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A Corte Joanina no Brasil:

A transformação do Rio de Janeiro em capital do


Império Ultramarino Português (1808-1821)
Índice:

1. Introdução ...............................................................................................3

2. Considerações acerca da vinda da Corte ............................................. 4

3. A chegada da Corte ................................................................................ 7

3.1. Conseqüências da chegada da Corte ............................................... 10

3.2. O Enraizamento da Corte: A criação de instituições governativas e

a transformação do Rio na sede do Imperio Ultramarino 

7Lusitano....................................................................................................11

4. A Corte Joanina ....................................................................................19

5. Mudança nos hábitos e costumes no período joanino .......................21

6. Conclusão .............................................................................................. 27

7. Bibliografia............................................................................................ 29

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1. Introdução

Ao analisarmos de perto a história da cidade do Rio de Janeiro, poder-se-ia dizer que


a vinda da Família Real portuguesa para a cidade é um dos acontecimentos mais importantes,
não só de sua história, mas também do país como um todo. Pela primeira vez, um monarca
europeu pisa em terras do Novo Mundo, e ademais, assenta a sede de uma monarquia européia
em continente americano. A vinda da Família Real e a subseqüente instalação da Corte
portuguesa no Rio de Janeiro suscitaram mudanças profundas na relação metrópole-colônia,
uma verdadeira inversão de papéis por assim dizer; e alteraram a configuração de todo Império
Ultramarino português.
Diante desse panorama, o Rio de Janeiro sofreu modificações nunca antes concebidas,
tendo suas estruturas profundamente alteradas durante os treze anos em que a Corte
permaneceu aqui. Porém, para entendermos a profundidade e o alcance dessas mudanças,
temos que compreender, mesmo que superficialmente, as condições em que se encontrava a
cidade do Rio de Janeiro antes da chegada da Família Real.
O Rio de Janeiro no século XVIII ocupava a posição de sede do Vice-Reino do Brasil
e de principal porto brasileiro, constituindo-se como um importante entreposto comercial,
interligando assim, diversas regiões. Essas regiões abarcadas pelo grande fluxo comercial do
Rio de Janeiro incluíam setores do interior do Brasil, de seu litoral, assim como postos
comerciais ao longo do Império Português. Sua posição geográfica era estratégica para o
fornecimento de mercadorias e manutenção dos territórios ao sul, inclusive para o
estabelecimento de conexões comerciais com a região do Rio da Prata. Da mesma forma, era
um ponto obrigatório de parada para os navios que seguiam rotas em direção ao Pacífico,
África Oriental e Índia.
Tais relações comerciais eram efetuadas por um seleto grupo de comerciantes de
grosso trato, que estavam sediados na cidade do Rio de Janeiro desde fins do séc. XVII, e que

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vinham acumulando grande cabedal no trato de escravos africanos, produtos importados e
investimentos em outras atividades comerciais. Possuíam uma posição privilegiada no
mercado interno e na figuração comercial ultramarina, pois a posição do Rio de Janeiro como
·, lhes permitiam
principal porto brasileiro e empório comercial do Império Português controlar a
redistribuição de gêneros tanto coloniais, como importados de outras regiões do Império e da
metrópole lisboeta.
Cabe lembrar, que a cidade do Rio de Janeiro também já havia conquistado grande
importância em função do escoamento do ouro das Minas Gerais, no período do auge da
extração aurífera. Isso rendeu ao Rio o papel de capital do Vice-Reino em detrimento de
Salvador (Devido a proximidade geográfica com Minas Gerais, e a necessidade de controle
que a Coroa intentava exercer sobre a extração do precioso metal), reforçando sua posição de
destaque no comércio ultramarino. Isso fez, com que durante o período pombalino – na
administração do Conde de Bobadela - a cidade sofresse reformas em sua estrutura urbana e
administrativa, que contribuíram para o seu crescimento e para o fortalecimento de sua posição
político-comercial.
Podemos notar desta forma, que dentro da colônia, e comercialmente falando, a
cidade do Rio de Janeiro possuía grande importância para a Coroa portuguesa. A crescente
importância que o Rio e o próprio comércio do Atlântico Sul foi ganhando em detrimento das
possessões imperiais no Oriente, pode ser percebida pela preocupação da Coroa em estreitar os
laços governativos entre metrópole e colônia. Nos séculos XVI e XVII a importância da
colônia brasileira era ofuscada pela opulência e grandes possibilidades que o comércio oriental
oferecia ao Reino. Porém, com o intenso fluxo comercial das colônias do Atlântico Sul, o
período do ouro das Gerais, e a crescente importância do Rio de Janeiro como “ponta de lança”
de toda essa atividade comercial, fez Portugal revisar suas atitudes em relação ao Brasil e
principalmente, à sua capital. Nos últimos anos do século XVIII, a importância do comércio
centrado no Rio de Janeiro, já superava o volume circulante em Lisboa, e as receitas do
próprio Vice-Reino do Brasil já se elevavam além das receitas de Portugal. Com a instalação
da Corte, o comércio da cidade tornou-se cada vez mais intenso.

2. Considerações acerca da vinda da Corte

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Apesar de certas linhas historiográficas tratarem a vinda da Família Real
Portuguesa para o Brasil como um ato covarde por parte de D. João VI, que teria fugido e
deixado o povo português à mercê da opressão napoleônica, muito dessa idéia partiu da própria
pressão ideológica feita pelos invasores franceses, que queriam desmoralizar a Coroa frente ao
povo português. O general das tropas invasoras, Jean-Andoche Junot, foi um dos principais
divulgadores dessa idéia. Através de uma nota pública, na qual desmoralizava completamente
a Casa de Bragança, Junot afirmava que a Coroa havia “abdicado de sua soberania sobre o
Reino” diante de tão covarde ato, e que a dinastia dos Bragança havia “cessado seu reinado”
sobre Portugal.1
No fim das contas, a decisão de D. João VI foi bastante acertada. Ao invés de
entregar-se a Napoleão, como sucedeu com o sogro e com o cunhado - respectivamente Carlos
IV e Fernando VII (ambos aprisionados, castigados, desmoralizados e obrigados a
procedimentos vergonhosos que serviram para comprometer a Coroa e levar à perda quase
imediata do Império, que pouco depois iria ruir em terras americanas devido a ausência do
poderio metropolitano), transferiu sua Corte para o Rio onde manteve sua integridade incólume
e de onde, caso necessário, poderia reorganizar-se e resistir à alguma futura investida Imperador
corso. Além disso, os planos de mudança da corte portuguesa para o Braisl já eram anteriores ao
próprio advento da expansão napoleônica sobre a Europa. Podemos lembrar, por exemplo,
Martim Afonso de Sousa, organizador da colonização sistemática do Brasil, que teria sido um
dos primeiros a aconselhar a transmigração da Família Real para a América do Sul, revelando
a D. João III a extensão dos seus domínios neste continente e o valor prodigioso das riquezas
que nele se encontravam profusamente distribuídas. Tembém podemos recordar as exortações
feitas pelo Pde. Antônio Vieira a D. João IV, de que uma mudança da Coroa para o Rio de
Janeiro manteria a Coroa a salvo das pretensões políticas castelhanas. Segundo Luís Norton, em
seu livro clássico A Corte de Portugal no Brasil, “Abandonar a Europa para fundar no Brasil
um grande império, fora, em Portugal, desde o século XVI, um plano esboçado, estudado
maduramente por soberanos e estadistas, quando circunstâncias políticas tornaram periditante a
soberania portuguesa, ou esta foi ameaçada por estranhas tentativas de absorção”. 2 A mesma
medida fora objeto de uma interessante proposta apresentada a D. José por D. Luís da Cunha,
na qual se lêem passos deste teor:

1
SCHULTZ, Kirsten. Tropical Versailles: Empire, Monarchy and the Royal Court in Rio de Janeiro,
1808-1821. In: Cap. IV, “The New City of Rio de Janeiro: Reconstructing the Portuguese Royal Court”.
p. 117. New York, Routledge, 2001.
2
Um tanto exagerada a parte que diz que o plano de mudança da Corte de Portugal para o Brasil foi algo
“estudado maduramente”...

