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Igreja, Papado e Cisma: Uma Investigação

Teológica

Philip Sherrard

https://skemmata.blogspot.com
Tradução: Tony Pedroza
1. A Igreja
2. O Episcopado
3. A Estrutura Conciliar
4. Duas Eclesiologias Rivais
5. O Papado
6. Perspectivas e Fórmulas do Cisma
7. A Cristologia do Cisma
8. Doutrina Trinitária e o Cisma
9. Epílogo

1. A Igreja

Nós nos acostumamos tanto a considerar a Igreja, se não como um simples edifício
dentro do qual homens e mulheres se reúnem para adorar a Deus, então como uma
instituição organizada bem ao longo das linhas de qualquer outra instituição ou
sociedade humana, que tendemos a esquecer que sua realidade essencial é bem
diferente. Nós tendemos a esquecer que, em primeiro lugar, a Igreja é uma realidade
espiritual, enraizada na vida divina. Como tal, tem sua existência "no céu", antes de se
manifestar em qualquer forma na terra. De fato, pode-se dizer que é uma expressão da
própria vida de Deus, implícita naquelas energias espirituais através das quais ele
manifesta sua existência. Mais explicitamente, é revelada naquelas energias espirituais
através das quais ele entra na criação. Neste sentido, a Igreja manifesta-se naquele fiat
original, através do qual a eternidade entra no tempo, o invisível no visível, bem como
na declaração divina: "Façamos o homem à nossa própria imagem". Está, portanto,
intimamente ligada ao mistério da relação entre Deus e o homem, entre Deus e toda a
criação. É o nexo que liga os dois, ou o locus dentro do qual a relação entre os dois é
estabelecida. É a vida divina se desvelando em criaturas.

Ao mesmo tempo, a Igreja está intimamente ligada à encarnação. Uma das poucas
definições bíblicas da Igreja é que ela é o corpo de Cristo, e o corpo de Cristo se
manifesta na encarnação. Aqui, portanto, a Igreja está diretamente ligada a esse mistério
teândrico que está na base de nossa própria humanidade e na compreensão do qual
nossa salvação depende. Em Cristo, a natureza humana está unida a Deus na pessoa do
Logos divino, para formar um ser divino-humano, ontologicamente e substancialmente
um. Esta união de Deus com o homem em Cristo é o fundamento da união de Deus com
a humanidade na Igreja: o segundo pressupõe o primeiro e depende dele. Na Igreja, a
Divindade está vitalmente ligada à humanidade, através da união na Pessoa de Cristo
das naturezas divina e humana. Pelo poder da encarnação e do Pentecostes, toda a
humanidade recebe a graça de entrar no Reino de Deus, de ser co-herdeiros com Cristo,
de viver em Cristo. Isso não é algo que tenha apenas um significado escatológico - algo
que deve ser realizado no final dos tempos, quando Cristo conduzirá a humanidade ao
seu Reino celestial. O Reino já está efetivamente estabelecido - aqui e agora. Já está
presente na Igreja. A Igreja é "a cidade santa que foi santificada... conformando-se em
Cristo e participando da natureza divina através da comunicação do Espírito Santo". [1]
A cidade santa desceu do céu e abriu suas portas para nós. As realidades celestiais vêm
à Terra e nos são dadas. Em Cristo e por meio de Cristo, somos filhos e herdeiros.
Somos concidadãos com os santos. Temos comunhão com Deus e somos os templos de
Deus nos quais ele habita. Na medida em que percebemos a integridade de nossa
natureza - que é a da natureza humana ligada misteriosamente ao divino -, participamos
dessa realidade espiritualizada que é o corpo de Cristo. A Igreja é o corpo de Cristo, e
através da comunhão nesta realidade espiritualizada que é o corpo de Cristo, nós
participamos na vida incriada do próprio Deus. Por isso a Igreja é também o locus da
nossa salvação, da nossa transfiguração. É o locus da transfiguração de todas as
criaturas.

A Igreja é, portanto, muito mais do que simplesmente uma realidade criada ou uma
entidade histórica ou social. Ela é tanto incriada e criada, trans-histórica e histórica,
simultaneamente. Visto, por assim dizer, do lado de Deus, é a própria vida divina
incriada. Visto do lado da criação, é uma multiplicidade de seres criados
espiritualizados, ou de seres criados no processo de espiritualização: uma multiplicidade
de seres com uma vida porque compartilham o corpo único de Cristo. E quando alguém
diz que vista do lado de Deus a Igreja é vida divina, isso não significa simplesmente que
Deus é apenas a primeira causa ou princípio ativo da Igreja, enquanto seu princípio
interior ou imanente não é Deus, mas os dons criados de Deus, os dons e virtudes
sobrenaturais: não o próprio Deus, mas realidades criadas da graça procedentes de Deus.
Significa que Deus na pessoa do Espírito Santo é a forma substancial imanente da
Igreja, o princípio interior imanente de sua unidade e sua realização ontológica. A Igreja
é uma só porque Deus é um - não, é claro, um em um sentido aritmético, mas um em
sua indivisibilidade. À parte desta habitação do Espírito Santo, não há Igreja.
Correspondentemente, é somente na medida em que participamos na vida divina, em
Deus, que estamos na Igreja, porque a Igreja é a vida de Deus: nos tornamos um com
esta vida, e tornando-nos um com a vida de Deus, nós participamos na unidade da
Igreja.

