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Sônia Queiroz
O que é um autor?,
de Michel Foucault
duas traduções para o português
Notas de tradução
Nathália Campos
Belo Horizonte
FALE/UFMG
2011
Sumário
Vice-Diretora
Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet
Comissão editorial
Eliana Lourenço de Lima Reis
Elisa Amorim Vieira
Fábio Bonfim Duarte
5 O autor entrevisto
Lucia Castello Branco
Adilson A. Barbosa Jr.
Maria Cândida Trindade Costa de Seabra
Maria Inês de Almeida 15 Qu’est-ce qu’un auteur?
Sônia Queiroz Michel Foucault
Diagramação
Mariana Pithon
Revisão de provas
Guilherme Zica
Tatiana Chanoca
1
MACHADO. Foucault, a filosofia e a literatura, p. 123.
2
ERIBON. Foucault: 1926-1984, p. 195.
3
MACHADO. Foucault, a filosofia e a literatura, p. 121-122.
4
Ver PELBART. O desaparecimento do homem, a literatura e a loucura, p. 179.
estudos de teoria da literatura. Ademais, as considerações feitas então, por Recepção e do Efeito, cujo marco temporal convencionado é a aula inaugural
Michel Foucault, mereceram ampla recepção e ainda se fazem presentes de Hans Robert Jauss na Universidade de Constança (Alemanha) em 1967.10
na obra de pensadores e teóricos contemporâneos, como Giorgio Agamben É importante observar que a reviravolta empreendida por Barthes
e Antoine Compagnon. e Foucault no âmbito conceitual da autoria revela-se, inevitavelmente,
Roland Barthes, em 1968, deu a lume o artigo “A morte do autor”, tributária do cânone literário moderno. Autores como Stéphane Mallarmé,
cujo teor seria tão impactante quanto o título. A força da terminologia, Franz Kafka, James Joyce, Samuel Beckett, dentre outros, operam um des-
entretanto, não deixaria de ensejar interpretações excessivamente radicais dobramento sucessivo – e infinito – da palavra. Dotam-na de exterioridade,
das ideias expostas por Barthes, que, na verdade, concluía pela “morte” no passo em que a libertam das funções de representação do mundo e de
de uma determinada concepção de Autor – assim grafado, inclusive, com expressão da subjetividade autoral. Em outros termos, a palavra não de-
letra maiúscula – em favor do que ele pretendia, coerentemente, deno- signa, existe. E existe enquanto o autor desaparece: “Mallarmé não cessa
minar escritura, em lugar de obra. Foucault, na palestra de 1969, procura de apagar-se na sua própria linguagem, a ponto de não mais querer aí
prevenir-se da redundância em relação a Barthes. Alega a insuficiência de figurar senão a título de executor numa pura cerimônia do Livro, em que
se repetir que o autor desapareceu, de se pretender uma concentração o discurso se comporia por si mesmo”.11
de esforços sobre a obra – conceito cuja indeterminação denuncia – e Editada, a conferência “O que é um autor?” suscitou – e ainda sus-
defende a necessidade de se verificar “o espaço assim deixado vago pela cita – significativa recepção crítica. Antoine Compagnon dedica ao conceito
desaparição do autor”, seja qual for a dimensão desse desaparecimento. de autor um longo capítulo em O demônio da teoria, no qual as ideias de
E, naquele espaço “deixado vago”, se formaria o que Foucault denomina Foucault são discutidas.12 Todavia, nessas páginas Compagnon encarcera a
a função autor. Como Barthes, Foucault assume um posicionamento anti- discussão sobre a autoria nos limites de uma dicotomia: de um lado, situa
humanista, já expresso em As palavras e as coisas, ao tratar da morte concepções que adotam, para a abordagem da obra, a busca da intenção
do homem. Outro ponto comum, e de suma importância, entre “A morte
5
autoral; de outro, correntes que rejeitariam essa intenção. Nesse segun-
do autor” e “O que é um autor?” é a abertura para o influxo do papel do do grupo, Compagnon inscreve o Formalismo Russo, o New Criticism e o
leitor. Conforme Barthes, o leitor é o lugar onde se reúne “o ser total da Estruturalismo. Aqui alinhados, estariam também Roland Barthes e Michel