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“Mas onde bate o ponto é aqui: não pode El-Rei manter Portugal sem o Brasil,
enquanto que para manter o Brasil não carece de Portugal: melhor é pois residir onde
está a força e abundância, do que onde é a necessidade e a falta de segurança ... Acabarei
pois esta minha visão, dizendo a Vossa Majestade que sem embargo de não ser já
tempo de falar nela, pode vir algum (de que Deus nos livre) em que não seja mal
lembrada.” 3

Mas, de importante peso, foram as exortações de Silvestre Pinheiro Ferreira (1796 –


1846) conselheiro de D. João VI, que primeiramente em 1802 (E posteriormente em 1807,
pouco antes da apressada partida de D. João VI), avisará El Rei da necessidade premente de se
rever as relações entre Portugal e Brasil, na transladação da Corte para o Rio e na importância
estratégica deste fato: a Corte no Rio estaria a salvo das pretensões expansionistas
napoleônicas e poderia reorganizar-se para retomar o Reino no caso de sua ocupação. Também
não podemos esquecer as idéias de Dom Rodrigo de Souza Coutinho (1755-1812), Ministro da
Marinha e Ultramar e presidente do Erário Régio antes da vinda da Corte, cercado de uma elite
intelectual natural do Brasil, mas formada em Coimbra, também atentou numa revisão entre as
relações existentes entre Portugal e Brasil. Consciente das mudanças que ocorriam no mundo,
como a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa, dom Rodrigo conseguia
vislumbrar que se de alguma forma tais ideais libertários e de crítica do Antigo Regime
chegassem ao Brasil, Portugal poderia perder sua mais importante possessão ultramarina. Para
que isso não ocorresse, dom Rodrigo pretendia um plano de reformas audacioso para o Império
português, plano esse, que visava reduzir a insatisfação da população colonial com os impostos
e gravames impostos pela administração metropolitana. Tal plano intencionava a criação de um
grande Império luso-brasileiro, onde o Brasil seria alçado ao patamar de Reino, visto a sua
importância e a cresente dependência de Portugal em relação a este. Na melhor tradição das
Luzes, Dom Rodrigo imaginava um Império cosmopolita, onde as relações de colonos e
reinóis seriam abolidas; o português “nascido nas quatro partes do mundo”, se sentiria onde
quer que estivesse, unicamente e não mais que português.4
Sendo assim, as bases para a vinda da Família Real para o Rio de Janeiro estavam
lançadas, e a impossibilidade de opor-se ao exército francês precipitou a execução do plano de
3
MANCHESTER, Alan.Transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro.In: “Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”, número 277.
4
NEVES, Lucia Bastos Pereira das; MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. In: Cap. 1,
A Corte na América. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999.

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tranferência da Corte, há muito preparado, ao que tudo indica. Foi dada uma nova dimensão ao
projeto imperial luso-brasileiro de Dom Rodrigo, pois, enquanto durava a crise na Europa, era
o Brasil que se tornava sede da monarquia, enquanto Portugal ficava, praticamente, na
condição de uma simples “colônia”.
3. A Chegada da Corte

Em 29 de novembro de 1807, acompanhado de quinze mil pessoas, arquivos, da


Biblioteca Real e um prelo tipográfico, embarcados em trinta e seis navios, a Corte zarpou do
Tejo, sob escolta inglesa, rumo ao Rio de Janeiro. Chegariam ao seu destino meses depois –
após uma curta parada na Bahia por motivos de condições de navegação – em sete de março de
1808, numa cidade que possuía, apesar de seu considerável tamanho para os padrões coloniais,
possuía condições precárias para a acomodação do Rei e seus “fiéis seguidores” 5.
Como já foi citado antes, a cidade havia sofrido modificações arquitetônicas
consideráveis durante a elevação da cidade a condição de sede do Vice-Reino e durante as
reformas pombalinas. Porém, apesar disso, ainda era insuficiente para abrigar a sede da
monarquia lusitana e sua Corte. O centro da cidade era o chamado “terreiro do palácio”, que
era composto pelo Paço (ou o palácio do Vice-Rei), o convento das Carmelitas, uma prisão, um
pelourinho, um chafariz e o Arco dos Teles. Para salientar a dificuldade que se teria para
abrigar D.João e seus acompanhantes, podemos citar a reforma que o Conde dos Arcos (Dom
Marcos de Noronha e Brito) empreendeu em seu palácio quando soube da chegada de El Rei e
sua Corte. Para que o palácio pudesse servir de sede do governo, com todas as suas repartições
e a criadagem, o Conde teve de requisitar os dois prédios mais próximos, o da Câmara e da
cadeia e do convento Carmelita. Os presos foram transferidos para o Aljube (a prisão
eclesiástica), enquanto que os desembargadores da relação para a Rua do Lavradio e os frades
carmelitas foram despejados. Através de uma passarela construída na rua, a Igreja do Carmo se
tornou Capela Real, sendo anexada ao Paço. No térreo ficaram os diversos cômodos da Corte,
enquanto na seção nobre instalou-se os aposentos de D. Maria I e do Príncipe Regente D. João.
Porém, este, logo se transferiu para a chamada Quinta da Boa Vista, lugar que foi oferecido por
um famoso comerciante de grosso trato, Elias Antônio Lopes, em troca de favores da Coroa.

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Idem. A alta nobreza lusitana preferiu permanecer no Reino, sendo que o número de nobres que
arriscou-se a acompanhar D. João em sua “aventura transatlântica” foi de apenas dezesseis pessoas,
tituladas: um duque, sete marqueses, duas marquesas, cinco condes e um visconde. E tais nobres só
dispusseram-se a seguir El Rei, por serem, na maioria, oriundos de Casas em decandência e
devido a alta dependência financeira que possuíam em relação a D. João.

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Paço Imperial na época da chegada da Família Real
portuguesa em 1808.

As principais figuras da Corte estabeleceram-se nos arredores da cidade, onde


ocuparam residências cedidas por brasileiros ricos ou onde construíram novas casas. Porém,
muitos optaram por fazer valer seus direitos de nobreza, aproveitando-se dos privilégios
existentes para literalmente desocuparem qualquer casa e requisitarem-na como moradia. Isso
atraiu o desagrado da população residente em relação à Corte recém-chegada. Dessa forma,
muitas casas ainda em construção foram abandonadas, devido ao medo que seus proprietários
tinham de perdê-las. Muitos ficaram relapsos em relação ao embelezamento de suas
residências, pois quanto mais bela e vistosa era uma casa, mais visada ela era pelos cortesãos e
funcionários régios. O desgosto do povo frente a tal atitude pode ser vista pela brincadeira
jocosa que se fazia na época, com a marca do Príncipe Regente, “P.R”, posta nos imóveis
requisitados e que entre os cariocas passou a significar “Prédio Roubado” ou “Ponha-se na
Rua”.
Com a chegada da nobreza, a configuração urbana altera-se em relação à estrutura
existente anteriormente. Esta era divida em ruas a partir de funções exercidas por aqueles que
as habitavam. Certas ruas possuíam denominações específicas, como Ourives e Ouvidor. Já
outras, tinham a função de informar o que era oferecido nelas como a Rua da Cadeia, a do
Sabão, ou do Rosário (Igreja do Rosário). No centro da cidade era onde moravam as pessoas
mais importantes: o Vice-Rei, os ouvidores, o Ouvidor-Mór e outros funcionários de destaque.
Ademais, o centro também era habitado por pequenos e médios comerciantes, enquanto os
comerciantes mais ricos costumavam estabelecer-se nas cercanias da cidade.

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Rua da Direita, centro da cidade do Rio de Janeiro. Pode-se notar nesta tela o padrão colonial de ruas
estreitas e não pavimentadas.

