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LIVRO IV
A ARTE
CAPÍTULO 18
CONCEPÇÃO TRADICIONAL DA ARTE
se explica por si mesma: tem um objetivo prático de meio de nando as idéias de cada pensador, iremos, também, procurando
dominação do mundo e de penetração do seu enigma, de luta responder a cada uma dessas questões fundamentais.
contra os obstáculos da vida, de esconjuro e defesa contra seus
perigos e suas emboscadas. Originam-se daí todas essas idéias
feitas a respeito do sentido religioso e prático dos murais das Teoria Platônica sobre a Arte
cavernas de Altamira ou das pedras entalhadas e pintadas do
Nordeste brasileiro: o homem "primitivo" pinta na pedra um Para Platão, a Arte tem uma função ao mesmo tempo práti
cervo em vermelho como o da Serra da Capivara, no Piauí, por ca e mística. A Arte, para ele, é um caminho, através do qual o
que acredita que, assim fazendo, "captura" magicamente o ani homem pode empreender aquela forma de explicação do mun
mal, facilitando sua caça no dia seguinte. do e de penetração do real que é a ascensão para o mundo das
Essa idéia aventada pelos estudiosos, levanta, de imediato, essências, das idéias puras, e, conseqüentemente, de comunhão
com a Beleza absoluta. A Arte é, portanto, uma via de integração
uma porção de problemas e de sugestões outras a respeito da
do homem com o Divino. Isto, do ponto de vista de sua nature
Arte. Por exemplo: será a Arre preocupada unicamente com a
za. Do ponto de vista social, a Arte é uma atividade didática e
criação pura e gratuita da Beleza, ou terá, pelo contrário, sem
exemplar, pois contribui para chamar a atenção da coletividade
pre uma preocupação de utilidade prática? Será a Arte uma for
para a Beleza corpórea. É dessa última idéia que decorrem as
ma de conhecimento, uma das possíveis maneiras de penetração
posições, aparentemente contraditórias, de Platão, sobre a dig
do real? Será toda e qualquer atividade que fabrique objetos, ou
nidade da Arte: ela é, por um lado, benéfica, porque não fica
somente aquela que se preocupa com a criação de objetos be
somente no sensível; mas, por outro lado, colocando sua ênfase
los? Será a Arte um modo prático, concreto e belo de tornar
na Beleza corpórea, insulta, com isso, a Beleza absoluta, e cria,
acessíveis às massas concepções religiosas, políticas e filosóficas
tanto nos artistas como no espírito dos contempladores, dispo
de natureza abstrata, concepções pelas quais, de outra maneira, sições para a sensualidade, para a indisciplina, para a embria
o homem comum não se interessaria? Seria a Arte decorrente, guez dionisíaca dos sentidos, para as paixões. Daí a inferioridade
como quer a Estética psicanalítica, de uma espécie de neurose, da Arte em relação à Filosofia. Ambas partem da "reminiscên
das frustrações, complexos e traumas do artista que, através dela, cia". Mas, enquanto o material da Filosofia é o pensamento puro,
procuraria se compensar da sua vida falha e dilacerada com a de natureza espiritual, os materiais da Arte pertencem ao cam
criação de um outro universo, mais belo e mais perfeito do que po dos objetos sensíveis, grosseiros, mecânicos.
o mundo?
Acredito que estas são as noções mais importantes surgidas
entre os estetas a respeito da natureza da Arte. Da mesma ma A Reminiscência como Processo Criador da Arte
neira adotada para o estudo das fronteiras da Beleza, agiremos
aqui para fixar a natureza da Arte: procuraremos seguir as inda O fundamento da teoria platônica sobre a Arte é a "remi
gações mais importantes que foram feitas sobre isso no campo niscência", à qual já se aludiu ao estudar, de acordo com suas idéias,
histórico da Estétirn ocident;:il e. ?i medirl;:i n11<-' fnrnrns <-'X:ami- as fronteiras da Beleza:
192 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 193
''A inteligência humana" - afirma ele no "Pedro" - "deve se preciso lembrar que não existe nada de menos platônico do que
exercer segundo aquilo que se chama Idéia, isto é, elevar-se da confundir a Imagem, mesmo complexa, com a Idéia. E o ideal
multiplicidade das sensações à unidade racional. Ora, esta fa em que se inspiram os artistas,' oscila, sem cessar, entre as duas".