escritura”.6 Foucault é menos explícito, mas afirma o “trabalho efetivo” – Foucault. Ao tratar especificamente de “O que é um autor?”, Compagnon
e transformador – do “retorno ao texto”. Em consonância com a recusa
7
simplifica em excesso o conceito foucaultiano de função autor para afirmá-lo
de uma concepção autoritária de autoria, os dois teóricos refutam a ideia como exemplo da confusão do “autor biográfico ou sociológico, significando
de um “sentido oculto”, a “ser decifrado”. À época, já ganhavam corpo
8 9
um lugar no cânone histórico, com o autor, no sentido hermenêutico de sua
os estudos que culminariam nas teorias contemporâneas das Estéticas da intenção, ou intencionalidade, como critério da interpretação”.13 Na verda-
de, ao expor a noção de função autor, Foucault antes separa nitidamente
5
À semelhança do que foi dito em relação à morte do autor para Roland Barthes, aqui também cabe do que confunde autor biográfico e intenção do autor. E assim procede
ponderar que Foucault trata, em As palavras e as coisas, do ocaso de uma concepção humanista do
para descartar ambos como parâmetros hermenêuticos. A função autor,
homem no âmbito do pensamento ocidental.
6
BARTHES. A morte do autor, p. 64.
7
As citações de Michel Foucault sem indicação bibliográfica pertencem à tradução brasileira da 10
O texto dessa aula embasaria, posteriormente, a obra de Jauss intitulada A história da literatura como
conferência “O que é um autor?”. provocação à teoria literária.
8
Apesar do esclarecimento da nota anterior, frisa-se aqui a expressão como também proveniente da 11
FOUCAULT. As palavras e as coisas, p. 421.
conferência “O que é um autor?”, de Michel Foucault, a fim de evitar maiores confusões de indicação 12
Antoine Compagnon também ofereceu recentemente, na Sorbonne, um curso intitulado Qu’est-ce qu’un
bibliográfica com o artigo de Roland Barthes. auteur? (O que é um autor?), cujo conteúdo encontra-se no site Fabula, la recherche en littérature.
9
BARTHES. A morte do autor, p. 63. (Grifo do autor). 13
COMPAGNON. O demônio da teoria, p. 52.
Sendo a definição da identidade do autor decisiva para a consti- certos matizes da obra. Por fim, o gênero autobiográfico e a chamada
tuição e garantia de preservação de um corpus, ela está na base “escrita de si”, embora não sejam tão recentes, vêm experimentando um
da fundação da instituição literária, que existe por conseguinte
momento de certo destaque.
em sincronia com instâncias e processos de legitimação: trata-
se não só da legislação sobre direitos de autor, mas também do Mas, na ficção contemporânea, escritores de linhagem borgeana
aparecimento da crítica, da formação teórica de que depende a – como, por exemplo, Ricardo Piglia, Georges Perec e Enrique Vila-Matas
competência da avaliação das obras, e ainda da constituição de
– parecem reiterar o diagnóstico foucaultiano: adotam uma concepção de
uma opinião pública.24
escrita que dissimula referências, subtraindo do leitor a possibilidade de
Ao longo da história da escrita, as inovações no tocante aos suportes distinção entre dados da realidade e componentes ficcionais.
influenciaram a noção de autoria. Somente na transição do manuscrito O jogo metaficcional de Vila-Matas manifesta-se, sobretudo, na
para o livro impresso o produtor intelectual do texto passou a predominar criação de uma zona fronteiriça entre autor empírico e narradores que
na compleição da ideia de autor. Como lembra Hans Ulrich Gumbrecht, a gozam de voz autoral. Esse artifício corrobora o argumento de Foucault
palavra “auctor”, do latim medieval, era surpreendemente polissêmica: a respeito da localização da função autor: “Seria igualmente falso buscar
[...] auctor era, antes de tudo, Deus, provedor de toda significação; o autor tanto do lado do escritor real quanto do lado do locutor fictício: a
mas auctor era também o patrono que patrocinava um manuscrito;
função autor é efetuada na própria cisão – nessa divisão e nessa distância.”
