os preconceitos128. O cristianismo de Paulo é,
nesse aspecto, muito semelhante ao judaísmo que excomungou Spinoza e que condenou
Cristo, já que se sustenta sobre os mesmos preconceitos e sobre as mesmas paixões de
esperança e medo ligadas à cessação das sensações. Por isso, os teólogos contra os quais
Spinoza escreve o Tratado Teológico-Político são ainda os mesmos da época de Paulo:

O pensamento cristão, que soube ver no materialismo e no ateísmo epicurista


inimigos eficazes das suas doutrinas e rivais perigosos do seu império espiritual,
engajara-se na luta contra ele. Clemente de Alexandria disse: ‘Se o apóstolo Paulo
ataca os filósofos, ele tem em vista somente os epicuristas...’129(NIZAN, 1971, p.
43-44).

O perigo das filosofias de Epicuro e Spinoza ao pensamento cristão, ao qual o texto


acima se refere, é justamente a concepção de que é possível viver sem medo da morte. A
religião, de modo geral, opera em cima do medo da esperança, ora ameaçando com uma
punição futura, ora oferecendo uma recompensa futura. Desta maneira, a religião faz com que
os homens acreditem

que a piedade e a religiosidade e, em geral, tudo o que está referido à firmeza do


ânimo, são fardos de que eles esperam livrar-se depois da morte, para, então, receber
o preço da sua servidão [...] E não é apenas por essa esperança, mas também, e
sobretudo, pelo medo de serem punidos, depois da morte, por cruéis suplícios, que
eles são levados a viver, tanto quanto o permitem sua fraqueza e seu ânimo
impotente, conforme os preceitos da lei divina (E V, prop. 41, esc., p. 237).

O medo da morte significaria, de um modo geral, todos os outros medos, pois todo
medo é essa fraqueza de ânimo por conta da qual somos impedidos de agir e de conceber as
coisas sem estarmos confusos pelas sensações associadas a elas. Para ser livre, por
conseguinte, é preciso, segundo Epicuro, seguir a máxima “Acostuma-te à ideia de que a
morte para nós não é nada” (EPICURO, 1997, p. 27), a qual implica “a consciência clara de
que a morte não significa nada” (idem). Se a morte é a cessação das sensações, então ela é, tal
como as trevas, o falso, o mal etc., uma privação (para usar a linguagem de Spinoza), e,
portanto, ela não existe (ou existe como mero ser de razão) e não pode ser definida pelo ser.

128
Cf. E I, Apêndice, p. 41-48.
129  Tradução
nossa de: La pensée chrétienne, qui avait su voir dans le matérialisme et l’athéisme épicurien des
ennemis efficaces de ses doctrines et des rivaux dangereux de son empire spirituel, engagea la lutte contre lui.
Clément d’Alexandrie dit: ‘Si l’apôtre Paul attaque les philosophes, il a seulement en vue les épicuriens...’.
151
Por este mesmo motivo, Spinoza, em sua célebre proposição, afirma: “não há nada em que o
homem livre pense menos que na morte, e sua sabedoria não consiste na meditação da morte,
mas da vida” (E IV, prop. 67, p. 200). Desta maneira, tendo em vista a vida, a liberdade
consistiria justamente no viver livre, o qual, positivamente falando, significa afirmação da
própria natureza, isto é, daquilo que se é, e, negativamente falando, significa uma vida sem
medo, isto é, sem ser guiada pelo que não se é.
Pensar a morte, então, importa apenas para o que fazemos na vida. O que a morte
representa para nós? Parece-nos que esta é a pergunta mais adequada sobre a morte como fim
da vida, e também como finalidade da vida, isto é, aquilo para o que a vida se orienta e se
dirige, oscilando entre o medo e a esperança de uma punição ou um sofrimento e de uma
recompensa ou gozo. A morte, portanto, como acontecimento futuro, desconhecido, apenas
suposto, do qual temos dúvida. Será que o mesmo não ocorre quando esperamos por algo no
futuro ainda em vida? A finalidade é, para Spinoza, a mãe de todos os preconceitos, pois
todos eles nascem da pressuposição de que “todas as coisas naturais agem, tal como eles
próprios, em função de um fim” (E I, Apêndice, p. 41). Isto significa, do ponto de vista do
conjunto da vida humana, considerar que a própria vida, de todos e de cada um, existe em
função de um fim, de modo que o que a vida seja será definida não por ela mesma, isto é, pelo
que ela é, mas pelo que ela não é, isto é, pelo seu fim além dela. E isto tal como cada uma das
nossas ações, cujas motivações são definidas, do mesmo modo não, pelo que elas são, mas
pelas coisas que lhes são fins. Na vida cotidiana, o homem de fato opera por fins, mas, como
disse Spinoza, não se infere daí que a própria natureza ou Deus130 também aja dessa forma.
Consequentemente, o medo da morte é apenas, tal como o preconceito da finalidade, a versão
geral de todos os medos, pois todos eles operam da mesma forma, ou seja, em relação a coisas
futuras que a imaginação antecipa por conta do hábito da mente em comparar as coisas
segundo medidas de suas semelhanças.
Poderíamos ainda prosseguir discorrendo sobre mais afinidades entre Spinoza e
Epicuro, entretanto, para o nosso propósito, julgamos ser o suficiente. Acreditamos que fomos
ao mais central do seus pensamentos, a partir do que as demais afinidades e diferenças devem
girar em torno. E, para concluir, como julgamos que aprendemos não apenas com as palavras,
mas também com as ações dos outros, gostaríamos de relembrar o curioso fato de quando
Spinoza recusou o convite para lecionar na universidade de Heidelberg. Spinoza contava 41