culdade não é mais do que a recordação das Verdades eternas (Platon et l'Art de son Temps, ed. cit., p. XIII.)
que a nossa alma contemplou quando acompanhou a alma di
vina nas suas evoluções". ("Fedro", ed. cit., § 249, p. 222.) Como se vê, era mesmo de esperar que Platão sentisse pela
Arte um misto de repulsa e de profunda atração: porque a beleza
A reminiscência assim entendida deve ser o guia do homem, dos corpos sensíveis, ao mesmo tempo que atrai, afasta os homens
não só na contemplação da Beleza como na busca da Verdade. do caminho para a Beleza absoluta. A Arte, ao criar um objeto
Mas, teria, além desses, um objetivo criador e prático, no cam belo, ao pintar o retrato de uma bela mulher, por um lado, lem
po da Arte, pois é ao se recordar dos modelos ideais de todas as bra aos homens a mulher-modelo, o tipo ideal e imutável de bele
coisas que o artista cria suas obras. É assim que afirma ele, no za feminina, ligado à Beleza absoluta; e, por outro, prende as asas
"Mênon": da alma, ligando o homem, pela sensualidade, ao corpo feminino
e impedindo, assim, que o espírito se encaminhe para o objetivo
"A alma é, pois, imortal. Renasceu repetidas vezes na existência final da reminiscência - a comunhão com a Beleza absoluta. Os
e contemplou todas as coisas existentes... Não é de espantar que textos platônicos insistem de vez em quando na importância fun
ela seja capaz de evocar à memória a lembrança de objetos que viu damental da reminiscência, tanto para a contemplação pura da
anteriormente... A nós compete unicamente nos esforçarmos e
Beleza, quanto para a criação da Arte. Segundo ele, o artista,
procurar sempre, sem descanso". ("Mênon", § 81, p. 79.)
"com o olhar fixo no Ser imutável e servindo-se de um modelo
Evocando a lembrança desses objetos, entrevistos em sua semelhante, tenta reproduzir a Idéia e a virtude, e, desse modo,
essência pela contemplação, o artista tenta reproduzi-los, atin pode criar uma obra de beleza perfeita". ("Timeu", cit. por
gindo, desse modo, a maior aproximação possível com seu mo Félicien Challaye, Estética, tradução espanhola, Editorial Lábor,
delo ideal, cuja beleza evoca, por sua vez, a Beleza absoluta da Barcelona, 1953, p. 75.)
qual todas as belezas particulares decorrem por participação. De
modo que, segundo Platão, o trabalho do artista é, por nature
za, dividido entre a manipulação dos materiais, das imagens sen A Beleza da Arte e a da Natureza
síveis de que ele necessita para a criação da obra, e a Idéia, ou
modelo perfeito e puro, que ele, ao mesmo tempo, tem que re Como se vê, as idéias de Platão sobre a Arte são bastante vagas
produzir. A esse respeito, escreve Pierre Maxime Schull: e imprecisas. O que viriam a ser, por exemplo, esses modelos
ideais de cada coisa? A beleza de um quadro não depende da
"O artista verdadeiro atingiria, por trás das aparências, a essên beleza do modelo representado: pode-se fazer um belo quadro
ciaideal, a realidade profunda das coisas. O crítico estudaria como tendo como modelo uma mulher muito feia, como Goya fez
ele a exprime, ajudando o público a percebê-la na obra... Mas é tantas vezes: e, nesse caso, como é que a beleza do quadro pode
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resultar da aproximação do modelo com a mulher ideal, essên a arte a que ele se dedique: para Platão - de modo absurdo para
cia pura e imutável do mundo das Idéias? nós, mas coerente com o total de seu pensamento -, o pintor
Outra decorrência curiosa das idéias platônicas sobre a Arte era um simples imitador do real, enc1 uanto o músico e o artesão
é que, de acordo com seu pensamento, a beleza artística é infe eram criadores de formas, mais aproximados, portanto, da 13ele
rior à da Natureza. Um cavalo vivo é a imitação, em primeiro za absoluta do que o escultor que copiava um torso humano da
grau, do cavalo modelo, do cavalo ideal; sua beleza deriva en Natureza.