mas auctor era, provavelmente, também o “inventor” do conteúdo
de um texto (embora a questão dificilmente fosse levantada); auctor No romance Doutor Pasavento, Vila-Matas tematiza precisamente o
era a pessoa que copiava o texto no pergaminho; finalmente, era desaparecimento do autor pelo ato da escritura. Referencia Rober Walser,
também a pessoa que emprestava sua voz ao texto recitando-o.25
sobre quem Walter Benjamin afirmou que “para ele tudo o que tem a dizer
Contemporaneamente, o suporte digital induz a mais um impulso de recua totalmente diante da significação da escrita em si mesma”.26 Um
rarefação da identidade autoral, que poderia figurar como uma continui- exato corolário da afirmação de Foucault de que “a marca do escritor não
dade do apagamento apontado por Michel Foucault. Na internet, os textos é mais que a singularidade de sua ausência”. Doutor Pasavento se encerra
circulam de um modo vertiginoso e a atribuição de autoria é simultanea- com a descrição oblíqua de uma hesitação tendente ao silêncio:
mente fácil e incerta. Evidentemente, grande parte dos feixes dessa malha E se vai. Mas fica, mas se vai. Acaso ficou? Vejo-o seguir seu
hipertextual é, de qualquer forma, desprovida da função autor nos moldes caminho e vejo como dá um passo adiante e, pela ruela úmida,
escura e estreita, acaba chegando ao seu recanto, e lá, sem som
em que Foucault a concebeu. Ainda assim, o ambiente virtual não deixa de
nem palavras, fica à parte.27
se constituir como uma poderosa inflexão na evolução da práxis autoral.
Na direção inversa da diluição do indivíduo no hipertexto, os estudos Essa passagem metaforiza o claudicante périplo do autor tal como
literários comportam, nos tempos atuais, uma valorização da subjetivida- entrevisto por Michel Foucault.
de. A crítica genética é exercida com base na pessoa do autor e em tudo
24
LOPES. A legitimação em literatura, p. 124. 26
BENJAMIN. Robert Walser, p. 51.
25
GUMBRECHT. Modernização dos sentidos, p. 74. 27
VILA-MATAS. Doutor Pasavento, p. 410.
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira.
2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BENJAMIN, Walter. Robert Walser. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
p. 51-53. (Obras escolhidas, 1).
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes
Barreto de Mourão, Consuelo Fontes Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
ERIBON, Didier. Michel Foucault: 1926-1984. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 15. ed.
São Paulo: Loyola, 2007.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.
Essa edição consiste na recolha de duas traduções para o por-
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: ______; MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Estética:
tuguês – uma brasileira e uma portuguesa – da célebre palestra de
literatura e pintura, música e cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. 2 ed. Rio de Janeiro:
Foucault precedidas do original francês. À tradução brasileira, acres-
Editora Forense Universitária, 2009. (Ditos e Escritos). v. 3.
centamos notas comparando brevemente as escolhas tradutórias entre
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. Tradução de Lawrence Flores Pereira. São
Paulo: Ed. 34, 1998.
as duas versões. Optamos ainda por manter as escolhas de realce dos
textos assim como eles foram editados para que o leitor mais atento e
LOPES, Silvina Rodrigues. A legitimação em literatura. Lisboa: Cosmos, 1994.
interessado nesses pormenores possa comparar a opção de representa-
MACHADO, Roberto. Michel Foucault, a filosofia e a literatura. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
ção feita por cada tradutor/editor.
PELBART, Peter Pál. O desaparecimento do homem, a literatura e a loucura. In: ______. Vida Ao fim dos textos, apresentamos uma cronologia das publica-
capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2009. p. 177-179.