Novamente, deve-se ressaltar que esta união de Deus com uma multiplicidade de
pessoas na Igreja não significa que os vários seres humanos chamados a essa graça
estejam unidos a Deus em uma espécie de união não-pessoal, para formar uma entidade
divino-humana que é misticamente uma e constitui um corpo místico por si só. Deus
não é uma realidade impessoal. Pelo contrário, ele é uma trindade de três Pessoas; e esta
união de Deus com o homem é uma união pessoal, uma união com Deus na Pessoa do
Logos divino através do compartilhamento em seu corpo. Deve ser lembrado que em
Cristo não é uma natureza humana, mas toda a natureza humana que está unida a Deus;
e a Igreja não é meramente o corpo universal daqueles que compartilham a luz da fé,
uma societas hominum fidelium ou congregatio hominum fidelium, mas é o locus do
contínuo mistério teândrico, o mistério da encarnação, no qual todas as pessoas
humanas são chamadas a participar. Nem esta participação de uma multiplicidade de
pessoas na única pessoa de Cristo, e a partilha delas de uma única vida, significam que
cada pessoa entrega a sua própria liberdade e identidade pessoal e, portanto, deixa de
existir como uma pessoa única. A Pessoa de Cristo não é um tipo de superpessoa, nem
seu corpo é uma espécie de supercorpo. Na Igreja, que é o corpo de Cristo, cada pessoa
participa na divindade do modo particular conferido a ele pelo Espírito Santo. É como
personalidades definidas, em todas as suas diversidades únicas, que seres humanos
únicos e particulares são estabelecidos pelo Espírito Santo em sua união com o Logos
divino. Há tantas uniões com Deus quanto há pessoas humanas, tantas formas de
santidade quanto os destinos pessoais, e cada uma é única.[2] É a singularidade das
Pessoas da Trindade a sua recusa em ser suprimidas ou neutralizadas ou submergidas
em uma natureza não-pessoal comum que é, em última análise, a garantia objetiva da
qualidade única da deificação pessoal na Igreja; pois a Igreja em si é nada menos que o
desvelamento ou revelação desta vida pessoal da Trindade, e tudo o que acontece na
Igreja deve ter a marca desta vida.

Se é dentro e através da Igreja que os seres humanos realizam seus destinos únicos,
tornando-se membros do corpo de Cristo, de que maneira essa incorporação é alcançada
nas condições atuais de tempo e espaço, de história? O estado de vida a que somos
chamados e "convocados" na Igreja é o da crescente participação no divino. No
batismo, que marca nossa entrada na Igreja, nós simbolicamente morremos com Cristo a
fim de participar da nova vida de seu corpo espiritualizado ou transfigurado. A semente
divina em nós deve ser nutrida para que cresça e transfigure todo o nosso ser - incluindo
nosso corpo - tornando-o puro, incorruptível, glorioso, perfeito, imortal. Mas para que
possa nos alcançar, esse alimento espiritual que pode estimular e energizar a semente
divina em nós deve ser dado de uma forma que possamos receber e assimilar. Deve ser
dado a nós de uma forma apropriada à nossa condição no tempo e no espaço. Nunca
devemos esquecer que só podemos receber e assimilar as realidades divinas de acordo
com nossa capacidade de recebê-las e assimilá-las; ou - para colocar isso de outra
maneira - só podemos conhecer as realidades divinas (ou quaisquer realidades, de
qualquer modo) de acordo com o modo de nosso ser particular e nossa inteligência. Em
um estado perfeito e glorificado, essas realidades divinas - esse alimento e vida divinos
- podem ser comunicadas a nós de uma maneira não-corpórea, ou pelo menos de uma
maneira consideravelmente mais refinada e sutil do que quando estamos "na terra". Da
mesma forma, a encarnação - o Logos feito carne, feito homem - porque ocorre na
realidade do mundo caído significa que Deus tem que velar a glória de sua divindade de
tal maneira que se torne acessível à falta de visão espiritual, a opacidade e cegueira, e
assim possa ser recebido e assimilado pelo homem. Se tivesse ocorrido antes da Queda,
poderia ter tido uma forma bem diferente. Similarmente, a Igreja, como o locus dentro
do qual este mistério teândrico continuamente ocorre - como o órgão através do qual a
vida em Cristo é comunicada ao homem nas condições decaídas do tempo e espaço -
deve se manifestar de uma forma que possa ser recebida e assimilada pelo homem.
Deve ter um aspecto sensível e conatural ao nosso estado atual, ao nosso estado de
consciência espiritual e receptividade espiritual; um aspecto sensível que corresponde,
ou melhor, é identificado com o aspecto de Cristo visível em sua missão histórica "sob
Pôncio Pilatos."

Este aspecto sensível ou encarnacional da Igreja, através do qual a nutrição espiritual é


comunicada ao homem sob uma forma que ele pode receber e assimilar, manifesta-se
sobretudo na vida sacramental da Igreja e, mais especificamente, no sacramento central
de todos, a Eucaristia. É através dos sacramentos, acima de tudo, que somos
incorporados à vida de Cristo e nos tornamos membros de seu corpo. De acordo com
São Paulo, os cristãos são enxertados em Cristo e assim a vida flui dele para eles. Eles
são refeitos em Cristo e se tornam nele uma nova criação. Eles são membros de Cristo,
partes integrantes do corpo do qual ele é a cabeça. Eles são o corpo de Cristo, um com
sua divindade. A Igreja é esse corpo de Cristo, seu soma, sua noiva. E o processo de
incorporar ou enxertar homens e mulheres individuais no corpo de Cristo, que é a Igreja,
é consumado sobretudo através dos sacramentos e, novamente, sobretudo, através da
Eucaristia. A Igreja está enraizada na pessoa de Cristo, e a participação da
multiplicidade de pessoas humanas na única pessoa de Cristo no tempo e no espaço, na
história, se dá através da Eucaristia. Pois a Eucaristia é a manifestação na terra da
realidade espiritualizada do corpo de Cristo em uma forma que os seres humanos podem
receber e assimilar. E como o corpo de Cristo é a Igreja, segue-se que a Eucaristia, que é
a manifestação deste corpo, é também a manifestação da Igreja na terra. É a Eucaristia
que constitui o princípio e centro da Igreja na terra, e é na Eucaristia que a Igreja vive.

