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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social


Curso: Teoria Antropológica I
Professoras: Olívia Gomes da Cunha e Bruna Franchetto
Aluno: Dennis Novaes Saldanha Côrtes
Questão 1 – Enfoques Sobre Mudança Social
Este trabalho pretende relacionar brevemente diferentes enfoques de três autores
sobre a noção de mudança social, elucidando as especificidades dos contextos sobre os
quais se propõem a refletir e alguns desdobramentos de suas análises. Max Gluckman
refere-se à África do Sul colonial como um sistema social formado por grupos de
diferentes status. Um ponto essencial em sua construção argumentativa é considerar
que, apesar da “clivagem dominante” zulus/europeus, ambos os grupos estão
indissociavelmente ligados por relações econômicas e políticas, mesmo que permeadas
por hierarquias e por uma divisão assimétrica de poder. A fim de melhor descrever este
sistema Gluckman desenvolve sua análise partindo da descrição etnográfica de uma
“situação social” específica: a inauguração de uma ponte projetada por engenheiros do
governo colonial e construída por zulus.
O relato denso e singular desse evento prenuncia as inovações metodológicas
trazidas pelo autor e o recorte que propõe dentro do contexto analisado. Há grande
atenção aos indivíduos – e que posições ocupam enquanto atores sociais – em seu
relato: o policial que é membro da família real zulu; o veterinário do governo e amigo
de Gluckman; Matolana, conselheiro do regente zulu e representante governamental em
cujo sítio se hospedava o autor; e o próprio Gluckman, antropólogo que apesar de certa
proximidade com zulus, continuava inevitavelmente inserido no grupo europeu.
Exemplos como estes surgem ao longo da descrição etnográfica por encarnarem em si o
quão imbricado e complexo era o sistema social descrito, com suas assimetrias e
nuances. Detalhes como o fato de os europeus presentes na cerimônia serem convidados
a tomar chá numa barraca à qual nem mesmo ao regente zulu era permitido o acesso, o
coro formado por zulus cristãos cantando hinos e o aval do comissário-chefe para que a
inauguração seguisse a tradição zulu derramando a bílis do gado aos pés da ponte,
revelam o quanto a participação do indivíduo em um grupo particular se relaciona a
situações específicas e aos motivos e valores que o influenciam nessa situação, dentro
do amplo espectro de pertencimentos possíveis no contexto analisado pelo autor.
Propondo uma abordagem distinta das realizadas até então sob a perspectiva do
“contato cultural”, Gluckman enfatiza a existência de um sistema multicultural em
processo de mudança social. A estrutura social da Zululândia – termo usado pelo autor
para se referir a brancos e zulus conjuntamente – poderia então ser analisada como
“unidade funcional, em equilíbrio temporário” (Gluckman: 2010, p.280). Na lógica de
sua proposição, “são exatamente os conflitos imanentes no interior da estrutura da
Zululândia que desencadearão seu futuro desenvolvimento” (Idem, p.281). O autor
passa então para uma análise dos diversos períodos de equilíbrio e processos de
transformação sofridos pela comunidade zulu ao longo de 120 anos, culminando na
formação do sistema zulu-branco intrinsecamente pautado por sua clivagem dominante.
A mudança ocorre quando, por “inércia social”, o sistema social em transformação
continua a se desenvolver na direção das tendências de seu conflito maior e se
hipertrofiar até ser alterado (Ibidem, p. 313).
Gluckman propõe assim dois tipos de sistemas sociais. Os repetitivos, em que se
encaixaria a comunidade Zulu em alguns períodos históricos, não alteram sua estrutura
mesmo em situações de rebelião ou mudanças nos ocupantes de posições ou cargos. Os
sistemas sociais em transformação – nos quais estaria inserida a Zululândia moderna –
teriam como característica a impossibilidade de resolução plena dos conflitos ou de
plena cooperação, sendo marcados pela emergência constante de novos grupos e
personalidades sociais em relações sempre mutáveis entre si (Gluckman: 2010, p. 326).