ções desse texto, périplo que muito significa para perceber a própria
VILA-MATAS, Enrique. Doutor Pasavento. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, recepção do pensamento de Michel Foucault.
2009.
12 O que é um autor?
Qu’est-ce qu’un auteur?
Michel Foucault
“Qu’est-ce qu’un auteur?”, Bulletin de la Societé Française de Philosophie, 63º anné, n. 3, juillet-
septembre 1969, p. 73-104. (Societé française de philosophie, 22 février 1969; débat avec Maurice de
Gandillac, Lucien Goldman, Jacques Lacan, Jean d’Ormesson, Jean Ullmo, Jean Wahl).
En 1970, à l’Université de Buffalo, Michel Foucault donne de cette conférence une version modifiée
publiée en 1979 aux États-Unis.1 Les passages entre cochets ne figuraient pas dans le texte lu par Michel
Foucault à Buffalo. Les modifications qu’il avait apportées sont signalées par une note. Michel Foucault
autorisa indifféremment la réédition de l’une ou l’autre version, celle du Bulletin de la Societé Française
de Philosophie dans la revue de psychanalyse Littoral (n. 9, juin 1983), celle de Textual Strategies dans
The Foucault Reader (éd. P. Rabinow. New York: Pantheon Books, 1984).
que cette règle de la disparition de l’écrivain ou de l’auteur permet de car, encore une fois, ce que je vous ai indiqué n’était, malheureusement,
découvrir? Elle permet de découvrir le jeu de la fonction-auteur. Et ce rien de plus qu’un plan de travail, un repérage de chantier – que la situation
que j’ai essayé d’analyser, c’est précisément la manière dont s’exerçait la transdiscursive dans laquelle se sont trouvés des auteurs comme Platon
fonction-auteur, dans ce qu’on peut appeler la culture européenne depuis et Aristote depuis le moment où ils ont écrit jusqu’à la Renaissance doit
le XVII siècle. Certes, je l’ai fait très grossièrement, et d’une façon dont
e pouvoir être analysée; la manière dont on les citait, dont on se référait
je veux bien qu’elle soit trop abstraite parce qu’il s’agissait d’une mise en à eux, dont on les interprétait, dont on restaurait l’authenticité de leurs
place d’ensemble. Définir de quelle manière s’exerce cette fonction, dans textes etc., tout cela obéit certainement à un système de fonctionnement.
quelles conditions, dans quel champ etc., cela ne revient pas, vous en Je crois qu’avec Marx et avec Freud on a affaire à des auteurs dont la po-
conviendrez, à dire que l’auteur n’existe pas. sition transdiscursive n’est pas superposable à la position transdiscursive
Même chose pour cette négation de l’homme dont Monsieur d’auteurs comme Platon ou Aristote. Et il faudrait décrire ce qu’est cette
Goldmann a parlé: la mort de l’homme, c’est un thème qui permet de transdiscursivité moderne, par opposition à la transdiscursivité ancienne.
mettre au jour la manière dont le concept d’homme a fonctionné dans le L. Goldmann: Une seule question: lorsque vous admettez l’exis-
savoir. Et si on dépassait la lecture, évidemment austère, des toutes pre- tence de l’homme ou du sujet, les réduisez-vous, oui ou non, au statut
mières ou des toutes dernières pages de ce que j’écris, on s’apercevrait de fonction?
que cette affirmation renvoie à l’analyse d’un fonctionnement. Il ne s’agit M. Foucault: Je n’ai pas dit que je les réduisais à une fonction,
pas d’affirmer que l’homme est mort, il s’agit, à partir du thème – qui n’est j’analysais la fonction à l’intérieur de laquelle quelque chose comme un
pas de moi et qui n’a pas cessé d’être répété depuis la fin du XIXe siècle – auteur pouvait exister. Je n’ai pas fait ici l’analyse du sujet, j’ai fait l’analyse
que l’homme est mort (ou qu’il va disparaître, ou qu’il sera remplacé par de l’auteur. Si j’avais fait une conférence sur le sujet, il est probable
le surhomme), de voir de quelle manière, selon quelles règles s’est formé que j’aurais analysé de la même façon la fonction-sujet, c’est-à-dire fait
et a fonctionné le concept d’homme. J’ai fait la même chose pour la notion l’analyse des conditions dans lesquelles il est possible qu’un individu rem-
d’auteur. Retenons donc nos larmes. plisse la fonction du sujet. Encore faudrait-il préciser dans quel champ le
48 O que é um autor?
O que é um autor?