Deste modo, pode-se ver em que sentido a Igreja é uma continuação do mistério
teândrico, do mistério da encarnação; e como a Igreja é muito mais do que
simplesmente uma realidade criada ou uma entidade humana ou social. Como Cristo é a
união de duas naturezas - a divina e a humana, o incriado e o criado -, a Eucaristia, que
é a manifestação do corpo de Cristo, que é a Igreja, é também uma união dessas duas
naturezas, a divina e humana, o incriado e o criado. E é através da participação na
Eucaristia que nós - homens e mulheres individuais - participamos também desse
mesmo processo encarnacional que é consumado na humanidade divina do Logos
encarnado.Nós nos tornamos parte desse mesmo mistério teândrico. Nós nos tornamos
filhos de Deus, co-herdeiros. Nós nos tornamos como Deus, deificados através da
realização de nossa própria natureza divina-humana. Assim, não há questão da Igreja ser
apenas uma realidade criada ou visível, mais do que há uma questão de Cristo ser uma
realidade meramente criada ou visível. Menos ainda há alguma questão de divisão,
lógica, se não real, da Igreja em dois departamentos, um incriado, invisível, celestial e o
outro criado, visível, terrestre. Não há uma Igreja, triunfante, mística, mantida por Deus
em paz e perfeição, e outra militante, in via, institucional. Nem, correspondentemente,
existe uma lei dupla, a Igreja invisível operando de acordo com uma lei divina, e a
Igreja visível operando de acordo com uma lei humana. Assim como em Cristo o divino
e o humano constituem uma só e única Pessoa de quem todas as atividades e operações,
divinas e humanas, têm como sujeito o Logos divino, assim, a Igreja constitui uma
unidade única, indivisa, divina-humana, criada-incriada, operando em qualquer esfera,
invisível ou visível, de acordo com um único modo de atividade divino-humano e
teândrico, do qual novamente o único sujeito é o Logos divino. O sacrifício que Cristo
oferece no altar celestial diante do trono de Deus é um e o mesmo que ele oferece em
incontáveis altares terrenos no mistério eucarístico. E como a Igreja é o corpo de Cristo,
e como o corpo de Cristo se manifesta na Eucaristia, há uma coincidência direta e
imediata entre o incriado e o criado, o invisível e o visível na Igreja: formam uma única
realidade indivisa. Da mesma forma, enquanto os seres humanos participam da
Eucaristia, eles são membros da Igreja através da participação direta e imediata no
corpo de Cristo, na própria vida divina. 'Somos um só pão, um só corpo, pois
participamos de um único pão' (1 Co 10.17). E assim como a comunhão sacramental é
sempre ao mesmo tempo comunhão eclesial, a comunhão eclesial sempre implica e
exige a comunhão sacramental. Estar unidos a Deus na Igreja e participar da Eucaristia;
ter um lugar no Reino de Deus e comungar nos santos mistérios - são operações
simultâneas: formam uma única ação ou realização.

2. O Episcopado

A concepção da Igreja como manifestada na terra como realidade eucarística - pois


tanto a Eucaristia como a Igreja são o corpo de Cristo - também se aplica às funções
apostólicas e ministeriais, no sentido de que essas funções representam certas atividades
dentro da Igreja e assim estão indissoluvelmente ligadas à Eucaristia. A primeira dessas
funções é claramente a celebração da própria Eucaristia e a manutenção das condições
sob as quais ela pode ser celebrada e sob a qual os fiéis podem participar dela. Está
ligada à adoração no sentido mais direto, com ordem e prática litúrgica. Mas essas
funções ministeriais não são de modo algum limitadas a esse aspecto. Aqueles que
participam da vida da Igreja também devem ser educados na fé, na santidade, na
comunhão e assim por diante. Para este fim, a Igreja tem que ter certas regras, um certo
procedimento. Tem que possuir a estrutura através da qual tudo isso - a fé, a comunhão,
as regras, o procedimento - são transmitidos de geração em geração, através do tempo,
através da história.

Todas as formas institucionais ou eclesiásticas da Igreja, hierárquicas e governamentais,


servem a estas funções ministeriais da Igreja - aquelas de manifestar a vida de Deus
para e na humanidade, para e na história. A Igreja, enquanto funciona na terra, não pode
possuir um caráter inteiramente "de outro mundo". A partir do momento de sua
manifestação, conforme testemunhado no Novo Testamento, seus membros se
preocupavam com questões de dinheiro e comida, com o redirecionamento dos
costumes sociais e a criação de novos padrões de comportamento. O cristianismo, por
sua natureza, é hostil aquele tipo de dualismo que oporia radicalmente o espiritual e o
material, o sagrado e o profano; e na medida em que a ordem material, social e
econômica é ou deveria ser uma expressão de princípios religiosos, nessa medida a
Igreja estará envolvida nessa ordem. É claro que a perspectiva dentro da qual o mundo
criado é visto afetará crucialmente essa relação, no sentido de que uma teologia da
criação equivocada impedirá aqueles que a mantém de realizar a missão da Igreja de
maneira totalmente adequada. O significado disso se tornará aparente em um ponto
posterior deste estudo. Aqui, tudo o que tem que ser enfatizado é que, para realizar a sua
tarefa na terra, a Igreja tem que executar certas funções e que, consequentemente, deve
haver pessoas na Igreja capazes de realizar essas funções e assim serem confiadas a
elas.

Novamente, o processo pelo qual essas funções dentro da Igreja chegaram a ser
estabelecidas em certos ofícios definidos não precisa nos deter aqui. É suficiente dizer
que no tempo dos apóstolos parece não haver um ofício definido - à parte do próprio
apostolado, se pode ser chamado de ofício. São Paulo está familiarizado e às vezes
menciona ajudantes particulares e outros funcionários dentro da congregação, e estes
certamente prefiguram o que mais tarde viriam a tornar-se titulares de cargos
estabelecidos. Mas eles não parecem possuir um status e autoridade reconhecidos.
Mesmo as funções cotidianas e os ministérios dentro da Igreja são vistos mais como a
operação de dons espirituais do que como decorrentes de prerrogativas especiais. No
entanto, já no primeiro século, um tipo mais formal de organização começa a emergir -
um tipo de origem judaica, baseado nos chamados presbíteros. Aqui, esses presbíteros,
ou anciãos, começam a possuir uma autoridade especial; e embora isso ainda não seja
apoiado pela lei canônica oficial, há menos ênfase nos dons espirituais e mais no status
legal do ofício como tal. Sem dúvida, a ameaça da confusão das seitas, proliferando e se
dividindo em todas as direções durante a crise gnóstica, fez com que a questão de
salvaguardar e transmitir intacta a doutrina e tradição originais fosse cada vez mais
urgente e exigisse uma forma mais rígida de organização e controle por parte da Igreja.
Em todo caso, essa forma mais estrita de organização e controle é evidente na formação
de um cânone apostólico e no estabelecimento de um ofício apostólico. No terceiro
século, o mais tardar, este ofício é investido firmemente nos bispos.
A questão, no entanto, não é quando o episcopado surgiu, mas sua justificação e sanção
como representando uma função orgânica dentro do corpo de Cristo. Todas as funções
hierárquicas e apostólicas são, por definição, funções especiais do corpo vivo de Cristo,
necessárias para a expressão ou manifestação da vida que anima o todo no mundo do
tempo e lugar. Nesse sentido, elas são a expressão ou manifestação da presença de
Cristo. Cristo é a única verdadeira cabeça e liturgista da Igreja, tanto de seus aspectos
invisíveis quanto visíveis, e exerce esses papéis direta e imediatamente através dela e
nela. Nenhuma pessoa ou princípio ou ofício pode tomar o lugar de Cristo na Igreja, ou
exercer um vicariato para ele como se ele nem sempre estivesse e em todas as
circunstâncias ativamente e plenamente presente. Cristo nunca pode estar ausente da
Igreja, mais do que uma cabeça pode estar ausente de um corpo vivo; e sua chefia
pessoal não pode ser substituída pela de outra pessoa ou pessoas, assim como uma
cabeça humana não pode ser substituída pela de outra pessoa em um corpo particular.
Cabeça e corpo estão interligados e formam uma única realidade indivisível, e nenhum
deles é capaz de funcionar à parte do outro, nem esta realidade única é capaz de
funcionar a menos que estejam indissoluvelmente unidos. A Igreja, isto é, não pode
funcionar à parte da união indissolúvel de sua cabeça e corpo na Pessoa de Cristo.
Aqueles aspectos que têm que funcionar no tempo e lugar, na história, não escapam
desta lei. Eles também não podem funcionar de forma alguma à parte de sua integração
com a única realidade que é a Pessoa de Cristo. Eles não podem ser abstraídos desta
Pessoa, e administrados ou governados por outra autoridade que não é Cristo ou que
afirma tomar o seu lugar. Eles pertencem inalienavelmente a toda essa realidade
integral, indivisível e perfeita, parte visível, parte invisível, toda espiritual ou
espiritualizada, que constitui a Pessoa viva de Cristo. É por isso que todas as funções
apostólicas ou ministeriais na Igreja são e devem ser consideradas como expressões
orgânicas - partes e membros - do corpo vivo de Cristo.