Há nessa abordagem um inerente cunho político no sentido de ressaltar quão
insustentável era o sistema segregacionista e opressor instaurado na África do Sul.
Orientado por Gluckman, o trabalho de James Clyde Mitchell sobre a dança
Kalela entre africanos urbanizados na Rodésia do Norte permite cruzamentos
interessantes com a noção de mudança social. A dança Kalela tinha como temática as
diferentes origens tribais entre os trabalhadores do Cinturão do Cobre num duelo
retórico em que cada grupo satirizava costumes de outras tribos. Em sua performance,
contava com um rei de idade mais avançada que os dançarinos cujo papel era
praticamente de observador, além de dançarinos trajados à moda européia. Em vez de
cantarem em suas línguas de origem, os grupos compunham as letras na língua franca
da cidade. Como ressalta o próprio autor, apresentava-se neste caso um claro paradoxo:
“a dança é claramente tribal, com ênfase nas diferenças tribais, mas a língua e o idioma
das canções e a vestimenta dos dançarinos são retirados de uma vivência urbana que
tende a subjugar as diferenças” (Mitchell: 2010, p. 378).
Mitchell apresenta os desdobramentos de seu recorte considerando a dança como
uma pantomima da comunidade européia local, sendo que esta representaria a estrutura
social da forma como era vista pelos africanos, que projetavam nos trajes o prestígio
conferido ao estilo de vida europeu. Partindo da alta rotatividade habitacional por ele
observada entre africanos ocupando contextos urbanos e a conseqüente dificuldade em
estabelecer relações fixas de vizinhança, por exemplo, o autor enxerga no tribalismo a
construção de uma categoria de interação que proporciona uma base para agir com
relação a todos os estranhos (Mitchell: 2010, p.408). Apesar disso, essa categorização
não suplanta todos os tipos de relações sociais que emergem nestes ambientes. Exemplo
disso, a tentativa das companhias mineradoras de criar um conselho de trabalhadores
seguindo as linhas tribais foi infrutífera, pois o tribalismo rapidamente mostrou-se
irrelevante nas resoluções das crises na indústria. O panorama descrito por Mitchell,
intrinsecamente ligado ao contexto colonial africano em crescente urbanização,
demonstra a fluidez de grupos e associações apontada por Gluckman como
característica a sistemas sociais em processo de mudança. Em ambos os autores, as
clivagens e contradições do sistema capitalista imposto pelo regime colonial surgem
como regentes de uma configuração social em acentuado processo de transformação.
Um contexto radicalmente distinto ao experienciado pelos dois autores
supracitados inspirou as reflexões de Edmund Leach. A Alta Birmânia, região também
sujeita ao regime colonial britânico e na qual o autor concentrou seus esforços de
pesquisa, apresentava uma acentuada variedade lingüística e certa pluralidade de
modelos de organização. Ao longo de seu processo descritivo, os termos kachin e chan
– surgidos em estreita relação com a presença do governo britânico – revelam-se como
agentes homogeneizantes de uma grande complexidade de relações e singularidades.
Apesar disso, o autor sustenta seu uso – reconhecendo o caráter arbitrário dos termos –
considerando-os enquanto “categorias culturais” e reiterando que não se tratam de
“categorias linguísticas”.
Grosso modo, as Colinas Kachin – como denominadas pelos britânicos–
abrigavam povos em suas montanhas e nos vales entre elas. Aos primeiros, entre os
quais se cultivava o arroz pela técnica das queimadas e era percebida uma variedade
lingüística maior, era atribuído o termo “kachin”. Aos segundos, marcados pela
predominância de uma língua, um sistema social que se aproximava à hierarquia feudal
e o cultivo do arroz pela técnica da irrigação, era atribuído o termo “chan”. Leach
considera o sistema social chan mais estável em seu fluxo total, ao passo que os kachin
se caracterizariam por uma instabilidade intrínseca. De acordo com o autor, estes
últimos teriam diante de si dois modelos políticos marcadamente contraditórios: por um
lado, haveria a rígida hierarquia “feudal” dos chan, que entre os kachin seria
comparável ao modelo gumsa; por outro, um sistema essencialmente anarquista e
igualitário que poderia ser referido pelo termo gumlao. Em seus relatos etnográficos,
surgem ainda casos de indivíduos que por alianças tornam-se simultaneamente kachin e
chan, mas também de diversas comunidades que migraram de um sistema kachin-
gumlao para um sistema kachin-gumsa, ou vice-versa.