Jean Wahl: Temos o prazer de ter hoje entre nós Michel Foucault. Está-
vamos um pouco impacientes pela sua vinda, inquietos pelo seu atraso,
mas ele aqui está. Não vou apresentá-lo, é Michel Foucault ele próprio, o
de Les Mots et les Choses, o da tese sobre a loucura. Dou-lhe imediata-
mente a palavra.
Michel Foucault: Creio – sem estar, de resto, muito seguro – que é
de tradição trazer a esta Sociedade de Filosofia o resultado de trabalhos já
acabados, para os propor à vossa apreciação e à vossa crítica. Infelizmente,
receio que o que vos trago hoje seja demasiado insignificante para merecer
a vossa atenção: é um projeto que gostaria de submeter à vossa opinião,
um ensaio de análise de que ainda mal entrevejo as grandes linhas: mas
pareceu-me que ao esforçar-me por traçá-las diante de vós, ao pedir-vos
para as julgarem e retificarem estaria, tal como um neurótico, à procura de
um duplo benefício: primeiro, o de subtrair os resultados de um trabalho
que ainda não existe ao rigor das vossas objeções e, por outro lado, o de
fazer usufruir, logo à nascença, não somente do vosso “apadrinhamento”,
mas também das vossas sugestões.
Gostaria ainda de vos dirigir um outro pedido: não me levem a mal
se, quando daqui a pouco me colocarem questões, eu sentir ainda, e so-
bretudo aqui, a ausência de uma voz que me foi até agora indispensável;
compreenderão que, daqui a pouco, é ainda o meu primeiro mestre que
procuro ouvir inelutavelmente. Afinal, foi com ele que primeiro falei do meu
O que é um autor?
Editora Passagens,
projeto inicial de trabalho; teria tido com certeza necessidade que ele as-
1992. sistisse ao seu esboço e me ajudasse uma vez mais nas minhas incertezas.
Mas, apesar de tudo, na medida em que a ausência é o lugar primeiro do Dir-me-ão: então por que utilizar em Les Mots et les Choses, nomes
discurso, permitam que esta noite me dirija a ele em primeiro lugar. de autores? Conviria ou não utilizar nenhum, ou então definir o modo
O tema que propus, “O que é um autor?”, preciso evidentemente como são utilizados. Esta objeção já me parece perfeitamente justificada:
de justificá-lo diante de vós. tentei medir-lhe as implicações e as consequências num texto a aparecer
Se escolhi tratar esta questão talvez um pouco estranha foi, antes em breve; tento agora conferir-lhe o estatuto das grandes unidades dis-
de mais, porque queria fazer uma certa crítica ao que noutros tempos cursivas, como as que chamamos História Natural ou Economia Política;
me aconteceu escrever, corrigindo assim um certo número de imprudên- interroguei-me sobre os métodos e os instrumentos que as podem delimitar,
cias que então cometi. Em Les Mots et les Choses, tinha tentado analisar dividir, analisar e descrever. Eis a primeira parte de um trabalho começado
massas verbais, espécies de tecidos discursivos que não eram escondidos há alguns anos e que agora está terminando.