Além disso, essas funções não são exercidas sobre a Igreja. Eles são exercidos dentro da
Igreja e derivam da Igreja. Os aspectos puramente visíveis ou institucionais da Igreja
não têm identidade autônoma que exija o exercício de um governo ou de uma jurisdição
sobre eles. Eles não constituem uma sociedade independente como a de qualquer outra
sociedade humana ou coletividade na qual os seres humanos estão reunidos para o
cumprimento de algum propósito particular. Não se pode enfatizar demasiadamente que
a Igreja é uma realidade divino-humana e que abstrair os aspectos humanos do divino e
considerá-los como constituindo um aspecto independente ou quase independente que
deve ser governado em si mesmo, à parte de seu aspectos divinos ou celestes ou
sobrenaturais, é mutilar essa realidade em seu coração. As funções hierárquicas e
governamentais da Igreja na terra não são funções paralelas a outro nível e funções
similares que estão sendo exercidas com respeito à Igreja no céu. Essa noção de um tipo
de organização paralela, na qual as leis que operam com respeito à Igreja no céu são
imitadas com respeito à Igreja na terra, de maneira que todas as suas feições imaginadas
se repetem à distância e em termos de leis humanas, não tem sentido que se refere à
Igreja. Assim como a Eucaristia na terra não é a imitação remota da Eucaristia celestial
celebrada por Cristo diante do trono de Deus, mas é esta mesma Eucaristia celestial em
uma forma visível, também as funções hierárquicas e ministeriais exercidas na Igreja na
terra são visíveis extensões de funções orgânicas operando dentro da realidade única da
Igreja integral, indivisível e simultaneamente visível e invisível, terrena e celestial,
humana e divina. Não pode haver autoridades, hierárquicas ou outras, que exercem
vicariamente e instrumentalmente na Igreja na terra o ministério de Cristo, porque onde
Cristo não exerce o seu próprio ministério e onde ele não vive misticamente ou
interiormente no corpo dos fiéis não existe igreja. Onde a congregação dos fiéis, seja
uma única pessoa, não está vivendo direta ou internamente na vida de Cristo, não existe
e nunca pode haver qualquer questão da Igreja.

A partir disso, ficará claro que o ofício do bispo só pode ser justificado e sancionado se
manifestar na forma visível e na terra uma função intrínseca à realidade arquetípica e
eterna da Igreja como tal. Com efeito, como vimos, a plenitude da Igreja manifesta-se
na terra na Eucaristia. Pode-se dizer que é dentro e através da Eucaristia que a
verdadeira catolicidade da Igreja é manifesta. Esta natureza católica da Igreja é muitas
vezes interpretada em um sentido exclusivamente geográfico ou quantitativo, e por isso
tomada para indicar que a Igreja tem potencialmente, se não de fato, uma extensão
temporal e espacial entre todos os povos em todo o mundo. Santo Agostinho dá-lhe esse
significado em seus argumentos contra os donatistas e, no século III, Cirilo de
Jerusalém já vincula a ideia de catolicidade à inclusão geográfica. Isso equivale
virtualmente a equiparar catolicidade com ecumenicidade e, assim, obscurecer o sentido
original e mais profundo da palavra e reduzir seu significado. Em seu sentido original e
mais profundo, a palavra católico, quando aplicada à Igreja, não tem essa conotação
quantitativa e geográfica, ou pelo menos a tem apenas de maneira secundária e
derivada. Essencialmente, a Igreja não é católica em relação à topografia ou ao espaço,
ou em relação ao fato de que ela abrange uma multidão de comunidades locais dentro de
uma coletividade mais ampla. A catolicidade não é um termo coletivo. O que
essencialmente denota é a integridade interior e a plenitude espiritual da Igreja. Tem,
isto é, um sentido estritamente qualitativo. Ele denota plenitude, completude, o que é
essencial e não o que é acidental. Tem consequentemente, como a própria Igreja, raízes
trinitárias e cristológicas. A Igreja é católica porque vive em Cristo. É a expressão da
totalidade, a completude ou plenitude da verdade que é Cristo. A catolicidade de sua
cabeça - Cristo - é o princípio da catolicidade da Igreja como o corpo de Cristo; e é
precisamente sua capacidade de manifestar a vida e a verdade divinas em sua plenitude
a todas as criaturas que constitui a catolicidade da Igreja.