tão diretamente do reflexo da Beleza absoluta sobre ele; já um
cavalo pintado num quadro, é a imitação do cavalo vivo: sua
feoria Aristotélica sobre a Arte
beleza, portanto, é o reflexo de um reflexo da Beleza absoluta,
e, portanto, inferior à beleza natural do segundo. As idéias de Aristóteles a respeito da Arte são bastante dife
Quanto aos objetos feitos pela mão do homem, aconteceria rentes, como, aliás, era de esperar, já que sua teoria sobre a Be
coisa semelhante, dando como resultado a superioridade do leza opõe-se, de maneira fundamental, à de Platão. Para Platão,
artesanato sobre a Arte. Uma cadeira feita por um marceneiro é a Arre é, como já vimos, uma forma de penetração do real-ideal,
imitação, em primeiro grau, da cadeira padrão, do modelo ideal de conhecimento do Absoluto; para Aristóteles, será, antes, uma
de cadeira: se um pintor pinta um quadro no qual aparece uma atividade simplesmente criarlora de formas. A esse respeito, es
cadeira, a beleza desta é reflexo da beleza da cadeira feita pelo clarece Denis Huisman:
artesão, a qual, portanto, é superior. Ou seja, de acordo com as
palavras de Pierre Maxime Schul: "Em Platão, a Arte é a descoberta, pela reminiscência, de co
nhecimentos anteriormente adquiridos através da participação
"O pintor, por mais perfeita que seja a cópia, não pode repro nas Idéias. Em Aristóteles, ao invés, a Arte é produção criadora
duzir senão a cor, a forma e os aspectos sempre diferentes sob de novas formas e nenhuma destas poderia ser anteriormente
os quais se apresenta um dado objeto. Um leito, visto de frente,
do conhecimento de seu criador". (A Estética, trad. bras. de
parece diferente de um leito visto de três quartos ou de vit:s:
L'Esthétiq11e, Difusão Européia do Livro, São Paulo, s/d., p. 25.)
isco não significa nada, porque o leito é o mesmo. Mas o pintor
não se importa. Ele não imita o ser verdadeiro, tal como é, mas
Assim, para Aristóteles, a Arte é uma criação da Beleza, sem
sim a apar2ncia que o ser apresenta. Em outros termos, ele não
qualquer forma direta de conhecimento. O papel do intelecto
exprime a Idéia, mas sim o ídolo das coisas. Ele não é, propria
mente falando, um poeta, um criador, como o artesão que fa na Arte será melhor precisado depois, distinguindo-se, nele, a
brica o leito, inspirando-se na essência do leito, no leito-tipo, inteligência abstrata e raciocinadora, própria da parte analítica
criado por Deus". (06. cit., p., 57-58.) do conhecimento, e a imaginação criadora, própria da Arte.