pelas unidades habituais do livro, da obra e do autor. Falava, em geral, da Mas uma outra questão se põe: a do autor – e é dela que gostaria
“história natural”, ou da “análise das riquezas”, ou da “economia política”, agora de tratar. A noção de autor constitui o momento forte da individuali-
mas quase nada de obras ou de escritores. No entanto, ao longo de toda zação na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, na história
essa obra, utilizei inocentemente, ou seja, de forma selvagem, nomes de da filosofia também, e na das ciências. Mesmo hoje, quando se faz a história
autores. Falei de Buffon, de Cuvier, de Ricardo etc., e permiti que estes de um conceito, de um gênero literário ou de um tipo de filosofia, creio que
nomes funcionassem com uma ambiguidade muito embaraçante. Se bem tais unidades continuam a ser consideradas como recortes relativamente
que dois tipos de objeções pudessem ser legitimamente formulados, como fracos, secundários e sobrepostos em relação à unidade primeira, sólida
aliás o foram. Por um lado, disseram-me: o senhor não descreve Buffon e fundamental, que é a do autor e da obra.
nem o conjunto da sua obra como deve ser, e o que diz sobre Marx é Deixarei de lado, pelo menos pela exposição desta tarde, a análise
irrisoriamente insuficiente em relação ao pensamento de Marx. Estas ob- histórico-sociológica da personagem do autor. Como é que o autor se
jeções eram evidentemente fundamentadas, mas não penso que fossem individualizou numa cultura como a nossa, que estatuto lhe foi atribuído,
muito pertinentes relativamente ao que então fazia; porque, para mim, o a partir de que momento, por exemplo, se iniciaram as pesquisas sobre
problema não consistia em descrever Buffon ou Marx, nem em restituir o a autenticidade e a atribuição, em que sistema de valorização foi o autor
que eles tinham dito ou querido dizer: procurava simplesmente encontrar julgado, em que momento se começou a contar a vida dos autores de pre-
as regras pelas quais eles tinham formado um certo número de concei- ferência a dos heróis, como é que se instaurou essa categoria fundamental
tos ou de teorias que se podem encontrar nas suas obras. Fizeram uma da crítica que é “o-homem-e-a-obra” – tudo isto mereceria seguramente
outra objeção: o senhor forma famílias monstruosas, aproxima nomes ser analisado. Gostaria, para já, de debruçar-me tão só sobre a relação
tão manifestamente opostos com os de Buffon e de Lineu, põe Cuvier do texto com o autor, a maneira como o texto aponta para essa figura que
ao lado de Darwin, e tudo isso contra o jogo mais óbvio do parentesco e lhe é exterior e anterior, pelo menos em aparência.
das semelhanças naturais. Ainda aqui, diria que a objeção não me parece Peço emprestada a Beckett a formulação para o tema de que gos-
justa, porque nunca procurei fazer um quadro genealógico das individu- taria de partir: “Que importa quem fala, disse alguém, que importa quem
alidades espirituais, nunca pretendi constituir um daguerreótipo intelec- fala”. Creio que se deve reconhecer nesta indiferença um dos princípios
tual do sábio ou do naturalista dos séculos XVII e XVIII; não quis formar éticos fundamentais da escrita contemporânea. Digo “ético”, porque tal
nenhuma família, nem santa nem perversa, procurei simplesmente – o indiferença não é inteiramente um traço que caracteriza o modo como se
que é muito mais modesto – as condições de funcionamento de práticas fala ou como se escreve; é sobretudo uma espécie de regra imanente,
discursivas específicas. constantemente retomada, nunca completamente aplicada, um princípio
Texto extraído da edição portuguesa de 1992, que leva o título da conferência e inclui dois outros ensaios
de Michel Foucault: “A vida dos homens infames” e “A escrita de si”. (N.E.)
Trata-se do registo de uma comunicação apresentada por Foucault à Société Française de Philosophie,
na tarde de 22 de Fevereiro de 1969, à qual se seguiu um debate – encimando o texto original, vem a
indicação: “A sessão começou às 16h 45m no Collège de France, sala nº 6, sob a presidência de Jean
Wahl”; contrariamente a versões em outras línguas, que não incluem o debate, a presente tradução
portuguesa reproduz integralmente o original. “Qu’est-ce qu’un auteur?”. Bulletin de la Société Française
de Philosophie, Paris, 63e année, n. 3, juillet-septembre 1969, p. 73-95 (suivi d’une discussion: p. 96-104).