Mas essa plenitude de vida e verdade em Cristo é manifestada na terra na forma da


Eucaristia. A Eucaristia é a manifestação de Cristo. Isto significa que o significado da
palavra catolicidade em sua aplicação à Igreja em sua manifestação no tempo e lugar é
também indissoluvelmente ligado à Eucaristia. Onde Cristo é manifesto na Eucaristia,
ali está a Igreja Católica. E como Cristo é manifesto em cada igreja local em que a
Eucaristia é celebrada, cada igreja local é em si mesma a Igreja Católica. É a Igreja
Católica porque "localiza", no tempo e no espaço, na história, a plenitude da vida e da
verdade em Cristo. Deste modo, a catolicidade e a unidade da Igreja estão também
indissoluvelmente ligadas. Cada igreja local é a Igreja Católica em virtude do fato de
que manifesta o corpo de Cristo na Eucaristia. Mas pela mesma razão também está
unida, ou em unidade, porque a vida divina manifesta no corpo de Cristo é uma só:
Deus é um. Não pode haver uma igreja local que seja mais católica ou mais unida do
que outra, porque uma manifestação da Eucaristia não pode ser mais ou menos a
manifestação do corpo de Cristo do que outra. O corpo de Cristo deve sempre ser igual
a si mesmo. Da mesma forma, uma igreja local não pode ser o princípio da catolicidade
e da unidade das outras. O princípio da catolicidade e unidade da Igreja reside na pessoa
de Cristo; e como Cristo está igualmente presente sempre que seu corpo é manifesto, o
princípio da catolicidade e da unidade está igualmente presente. A igreja local que
manifesta o corpo de Cristo não pode ser incluída em nenhuma organização ou
coletividade maior que a torne mais católica e mais unida, pela simples razão de que o
princípio da catolicidade total e da unidade total já é intrínseco a ela. Se não fosse
intrínseco, não seria uma igreja. Em outras palavras, a catolicidade e a unidade das
igrejas locais não são constituídas essencialmente porque cada uma é membro de um
corpo maior, corporativo e institucionalizado chamado Igreja. A catolicidade e unidade
das igrejas locais deriva essencialmente da posse de cada uma da vida de Cristo. Cada
igreja local é o organismo no qual a Igreja Católica se manifesta no tempo e lugar.
Cristo é aquele que confere unidade aos muitos.

Neste ponto, pode-se perguntar qual é a diferença entre catolicidade e unidade, uma vez
que ambos têm seu princípio em Cristo e ambos se manifestam em cada centro
eucarístico local. A resposta a essa questão pode ser que a unidade se refere àquele
aspecto de Cristo segundo o qual ele expressa a atividade única unida da Santíssima
Trindade. A unidade da Igreja, isto é, é essencialmente trinitária. A catolicidade, por
outro lado, pode ser tomada para se referir a Cristo na medida em que ele é o poder
criativo que traz consigo as múltiplas sementes divinas, o logoi, de todas as criaturas.
Refere-se, isto é, mais diretamente à Pessoa de Cristo. É a unidade do Deus triuno
voltado como se fosse para fora e expressando-se no relacionamento entre Cristo,
manifestado no Espírito Santo e a multiplicidade de criaturas. É uma manifestação desta
unidade através da qual tudo é realizado em Cristo, tudo se integra ao seu corpo e
compartilha em sua glória, cada criatura da maneira que é unicamente ajustada ao seu
próprio ser e identidade.

A atividade arquetípica e eterna da Igreja é, portanto, aquele sacrifício que Cristo


oferece diante do trono de Deus e que se repete no mistério eucarístico oferecido nos
incontáveis altares das igrejas locais, cada igreja local manifestando assim a unidade
essencial e catolicidade da Igreja. No que diz respeito a manifestação da Igreja na terra,
o paradigma deste mistério eucarístico é dado por Cristo em sua última ceia com seus
discípulos. É desta forma que o sacrifício que Cristo oferece diante do trono de Deus e
que constitui a atividade arquetípica e eterna da Igreja é repetido na terra; e é nessa
forma, conseqüentemente, que a Igreja é manifestada na terra. No paradigma desta
forma como é dada por Cristo na Última Ceia, é o próprio Cristo que age como sua
própria imagem: enquanto ele celebra na terra diante de seus discípulos, ele celebra no
céu diante do trono de Deus. É uma e a mesma pessoa que opera o sacrifício em ambos
os casos, e essa pessoa é Cristo. Mas este princípio de que é uma e a mesma pessoa -
Cristo - que opera o sacrifício tanto no céu como na terra, é válido em cada caso que é
operado na terra, pois em cada caso é o mesmo sacrifício que está sendo oferecido,
quando e onde quer que seja oferecido. Por conseguinte, ninguém pode tomar o lugar ou
substituir Cristo no mistério eucarístico da igreja local: é e deve ser sempre Cristo quem
celebra seu próprio mistério. Tudo o que é possível é alguém tornar visível a presença
invisível de Cristo e, assim, agir como sua imagem. Agir como uma imagem não é
trocar ou substituir um protótipo que está ausente. É compartilhar e tornar visível um
protótipo que está invisivelmente presente.

Este papel de agir como a imagem de Cristo na celebração do mistério eucarístico é


conferido em princípio por Cristo em seus apóstolos. Constitui a base do ofício
apostólico na Igreja. Através da graça que lhes foi conferida por Cristo (Jo 20,22-3) e
confirmada no Pentecostes, os apóstolos têm o poder de conferir este ofício àqueles que
então são igualmente qualificados para agir como as imagens de Cristo na celebração do
mistério eucarístico. Aqueles a quem eles conferem são os bispos da Igreja. Os bispos
são assim os sucessores dos apóstolos. Eles são os sucessores no sentido de que ocupam
o ofício apostólico. E este ofício em si é essencialmente o que é porque, ocupando-o, o
seu titular tem o direito de agir como a imagem de Cristo na celebração desse mistério
eucarístico através do qual a Igreja se manifesta na terra. É o fato de que, assim, o bispo
manifesta de forma visível e na terra uma função intrínseca à realidade arquetípica e
eterna da Igreja como tal que justifica e sanciona seu ofício.