A Arte não é, portanto, uma forma de conhecimento, e muito
Note-se que Pierre Maxime Schul usa, aí, a palavra poeta no menos de conhecimento do Absoluto; a presença da inteligên
sentido grego, isto é, no sentido de artista criador, seja qual foi cia puramente racional é, nela, apenas indireta, pois o papel
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fundamentalmente criador é, aí, exercido pela imaginação. Mas leza: a "imitação", ou "mímesis", de que fala Aristóteles , não
seria fazer violência a Aristóteles dizer que ele já estabelece de deve se confundir com a imitação estreita e servil do real -
modo preciso todas essas distinções. Ele se limita a dizer, na Ética coisa, aliás, além de não desejável, impossível, em Arte. Esta
para Nicômaco, que "a Arte é determinada faculdade de produ não imita o real, parte de elementos reais que, na imaginação
zir, dirigida pela verdadeira razão" (cit. por Denis Huisman, loc. do artista, são remanejados e recriados, para a criação de um
cit.). Será que, falando assim na "verdadeira razão", queria novo universo, no qual a criação da Beleza não é a preocupa
Aristóteles se referir ao intelecto total, que inclui a inteligência ção exclusiva, mas é, sem dúvida, o objetivo principal a ser
abstrata e ainda aquilo que Maritain chama de "a noite criadora atingido pela Arte.
da vida pré-consciente do intelecto"? Seria temeridade afirmá
lo. Limitemo-nos, portanto, a expor aquilo que ele disse e as
interpretações mais correntes dadas a seu pensamento sobre a
Arte. Assim, Edgard De Bruyne afirma:
"Nenhuma das Belas-Artes pode conceber, por si mesma, a re Características da Obra de Gênio Exemplar
gra segundo a qual deve realizar sua obra. Mas como, faltando
uma regra preliminar, uma produção não pode receber o nome Assim, as obras do gênio, feitas ao acaso de sua inspiração e
de obra de arte, é preciso que a Natureza dê sua regra à Arte no sem que ele mesmo saiba como, tornam-se guias e modelos para
próprio sujeito, e isto pela harmonia de suas faculdades; o que os outros artistas e têm quatro marcas:
quer dizer que as Belas-Artes só são possíveis como produção
do gênio". (Loc. cit.) "Primeiro, que o gênio é o talento de produzir aquilo para o
que não se saberia dar regra determinada... Segundo: as obras
do gênio devem ser, ao mesmo tempo, modelos, devem ser
A teoria kantiana da Arte teve a vantagem de chamar a aten
exemplares, e, por conseqüência, apesar de não serem, elas
ção para o papel fundamental da intuição e da imaginação, tan próprias, obras de imitação, devem ser propostas à imitação
to na Beleza, como na criação da Arte. Com seus radicalismos, dos outros, para servir de medida ou de regra de apreciação.
porém, termina afirmando essa idéia do artista-modelo e da obra Terceiro: o gênio... não sabe, ele próprio, como lhe vieram
exemp lar, que levaria a Arte para os caminhos do puro aca as idéias ..., nem como comunicar aos outros os preceitos que
demicismo, do maneirismo. Os achados pessoais do gênio, lhes permitam produzir obras semelhantes... Quarto: a Na
convertidos em normas, em regras que os outros artistas devem tureza, pelo gênio, não dá regras à Ciência, mas à Arte, e mais,
exclusivamente às Belas-Artes". ("Crítica do Juízo de Gos
imitar, terminariam colhendo o trabalho criador em sua inven
to",§ 46 e 47, loc. cit.)
ção e liberdade. Kant, porém, não recua diante dessa conse
qüência de suas premissas, e vai até o fim, nela:
O resultado disso é que, segundo Kant, a criação da obra de
arte é feita segundo regras, mas deve aparentar que não; é o re
"Seguir um guia, e não imitar" - diz ele - "eis a palavra sultado de uma disciplina, mas deve aparentar que não, deve sur
própria para exprimir a influência que podem ter sobre ou gir como se fosse uma criação absolutamente natural e espontânea:
tros as produções de um autor transformado em modelo ...