Sediada a Corte no Rio, foi exatamente nas cercanias da cidade – nos novos subúrbios
como o Catete, Botafogo, Lagoa e São Cristovão – que a nobreza passou a residir. O centro
abrigou então os funcionários de menor escalão, que junto dos comerciantes e artesãos já
residentes, prefiriam tal localidade pela proximidade do chafariz, do Passeio Público, das
Igrejas e do acesso a açougues e quitandas. Já a parcela mais pobre da população, tinha suas
residências mais ao norte, como no Saco do Alferes, no Morro do Valongo, ou em regiões
próximas ao mercado de escravos, ou ainda cobertas por manguezais, como o Catumbi e o
Mata Porcos.
Nesse período de instalação da Corte no Rio, multiplicaram-se as obras em quase
todas as ruas; habitações com dois ou três pavimentos passaram a ser construídas e após o
rebuliço inicial causado pela tomada de casas, muitas propriedades começaram a ser
embelezadas. As pequenas ruelas, resquícios da urbanização colonial, foram alargadas e as
rótulas (armações de madeira que eram postas nas janelas, comprometendo a circulação de ar
dentro das casas e desta forma, facilitando a proliferação de doenças que já eram naturais num
ambiente tropical), proibidas por decreto do Príncipe Regente, foram substituídas por janelas
de ferro com vidraças. Apesar do embelezamento urbano ocorrido, a cidade continuou não
possuíndo uma infraestrutura capaz de suportar o inchaço populacional ocasionado pela
instalação da Corte. Isso decorreu numa série de problemas relacionados à questões básicas de
subsistência e saneamento da própria população citadina.

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3.1. Consequências da Chegada da Corte

As obras efetuadas após a instalação da Família Real não só objetivavam a melhora e


o acréscimo do prestígio da residência da Corte. Também foi implementado um conjunto de
medidas que procuraram possibilitar a sobrevivência e a própria atuação adminstrativa da
Coroa. O rápido crescimento populacional acabou por repercutir não só em problemas de
moradia e saneamento básico, mas também causou uma séria crise de abastecimentos de água
e viveres, em especial carne.
Pense-se que a população do Rio de Janeiro constava de 43.376 em 1779. Já em 1808,
com a chegada da corte, havia se elevada para cerca de 60.000 habitantes. E em 1819, chegou
a marca de 80.000 6. É fácil imaginarmos a partir desses dados o agravamento do problema
acima citado. Além disso, tal crescimento não pode ser creditado apenas ao número de
indíviduos desembarcados com Dom João, e sim ao aprofundamento das funções que a cidade
passou a exercer, tanto de centro político quanto mercantil. Administradores, militares,
diplomatas comerciantes, artistas e colonos das diversas partes do Império Português e de
outras nações afluíram ao Rio, em especial de Angola e Moçambique. Setores das colônias
americanas comprometidos com a monarquia espanhola, também migram para o Rio, fugindo
das agitações repúblicanas de suas respectivas regiões, pois o Brasil tornou-se o último refúgio
da legalidade monárquica no Novo Mundo 7. Cabe ainda ressaltar, que a demanda por escravos
sofreu um aumento considerável. As petições feitas a El Rei para a aquisição de escravos
aumentou vertiginosamente, e o próprio D. João se aproveitou disso para fazer de tais
requisções um mecanismo de controle sobre os seus súditos 8. Consta, que entre 1781 e 1810,
ocorreu a chegada de 300.000 escravos ao Rio, o que se constitui na maior entrada de escravos
em qualquer porto isolado da América.9

6
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. In: Cap. 1: Império do Brasil, pág. 50. São Paulo,
Ed. Hucitec, 1987.
7
NOVAIS, Fernando A.; ALENCASTRO, Luiz Felipe (orgs.). História da Vida Privada no Brasil 2. In:
Cap 1, Vida privada e ordem privada no Império. p. 13. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
8
Op. Cit. SCHULTZ. In: Cap. 5, “Tropical Versailles”: The Politics of Monarchy in the New World. p
165-176.
9
Op. Cit. FRAGOSO. In: Cap. 10, A noção de economia colonial tardia no Rio de Janeiro e as conexões
econômicas do Império português: 1790-1820. p. 337. Apesar de grande parte desses escravos
permanecer no Rio, o que é também uma das causas do aumento populacional ocorrido na cidade,
devemos salientar que muitos destes escravos (a maior parte deles) foram enviados a outras províncias.

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Com o intuito de melhorar o abastecimento da cidade, procurou-se alargar e criar
novas vias de acesso ás regiões do Centro-Sul brasileiras, produtoras de alimento para
consumo interno (com destaque para Minas Gerais e Rio Grande do Sul). Evitou-se, também
nessa região de abastecimento o alistamento militar para que os indíviduos que faziam o
transporte dos alimentos não fugissem, dispersando-se pelo interior. Ainda assim, o Rio de
Janeiro sofreu consecutivas crises de abastecimento de víveres e água (Como a Grande Seca de
1809), que causaram diversas revoltas da população. Dentro desse panorama, podemos ainda
citar, a importância que os clérigos tiveram na manutenção da ordem e no controle da reserva
de alimentos na cidade. As constantes proibições alimentares e jejuns impostos pelos
sacerdotes ajudaram para que a população se mantivesse amena durante mais tempo e que as
revoltas fossem menos constantes.
Para sanar as questões de salubridade, vadiagem, “bem-viver”, abastecimento e
circulação de produtos, pessoas e informação, criou-se a Intendência de Polícia. Impunha-se a
tarefa de transformar a velha capital do Estado do Brasil na nova Corte do Império lusitano,
apontando para uma “metropolização” da antiga sede política. E ainda havia a necessidade de
administrar o Império como um todo, criando instituições capazes de transformar o Rio de
Janeiro não só na capital do Estado do Brasil, mas na capital do Império Ultramarino
português, o nexo desse vasto império intercontinental. A criação dessas instituições e suas
funções serão abordadas no tópico abaixo.

3.2. O Enraizamento da Corte: A criação de instituições

governativas e a transformação do Rio na sede do Imperio

Ultramarino Lusitano.

Logo em 1808, no mesmo ano de chegada da Corte, a rápida necessidade de


reorganização do Império Ultramarino Português, gerou a necessidade da criação de inúmeras
instituições governativas, muitas delas antes existentes na capital lisboeta. Porém, com o
isolamento de Portugal, devido à conquista pelas tropas napolônicas, suas instituições ficaram
incapazes de manterem suas funções no resto do Império. O Rio de Janeiro era a capital do
Vice-Reino do Brasil e já possuía todo um aparato administrativo estruturado. A chegada da
Corte e implementação da capital do Império no Rio exigiu a criação de nonas instituições

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capazes não só de governar o novo Estado do Brasil (elevado a Reino Unido de Portugal e
Algarves em 1815), mas ainda tinha que abarcar as possessões portuguesas da India, África,
Moçambique, Açores e Madeira. O que acabou acontecendo foi a instituição de todo um
sistema administrativo em duplicata: duas Casas de Suplicação, duas Mesas do Desembargador
do Paço, e assim por diante. Gradativamete os orgãos originais da cidade vão sendo desfeitos
ou destituídos de suas atividades, e conseqüentemente, vão perdendo sua importância dentro
do quadro político da monarquia.
O principal orgão criado logo no início do governo joanino no Brasil foi a
Intendência-Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil. Sua importância pode ser
percebida pela quantidade de funções a ela atribuídas. Apesar do que o termo “polícia” hoje
nos sugere, as obrigações da Intendência de Polícia iam muito além da simples garantia da
segurança pública. Moldada nos contornos do orgão lisboeta (que por sua vez, inspirou-se e
teve como base o orgão francês Lieutenance Générale de Police), cabia-lhe “policiar” a
cidade, o que no sentido da época, era justamente dar “polimento” à cidade, ou seja, “civilizá-
la”. Tinha por obrigação purgar os vadios da cidade, castigar os perturbadores da ordem civil,
tarefas de urbanização da cidade (como obras públicas de embelezamento, saneamento,
pavimentação, iluminação pública), proporcionar e controlar a circulação de mercadorias,
gêneros alimentícios, a criação de novas estradas e manutenção das antigas, criação de pontes,
controle dos espetáculos e festejos públicos, a solução de conflitos conjugais, familiares e de
vizinhança. Ademais, regulava o direito de aposentadoria, já citado acima, que era justamente
o direito dos cortesãos de se apropriarem ou desapropriarem propriedades alheias. Também,
possuía a incumbência de por em prática medidas que possibilitassem “branquear a
população”, pois uma das coisas dentro do contexto citadino que mais incomodava a família
real era o enorme número de negros circulando pelas ruas 10.