Assim, como em muitos outros lugares onde a manifestação da Igreja na terra está em
causa, o ofício do bispo está também indissoluvelmente ligado à Eucaristia, e não tem
validade para à parte desta estrutura. Isso quer dizer que o ofício de bispo não tem
poderes legítimos, exceto aqueles que deriva de seu status sacramental. Não tem
poderes que derivam de uma fonte extra-sacramental ou extra-eclesial. É a função
sacramental que confere quaisquer poderes que o bispo tenha, quer estejam diretamente
relacionados com a administração dos sacramentos ou apenas indiretamente
relacionados com ela. A esse respeito, pode-se dizer que a Eucaristia e o bispo
constituem dois elementos básicos e interconectados da atividade histórica da Igreja.
Sem a Eucaristia, não há manifestação do corpo de Cristo. Sem o bispo (aqui entendido
como o repositório daqueles poderes sacramentais que ele pode em certas circunstâncias
delegar a outros sacerdotes), não pode haver celebração do mistério eucarístico. É por
isso que Santo Inácio, por exemplo, pode dizer não apenas que onde Cristo está, ali está
a Igreja Católica, mas também que onde o bispo está, ali está a Igreja. E ele também
pode dizer, em sua carta aos Esmírios: “Que ninguém pertencente à Igreja faça algo sem
o bispo. A Eucaristia que é celebrada pelo bispo, ou por quem o bispo permite - essa é a
verdadeira Eucaristia. Assim, onde quer que apareça o bispo, que lá também estejam os
leigos."

Isso introduz o terceiro elemento básico - também interconectado com os outros dois -
constituindo a vida histórica da Igreja, a saber, os leigos. O fato de os bispos ou os
nomeados pelos bispos exercerem, por virtude de qualificações especiais, funções
especiais no corpo dos fiéis, não significa que o episcopado constitua uma casta especial
colocada contra ou à parte dos leigos. Ao contrário de uma sociedade civil, a Igreja não
tem governantes e governados. Só tem membros - como um corpo vivo, ou organismo,
só tem membros. É verdade que alguns desses membros cumprem certas funções
específicas que outros não cumprem. Mas essencialmente eles pertencem ao mesmo
corpo. E embora o bispo ocupe um ofício apostólico especial em virtude do fato de que
ele é o tipo ou a imagem de Cristo na celebração do mistério eucarístico na igreja local,
ainda assim a celebração desse mistério não ocorre no vácuo, mas somente em relação
aos leigos que dela participam. Além disso, deve ser lembrado que, na medida em que
os leigos participam da Eucaristia, ou na medida em que seus membros vivem na vida
de Cristo e se tornam membros da Igreja, também eles constituem um sacerdócio real e
participam nas funções de sumo sacerdócio de Cristo. A este respeito, portanto, o bispo
é apenas o representante dos leigos na igreja local em particular em que ele oficia,
exercendo em nome dos membros da igreja local essas funções de sumo sacerdote que
todos possuem em virtude de sua participação na vida de Cristo. Os leigos delegam ao
bispo as funções especiais para as quais todos os membros da Igreja são herdeiros.
Corretamente falando, é o laicato da igreja local que deve escolher seu próprio bispo,
que é então confirmado em seu ofício apostólico por outros bispos. Desta forma, o bispo
incorpora a igreja local a qual ele preside não apenas porque ele é a imagem ou tipo de
Cristo na celebração eucarística que define principalmente a sua existência, mas
também porque ele age em favor e em nome de seus membros leigos na própria súplica,
invocação e oferta deles diante do trono de Deus. A Igreja não pode funcionar na terra
sem os bispos e seus assistentes. Mas igualmente não pode funcionar na terra sem os
leigos.

As mesmas conclusões aplicam-se a outros aspectos do ofício apostólico do bispo.


Como já foi assinalado, a função apostólica do episcopado não se limita unicamente ao
ato de celebrar o mistério eucarístico ou de estabelecer as condições sob as quais ele
pode ser celebrado e sob o qual os fiéis podem participar. Não se limita a adorar em seu
sentido mais direto - à ordem e prática litúrgica. Sem dúvida, essa função eucarística é a
principal função do bispo. É a função que determina seu próprio ofício. Mas, como já
foi observado, a Igreja é católica porque manifesta a plenitude da verdade que está em
Cristo para todas as criaturas. É na medida em que cada igreja local faz isso que pode
reivindicar ser a Igreja Católica. Aqui também o papel do bispo é crucial. Como o tipo
ou imagem de Cristo na igreja local, ele é o órgão visível para a expressão dessa
catolicidade. Ele é seu porta-voz. Ele é responsável por manifestar a vida em verdade
aos membros de sua igreja, por educá-los na verdadeira fé (a qual ele tem que manter e
transmitir), por encorajá-los e discipliná-los em santidade, comunhão e assim por
diante. Em outras palavras, o magistério da Igreja, cujo princípio é Cristo, é investido
em cada bispo como a imagem de Cristo em cada igreja local. Está investido nele em
virtude de sua função eucarística ou sacramental. A plenitude da verdade reside em
Cristo, ou é Cristo, e ele é o critério último da vida em verdade. Mas Cristo - o Cristo
inteiro - é manifestado na Eucaristia. Assim, é a Eucaristia que incorpora e manifesta a
plenitude da verdade na terra e é o critério da vida em verdade. E o órgão através do
qual essa plenitude da verdade é expressa em cada igreja local é o bispo.

Mas, novamente, o bispo não cumpre esta função no vácuo, ou corta-se e isola-se e
separa-se dos leigos. Pois na medida em que os membros dos leigos participam do
mistério eucarístico e assim vivem sua vida em Cristo, nessa medida também participam
da plenitude da verdade. Nessa medida, também eles devem compartilhar no Magistério
da Igreja. Eles devem dar testemunho da verdadeira fé, devem mantê-la e proclamá-la e
transmiti-la. Eles em conjunto com o bispo são co-responsáveis pela expressão da
catolicidade da Igreja na terra. A este respeito também, portanto, o bispo é apenas o
representante dos leigos. Ele é o delegado dos leigos, a voz através da qual a plenitude
da verdade presente em todo o corpo sobre o qual ele preside é expressa. Por
conseguinte, também nesse sentido, portanto, o laicato possui uma função apostólica.
Seus membros são também órgãos do corpo vivo da Igreja e devem dar testemunho da
vida e da verdade que animam o todo. E deve ser lembrado neste contexto que a Igreja é
apostólica não porque remonta aos tempos históricos em que os apóstolos viveram na
terra. É apostólica porque é manifesta naquelas funções que os apóstolos foram
capacitados a cumprir por Cristo. Essas funções são intrínsecas à realidade eterna da
Igreja. Elas são apenas como se fossem acidentalmente realizadas no tempo, na história.
Mas é porque são realizadas na história em cada centro eucarístico local cujos membros
- bispo e leigos - vivem na vida de Cristo, que este centro é plenamente a Igreja
Apostólica. Cada igreja local constitui, portanto, não apenas a Igreja Católica em um
sentido total. Também constitui a Igreja Apostólica em um sentido total.