A partir destas observações, o autor questiona a idéia de estrutura social por não
acessar sociedades que não estão em equilíbrio estável. Distingue assim dois tipos de
mudança: aquelas que fazem parte do processo de continuidade e as que refletem
modificações na estrutura formal, elencando o segundo tipo enquanto seu objeto de
análise. Leach atém-se à arbitrariedade presente na descrição de um sistema social,
alegando que nesse exercício o antropólogo descreve apenas um modelo da realidade
social e que pelo processo de construção deste modelo tende a ver um sistema em
equilíbrio. Diferente do que propõem estes modelos, a sociedade não forma um todo
coerente, sendo permeada por contradições e conflitos. É explorando essas
incongruências que se torna possível perceber os processos de mudança social, como
proposto pelo autor. Leach pretende então oferecer ferramentas para a compreensão de
tais processos, levando em conta as possibilidades de intervenção dos indivíduos:
“Para o próprio indivíduo, tais sistemas apresentam-se como alternativas ou inconruências no
esquema de valores pelo qual ele ordena sua vida (...) Todo indivíduo de uma sociedade, cada
qual em seu próprio interesse, se empenha em explorar a situação à medida que a percebe e, ao
fazê-lo, a coletividade de indivíduos altera a estrutura da própria sociedade.” (Leach: 1956, p.71)
É possível traçar entre Gluckman e Leach semelhanças em um ponto-chave de
suas argumentações: a necessidade de considerar não apenas as mudanças das posições
que um indivíduo ocupa na estrutura social, mas principalmente as transformações
sofridas por essa própria estrutura. É nesse sentido que caminham as reflexões de
Gluckman sobre processos de mudança ocorridos na comunidade zulu do século XVIII
à primeira metade do século XX. Mesmo nos períodos em que guerras tribais e disputas
internas à realeza operavam a transferência de poder, mantinha-se um equilíbrio estável,
já que estas transformações não significavam uma real mudança na estrutura social zulu.
Embora num contexto bastante distinto, Leach enxerga diversas possibilidades de
trânsito entre os sistemas kachin e chan, o que tornaria suas configurações
intrinsecamente instáveis. Os sistemas kachin gumsa e kachin gumlao, por exemplo,
não representam apenas rearranjos de indivíduos e de distribuição de poder dentro de
uma estrutura, mas sim modelos “estruturalmente distintos” marcados pela premência
de um trânsito potencial que pode ser levado a cabo pela articulação de indivíduos
movidos por interesses e expectativas.

Bibliografia
GLUCKMAN, Max. “Análise de uma situação social na Zululândia moderna”. Trad:
Roberto Yutaka Sagawa e Maura Miyoko Sagawa. In: Antropologia das Sociedades
Contemporâneas – Métodos. Org: Bela Feldman-Bianco. São Paulo: Editora Unesp,
2009.
LEACH, Edmund. Sistemas Políticos da Alta Birmânia. Trad: SOUZA, Geraldo
Gerson de; DANESI, Antonio de Padua; SOUZA, Gilson César Cardoso de. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1996.
MITCHELL, J. Clyde. “A dança Kalela: aspectos das relações sociais entre africanos
urbanizados na Rodésia do Norte” Trad: Marcelo Gruman. In: Antropologia das
Sociedades Contemporâneas – Métodos. Org: Bela Feldman-Bianco. São Paulo:
Editora Unesp, 2009.