10
Op. Cit SCHULTZ, in: Cap. 4, p. 105-106
Op. Cit NEVES, MACHADO, in: Cap.1, p. 33
JANCSÓ, István (org.). Independência: História e Historiografia. In: GOUVÊA, As bases
institucionais da construção da unidade. Dos poderes do Rio de Janeiro joanino: Administração e
governabilidade no Império Luso-Brasileiro. São Paulo: Editora Hucitec, FAPESP, 2005.

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Sede da Intendência-Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil no Rio de Janeiro

A quantidade de funções a serem realizadas pressupõe a necessidade da Intendência


em se articular com praticamente todos os outros setores administrativos. É essa instituição
que formará pontes entre a alta administração, o Rei e as demais esferas administrativas de
todo o Brasil. Todos acabam por se submeterem ao intendente-geral. Governadores e capitães-
generais das capitanias deviam obediência a ele e aos magistrados da mesma, tendo o
intendente ampla jurisdição sobre todos os Ministros relacionados à Polícia. Esse órgão
acabava por coordenar do Rio boa parte da rotina de toda magistratura da América Portuguesa.
Estabelecia-se assim uma intricada rede governativa por meio das ações dos ouvidores,
desembargadores do Crime, governadores das capitanias, articulando as jurisdições da
magistratura.
É de nosso conhecimento as dificuldades de organização das instituições políticas do
Império Português11. Não possuem funções precisamente estabelecidas ou jurisdições
delimitadas, o que incorria em constantes atritos entre as diversas esferas de poder. Sendo
assim, somando-se ao problema já citado do atrito entre as novas e antigas instituições, a
Intendência, com suas amplas delegações e sua jurisdição quase ilimitada chocava-se
constantemente com diversas outras instituições.
Outros elementos governativos foram criados também imediatamente após a
instalação da Corte. Primeiramente, havia a preocupação com a segurança da Família Real,
dentro de um contexto de expansão francesa e crescentes desentendimentos entre o Brasil e os
países do Antigo Império Espanhol que sofriam convulsões de cunho republicano. O Rio de

11
PRADO, Caio Jr. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1997.
Caio Prado parece exagerar a ineficiência da instituição portuguesa, não se concentrando no seu devido
funcionamento e da complexa estrutura administrativa desse Império amplo e complexo.

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Janeiro sempre teve a função de guarnecer militarmente as províncias do Centro-Sul. Agora
mais do que nunca a segurança era necessária. A Corte temia o avanço do Império Napoleônico
sobre terras americanas, ou até mesmo a infiltração de espiões franceses e das “subversivas”
idéias francesas no Estado do Brasil. Devido ao medo que a corte possuía em relação a espiões
e outros tipos de elementos subversivos, em 1808, D. João VI ordenou ao Conselheiro Paulo
Ferraz Vianna, ouvidor geral do Crime da Relação, fazer um alistamento de todos os
imigrantes residentes na Corte. Posteriormente com a Intendência de Polícia criada, todo
imigrante deveria apresentar-se a ela, dizendo onde iria estabelecer-se e qual português
conhecia na colônia. Em 1818, instaurou-se uma matrícula geral, na qual os inscritos recebiam
um passe para andarem livremente. 12 Além disso, o crescente número de negros na cidade
reforçou a preocupação de defesa, melhorando-se assim as companhias de capitães-do-mato.
A questão militar era de importância imediata, sendo o setor militar o que mais
possuiu edições de diplomas régios no âmbito administrativo. Encarregados da defesa e
manutenção da ordem na nova Corte, o setor militar carecia de homens, alimentação, armas,
tropas e inclusive os imprescindíveis instrumentos musicais, que na época eram indispensáveis
a um exército sério. Em 1º de abril de 1808 foi criado o Conselho Supremo Miltar e de Justiça,
encarregado de todas as materias que pertenciam ao Conselho de Guerra, ao Almirantado e ao
Ultramar em seu âmbito militar. Cabe mencionar que as capitânias do Maranhão e do Pará,
pelas dificuldades de acesso à província do Rio de Janeiro, ainda remetiam-se a Lisboa
enquanto esta ainda podia ser contatada. Criaram-se também, novos regimentos de mílicia no
Rio, como o Regimento de Mílicias de Caçadores dos Henriques em decreto de 16 de Maio de
1810. Surgiu ainda a Divisão Militar da Guarda Real da Polícia em maio de 1809, provendo a
nova corte de força punitiva, assim como possuía em Lisboa. Tal divisão era subordinada ao
governador das armas da Corte e ao intendente-geral da Polícia.
A preocupação com a melhor organização das tropas concorreu para a instituição da
Academia Real Militar na Corte, em dezembro de 1810, e que promoveu um alto
procedimento disciplinar interno. Criou-se também a Escola de Marinha (instalada no
Mosteiro de São Bento) e da Escola de Artilharia e Fortificações (na antiga Casa do Trem, hoje
Museu Histórico Nacional). Outro marco importantíssimo para o exercício da atividade militar,
industrial e para o fortalecimento do Rio de Janeiro como sede da monarquia lusa foi a criação
da Fábrica de Pólvora, que constituiu um grande golpe no sistema colonial, pois antes era
proibida a produção de armamentos nas colônias, assim como era proibida a própria atividade
12
RIBEIRO, Gladys Sabina. A Liberdade em Construção: Identidade nacional e conflitos anti-lusitanos
no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002.

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manufatureira-indústrial. Essa situação iria mudar devido ao alvará de 1º abril de 1808, que
revogaria toda e qualquer proibição à atividade industrial no Brasil e nas colônias ultramarinas.
A abertura dos portos da Colônia às nações amigas em 1808 também propoveu
situações inéditas, uma verdadeira brecha no sistema colonial. Apesar de ter ocorrido ainda
quando D. João VI se encontrava na Bahia, ou seja, antes mesmo da Corte se fixar no Rio, os
impactos de tal medida serão sentidos com mais força após a consolidação da sede Real.
Devido a isso, o Rio de Janeiro teve seu potencial mercantil amplamente alterado, e isso
alterou sua ligação com a Metrópole, que não voltaria mais à mesma condição. Os impactos da
abertura sobre a população e sobre a configuração carioca serão tratados mais à frente.
Uma outra questão a ser resolvida pela administração joanina diz respeito às finanças
e a captação de recursos para a crescente expansão da cidade. A Corte veio para o Brasil numa
situação econômica bastante complicada. Os gastos com a viagem, a instalação da Coroa e de
todo o aparato governamental em torno dela, além da manutenção Corte em si e da criadagem
ao seu redor, o soldo dos militares e dos outros funcionários de uma máquina burocrática que
era incumbida de administrar todo um Império, tudo isso gerava muitos gastos.
A criação do Erário Régio na cidade procurou eliminar as deficiências na coleta dos
tributos como os direitos reais, que estavam a cargo de diferentes repartições assim como os
abusos e atrasos do processo de coleta. Entretanto, sua aplicação fazia com que a Junta da
Fazenda do Rio de Janeiro deixasse de atuar sobre as finanças da capitania. Somente três
meses depois de longas discussões jurisdicionais, e que foi de fato instituído o Erário Régio,
juntamente com o Conselho da Fazenda do Brasil, que também contribuiu por suprimir a Junta
da Fazenda e da Revisão da Capitania do Rio de Janeiro. Também com o fim de arrecadação e
melhoria das receitas, a Real Junta de Comércio foi um órgão que acabou por desenvolver uma
ação de apoio aos grupos de interesses econômicos (que andavam lado a lado com os da
Coroa) situados na nova Corte, chegando a assumir diretamente a administração e a
implementação de medidas tais como o alvará de 17 de julho de 1810, que concedia favores a
todos que introduzissem especiarias da Índia e outras plantas exóticas no Brasil.
O Erário Régio foi organizado em três Contadorias-Gerais: a primeira debruçava-se
sobre a renda dos reditos e direitos reais da cidade e província do Rio. A outra, controlava a
contabilidade e cobrança das rendas da África Oriental, Ásia portuguesa e governo das Minas
Gerais, São Paulo, Goiás, Mato Grosso e Rio Grande de São Pedro do Sul. A última, por sua
vez, ficara incumbida da escrituração, contabilidade e fiscalização das rendas reais
estabelecidas nos governos da Bahia, Pernambuco, Maranhão, Pará, Ceará, Piauí, Paraíba,