Pelo motivo, mesmo de que o julgamento de gosto não pode "A Natureza é bela quando tem o aspecto de uma obra de arre.
ser determinado por conceitos e preceitos, o gosto é, entre A Arte, por sua vez, não pode ser chamada bela senão quando,
todas as faculdades e talentos, precisamente aquele que tem deixando-nos conscientes de que é Arte, oferece-nos, entretan
mais necessidade de encontrar exemplos daquilo que, no de to, o aspecto da Natureza... Em outras palavras, a Arte deve ter
senvolvimento da civilização, recebeu o mais constante as a aparência da Natureza, se bem que se tenha consciência de
sentimento, se é que não se pretende tornarmo-nos de novo que é Arte... Uma produção da Arte parece natural sob a condi
incultos e recair na grosseria dos primeiros achados". ("Crí ção de que as regras, que são a única coisa que permite à Arte
tica do Juízo de Gosto",§ 32, em Le }11ge111e11t Esthétique, já ser o que ela deve ser, tenham sido observadas exatamente. Mas
cit., p. 16.) que este acordo não seja adquirido penosamente, que ele não
deixe suspeitar que o artista tinha a regra sob seus olhos e as
faculdades da alma entravadas por ela". (06. cit., p. 27-28.)
204 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 205
Belas-Artes e Artes Úteis artistas que lidam com a madeira como seu material de traba
lho. Teríamos então, no sentido crescente da Beleza e decres
Para concluir esta breve análise das idéias de Kant sobre a cente da utilidade:
natureza da Arte, lembremos o que foi dito anteriormente a res
peito da Beleza livre e da Beleza aderente. Escrevemos no pará CARPINTARIA-Arte mecânica da madeira. Trabalho mais gros
grafo 7 do capítulo VI: seiro de todos. Preocupação quase total com a utilidade
prática e quase nenhuma com a Beleza.
"Pode-se dizer que a distinção entre Beleza livre e Beleza ade
rente se deriva da anteriormente explanada entre finalidade e
MARCENARIA-Trabalho com móveis etc. Predominância ainda
fim. São três graus de utilidade decrescente e gratuidade cres
bem maior da utilidade, mas com presença já bem mais ní
cente: o dos objetos puramente ligados ao fim e à sua destinação
tida da Beleza, presença mais marcante ou menos marcante
útil, como um trem; e, mesmo já dentro do campo da Beleza,
conforme o caso.
isto é, já dentro do campo da finalidade, o dos objetos que re
presentam coisas (Arte figurativa) e os que representam simples
TALHA-Trabalho em madeira dos altares das igrejas e seme
formas (Arte abstrata)."
lhantes. Aqui, a Beleza, já como preocupação importantíssi
ma, muito mais importante do que nos móveis, é ainda posta
Assim, no pensamento kantiano, as Belas-Artes pertencem a
a serviço de uma destinação útil, no caso dos altares a neces
um campo determinado, o da finalidade, no qual não se tem em
sidade de criar, nos fiéis, disposições religiosas de espírito.
vista nenhum objetivo prático, mas sim, pura e exclusivamente,
o prazer do sujeito e a harmonia de suas faculdades. Já as Artes
ESCULTURA- Finalmente, com a Escultura em madeira, temos
úteis, ou mecânicas, pertencem ao campo do fim, isto é, da o caso de uma Arte "pura", com a Beleza como preocupa
destinação prática do objeto. ção não exclusiva mas fundamental.
A nosso ver, portanto, e ao contrário do que afirma a maior
parte dos comentaristas de Kant a esse respeito, para ele havia No caso da Estética kantiana, pode-se dizer que o corte, a
uma distinção de natureza, uma distinção fundamental, entre as separação é decisiva: enquanto a Carpintaria e a Marce:iaria
Artes chamadas "belas" e as Artes chamadas "úteis", uma linha pertencem ao campo do fim, da utilidade pura e do objeto, a
de separação radical e definitiva; tanto assim que as primeiras Escultura pertence ao campo da finalidade, da Beleza exclusiva
eram puramente ligadas ao sujeito, e as Artes "úteis" ao objeto; e do puro prazer do sujeito.