Questão 2 - "As línguas são o melhor espelho da mente humana"
A referida frase de Gottfried Wilhelm Leibniz permite cruzamentos produtivos
com alguns debates centrais travados na Antropologia. Pensar a relevância da
linguagem em sua relação com a “mente humana” resvala diretamente no entendimento
de noções como “humanidade”, “pensamento”, “mundo” e em qual o papel da “cultura”
– termo caro a muitos autores que serão aqui abordados – na constituição do
pensamento humano. Considerar uma diferença ontológica entre noções como as de
“cultura” e “linguagem” tangencia também a clivagem entre disciplinas como a
Antropologia e a Lingüística reverberando, conseqüentemente, na busca por ressaltar as
especificidades dos métodos reivindicados por estes campos do saber, bem como os
possíveis pontos de aproximação entre eles: também esse foi um tema freqüente de
reflexão para autores que este trabalho pretende pôr em diálogo.
Em uma obra dedicada ao tema, Franz Boas percorre várias dimensões desta
problemática. Correspondendo apenas a uma parte do fenômeno etnológico, a
compreensão e estudo da linguagem são de grande relevância para um exercício de
pesquisa profícuo. Por considerar a etnologia uma ciência cujo escopo é o fenômeno
mental da vida das pessoas no mundo, a linguagem estaria inserida em seu campo de
atuação. Também não findariam com ela os limites do pensamento humano: a
inexistência de um conceito numa determinada língua não incapacitaria a compreensão
deste conceito entre aqueles que a falam. Os termos da dissociação perpetrada pelo
autor se mostram mais claramente quando este sugere a inexistência de uma relação
direta entre a cultura de um grupo e a língua que fala, a não ser quando elementos
culturais atuam no sentindo de moldá-la. Boas propõe ainda que uma diferença
essencial entre estes dois fenômenos – o lingüístico e o etnológico – seria o caráter
inconsciente do primeiro em contraposição às racionalizações secundárias e às
reinterpretações que se impõem ao segundo (Boas: 1964). Há um afastamento
considerável entre a frase tomada como inspiração para esse trabalho e as proposições
de Boas: para este, a mente humana não compartilha as mesmas fronteiras da língua que
lhe serve de instrumento, o que colocaria em cheque sua posição de “espelho
privilegiado”.
Similitudes e distinções podem ser traçadas entre esta perspectiva e a de Edward
Sapir. Ao encontro de Boas, língua, cultura e raça surgem em suas reflexões como
termos não necessariamente correlatos. É possível a semelhança, por exemplo, entre
culturas que não compartilham a mesma família lingüística, ou o inverso. Apesar disso,
quando se dirige não às relações específicas entre uma língua e uma cultura, mas sim
entre linguagem e pensamento em geral, as posições do autor exploram caminhos
diferentes dos observados em Boas. O argumento de Sapir acena para a impossibilidade
de se descolar linguagem e pensamento. Mais que uma roupagem cobrindo sob trajes
diversos o mesmo corpo de idéias, a língua seria o canal por meio do qual o pensamento
se expressa e se constrói – talvez, “o melhor espelho da mente humana”. A relação entre
cultura e linguagem não seria, assim, de causa e efeito: “Pode-se definir a cultura como
‘o que’ a sociedade faz e pensa. A língua é um ‘como’ especialmente se pensa” (Sapir:
1971, p. 215). Neste sentido, ambas seguiriam caminhos paralelos e intimamente
relacionados numa vinculação intrínseca, mas que mantém o reconhecimento de tais
dimensões enquanto essencialmente distintas.