424860692.doc 15
Ilhas do Cabo Verde, Açores, Madeira e África Ocidental 13.Diante de uma posição destacada
do Rio de Janeiro dentre as demais ciudades e províncias do Brasil, não se fazia necessário na
cidade uma Junta da Fazenda, estando o próprio Erário Régio encarregado das funções
pertinentes ao último. Tal situação somente foi vivida por Lisboa, ao longo de vários séculos.
Para estimular a economia da nova sede da Corte, e dinamizar as relações comerciais
do Império português, D. João VI fundará, em 12 de outubro de 1808, o Banco do Brasil,
responsável pelo controle monetário do Estado do Brasil e pelos investimentos da Coroa. Vários
comerciantes cariocas investiram em sua fundação, e com o tempo era bastante volumosos o
montante de dinheiro depositado em seus cofres.
Outras formas de se tentar captar recursos foram à excessiva taxação sobre a entrada
de escravos no Porto do Rio, assim como as multas impostas sobre os delitos cometidos por
escravos, cobradas sobre a forma de “multa-dia”. Esses recursos adquiridos eram revertidos
em fundos para a Intendência Geral de Polícia. Criou-se ainda o imposto da décima dos
prédios urbanos (também realizado anteriormente em Lisboa) devido ao grande crescimento da
cidade. Essa cobrança era feita em todas as cidades e vilas do Rio pela Junta da Décima,
composta por dois juízes do crime (superintendentes), um escrivão, dois “homens bons”, um
nobre, um do povo, dois carpinteiros, um pedreiro e um fiscal, que em geral era um advogado.
Interessante notar que o decreto de 26 de abril de 1811 concede isenção da décima a quem
edificasse casa na Cidade Nova da Corte do Rio de Janeiro, visando promover a ocupação
daquela área e organizar o desenfreado crescimento da cidade. Nesse momento criou-se
também o cargo de juiz do Crime da Corte para a cobrança dos impostos judiciais, e que se
encontrava altamente articulado com o intedente-geral da Polícia.

13
Op. Cit JANCSÓ, Gouvêa. p.717-718.

424860692.doc 16
Planta da cidade do Rio de Janeiro em 1820. Pode-se ver pelo tracejado da planta as áreas mais antigas
(as áreas mais retalhadas) e as áreas mais novas (nas bordas). A cidade no período de 1808-1821 sofreu
um grande crescimento urbano, sendo nessa época uma das maiores cidades do mundo colonial.

A presença da Corte e da Família Real exigia mais cuidado com a justiça e o estatuto
da nobreza recém-instalada, como por exemplo, nas “causas-crimes dos cavaleiros das Ordens
Militares”14. Criou-se em alvará de 22 de abril de 1808 o Tribunal da Mesa do Desembargo do
Paço e o Tribunal da Consciência e Ordem. O primeiro estava relacionado ao mais variado
tipos de petição, pedidos de licença, concessões de sesmarias, entre outros. E o segundo estava

14
Idem. p. 720.

424860692.doc 17
ligado à juridições de privilégios eclesiásticos, se associando também a propagação da fé cristã
e a manutenção do culto cedido pela Santa Sé aos reis lusitanos.
Pelo mesmo alvará, criou-se também a Chancelaria Mór do Estado do Brasil, com o
cargo de chanceler-mór tendo a mesma função que exercia no Reino. Outro cargo bastante
ilustrativo do sistema de benécias do Antigo Regime foi o de Escrivão do Registro das Mercês
do Estado do Brasil, extremamente importante por possibilitar a quem o ocupa o monopólio de
concessões de títulos reais e atividades comerciais. Seguindo o mesmo critério de exaltação do
status e da hierarquia monárquica, também instiuiu-se a Ordem da Torre e da Espada e a
Ordem Militar de Nossa Senhora da Conceição, pertinente aos oficiais militares e que servia
como forma de remuneração da Coroa pelos recentes serviços prestados.
Pelo alvará de 10 de maio de 1808, foi criada a Casa de Suplicação do Brasil, ocasião
em que a antiga Relação do Rio de Janeiro transformou-se no novo Tribunal Superior da
Magistratura da América portuguesa. O novo tribunal mantinha as mesmas jurisdições,
acrescentando-se a atividade de tratar dos recursos superiores encaminhados pela magistratura
de todas as capitânias do Brasil, incluíndo Pará, Maranhão, Ilha dos Açores e Madeira e
inclusive da Relação da Bahia. No Rio, a própria Real Junta exercia suas funções, enquanto
que nas demais províncias eram as respectivas Mesas de Inspeção. Da mesma forma, no alvará
de 10 de Setembro de 1811 estabelece-se Juntas que nas capitanias dos governos e nos
domínios ultramarinos para resolver o que antes era feito pela Mesa do Desembargo do Paço.
Somente na Corte e na capitania do Rio que o Desembargo continuaria atuando.
Dentro desse contexto de hegemonia do Desembargo do Paço na cidade, este acabou
por entrar em sério conflito com o Senado da Câmara do Rio de Janeiro. Esta instituição
detinha a maior importância adminstrativa na cidade do Rio. Eram os vice-reis que realizavam
as eleições dos oficiais, enquanto que as pautas eram organizadas pelos ouvidores das
comarcas e os “homens de governança do Rio”. Depois de 1808, essa jurisdição ficou a cargo
do Desembargo do Paço, com o auxílio do ouvidor da comarca na confeçção das listas. Seu
presidente, o Juiz de Fora, detinha funções cada vez mais esvaziadas em especial quanto a
autonomia do Senado em escolher seu presidente em caso de vacância. Força-se, então, uma
completa subordinação do Senado à outros órgãos superiores, coincindindo com o seu declínio
de prestígio dentro do complexo imperial português, típico exemplo do que ocorria com as
antigas instituições frente as novas criadas pelo Rei. Por fim o Senado ainda perde a jurisdição
do Cofre do Depósito Público para o recém-criado Banco do Brasil, sendo este o término da
disputa entre órgãos centrais e o Senado pelo montante do Cofre. A ùnica vantagem que os

424860692.doc 18
representantes do Senado tiveram foi o acréscimo do prestígio que adquiriam com a presença
real15. O jogo de prestígio dentro da Corte era orientado justamente pelas concessões e
titulações cedidas pelo Rei, as novas expectativas de mobilidade hierarquica, nunca ocorridas
antes deste lado do Atlântico, dinamizaram as relações de interdepedência existentes dentro da
sociedade de Corte. D. João se aproveitaria, e muito, desse panorama para poder tanto atrair
“patrocinadores” para a manutenção da sua Corte, assim como para empregar dentro da
máquina administrativa diversos cortesãos que o acompanharam. Abaixo, trataremos dessa
dinâmica de Corte, e seu funcionamento durante o período joanino.