130
“Os homens pressupõem em geral [...] que o próprio Deus dirige todas as coisas tendo em vista algum fim
preciso, pois dizem que Deus fez todas as coisas em função do homem, e fez o homem, por sua vez, para que
este lhe prestasse culto” (E I, Apêndice, p. 41).
152
anos de idade. Na carta de convite, escrita pelo professor e conselheiro do Eleitor Palatino de
Heidelberg, Jean-Louis Fabritius, a proposta é colocada nos seguintes termos: “tereis a maior
latitude de filosofar, liberdade da qual o Príncipe acredita que não abusareis para não
perturbar a religião oficialmente estabelecida” (C, Carta 47, p. 216). Depois de mais ou menos
um mês de reflexão, Spinoza responde a proposta com uma negativa, apesar de considerar a
oferta tentadora (uma “magnífica ocasião”), dado que era pobre e a recompensa pelo trabalho
na universidade, em termos de subsistência, ser promissora. E a razão mais forte de ter negado
a proposta nos parece ser esta: “ignoro dentro de que limites minha liberdade filosófica
deveria estar contida para que eu não parecesse querer conturbar a religião oficialmente
estabelecida” (C, Carta 48, p. 217). A ignorância que Spinoza alega aponta para a dúvida na
qual viveria se tivesse que se submeter às restrições postas pela universidade, vida esta que
seria justificável apenas pela recompensa (sempre futura) do salário regular ao final de certos
períodos, ao qual, por fim, estaria preso na esperança de recebê-lo ou ao medo de vir a perdê-
lo, de acordo com a conformidade das suas ações à religião oficialmente estabelecida. E é
justamente o que ele afirma ao final da carta: “vede, pois, senhor, que o que me detém não é a
esperança de uma fortuna mais alta, mas o amor pela tranquilidade que creio poder preservar”
(idem).
Vemos aqui um caso concreto de como acontece na vida a ideia de conservação do ser
ou de perseverança em seu ser, e também de como o medo da morte é apenas a generalização
dos outros medos que sentimos no decorrer da vida. Podemos com isto dizer que, para
Spinoza, tal como para Epicuro (de acordo com a leitura de Pierre Hadot da filosofia antiga
em geral), as teorias sobre a natureza, a física, a psicologia etc. são destituídas de valor se não
forem elas partes de um conhecimento da natureza que seja ao mesmo tempo libertador. Deste
modo, o que Hadot fala do epicurismo, bem poderia ser sobre o spinozismo:

Tudo se passa então como se, suprimindo o estado de insatisfação que o consumia
na procura de um objeto particular, o homem ficasse livre enfim para poder tomar
consciência de alguma coisa extraordinária, que já estava presente nele de maneira
inconsciente, o prazer de sua existência (HADOT, 2008, p. 173)

Os quase dois mil anos que separam Spinoza de Epicuro talvez sirvam para mostrar que,
apesar do tempo, o medo da morte não se tornou menos significativo nas vidas dos homens, e
que a busca pela liberdade não depende, igualmente, do tempo, pois a existência, assim como

153
o prazer ou a satisfação consigo mesma131, é sempre presente. A filosofia, portanto, antes de
ser uma teoria, é uma maneira de viver, e, do ponto de vista de nossas calamidades, uma
terapêutica.