enquanto que, no pensamento realista e objetivista de origem
mediterrânea, a Arte é tudo aquilo que cria alguma coisa; a dis
tinção entre belas Artes e Artes úteis não é mais uma diferença Teoria Hegeliana da Arte
de natureza, é apenas uma questão de maior ou menor preocu
pação com a Beleza ou com a utilidade. Tomemos como exem Hegel, como já vimos de passagem ao tratar de suas idéias
plo particular - que serve para todas as Artes - o caso dos sobre a Beleza, procura, a respeito da Arte, conciliar os concei-
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tos da Filosofia mediterrânea com o pensamento kantiano, se muito o conceito do que sejam elas, chegando a afirmar, como
bem que, rigorosamente falando, esteja mais aproximado daquela afirmamos há pouco, que "a obra de arte não pode subordinar
do que deste. Por um lado, Hegel admire a crítica kantiana so se a uma regra". Ainda seguindo Kant, atribui ele grande impor
bre as normas da Arte, quando diz, na Estética: tância aos achados individuais e à inspiração do gênio como
fundamento da Arte, formulando uma teoria romântica que, para
"Do conhecimento da regra só resulta uma atividade puramen ser bem entendida, deve ser encarada à luz daquela oposição,
te formal, porque, estando já contida na regra roda determina
da qual já falamos antes, entre a liberdade humana e a necessida
ção concreta, tudo quanto se possa realizar será produto de uma
de. Diz ele:
atividade formal e abstrata... Não sendo um produro mecâni
co, a obra de arte não pode subordinar-se a uma regra". (Ed.
cir., Introdução, p. 80.) "De um lado, existe a liberdade, do outro a necessidade. A li
berdade é, essencialmente, um atributo do espírito. A necessi
dade é a lei da vontade natural. O intelecto mantém a oposição
Apesar disso, porém, Hegel traz ao assunto uma sugestão que
entre ambas e a liberdade só existe enquanto adversária daqui
será valiosa para estudarmos o problema da forma, da técnica e
lo que lhe é contrário". (06. cit., p. 78.)
do ofício na Arte, problema que será estudado depois. Afirma
ele que várias regras se têm formulado no campo da Arre sobre
Tal oposição, porém, deve desaparecer pelo esforço do ho
sua parte mecânica e material - a rima no campo da Poesia, as
mem, cedendo lugar a uma conciliação, a "um princípio mais
tintas no caso da Pintura, a madeira ou a pedra no caso da Es
cultura. E vai ainda mais longe, admitindo certas regras até na elevado, mais profundo, suscetível de alcançar uma harmonia
parte espiritual da criação artística: entre os dois termos, aparentemente inconciliáveis". (Ob. cit.,
p. 77.) Ora, a Arte, como dissemos antes, é, nos termos da filo
"Além disto - escbr<.:ce ele, continuando o texto citado - sofia hegeliana, um acordo entre o sensível e o espiritual. Den
existem preceiros que merecem ser tidos em consideração, por tro dessa idéia, afirma Hegel:
não se dirigirem apenas aos aspectos exteriores e quase mecâ
nicos da atividade artística, mas também àquilo que se pode "A Arte, até pelo seu conteúdo, encerra-se em certos limites, atua
considerar como atividade espiritual exercida sobre o conteú sobre urna matéria sensível e portanto tem apenas por conteúdo
do. Tal é, por cx<.:mplo, o preceito s<.:gundo o qual a caracteri um determinado grau de verdade". (Estética, ed. cit., p. 47.)
zação dos personagens deve convir à sua idade, sexo, situação
social, posição". (Loc. cir.)