4. A Corte Joanina

Como já dito anteriormente, a situação econômica da Coroa quando chegou ao Brasil,


não era das melhores. D. João VI contava com o cabedal bastante reduzido, devido a própria
dificuldade de se transportar o Tesouro Real português numa viagem tão extensa e numa
situação tão incômoda, em decorrência da própria situação financeira do Reino em decadência
com as guerras napoleônicas. Ao chegar ao Rio de Janeiro, a Corte de Dom João irá depender
da boa vontade dos súditos brasileiros para manter todo seu luxo e pompa. Ora, mas para
conseguir estimular tal “boa vontade”, era necessário mais do que a presença do Rei. Seria
através dos mecanismos de coação inerentes às sociedades de Corte (ou seja, as hierarquias, a
etiqueta, o bom gosto, o refinamento, portanto a “civilité”) que D. João VI iria manter sua
estrutura de poder de uma forma bem consolidada na cidade do Rio. Mesmo existindo
pequenos núcleos cortesãos em torno dos Vice-Reis e de outros adminstradores de prestígio a
serviço da Coroa até então na América Portuguesa, não se havia instaurado efetivamente um
círculo de cortesãos do mesmo nível europeu.
A Corte joanina trouxe um novo sistema de relações inédito para os naturais do
Brasil, relações essas que pela própria distância geográfica e pelas dificuldades de se
estabelecer comunicação, estreitaram-se e passaram para o nível pessoal. Não haviam mais
petições direcionadas à metrópole; seria através do trato pessoal, da obediência às convenções,
ou seja, através da etiqueta e das formalidades que se angariariam as trocas de favores e as
benesses por parte do Príncipe Regente.
15
Setores como o eclesiástico também sofreram acréscimo de gradação com a vinda e presença real. O
diocesano do Rio de Janeiro tornou-se capelão-mor, enquanto que a Catedral da cidade foi elevada a
Capela Real.

424860692.doc 19
Como era preciso agora o uso da etiqueta para mediar as relações dentro desse
ambiente de Corte, os bons costumes ganharam crescente importância entre os súditos
brasileiros que ansiavam pelo prestígio de pertencer a tão seleto círculo, ou mesmo, em
participar da esfera de decisão política. A gradual importância que a polidez dos costumes
conquistou na sociedade carioca fez com que os donos do dinheiro, os ricos e rústicos
comerciantes de grosso trato, se tornassem cada vez mais “civilizados”. Essa relação de
interdependência entre a Corte que precisava de recursos para manter o seu caro estilo de vida
e a elite financeira carioca desejosa do status oferecido por essas estruturas de Antigo Regime,
gerava uma situação na qual D. João VI – através de sua posição moderadora nessa figuração
social e de concessor desse prestígio – conseguia manter seu poder e a própria manutenção
desse sistema, além é claro, de conseguir sustentar o padrão de vida da Corte. 16
Enquanto que para D. João, essas relações constituíam uma forma de manutenção do
poder e atração de receitas para sua Corte, para esses comerciantes de grosso trato, a vida
cortesã representava um novo mundo de oportunidades. Tais oportunidades vinham na forma
de titulações, concessões e mercês. Indivíduos poderiam receber concessões de títulos
nobiliárquicos, ligados a algum tipo de atividade administrativa, cada qual possibilitando
maior ou menor prestígio e abrindo vias para futuras articulações políticas e concessões de
novas benesses. Também poderiam ser ingressados em ordens religiosas e militares acrescendo
sua honra, o que consequentemente também decorria em um acúmulo de prestígio. Novas
ordens foram criadas para atender a demanda de titulações (em um momento de crescente
atividade), pois, para entender o funcionamento da Corte joanina, é caro que consigamos
apreender que todos esses títulos e mercês eram a moeda de troca de D. João em relação aos
favores de que carecia. Dentro desse sistema adaptado de Antigo Regime, era a própria posição
de D. João como concesor de prestígio, que mantinha a ordem, a permanência de seu poder e
esta relação de interdependências.
Porém, não era apenas o nome das famílias e suas respectivas posições sociais que
estavam em jogo. Para essa elite financeira carioca, havia também chances comerciais abertas
à disputa17. Com o afastamento de diversos mercadores reinóis das atividades comerciais
16
MALERBA, Jurandir. A Corte no Exílio: Civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência
(1808-1821). In: Cap. 5, O Novo Nobre, p. 230-232. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
ELIAS, Norbert. A Sociedade da Corte. In: Cap. 5: A Etiqueta e Cerimonial: Comportamento e
mentalidade dos homens como funções de estrutura do poder e de sua sociedade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2000.
17
É importante frisar que a sociedade de Corte estabelecida aqui no Brasil não tinha exatamente os
mesmos parâmetros das Cortes européias, a importância das relações comerciais dentro da Corte e o
próprio fato de inexistir uma proibição aos nobres em relação às práticas comerciais, já distinguia
bastante a Corte portuguesa na América da Corte Francesa dos Bourbons.

424860692.doc 20
brasileiras (devido à ocupação francesa de Portugal e abertura dos portos) muitos monopólios
tornam-se disponíveis. O poder político local, o seu largo cabedal e a sua participação na vida
da Corte serviam como mecanismos de barganha pela obtenção desses monopólios e
oportunidades comerciais. Essa relação de dupla troca que beneficiou tanto a Corte quanto os
homens ricos do Rio de Janeiro faria com que esses prósperos comerciantes usassem a Corte
como um modo de ascensão social e de ocupar a cena pública e política. Muitos desses
homens seguiriam carreiras na Corte, como aconteceu com a família Carneiro Leão, um
exemplo típico desse caso. Agora, a elite que antes detinha o poder econômico do Rio de
Janeiro, têm a chance de estabeler novos laços com a Coroa, desempenhando um novo papel
na hierarquia social do Império 18. As esferas de decisão estavam abertas à sua participação, e
sua prosperidade financeira seria alçada a níveis nunca antes alcançados devido ao novo
horizonte de oportunidades comerciais que se abria.

5. Mudanças nos hábitos e costumes no período joanino.

O enriquecimento material causado pela vinda da Corte ao Rio de Janeiro,


concomitantemente, gerou um enriquecimento da própria vida cultural. Isso advinha das
necessidades da elite dominante que encontrava nesse crescimento da cultura as formas de
sociabilidade indispensáveis para a sua própria existência. Afinal, a Corte portuguesa se
espelhava há muito no modelo da Versalhes de Luís XIV, no qual as atividades do espírito
tinham importância central. Porém, no cenário colonial da América Portuguesa, a novidade dos
procedimentos característicos do círculo cortesão produziram grande fascínio sobre todos
aqueles expostos à sua influência, gerando um efeito “civilizador” em relação à cidade.
A grande quantidade de imigrantes e portugueses do Reino que chegaram ao Rio de
Janeiro após a abertura dos portos também contribuiu para acentuar esse efeito “civilizador”
sobre a cidade. A participação desses elementos, no círculo da Corte, acirrou as disputas pelos
benefícios régios e aumentou a necessidade de aquisição de refinamento e civilidade por parte
das elites cariocas. No entanto, não podemos dizer que esse processo civilizador deu-se de uma
forma homogênea sobre a população. Enquanto a civilidade, o luxo, o conforto, o gosto pelas

18
SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria Coroada: O Brasil como corpo político autônomo (1780-1831). In:
Cap.2, D. João e as vicissitudes do Reino, p. 45-49. São Paulo: Editora Unesp, 1998.
Op. Cit. MALERBA, Cap. 5, p. 233-284

