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DEBATE DEBATE
Políticas e práticas em saúde mental: as evidências em questão
Abstract The paper analyzes some current ques- Resumo O artigo analisa algumas questões atuais
tions related to the choice of evidence in order to em relação à escolha de evidências para orientar
provide guidelines for public policy and practices as políticas públicas e as práticas em saúde men-
in mental health care. It starts with a critical re- tal. Parte-se de uma reflexão crítica sobre as cate-
flection on the categories of evidence proposed by gorias de evidências propostas pela Medicina Ba-
Evidence-Based Medicine, and also the concept of seada em Evidências, e também sobre a concepção
qualitative evidence. The issue is analyzed specif- de evidências qualitativas. O assunto é particu-
ically in relation to mental health care users and larmente analisado em relação aos usuários de
their demands to have services organized in a way saúde mental e suas reivindicações de ter serviços
that incorporates their perceptions and values, and organizados de maneira a incorporar suas per-
to the Psychiatric Reform field proper firmly cepções e valores, e ao próprio campo da Reforma
grounded in ethical and political precepts. Psiquiátrica assentado fortemente em posiciona-
Key words Evidence, Public policy, Mental health mentos ético-políticos.
Palavras-chave Evidencia, Políticas públicas,
Saúde mental
1
Departamento de Saúde
Coletiva, Faculdade de
Ciências Médicas,
Universidade Estadual de
Campinas. R. Tessália
Vieira de Camargo 126,
Unicamp. 13.083-887
Campinas SP.
gastaowagner@mpc.com.br
2
École de Service Social,
Université de Montréal.
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Campos GWS et al.
a raiva e a fome são coisas dos homens No presente artigo a discussão será orienta-
da em torno das seguintes perguntas:
Pensando-se em modelos de atenção e em
Introdução práticas no campo da saúde mental, como seria
possível acumular conhecimento tendo em vista
O paradigma dominante na ciência médica con- a extrema variação de fatores envolvidos? Ou,
temporânea reza que seria imprescindível tomar- em oposição, teríamos que reinventar o conheci-
mos decisões baseando-nos em conhecimentos mento a cada fato, a cada momento, frente a
solidamente assentados, os quais só seriam aces- cada situação e às singularidades do fenômeno?
síveis por meio de ensaios clínicos controlados e Como segunda questão, interessa-nos exa-
aleatorizados, quanto mais “randomizados e ce- minar as maneiras pelas quais o conhecimento,
gos” melhor. Esse seria o desenho “padrão ouro” o saber e a ciência ajudam a orientar a política,
e daí em diante todos os outros tipos de estudos tanto quando organiza práticas profissionais,
produziriam níveis de evidência menos confiáveis1. como quando recomenda atitudes cotidianas
Contudo, é interessante perceber que vivemos para os usuários alterarem seus hábitos de vida.
na atualidade um tempo de mudança social ace- Resumindo a segunda pergunta: o conhecimen-
lerada e de diversificação das esferas da vida que to poderia orientar ou, por vezes, determinar a
não podem ser estudadas apenas pela via deduti- construção de políticas e de práticas em serviços
va clássicas, pelo teste empírico de hipóteses pré- de saúde?
vias. Até porque – em muitos casos – carecemos
de teorias que fundamentem as hipóteses a serem O problema não são as evidências
testadas. Em realidade, há uma forte associação e sim o uso que se faz delas
entre saber-poder, e que, quando o discurso cien-
tífico assume o caráter de uma verdade única, Perguntamos: o que fazer com as evidências?
óbvia e indiscutível, termina por favorecer abor- Evidências remeteriam sempre à realidade con-
dagens restritas de problemas complexos2. creta em sua totalidade? Quando observamos
Para compreender e para agirmos com segu- com distanciamento crítico o discurso predomi-
rança e prudência – quer com políticas, progra- nante nas ciências da saúde contemporânea fica-
mas, estratégias de gestão ou práticas profissio- mos com a nítida impressão de que, a depender
nais – faz-se necessário a análise articulada de da metodologia empregada em uma investiga-
várias evidências, em geral, produzidas mediante ção, estaríamos diante da verdade revelada. Fora
distintas metodologias e enfocando distintos ob- disso somente haveria obscurantismo e charla-
jetos. A postura restrita, que restringe a comple- tanismo.
xidade do processo saúde/doença/intervenção, Entretanto, a própria Medicina Baseada em
negligencia o caráter inevitavelmente ideológico Evidência nos ajuda a responder a essa questão
de toda e qualquer prática social, incluída aí a de forma mais matizada. Para essa corrente epis-
científica. No caso em discussão, o da saúde men- temológica haveria uma “hierarquia de evidên-
tal, ainda, interessa-nos ressaltar que se trata de cias”. Algumas esclareceriam a realidade mais que
um campo fortemente marcado por disputas de outras, e isto sempre a depender principalmente
valores (isto é: ideológicas) e por conflitos de in- do “delineamento da pesquisa”4. O grau de con-
teresse. cretude da evidência estaria, portanto, dado a
A Reforma Psiquiátrica brasileira (e outras no priori e não dependeria, necessariamente, de sua
mundo) está fortemente assentada em valores, capacidade de explicar a realidade. Segundo o
como o direito do usuário ser tratado em liber- Centre for Evidence Based Medicine de Oxford
dade, como a aposta na reinserção social, na hu- haveria cinco níveis de evidência científica com
manização dos cuidados e no resgate da condição distintas capacidades para orientar “diagnósti-
de cidadania dos usuários3. Inspiradas nesses va- cos, etiologia, prevenção, terapia e risco” na prá-
lores, nos últimos 30 anos, vem se implementan- tica clínica5. O padrão ouro seriam os estudos de
do políticas públicas sob a forma de leis, portari- Ensaio Clínico Randomizado (ECR), bem como
as e outras regulações que repercutiram na cria- aquelas revisões sistemáticas dos mesmos ECR.