O Sensível e o Espiritual
Por aí se vê que Hegel, com o pensamento mediterrâneo,
admite a existência de regras para a criação e apreciação da Arte; Por aí, vemos em primeiro lugar que Hegel exigia da Arte
mas, por outro lado, com K�1nt, e desejando apenas, talvez, res uma conciliação entre o universo humano da liberdade e o da
saltar a natureza especialíssima das normas da Arte, restringe necessidade cega, brutal e indiferente da Natureza. A Arte, por
208 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À EST�TICA 209
um lado, tem uma parte espiritual, que a aproxima da Religião O Espírito como Objeto
e da Filosofia, e que faz dela, assim, uma forma de conhecimen
to, de aproximação com a Idéia, com o Absoluto. Diferentemente A Arte procura pois, de acordo com Hegel, inserir o espíri
das outras duas, porém, a Arte aproxima o homem do Absoluto to naquilo que é material. Tem, por isso, um parentesco com a
através do sensível, pois ela possui, também, uma parte mate inteligência, porque o pensamento é a natureza essencial mais
rial, sendo, como é, uma tentativa de harmonização entre o sen íntima do espírito e porque o homem, inconformado com o que
sível e o espiritual. Daí sua inferioridade perante a Religião e a a Natureza tem de puramente sensível, procura, através da Arte,
Cultura (ou a Filosofia}: introduzir o espiritual no material:
"Na hierarquia dos meios que servem para exprimir o Absolu "O espírito" - afirma Hegel na Estética - "tem a faculda
to, a Religião e a Cultura, originadas da razão, ocupam o grau de de se considerar a ele mesmo, de se tomar, consciente
mais elevado, muito superior ao da Arte". (Estética, p. 47.) mente, a si mesmo e a tudo o que procede dele, como objeto
de pensamento, porque o pensamento constitui justamente
Como se vê, para Hegel - como, depois, para Bergson - a a natureza essencial mais íntima do espírito ... Ora, a Arte e
Arte é "uma forma mais direta de atingir a Idéia" (de penetrar o suas obras... são de natureza espiritual... Sua representação
real, diria Bergson). Mais direta, porém mais grosseira e sim implica na aparência do sensível e insere o sensível no espí
ples, inferior, portanto, à Religião e à Filosofia, porque, ao con rito... O poder do espírito pensante não consiste somente,
trário delas, tem "que pedir formas à Natureza", sendo, como sem dúvida, em captar o pensamento sob a forma que lhe é
é, um acordo entre o sensível, isto é, entre o material, e o espi própria, mas também em se reconhecer sob esse revestimen
ritual. Hegel afirma ainda, a esse respeito: to da sensibilidade e do sentimento, em se apreender naquilo
que é outra coisa e, no entanto, é dele, fazendo um pen
"Só é verdadeiramente real o que existe em si e para si, aquilo samento desta forma alienada e reconduzindo-a, assim, a ele
que constitui a substância da natureza e do espírito, aquilo que, mesmo ... (O espírito pensante) não pode ser satisfeito em
existindo no espaço e no tempo, não deixa de, com uma exis definitivo senão quando introduziu o pensamento em todos
tência verdadeira e real, existir em si e para si. É a Arte que nos os produtos de sua atividade, e chegou enfim a esta maneira
abre os horizontes das manifestações dessas potências univer de se apropriar verdadeiramente deles". (Estética, textos
sais, tornando-as aparentes e sensíveis ... A obra de arte provém escolhidos, ed., cit., p. 16-17.)
do espírito e existe para o espírito ... É um meio através do qual
o homem exterioriza aquilo que ele é ... Através dos objetos
Assim, parece podermos resumir o pensamento de Hegel a
exteriores, o homem (na Arte) procura encontrar-se a si pró
prio... O autor da obra de arte procura exprimir a consciência respeito desse assunto através de duas afirmativas: a Arte é um
que possui de si. Esta é uma poderosa exigência que advém do acordo entre o sensível e o espiritual; e é o espírito que se toma
caráter racional do homem, origem e razão da Arte". (Estética, :1 si mesmo por objeto.
p. 42-86-99.)