Foi Lévi-Strauss quem levou esta problemática a outra dimensão reflexiva. Em
seu texto “Linguística e Antropologia” o autor salienta um ponto crucial para o
desenvolvimento das considerações por ele travadas, bem como pelos autores
supracitados. Pensar as relações entre tais campos do saber – ou entre tais “fenômenos
da mente humana” – exclui de saída duas hipóteses: a de que não haveria relação
alguma entre linguagem e cultura; ou, por outro lado, a de que ambas seriam totalmente
correlatas (Lévi-Strauss: 2008, p. 92). O encontro de Lévi-Strauss com as contribuições
epistemológicas de lingüistas como Saussure e Roman Jackobson levou-o a pensar num
possível diálogo entre estas duas esferas. A distinção entre fonética – dedicada ao
estudo da matéria sonora – e fonologia – voltada para o sistema de relações entre tais
matérias – inspiraria as reflexões do autor em sua inovadora proposta de etnologia: em
vez de perder-se numa “multiplicidade esmagadora de variações” – sejam matérias
sonoras ou de fenômenos etnológicos – deve-se pensar em como estes elementos
engendram por meio de suas relações uma estrutura que lhes confere sentido. Assim
como o fonema, vazio de significação própria, é uma ferramenta usada para conferir
significado, a proibição do incesto entre as diferentes culturas seria
“(...) ela também, uma forma vazia, mas indispensável para que se torne, ao mesmo tempo,
possível e necessária a articulação dos grupos biológicos numa rede de troca que os põe em
comunicação. Enfim, a significação das regras de aliança, indistinguível quando as estudamos
separadamente, não pode surgir senão opondo-as umas as outras, da mesma maneira que a
realidade do fonema não reside na sua individualidade fônica, mas sim nas relações opositivas e
negativas que os fonemas oferecem entre si.” (Lévi-Strauss: 1986, p. 206-207)
É possível colocar em diálogo as reflexões de Lévi-Strauss e a frase que nos
serve de inspiração em ao menos dois níveis diferentes. Primeiramente, as semelhanças
apontadas pelo autor entre os fenômenos etnológicos e lingüísticos seriam justificadas
pela similaridade na arquitetura de ambas, arquitetura essa que tem como projetista a
mente humana, munida pela capacidade de tecer relações lógicas (Lévi-Strauss: 2008, p.
80). Haveria então uma ligação estrutural entre língua e mente que permitiria considerar
a primeira um objeto privilegiado de encontro com a segunda – ligação também
presente em fenômenos etnológicos. Num outro diálogo possível, a linguagem
expressaria primorosamente o afã singular da mente humana de dar ordem ao caos da
experiência sensível. A necessidade, da qual a linguagem é representante inequívoca, de
classificação, ordenamento e significação do mundo, permite pensá-la como um espelho
das “exigências intelectuais” (Idem: 2011, p.25) da mente humana e da “vontade de
conhecer pelo prazer de conhecer” (Ibidem: 2011, p.31) que lhe seriam inerentes.
Em sua introdução ao debate “Language is the essence of culture”, Tim Ingold
desmembra as implicações dessa questão ao elucidar que a problematização do status
ontológico da linguagem conecta-se invariavelmente à distinção entre música e
linguagem, à relação entre palavras e conceitos, mas também à emergência da
linguagem na ontogênese e na filogênese. Diferenciar a compreensão de uma melodia e
de uma frase, por exemplo, é reiterar o axioma de que palavras se referem a conceitos,
assumindo logicamente uma diferença ontológica entre mente e mundo (Ingold: 1996).
Retomar Lévi-Strauss é um mecanismo relevante para compreender a clivagem básica
entre os autores que se digladiaram neste embate. O autor já alertara sobre duas
perspectivas cuja adoção levaria a resultados distintos: é possível considerar a
linguagem como parte ou produto da cultura; ou, por outro lado, tratá-la como condição
da cultura (Lévi-Strauss: 2008, p.80). A diferença entre estes pontos de partida parecem
ser a fundamentação básica das discussões que serão brevemente abordadas a seguir.