424860692.doc 21
artes, o teatro, a música e as boas maneiras enraízavam-se nas camadas de elite, persistiam
lado a lado com hábitos rústicos, rudes e violentos que permaneciam ainda em prática entre os
habitantes tanto do meio rural quanto das camadas mais baixas do meio urbano. Um bom
exemplo disso é a convivência desses hábitos refinados com a escravidão, sendo que esta
exigiu o recurso indispensável da força e violência para garantir os privilégios de uma minoria
branca19.
A circulação dos primeiros jornais dentro da capital também contribuiu grandemente
para o surgimento dessa efervecência cultural carioca. A criação da Imprensa Régia, pelo
decreto de 13 de maio de 1808, e o lançamento do primeiro jornal a ser editado no Brasil, A
Gazeta do Rio de Janeiro, não só favoreceu a circulação de informações dentro da capital,
como também estimulou a criação de tipografias particulares. Uma das primeiras seria a de
Manuel António da Silva Serva, criada em Salvador em decorrência da expansão dos negócios
de sua livraria. Essa tipografia, em 1811, editaria a Idade D’Ouro, o primeiro jornal impresso
por particulares, o que tinha um grande valor simbólico pelo fato de quebrar o caráter oficial
da Gazeta do Rio de Janeiro. Isso incentivou a criação de outras tipografias particulares,
porém essas somente surgiriam mais tarde, a maior parte delas no Rio de Janeiro, mas também
no Maranhão (1821), Minas Gerais (1821), no Pará (1822) e em Pernambuco (1815) 20. Além
da publicação de jornais, esssa tipografias foram responsáveis pela edição de diversas obras
científicas e literárias, que por sua vez, facilitaram a entrada no Brasil de todo o ideário
europeu.
Aliado a isso se somava o fato de que o Rio foi agraciado com a vinda da Real
Biblioteca, que contava com mais de sessenta mil obras e incunábulos cujo acesso tornou-se
público em 1810. Segundo a linguagem da época, a Real Biblioteca era a primeira e mais
insigne que existe no Novo Mundo, não só pelo copioso número de livors de todas as ciências
e artes impressos nas linguas antigas e modernas, mas também pela preciosa coleção de
estampas, manuscritos e outrs ricas e singulares coisas que muito a enriquecem.
O acesso a esse grande número de informações, a circulação de jornais de diversos
matizes e a própria localização do centro decisório do poder no Rio de Janeiro, foram fatores
19
SOUZA, Laura de Mello e (org.). Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997. (Coleção História da Vida Privada no Brasil). Cabe uma ressalva nessa
questão, uma vez que a instituição da escravidão não está aqui vinculada a uma questão de progresso, no
seu matiz de desenvolvimento econômico, mas sim na acepção de que era algo “atrasado” pelo ponto de
vista de um “refinamento das maneiras”. Segundo Ilmar Rohollof de Mattos, o sistema escravista era
pertinentemente compatível com o progresso econômico.
20
Com exceção de Pernambuco, os outros jornais foram estimulados pelo posicionamento crítico frente
ao poder real e à adesão das elites maranhenses, de alguns setores das Minas Gerais e do Pará ao
movimento liberal e constitucional de 1821-1822.

424860692.doc 22
que influênciaram fortemente o processo de politização das elites cariocas e de outros setores
da população. Os ambientes da Corte, tornaram-se espaços de discussão, e os circúlos de
cortesãos tinham entre seus assuntos sempre alguma questão política. O Rio de Janeiro
transformou-se num ambiente no qual a discussão de assuntos políticos tornara-se cada vez
mais prática de domínio público, em função da qual uma diversidade de projetos e alternativas
passava a coexistir num ambiente de luta travada, fundamentalmente, por meio das armas de
imprensa.
Os jornais de tipografias privadas inicialmente assumiram posturas críticas quanto às
medidas da Coroa. Muitos criticavam os direitos de aposentadoria dos nobres, e os jornais das
outras províncias íam mais além nas suas críticas, principalemente por sua atuação no processo
de decisão ocorrido no Rio ser prejudicado pela sua dificuldade de acesso à Corte (devido à
própria distância geográfica e as dificuldades de comunicação da época). O que por bastante
tempo controlou essa intempestiva postura crítica desses jornais brasileiros foi a censura feita
pelo Desembargo do Paço. A partir de 1808, o Desembargo começou a funcionar como orgão
de censura, mas inicialmente seu campo de ação eram os livros publicados pelas tipografias
nacionais e os importados. Após um tempo sua ação começou a incidir sobre os jornais de
tipografias particulares, e alguns deles tiveram tantos obstáculos para publicar seus periódicos
que fecharam. O Correio Brasiliense, por exemplo, teve que mudar-se para Londres para
continuar rodando seu jornal, e sua entrada no Brasil se dava, por muitas vezes, por vias
clandestinas.
O caso do Correio Brasiliense é bastante ilustrativo do quanto esses periódicos
possuíam impacto sobre a opnião pública. Suas matérias carregadas com as idéias burguesas de
crítica ao Antigo Regime que circulavam na Europa da época, causaram algumas inquietações
na manutenção da ordem estabelecida no Brasil. O Correio Brasiliense incomodava tanto a
Coroa, que D. João incubiu o intedente-geral Paulo Fernandes Viana de enviar um emissário
até o editor do jornal, para que negociasse com ele qual era o “preço de sua fidelidade a El
Rei”. Depois de estabelecidos os termos do acordo, o Correio Brasiliense teve suas feições
completamente alteradas. Aquele jornal que anteriormente criticara o direito de aposentadoria,
agora chamava os inssuretos republicanos de Pernambuco em 1817 de “bárbaros
inconsequentes”.21
A Gazeta do Rio de Janeiro também expressava no discurso de suas publicações
posicionamentos políticos específicos, que no caso, apresentavam-se alinhados com os

21
Op. Cit. SCHULTZ, In: Cap. 4, The New City of Rio de Janeiro.

424860692.doc 23
interesses e ideais da Coroa. Com relação, por exemplo, aos conturbados movimentos que
ocorriam na América Espanhola e à Revolução Pernambucana, a Gazeta preocupava-se em
ilustrar tais acontecimentos de forma bastante parcial, chegando mesmo à inverter a lógica dos
fatos. Afirmava que nada grave estava acontecendo nas colônias espanholas e que não
passavam de distúrbios sem sentido e de alguns poucos grupos exaltados. Pelo contrário,
defendia que tais colônias estavam reforçando sua lealdade à metrópole espanhola. Da mesma
forma, caracterizava o que ocorreu em Pernambuco em 1817, não passava de um movimento
efêmero que não representava a maioria da população local, e sim um “distúrbio da ordem”
por parte de vândalos, vadios e pessoas sem instrução que foram facilmente iludidas. 22
O Tratado de Amizade e Comércio abriu o mercado brasileiro ao grande fluxo de
mercadorias européias, e estas modificariam em grande parte os hábitos da população
brasileira. A grande beneficiária de tal ato foi sem dúvida a Inglaterra, considerada a “Oficina
do Mundo’ na época, devido a sua expressiva produção industrial. A enxurrada de artigos
manufaturados que invadiu o Brasil na época, alterou siginificativamente os hábitos cariocas.
A indumentária, a mobília e até a própria alimentação sofreram mudanças. Após o fim das
guerras napoleônicas na Europa, a posição da Coroa para com a França foi de reaproximação 23,
incorrendo numa grande influência cultural francesa no Rio de Janeiro com a vinda de
mercadorias e imigrantes franceses. Como já dito antes, pelos moldes da Corte portuguesa
serem inspirados no padrão francês, era mais condizente uma influência cultural francesa
quanto “aos hábitos e refinamentos da vida civilizada”, do que ingleses propriamente ditos. 24
Esse influxo de mercadorias estrangeiras (artigos ingleses e artigos de luxo da França)
no Brasil decorreu na criação de diversas companhias de importação, que traziam dos gêneros
mais “úteis” até aos mais “absurdos”. Chegavam aqui, doces em compota, panos de linho,
cambraias, plumas, vestidos das últimas modas, vinhos em barrica e em garrafas de
Bourdeaux, licores engarrafados, vinhos de Champagne, perfumes, quadros, papel pintado,
jóias, porcelanas, cristais, vidros e até mesmo, pão fabricado “com trigo lavado à moda da
França”. Tais produtos eram anunciados nos jornais da cidade, e em todos os cantos do centro
do Rio encontravam-se casas comerciais destinadas a atender a demanda dessas mercadorias. 25

22
JANCSÓ, István (org.). Brasil: Formação do Estado e da Nação. In: Pimenta, A política hispano-
americano e o Império português (1810-1817): vocabulário político e conjuntura. São Paulo-Ijuí: Editora
Hucitec, FAPESP, 2003. p. 126-128
23
Devido a restauração Bourbônica na França com Luís XVIII, não haviam mais motivos para temer os
ideais “subversivos” franceses, visto a volta do sistema de Antigo Regime à França.
24
Op. Cit. CARVALHO. Cap 2, , D. João e as vicissitudes do Reino, p. 51-52.
25
Op. Cit NEVES, MACHADO, in: Cap.1, p. 45