131
“A satisfação consigo mesmo é uma alegria que surge porque o homem considera a si próprio e a sua
potência de agir” (E III, def. dos afetos 25, p. 146).
154
Conclusão

Como foi discorrido no primeiro capítulo, verdade da ideia, para Spinoza, não depende
da sua concordância com o ideado, isto é, não se diz que a ideia é verdadeira por causa da
concordância com a realidade ou objeto exterior a ela, mas pela necessidade de sua adequação
intrínseca à ordem e conexão das ideias, na medida em que estas se deduzem da substância
pelas modificações infinitas de seu respectivo atributo, o Pensamento. Deste modo, a ordem e
a conexão às quais a ideia verdadeira é adequada não são as mesmas, tal como quando
percebidas concatenadas no tempo pela imaginação. A razão disto é que a concatenação diz
respeito à ordem das afecções do corpo tal como este é imaginado pela mente – o que vimos
no capítulo referente aos mecanismos da imaginação –, de modo que, neste caso, a essência
da ideia não é reconhecida pelas suas causas (verdadeiras e genéticas), mas por suas
semelhanças com outras ideias (causas transitivas). Por outro lado, quando a ideia é
reconhecida pela ordem e conexão verdadeiras das causas, concebe-se a sua essência pelas
leis, ou propriedades comuns da natureza da mente, isto é, elas são conhecidas segundo a
necessidade com que todo os modos finitos são modificações infinitas do atributo
pensamento. Assim, o reconhecimento da verdade da ideia não pressupõe o conhecimento da
natureza absoluta da substância (terceiro gênero de conhecimento), pois, caso contrário, o
método não seria necessário e nem seria necessário o reconhecimento, como passo inicial, da
ideia verdadeira dada, mas que depende da distinção entre a ideia e a ficção em geral. Visto
dessa maneira, a verdade da ideia deve ser intrínseca à ideia, e, ao contrário da ficção, não
deve depender da comparação com o ideado fora da ideia, pois por comparação conhecemos
apenas o semelhante. A distinção que fora feita entre as filosofias de Spinoza e Descartes
pretendeu apenas evidenciar isto, a saber, que se a ideia é como um quadro, tal como o afirma
Descartes, o que se pensa na ideia será sempre uma semelhança com o seu objeto, portanto
não uma intelecção, mas uma imaginação. Ao contrário, Spinoza concebe a ideia de acordo
com a sua própria dinâmica, quer dizer, se a ideia tivesse qualquer semelhança com o ideado
corpóreo fora dela, ela deveria então compartilhar, de alguma maneira, com o corpo a sua
natureza, de modo que a mente se veria, em última instância, reduzida ao corpo, ou vice-
versa. A dinâmica própria da ideia pertence à uma realidade distinta da dinâmica da realidade
corpórea. Para tanto, não seria preciso, para se perceber esta distinção, o conhecimento da
natureza segundo seus atributos, pois isto seria possível apenas mediante o recurso da
investigação sobre os diversos tipos de ideia que temos consciência. Diferentemente da

155
ficção, a ideia verdadeira afirma o seu ideado por aquilo que pertence a este, e não ao modo
como é-se afetado por ele. O que Spinoza, a nosso entender, defende é que a ideia verdadeira
e a ficção são diferenciáveis apenas por um esforço de atenção. Como ação da potência do
indivíduo de pôr a ideia na mente é que a ideia verdadeira é explicada. Curiosamente, isto não
deixa de guardar certa proximidade com o “eu sou” de Descartes, pelo fato de que se
reconhece a existência da coisa pensante pelo seu próprio ato de pensar. Contudo, não deixa
de ser ainda, para Descartes, pelo conteúdo da ideia da existência do eu que se pode afirmar a
verdade da própria existência, ou seja, por aquilo que ela representa. É que para ele a ideia
não é ela mesma a afirmação daquilo que ela objetivamente contém. Para Spinoza, por outro
lado, se a mente afirma tal ideia, esta ideia deve poder ser explicada segundo leis necessárias
tanto quanto qualquer movimento dos corpos, e, como a ideia deve poder ser concebida por
sua própria natureza mental, a ordem e a conexão na qual ela existe deve poder ser suficiente
para explicar a sua necessidade e, por conseguinte, sua verdade. Neste sentido, a ideia
verdadeira é dada, por oposição às ideias que, por nos representarem as semelhanças entre as
coisas, devem ser parcialmente explicadas pelo seu ideado corpóreo, e que, por isso, são
forjadas.
Consideramos ter mostrado decorrer disso que a vontade para Spinoza não pode ser
identificada a uma capacidade absoluta de afirmar ou negar, como para Descartes, pois que é
ela mesma a intelecção ou o ato de afirmar uma ideia. Como diz Spinoza, “a vontade e o
intelecto são uma só e mesma coisa” (E II, prop. 49, cor., p. 89). Disso decorre que a vontade
não é nem faculdade absoluta de arbítrio de afirmação ou negação da realidade objetiva de
uma ideia (Descartes), nem de determinação das ações boas ou más (Agostinho). Além disso,
segundo a nossa interpretação, também não se deduz que ela não exista, o que se deduz, na
filosofia de Spinoza, é que ela não existe absolutamente, pois, tal como tudo o que diz
respeito à natureza humana, ela é finita. Pelo mesmo trecho acima citado, vontade e intelecto
coexistem necessariamente como o mesmo. E como intelecto e vontade existem, e existem
enquanto modificações finitas de modificações infinitas da substancia expressa no atributo
pensamento. Abriu-se, por fim, espaço para se pensar, a partir da filosofia de Spinoza, que
não sendo o homem dotado de uma vontade absoluta, nem por isso ele é necessariamente
preso a um determinismo ou fatalismo tal qual uma marionete do destino, mas apenas que ele
não pode querer sem deixar de respeitar pela sua própria natureza as leis infinitas nas quais o
Pensamento se modifica.

