Vergilio Ferreira
Uma Esplanada sobre o Mar
wp) DIFEL.
UsbosO fresco
Chamavam-the Enjeitado, mas no era alcu-
nha, Era mesmo do nome, quere-se dizer, dele.
Havia na aldeia um velho que era uma espécie de
meméria colectiva. De modo que sabia tudo de
tudo. E quando ele lé apareceu, explicow. O bisavd
fou o pai dele, que era portanto o trisavd, fora
mesmo um exposto da misericérdia da vila. B
entio esse tal trisavé ou o filho dele, como toda a
gente Ihe chamava assim, adoptou o nome para
acabar com a alcunha. Mas o filho desse que a
adoptou, nio gostava, Voltava 20 principio,
quando era sé alcunha, nao gostava. E omitia-a ou
usava sé a inicial, Depois, enfim, o préprio uso lhe
consumiu o sentido e era um nome como qualquer
outro que € s6 som sem significado, mesmo os
nomes obscenos. Em todo 0 caso, nunca gostaram
e esse que tinha vindo agora para af também niio
devia gostar. E realmente. O nome dele era
Roberto Enjeitado Feliz, Chamavam-lhe Senhor
Roberto, que também no era um primor. Do pai
ou do avé tinha-lhe vindo uma casa, jé fora da
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aldeia. Mas passavam-se anos que ninguém a vinl
habitar. Viviam na capital, no vinham. Mesmo
Verio, que é quando as gentes de fora vinhi
fazer de turistas para as casas prdprias ou
familia. Até que um dia veio ele.
Era Inverno ou talvez Primavera, de todo 0
modo tempo imprdprio para ser vistoso 0
descanso. Vinha sozinho, attanjou uma mulher
para Ihe tratar das coisas e comegou a existir. A
mulher era a Silvana Pachacheira, vitva, que
morava no adro. E foi sobretudo por ela que se
foram sabendo coisas. E por ela ou pelo farmacén-
tico, soube-se que vinha doente. Ou por outra, no
se soube, mas as pessoas adiantaram-no logo para
haver ordem na vida. Pois como é que um tipo
vinha fugido a cidade para aquele pasmo mortal
sem avaria no fisico? Ea Silvana ou 0 farmacéutico
encolhiam os ombros para no desaproveitarem de
todo a importincia de fazetem de destino. Na
realidade, porém, Roberto nio tinha at disso. Era
alto, bem estruturado, sem uma aberta para se lhe
meter dentro uma doenga. A haver, pois, doenca,
era coisa esquisita — seria dos netvos? coisa do
fantistico ou misterioso, que é onde estio todas as
doengas de prestigio ¢ a prépria esséncia da vida.
Como era novo na aldeia, as pessoas andavam
inquietas, & espera de que se desse a0 coavivio para
tudo ser normal e cortiqueio, Mas nfo. Metia-se
em casa e s6 raramente atravessava a aldeia a
caminho da farmécia, A principio por causa de
UMA ESPLANADA SOBRE 0 MAR
algum remédio, mas depois por simples desfastio ¢
uum pouco de cavaqueira, O farmacéutico vivia na
vila mas vinha todos os dias 4 aldeia num. Prefect,
que eta um cartinho linféitico, de perninhas
raquiticas, Mas tinha por ele uma ternura como por
um animal, Falava dele com catinho, pousava-lhe
mesmo a mio no éapot como no pescogo de um
cavalo. Roberto entrou em relagdes com 0 homem,
para haver humanidade na aldeia, E era ele e 2
Silvana que 0 promoviam a set humano. Mas de
‘yez em quando rompia com a promogio. Entio a
casa crescia em desordem com um amontoado de
lixo em todo o lado. Isto dizia a Silvana
Pachacheira, incapaz de restituir tudo a uma ordem
civilizada. Porque na realidade Roberto apenas
desatara 2 desconhecida vocagio de encher tudo
de tinta, Porque pintava. Os quadros multiplica-
‘vam-se por todos os recantos ¢ um dia as proprias
paredes comegaram a aparecer inundadas de
pintura, Sem preparo prévio, assim mesmo, &
bruta. Estaria louco? era o que a sensatez ¢
ancestralidade perguntavam dentro da Silvana. Um
dia ela reparou que cle no ia A missa ao domingo
isso era extraordinitio como a estupidez, Fez-lhe
mesmo a observacio e Roberto sorriu encantado.
— Um dia vou — disse ele. a ted
Dessa vez apanhou-o uma onda de excitagio ¢
exasperou-se de trabalho até a0 esgotamento.
Silvana foi dat com cle estiragado num canapé, 08
bracos pendentes, muito sujo do que poderiam ser
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