David Parkin e Brian Moeran tendem à adoção da segunda perspectiva. As
considerações de Parkin expressam uma idéia ampla de linguagem, que abarcaria tanto
suas manifestações acústicas quanto as não verbais. Pinturas rupestres, artes plásticas ou
comunicação gestual só fazem sentido no momento em que se inserem num universo de
significados, ou seja, dentro de nossas relações sociais e comunicações com outros. Em
seu argumento, a ligação proposta por Lévi-Strauss entre alianças matrimoniais e
mitologia surge por estarem ambas dentro de um processo comunicativo indissociável
da noção de cultura. Dessa forma, pensar a idéia de humanidade requer considerar a
noção de cultura que a torna possível, sendo essa última oriunda de um processo
relacional incogitável sem a linguagem. Corroborando grande parte das reflexões de
Parkin, Moeran é ainda mais enfático em sua proposição: não só a linguagem preexiste
a todo sujeito individual e é o reino que lhe permite desvelar-se, como só há “mundo”
por meio dela. Mais que “melhor espelho”, a linguagem consistiria aqui – também numa
aproximação com Sapir, o qual via em sua ausência a impossibilidade do pensamento
(Sapir: 1971, p. 28) – a própria condição do fenômeno reflexivo operado pela mente
humana.
Em oposição à moção defendida pelos dois autores supracitados, Alfred Gell
esmiúça os pressupostos do argumento anterior e insere seus questionamentos. Em sua
análise, a proposição defendida por Parkin e Moeran teria como pilares três
fundamentos básicos. Primeiramente, o argumento filogenético que considera a
modificação do aparato cognitivo para receber a linguagem como um processo crucial
da humanização. Em segundo lugar, a idéia ontogenética de que a cultura, condicionada
pela linguagem, é o que permite à criança a inserção no mundo social de outros seres
humanos. Por fim, um argumento fenomenológico em que transações que são também
eventos discursivos caracterizariam a vida cultural humana: o mundo construído em
pensamento por categorias conceituais baseadas na linguagem teria na cultura a mesma
base cognitiva da linguagem que lhe é naturalmente associada.
Gell questiona o fundamento filogenético considerando que espécies
antecessoras ao Homo Sapiens possuíam cultura embora carecessem de um aparato
lingüístico, o que nos tornaria uma espécie utilizadora da linguagem oriunda de outras
que não possuíam essa capacidade – como o Homo Habilis ou o Homo Erectus. Em
relação ao argumento ontogenético, afirma que as crianças demoram anos para
manipularem com sucesso o espectro de conceitos que caracteriza a linguagem, embora
estejam imersas culturalmente antes mesmo de seu nascimento. Sua crítica ao
fundamento fenomenológico parte da idéia de que cultura consiste em conceitos e que
esses não podem ser plenamente compreendidos em termos de um código lingüístico ou
de mecanismos que interpretam o sentido de palavras específicas em sentenças
específicas: aproximando-se de Boas afirma, enfim, que embora tais mecanismos sejam
formidáveis, não esgotam o domínio da cognição.
Mais uma vez um autor elenca a dificuldade em pensar as línguas como melhor
espelho da mente humana não pelo “o que” ou “como” falam, mas por aquilo que
silenciam. Possivelmente pelo incômodo que tal silêncio causa no impulso – talvez
inerente, como diria Lévi-Strauss – de ordenação do caos, surja a necessidade em
autores como Gell, ou mesmo Boas, de preenchê-lo com o potencial de significação da
cultura.

Bibliografia

BOAS, Franz. “Linguistics and Ethnology”. In: HYMES, D. (Ed) Language in Culture
and Society. New York: Harper & Row, 1964.
INGOLD, Tim (Ed). Key Debates in Anthropology. London and New York:
Routledge, 1996.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Trad: PELLEGRINI, Tânia.
Campinas: Ed. Papirus, 2011.
______________________. Antropologia Estrutural. Trad: PERRONE-MOISÉS,
Beatriz. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2008.
______________________. O Olhar Distanciado. Trad: CARVALHO, Carmen de.
Lisboa: Edições 70, 1986.
SAPIR, Edward. A Linguagem: Introdução ao Estudo da Fala. Trad: CAMARA Jr,
J. Mattoso. Rio de Janeiro: Ed. Livraria Acadêmica, 1971.

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