80 O que é um autor?
O que é um autor?
questão o caráter absoluto e o papel fundador do sujeito. Mas seria talvez cancerígena, perigosa das significações em um mundo onde se é parcimonioso não apenas em relação
aos seus recursos e riquezas, mas também aos seus próprios discursos e suas significações. O autor é o
preciso voltar a essa suspensão, não para restaurar o tema de um sujeito princípio de economia na proliferação do sentido. Consequentemente, devemos realizar a subversão da
ideia tradicional do autor. Temos o costume de dizer, examinamos isso acima, que o autor é a instância
originário, mas para apreender os pontos de inserção, os modos de fun-
criadora que emerge de uma obra em que ele deposita, com uma infinita riqueza e generosidade, um
cionamento e as dependências do sujeito. Trata-se de inverter o problema mundo inesgotável de significações. Estamos acostumados a pensar que o autor é tão diferente de
todos os outros homens, de tal forma transcendente a todas as linguagens, que ao falar o sentido
tradicional. Não mais colocar a questão: como a liberdade de um sujeito
prolifera e prolifera infinitamente.
pode se inserir na consistência das coisas e lhes dar sentido, como ela A verdade é completamente diferente: o autor não é uma fonte infinita de significações que viriam
preencher a obra, o autor não precede as obras. Ele é um certo princípio funcional pelo qual, em
pode animar, do interior, as regras de uma linguagem e manifestar assim
nossa cultura, delimita-se, exclui-se ou seleciona-se: em suma, o princípio pelo qual se entrava a livre
as pretensões que lhe são próprias? Mas antes coloca essas questões: circulação, a livre manipulação, a livre composição, decomposição, recomposição da ficção. Se temos
o hábito de apresentar o autor como gênio, como emergência perpétua de novidade, é porque nós
como, segundo que condições e sob que formas alguma coisa como o um
fazemos funcionar de um modo exatamente inverso. Diremos que o autor é uma produção ideológica
sujeito pode aparecer na ordem dos discursos? Que lugar ele pode ocupar na medida em que temos uma representação invertida de sua função histórica real. O autor é então a
figura ideológica pela qual se afasta a proliferação do sentido.
em cada tipo de discurso, que funções exercer, e obedecendo a que re-
Dizendo isso, pareço evocar uma forma de cultura na qual a ficção não seria rarefeita pela figura do autor.
gras? Trata-se, em suma, de retirar do sujeito (ou do seu substituto) seu Mas seria puro romantismo imaginar uma cultura em que a ficção circularia em estado absolutamente
livre, à disposição de cada um, desenvolver-se-ia sem atribuição a uma figura necessária e obrigatória.
papel de fundamento originário, e de analisá-lo como uma função variável
Após o século 18, o autor desempenha o papel de regulador da ficção, papel característico da era
e complexa do discurso. industrial e burguesa, do individualismo e da propriedade privada. No entanto, levando em conta
as modificações históricas em curso, não há nenhuma necessidade que a função autor permaneça
[O autor – ou o que eu tentei descrever como a função autor – é,
constante em sua forma ou em sua complexidade ou em sua existência. No momento preciso em
sem dúvida, apenas uma das especificações possíveis da função sujeito. que nossa sociedade passa por um processo de transformação, a função autor desaparecerá de uma
maneira que permitirá uma vez mais à ficção e aos seus textos polissêmicos funcionar de novo de
Especificação possível ou necessária? Tendo em vista as modificações his-
acordo com um outro modo, mas sempre segundo um sistema obrigatório que não será mais o do
tóricas ocorridas, não parece indispensável, longe disso, que a função autor autor, mas que fica ainda por determinar e talvez por experimentar.” (Tradução de D. Defert.)
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Da transcriação:
poética e semiótica da operação tradutora
Haroldo de Campos