210 ARIANO SUASSUNA INICIAÇÃO À ESTÉTICA 211
Teoria Neotomista da Arte dores dessa linhagem preferem chamar "as vias" ou os "cami
nhos certos e determinados da Arte", nome, a meu ver, melhor
Os escolásticos e tomistas baseiam-se nas idéias aristotélicas
do que aquele, por demais rígido, de "regras da Arte". Diz
para formular sua teoria da Arte. Definem a Arte como "reera rario
Jacques Maritain:
facribilium", ou seja, "a reta determinação das coisas a fazer", de
acordo com a interpretação de Jacques Maritain (Arte e Esco "A Arte, que tem por matéria uma coisa que é preciso fazer,
lástica, trad. cit., cap. III, p. 20). Isto significa, antes de mais nada, procede por caminhos certos e determinados... Os escolásticos
que o mais importante, na Arte, não é propriamente a feitura do afirmam isso constantemente, seguindo Aristóteles, e fazem da
objeto, é a criação anterior, a invenção realizada pelo intelecto. posse de regras certas uma propriedade essencial da Arte como
Note-se um pormenor, à primeira vista sem importância: Aris tal". (Ob. cit., p. 31.)
tóteles colocava em primeiro lugar a atividade "fabricadora" da
Arte, digamos assim, reservando o segundo lugar para a determi Quer dizer: os pensadores mais ligados à tradição do pensa
nação intelectual presente na criação artística. Os tomistas inver mento mediterrâneo, julgam poder definir o que é, por exem
tem os termos, dando mais relevo a este último. Isto porque, como plo, o Trágico e, conseqüentemente, também uma tragédia:
diz Maritain, "a obra por fazer é apenas a matéria da Arte, sua existem normas de ordem geral que permitem definir um acon
forma é a reta razão". (06. e loc. cits.) tecimento doloroso como trágico, ou não.
Marirain afirma ainda que a Arte é "um hábito do entendi Maritain esclareceu melhor, aliás, seu pensamento sobre esse
mento prático", isto é, uma força e elevação intrínsecas, uma assunto, no último livro que dedicou aos assuntos estéticos:
capacidade inata que se desenvolve no sujeito, um dom em exer Creative lntuition in Art and Poetry (Pantheon Books, Nova York,
cício, sediado, não na inteligência abstrata, mas no entendimento 1953). Diz ele:
prático, na imaginação criadora. O artista, o homem que possui
esse dom, intrínseco e que ele terá que desenvolver, o homem "As regras, nas Belas Artes, relacionam-se com uma lei de reno
dotado dessa "disposição estável que aperfeiçoa, na linha de sua vação perpétua infinitamente mais estrita do que nas Artes úteis.
natureza, o sujeito em que se encontra", é apto, então, a criar Elas devem ser regras perpetuamente renascidas, renovadas, não
só com respeito a um determinado objeto - barco, jarro ou
obras Belas; e, levado por essa vocação, procurará naturalmen
máquina de calcular - a ser feito, mas sim com respeito à Be
te "imprimir uma idéia numa matéria", ou seja, "trabalhar uma
leza da qual devem participar; e a Beleza é infinita... Em segun
matéria sensível para proporcionar o prazer do espírito".
do lugar, a obra a ser feita, no caso das belas Artes, é um fim em
si mesmo, e um fim totalmente singular, absolutamente único.
Então, cada vez e para cada obra particular, existe para o artis
As Regras da Arte
ta um novo e único caminho a seguir em busca do fim, para
impor à matéria a forma concebida pelo intelecto... Em tercei
A visão tomista da Arte implica, ainda, num reexame do
ro lugar, e também porque a obra a fazer é um fim em si mes
problema das regras ou normas da Arte, daquilo que os pensa- mo, e uma participação singular e original, totalmente única,
212 ARIANO SUASSUNA