156
Questionado por Oldenburg sobre o suposto fatalismo de sua filosofia, depreendido da
suposta submissão completa da vontade humana à ordem eterna e infinita criada por Deus –
“vós pareceis introduzir uma necessidade fatal em todas as coisas e em todas as ações, e as
pessoas se dizem que, uma vez colocado isto [...] tudo se torna desculpável” (C, Carta 74, p.
279) –, Spinoza responde que “os males das más ações e das paixões não são menos temíveis
porque delas decorrem necessariamente e, enfim, que nossas ações sejam necessárias ou que
haja nelas contingência, é sempre a esperança ou o medo que nos conduzem” (idem, Carta 75,
p. 281). De certo modo, Spinoza parece não responder diretamente à pergunta de Oldenburg,
mas, a nosso ver, altera o foco da questão. Não se trataria, como Oldenburg parece colocar, de
determinar a existência ou não de parâmetros morais universais de um ponto de vista
metafísico ou absoluto, mas de remeter o problema ao homem e não retirar sua solução da
necessidade de submeter a vontade humana a uma outra (suposta) vontade superior, a qual,
em relação às ações humanas, seria seu juiz. É o que parece afirmar Spinoza na mesma carta,
quando acrescenta:

os homens não são, acrescentarei eu, inescusáveis perante Deus a não ser por essa
razão de que estão em seu poder como a terra está em poder do oleiro que, da
mesma matéria, tira vasos dos quais uns são feitos para a honra e outros para a
desonra (idem)

Ou seja: as ações são feitas pelas ‘mãos’ dos homens, de modo que é na natureza humana que
se deveria buscar os fundamentos das ações boas e más. Em outras palavras: é no desejo
como potência de agir do homem – o qual entre a esperança e o medo esforça-se por realizar-
se – que se deveria investigar as ações humanas, pois, independentemente se a história de
cada um é toda ela previamente determinada, como o diz o pensamento fatalista, não é por
outra razão que a maior parte das ações humanas são feitas não tendo como motivação senão
a esperança e o medo.
Com a filosofia, Spinoza, ao se pôr a caminho do supremo bem, a nosso ver, esperou
encontrar, de acordo com as suas próprias forças (quer dizer, ele enquanto ser humano) e
esforço, princípios racionalmente demonstráveis das ações favoráveis à felicidade, à liberdade
e ao convívio social. Nem, portanto, a palavra de Deus e nem a mera palavra dada, nem a
submissão a uma autoridade transcendente e nem a resignação ao relativismo puro e simples
da vida cotidiana.
Nesta tese tivemos o intuito de tratar do esforço de Spinoza em percorrer esse caminho
aberto por ele próprio e que o levou a nos legar um conjunto de escritos. Na certeza inabalável
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de ter conseguido distinguir a ideia verdadeira das falsas ou de ter feito a clara distinção entre
a ideia verdadeira e as ficções, Spinoza concebeu a possibilidade de ‘ver’ as coisas sob um
gênero diferente de conhecimento, segundo o qual as coisas existentes se mostrariam pelas
suas essências eternas e como partes de uma mesma Natureza. Mais do que uma questão de
teoria do conhecimento, trata-se também de uma experiência pessoal, narrada em primeira
pessoa: “no começo, os intervalos foram raros de curta duração, mas na medida em que o
verdadeiro bem me foi sendo conhecido, mais e mais, tornaram-se eles mais frequentes e de
maior duração” (TIE, #11, p. 330). Mas cabe a pergunta: ‘intervalos’ entre o quê? Não há
outra resposta possível, a nosso ver, que aquele afeto de amor por uma coisa eterna e infinita,
como Spinoza mesmo diz: “mas o amor de uma coisa eterna e infinita só alimenta a alma de
alegria, isenta de toda tristeza, o que deve ser grandemente desejável e procurado com todas
as forças” (idem, #10). Portanto, o bem buscado é o próprio afeto desse amor, o qual ao
mesmo tempo é ele mesmo conhecimento das coisas pela sua causa única, que, conforme
demonstrou na Ética, só pode ser absolutamente infinita e eterna, ou seja, Deus. Em suma, a
filosofia de Spinoza é uma filosofia, tal como ele a concebeu, para a condução da vida e, ao
mesmo tempo, para a perda do medo da morte.

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