424860692.doc 24
O mercado da moda e do luxo foi prioritariamente francês. Modistas, alfaites e
cabeleleiros invadiram a Corte, equipando as damas com os mais finos artigos de moda e
beleza da França. Homens que chegaram aqui apenas como cabeleireiros e alfaiates acabaram
sendo fagocitados pela nobreza, que “urgia” por seus serviços e pelo prestígio de ter o
monopólio dos mesmos. Até mesmo cozinheiros e a arte da culinária parisiense roubaram a
cena nos jantares oferecidos pela “gente graúda”, transformando-os em verdadeiros banquetes
onde o excesso da volúpia e do fausto pareciam transportar-nos para um banquete em
Verssailles. Os cabeleireiros e alfaiates eram altamente requisitados, os bailes, recepções,
festas e banquetes oferecidos pela alta sociedade carioca demandavam cada vez mais
refinamento; o que significava novas roupas caras e penteados dignos das senhoras da Corte.
Essa influência francesa foi devida, em grande parte, ao conselheiro do Rei, o Conde
da Barca, que após o fim das guerras napoleônicas começou a reaproximar-se da França. O
Conde da Barca também foi o responsável por “convidar” ilustres artistas franceses para que
trouxessem ao Brasil os aspectos “louváveis ou desejáveis” da civilização francesa. A chamada
Missão Francesa, era chefiada por Joachim Lebreton, antigo secretário da Classe das Belas-
Artes do Instituto Real de França. Contava também, com artistas de grande atuação no período
napoleônico, como os irmãos Taunay, um pintor e outro escultor, Grandjean de Montigny,
exímio arquiteto e com o célebre pintor Jean-Baptiste Debret, discípulo de Jacques-Louis
David, pai do classismo francês e autor dos mais famosos retratos do Imperador Napoleão.
Além destes, havia um gravador em pintura e miniatura, um professor de mecânica, um
curador de peles e alguns assistentes e auxiliares desses ofícios. No esteio da Missão Francesa
veio também o músico Sigismund Neukomm, discípulo de Joseph Haydn, que compôs um
Lundu para piano, que viria a ser “considerada a primeira peça erudita com referência a
elementos de nossa tradição popular”.26

26
Op. Cit NEVES, MACHADO, in: Cap.1, p.51-52

424860692.doc 25
D. João VI - Jean-Baptiste Debret Óleo sobre tela 1817.

Em relação à música (notadamente, a grande predileção da Casa dos Bragança desde


D João V), podemos dizer que houve um refinamento sem paralelo ao anterior. Na Real Capela
performavam-se grandes composições religiosas, executadas por músicos – quase todos negros
– que possuíam invejável habilidade. Grandes bailes e espetáculos de ópera ocorriam no teatro
de São José, e lá eram estabelecidos os padrões do bom gosto e da “boa sociedade”.
Organizavam-se saraus, que introduziam uma convivência doméstica entre a elite (prática
ausente na sociedade colonial). Por meio da música de câmara e da música vocal, instituiu-se
no Rio de Janeiro a convivência em salões nobres nos mesmos moldes franceses.
As línguas francesas e inglesas tornaram-se mercadorias caras e desejadas. Tutores
ofereciam nos jornais da cidade o ensinamento destas línguas a quem quer que se interessasse
e pudesse pagar bem por seus talentos. Professores de etiqueta, grego, latim, aritmética e
gramática faziam a vida educando os filhos da elite carioca. Isso contribuíu para a formação de
uma camada de intelectuais brasileiros, que em adição à geração anterior formada em
Coimbra, ocupariam cargos administrativos e contribuiriam fortemente para o
desenvolvimento de uma cultura erudita brasileira que marcaria os primeiros anos do futuro
Império brasileiro.
Ainda, devemos nos lembrar das grandes festas, cortejos reais e procissões religiosas
organizadas pela Coroa. Tais eventos imprimiram outras feições as festas populares anteriores,
e o caráter que tais festas da Coroa tinham de fausto, luxo e o apelo ostensivo a tudo aquilo
que era considerado grandioso, afetava de certa forma a imagem que o povo tinha da Coroa. A
vinda da Corte para o Rio aumentou as proporções das festas religiosas existentes
anteriormente, e introduziu as celebrações reais no quadro social carioca. Tais eventos eram

424860692.doc 26
disputados e todos queriam tomar um papel na cena, mesmo o lugar de espectador já era
empolgante para muitos. A ocupação de todas as camadas populares da cidade nos mesmos
espaços públicos, dentro de uma atmosfera de celebração, quebrava em certo ponto a
estranheza que muitos europeus sentiam ao chegar numa cidade tropical, com ruas cheias de
escravos, mulatos, mercadores e muito barulho. A majestade que tais festas traziam ao próprio
espaço urbano fazia com que as pessoas com o tempo ganhassem uma preocupação com a
beleza da cidade, reconstruindo suas fachadas e mantendo a “limpeza das ruas”. Essas festas
descaracterizavam completamente aquela cidade que os imigrantes, ao chegar, descreviam as
ruas como sujas e cheias de gente negra, com um burburinho incessante, com escravos
transportando baldes cheios de fezes para cima e para baixo, e praias que serviam como
depósitos de lixo e excremento. Durante estas festas as ruas eram limpas, e chegavasse mesmo
a perfumá-las, com muito incenso e fragrâncias exóticas. 27
Tais festas contribuíram, ao lado de todos os aspectos acima para um refinamento dos
hábitos da antiga cidade colonial do Rio de Janeiro. Mesmo que o povo e a multidão de
escravos e libertos que entupiam as ruas do Rio não fossem afetados por esse ambiente de
“alta cultura” em que viviam os membros da elite carioca, pelo menos em parte as festas
exerciam algum efeito “civilizador” mesmo sobre as camadas mais baixas da população. O
constante uso dos símbolos e o abuso da pompa eram coisas nunca vistas antes no mundo
colonial, alterando, mesmo que em pequena margem, a forma como as festas e cortejos
públicos eram organizados.

6. Conclusão

Procuramos perceber, através de nossa pesquisa, a gravidade das transformações pelo


qual o Brasil e, em especial, o Rio de Janeiro passaram com a vinda da Corte e Familía Real,
em todos os seus aspectos, principalmente políticos e culturais. Assim, promoveu-se a
instalação de todo um aparato administrativo para atender a necessidade de governar tanto o
Brasil quanto a sede do Império e suas conquistas ultramarinas em um contexto de grandes
esforços pela precária condição da nova capital imperial, assim como a situação de guerra com
a França e a instabilidade com seus vizinhos sulamericanos.

27
Op. Cit. MALERBA, Cap. 2 O teatro da festa.

424860692.doc 27
Da mesma forma as aspirações da Corte puderam elevar os gostos e hábitos da elite
carioca, além de possibilitar novos espaços de atuação no meio cultural e no meio de
discussões políticas, contribuindo para a formação de uma cultura política dentro do Brasil.
Em suma, a criação de instiuições políticas, a formação de uma elite intelectual
politizada (em grande parte devido a atuação da imprensa) e a entrada de idéias européias
(proliferação dos chamados salões, a disseminação dos livros e ideologias de cunho iluminista)
e a crescente autonomia econômica em relação ao Reino, possibilitaram a formação de
instrumentos para a futura emancipação do Brasil em relação a Portugal. E foi a vinda Corte
para o Brasil e todos os impactos e modificações causadas durante a sua estadia, que iniciou o
processo de constituição do Brasil como corpo político autônomo. Podemos então, frisar como
dito nas nossas primeiras linhas, a importância da vinda da Corte portuguesa para o Brasil
como um dos fatos centrais da história política do Brasil e da história da cidade do Rio de
Janeiro.

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