Chegamos agora a um ponto em que podemos resumir o que foi dito sobre a
constituição da Igreja na terra. Vimos que a catolicidade da Igreja na terra não reside
essencialmente no fato de que a Igreja tem uma difusão mundial ou é ecumênica. A
catolicidade não deve ser identificada com a ecumenicidade, que tem precisamente essa
conotação geográfica mundial. Nem o fato de cada igreja local ser parte de uma
assembléia maior ou organização ou corporação de igrejas locais confere-lhe sua
catolicidade. Novamente, a catolicidade não é uma realidade coletiva ou quantitativa.
Pelo contrário, a catolicidade - e a apostolicidade - da igreja local é constituída pelo fato
de que ela incorpora e manifesta de maneira dinâmica aquela plenitude da verdade que
está em Cristo. Cada igreja local não faz parte de um todo maior. É a manifestação do
todo. A igreja local, como o próprio nome denota, 'localiza' o Reino de Deus e o
manifesta no tempo e lugar. O Espírito Santo - pois, na igreja local, Deus é manifesto no
Espírito e, através dele - constitui a Igreja de Deus em cada lugar particular. É por isso
que São Paulo, por exemplo, se refere à "Igreja de Deus que está em Corinto" e assim
por diante (1Cor 1,2; 2Cor 1,1). E por que ele pode falar da igreja local de Deus como
constituindo toda a Igreja (1 Cor. 14.23). A partir disso, ficará claro que cada igreja
local adequadamente constituída é tanto a Igreja quanto qualquer outra igreja local.
Tanto quanto qualquer outra igreja local, é um centro visível da catolicidade,
apostolicidade e unidade da Igreja. Pela natureza da constituição da igreja local, não
pode haver uma igreja local em particular que possa afirmar ser mais o centro visível ou
expressão da catolicidade, apostolicidade e unidade da Igreja do que qualquer outra
igreja local.

Desta catolicidade, apostolicidade e unidade da igreja local, o bispo não é meramente o


sinal externo. Ele é a expressão viva delas. Em virtude de seu ofício na igreja local,
onde ele permanece como a imagem de Deus e como representante da congregação, ele
personifica a plenitude daqueles poderes, magisteriais, sacerdotais e governamentais,
que Cristo conferiu aos apóstolos. Ele incorpora essa plenitude não simplesmente
porque ele é o sucessor dos apóstolos - e cada bispo é singularmente o sucessor dos
apóstolos - mas porque em sua igreja ele cumpre as funções que têm seu princípio em
Cristo. Elas constituem seu ofício. A partir disso, também ficará claro que, assim como
uma igreja local em particular não pode pretender incorporar a catolicidade, a
apostolicidade e a unidade da Igreja a um grau maior do que qualquer outra, um bispo
em particular não pode alegar incorporar os vários poderes e funções— sacramental ou
jurisdicional - investido em seu cargo em um grau maior do que qualquer outro bispo.
Pela natureza da constituição de seu ofício, cada bispo deve ser essencialmente igual em
poder com todos os outros bispos. É através da manifestação de um mistério e fé
idênticos que cada bispo é totalmente católico e apostólico, assim como cada igreja
local é totalmente católica e apostólica pela mesma razão. E é também pela mesma
razão que cada bispo incorpora igualmente com cada outro bispo o princípio da unidade
da Igreja e é sua expressão visível na terra.

Segue-se daí que a identidade na unidade, apostolicidade e catolicidade de cada igreja


local e seu bispo através da posse de um mistério e fé idênticos constituirão o critério
que regula as relações entre as várias igrejas locais e seus bispos. Constituirá o critério
de sua unidade uns com os outros em uma Igreja católica e apostólica. Em outras
palavras, nós encontramos aqui os princípios por trás da instituição dos Concílios da
Igreja, aquelas assembleias de bispos chamados para averiguar se todos possuem um
mistério e fé idênticos ou, de fato, determinar o que são e como podem ser
adequadamente formulados.

3. A Estrutura Conciliar

Vimos que a igreja local é determinada pelo fato de localizar a Igreja de Deus e, assim,
é a Igreja de Deus, num sentido total e não apenas parcial. É a Igreja Católica em sua
plenitude. Vimos ainda que essa qualidade é inerente a ela em virtude de sua
constituição como uma realidade eucarística. Além disso, os critérios objetivos de
acordo com os quais a genuinidade ou legitimidade de cada igreja local pode ser
avaliada são fornecidos pelo seu caráter apostólico. Isto não significa apenas que ela
traça sua fundação, direta ou indiretamente, aos apóstolos ou que seu bispo compartilha
da sucessão apostólica. Significa também que cumpre as funções que Cristo conferiu
aos apóstolos e que manifesta a verdade de que eles deram testemunho. É a
conformidade com esses critérios que constitui não apenas a genuinidade ou
legitimidade de cada igreja local, mas também a base de seu relacionamento com outras
igrejas locais. Constitui a base para a intercomunhão entre as igrejas locais. Segue-se
daí que a comunhão ou relação entre as igrejas locais não é estabelecida porque cada
uma constitui uma parte cujo propósito real só pode ser alcançado na condição de que
ela se une a partes similares para formar um todo coletivo maior. Estabelece-se porque
cada uma possui uma realidade interior idêntica, da qual cada uma incorpora a
totalidade. Cada uma possui uma natureza comum, a totalidade da qual inclui dentro de
si. Pode-se dizer, em outras palavras, que a relação ou comunhão entre as igrejas locais
segue o padrão que se aplica no caso, não de indivíduos, mas de pessoas.