ção de novos serviços públicos, trouxeram mu- Estudos observacionais não comparados, expe-
danças na legislação e produziram inovação de riência clínica, etc., constituiriam evidências fra-
práticas clínicas com importante apoio na inter- cas, de quarto nível.
disciplinaridade das ações e participação cidadã. A depender dessa filosofia, haveria evidênci-
Como acumular evidências neste campo? as absolutamente confiáveis e outras das quais
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se avaliar arranjos organizacionais, modelos de vezes, tão ou mais importantes do que uma série
trabalho, programas e políticas de saúde. histórica numérica.
A concordar com esse raciocínio epistemoló- Por outro lado, a Medicina Baseada em Evi-
gico, é mister reconhecer que estamos diante de dências, as ciências positivas, pensam as evidên-
uma dificuldade para analisar a clínica ampliada cias como se fossem um monumento, algo sa-
e a política. No concreto, há dificuldade em ori- grado, aquilo no qual temos fé. E um monu-
entarem-se práticas profissionais cotidianas por mento uma vez construído é um símbolo de gló-
evidências produzidas em relação a apenas al- ria. Algo que diria tudo sobre o fato com inde-
guns elementos do processo saúde e doença. As- pendência de qualquer releitura ou interpreta-
sim, por exemplo, mesmo quando se evidencia ção. Em grande medida, essa postura tímida e
que determinado psicotrópico alivia e limita os submissa frente às evidências é o pilar da ciência
sintomas de determinado transtorno, seria ne- dura, da biomedicina, pois esta consideram as
cessário também trazer evidências dessa mesma evidências do “Tipo I” como um monumento,
droga sobre a capacidade do paciente para lidar um achado sagrado, que não estaria sujeito à
com sua própria vida. E mais, como funcionaria reflexão e reconstrução.
o uso desta droga em teste quando associada Assim, em nome da verdade tem se cometido
com modalidades de terapia voltadas para am- violência contra sua busca, não é a primeira vez
pliar a capacidade de autocuidado, de relaciona- que isto acontece na história do ser humano, a
mento, de lidar-se com frustrações, etc. doutrina da evidência, em grande medida, vem
Qualquer epistemologia materialista não pode produzindo uma camisa de força para o pensa-
fugir ao mundo concreto dos fenômenos. Temos mento criativo e comprometido com o bem-es-
que lidar com as evidências, entretanto, devería- tar humano.
mos nos autorizar a assumir uma postura crítica Descobrir um método, uma fórmula para
diante de cada evidência encontrada ou produzi- explorar o desconhecido e encontrar evidência é
da. E ainda nos valermos do recurso da prudên- o pathos, uma espécie de utopia de quase todo
cia; isto é, conceder-se o direito e o dever de exa- cientista. Inventar um método seguro, que sim-
minar a suposta evidência em cada caso singular plifique a variabilidade, através do qual fosse
e não somente aplicá-la de forma mecânica ou possível extrair a verdade da vida e dos fatos! Ao
automática. estendermos metodologias potentes para inves-
O uso da crítica e da prudência, tanto quando tigar alguns fatos da natureza, como a especifici-
fazemos política, gestão ou clínica exige uma mu- dade de um meio diagnóstico, ou a eficácia de
dança de postura frente aos dados concretos (con- um fármaco, para fatos mais complexos, como
temporaneamente, rebatizados com o nome de a clínica, a política, a existência, pode-se consta-
evidência). Os “fanáticos da objetividade”, os “po- tar que o velho hábito de normalizar a ciência se
sitivistas mecânicos”, os “cientistas duros” – aqueles reproduz, a ascensão “sagrada” do termo evidên-
que imaginam a possibilidade de algum método cia indica uma retomada de certa arrogância tí-
de pesquisa esclarecer completamente o objeto pica de vários fundamentalismos.
investigado e ainda creem na existência de um
método ideal que os autorizaria a narrar a reali- Métodos qualitativos e quantitativos
dade sem interferência subjetiva – “encontram” e a produção de evidências
evidências que seriam a verdade da natureza. Elas
estariam no mundo à espera de alguém que as Poderíamos pensar que para testar um anti-
descobrisse. Já os “céticos”, os “prudentes”, os “di- biótico é melhor utilizar métodos quantitativos
aléticos”, os “cientistas críticos” – aqueles que sa- cujo fundamento principal seja a estatística, e os
bem que nenhuma teoria ou metodologia daria desenhos do tipo caso-controle; mas, por exem-
conta de todos os aspectos da realidade e que toda plo, para saber como se sente uma pessoa obri-
evidência, em alguma medida, é tanto um dado gada a tomar uma dada medicação, diariamen-
concreto da realidade, quanto, em outra, sempre te, que além do seu efeito principal tem repercus-
resultado de certa produção subjetiva do pesqui- sões sobre a vitalidade, seria também convenien-
sador, da cultura, do enfoque – falam em “pro- te valer-se de abordagens qualitativas. O mesmo
dução” de dados7. se pode afirmar em relação a investigações que
Para essa tradição crítica haveria que se in- buscam compreender como e por que as pessoas
terpretar a evidência, e, em muitos casos, tratar pensam segundo determinadas lógicas, por que
de reconstruí-las com base em outras. Para esses fazem determinadas escolhas (como fumar, usar
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