Para entender o significado disso, é preciso entender a distinção entre essas duas
categorias, tão confundida pelos sociólogos e filósofos modernos, da pessoa e do
indivíduo. Aqui, a primeira coisa a notar é que, diferentemente do indivíduo, a pessoa
não é uma categoria quantitativa, no sentido de que ela pode ser numerada de forma
aritmética e, assim, fazer parte de um total impessoal. A pessoa é uma categoria
qualitativa, que deriva da posse de certas qualidades interiores. Assim, a pessoa não tem
nada a ver com números e transcende e até mesmo abole categorias aritméticas. A lei
aritmética, por exemplo, segundo a qual dois indivíduos são duas vezes um indivíduo,
não se aplica a pessoas. O indivíduo pode fazer parte de uma coletividade quando
adicionado a outros indivíduos: ele pode fazer parte de um grupo unido para alcançar
algum objetivo. A pessoa, por outro lado, é a "imagem de Deus", um valor espiritual, e,
portanto, não pode ser recrutada em um grupo ou coletividade vinculado dessa maneira
a cumprir um propósito comum. Ela não pode ser um meio para qualquer fim. Ela é seu
próprio propósito, seu próprio fim e é única. Todo uso da pessoa como meio de atingir
algum objetivo coletivo - até mesmo o objetivo coletivo mais sublime - a reduz a um
indivíduo, a um ego, e a deprecia de seu status como imagem de Deus. Uma relação
entre pessoas, consequentemente, não pode ser estabelecida por meio de qualquer
vínculo exterior ou constituição. Ela só pode ser estabelecida pelo reconhecimento
mútuo de que cada uma possui e incorpora as mesmas qualidades internas, uma
realidade interior idêntica. É essa posse de qualidades interiores e de uma realidade
interior idêntica que constitui a base do relacionamento e do princípio da unidade entre
uma pessoa e outra.

À luz dessa distinção, é possível ver o que se entende dizendo que a relação ou
comunhão entre as igrejas locais segue o padrão - ou deveria seguir o padrão - que se
aplica no caso de pessoas e não de indivíduos. Se seguisse o padrão que se aplica no
caso de indivíduos, então cada igreja local seria considerada como uma igreja individual
que poderia ser unida a outras igrejas locais individuais para formar um todo coletivo
maior, uma estrutura abrangente dedicada ao comum propósito de servir a Cristo e de
moldar uma comunhão ou sociedade cristã. É esse todo coletivo que agora seria
chamado de Igreja, pois ele incluiria em seu ser maior todas as igrejas locais menores, o
que constituiria partes de seu todo; e a unidade desta Igreja seria formada exatamente da
mesma forma que qualquer outra sociedade humana e terrena composta de indivíduos
que se uniram para alcançar algum objetivo coletivo. Deste modo, a intercomunhão - se
é que pode ser chamado assim - entre as igrejas locais seria estabelecida com base em
que cada uma subscreve este objetivo coletivo comum e está disposta a se comprometer
com as leis e regulamentos e assim por diante necessários para alcançá-lo - leis e
regulamentos estabelecidos por um corpo diretivo ou agente instituído com a finalidade
de formulá-los e aplicá-los.

Quando, por outro lado, a relação ou comunhão entre as igrejas locais segue o padrão
que se aplica no caso das pessoas, então cada igreja local será considerada como uma
pessoa - de fato, como manifestação da Pessoa de Cristo. Não será considerada como
uma entre muitas, ou uma de muitas, ou parte de um todo, ou uma parte que possa ser
incluída em um todo maior. Não pode ser incluída em uma organização a fim de
alcançar algum objetivo maior ou mais significativo do que aquele que realiza ou pode
realizar através de sua identidade intrínseca e única. Não pode ser tratada como um
meio para um fim que é extrínseco a si mesma ou que não pode ser totalmente realizado
dentro de si, e por si mesma. É seu próprio fim ou propósito; e usá-la ou considerá-la
como um meio para atingir algum propósito coletivo - por mais nobre ou cristão que
possa parecer - que só pode ser alcançado na condição de que ela aceite tornar-se parte
de um todo maior, mais inclusivo e abrangente é reduzi-la de pessoa a indivíduo. É
cortá-la de suas raízes vivas na Pessoa de Cristo, como o corpo de Cristo, a fim de fazê-
la servir a uma concepção "mística" puramente abstrata, divorciada tanto do contexto
eucarístico como da própria Pessoa de Cristo. Em outras palavras, quando a comunhão
ou relação entre as igrejas locais segue o padrão que se aplica no caso das pessoas, ela
será estabelecida não através de qualquer laço externo, mas através do reconhecimento
mútuo de que cada uma possui e incorpora as mesmas qualidades internas, uma
realidade interna idêntica. É essa realidade interior que as une e constitui o princípio da
unidade entre elas. Em termos concretos, elas estão relacionadas ou em comunhão umas
com as outras, porque cada um manifesta o corpo de Cristo e vive na verdade da vida
em Cristo, consolidando essa unidade interior e católica no mistério eucarístico e na
identidade de sua fé.

Quando, portanto, se trata de dar expressão a essa unidade e identidade interior no plano
externo em termos de uma estrutura orgânica envolvendo as igrejas locais e trazendo-as
para um relacionamento externo orgânico, um papel crucial será desempenhado pelo
bispo de cada igreja local. É o bispo que, como vimos, incorpora a igreja local: ele é o
órgão visível de sua catolicidade e unidade, tanto como imagem de Cristo como
representante dos leigos. Ele é uma espécie de coincidência dos pólos divino e humano,
assim como o próprio mistério eucarístico é uma coincidência desses pólos. É porque é
constituído desta maneira que, como também temos observado, o ofício de um bispo
não pode ser de maior ou menor significado que o de qualquer outro bispo: todos são
essencialmente iguais. De fato, pode-se dizer que cada bispo ocupa o trono do único
bispo da Igreja. Cada bispo ocupa o trono de São Pedro, que é o de Cristo. Este trono
indica as funções concretas cumpridas pelo bispo na igreja local. São essas funções que
fazem o ofício do bispo. E este trono de São Pedro é também o de Cristo porque as
funções apostólicas que o constituem e que têm o seu princípio em Cristo como cabeça
da Igreja são conferidas por Cristo em primeiro lugar, cronologicamente, a Pedro, de
modo que a este respeito existe uma identidade interior entre Cristo e Pedro: uma
identidade interior que constitui a essência da relação entre pessoa e pessoa. Portanto,
não há contradição na afirmação de que a Igreja é fundada sobre e na Pessoa de Cristo e
sobre e na pessoa de Pedro, e que ambos estão identificados com a 'rocha' na qual a
Igreja é estabelecida.

Além disso, essa identificação da rocha na qual a Igreja é fundada com a Pessoa de
Cristo e a pessoa de Pedro de modo algum impede a interpretação (comum nos escritos
patrísticos) de que ela denota, não a pessoa, mas a fé de Pedro. A identidade das
qualidades interiores que, a este respeito, constitui a essência do relacionamento entre
Cristo e Pedro, consiste, acima de tudo, na posse mútua daquela verdade que está em
Cristo. É a verdade de quem Cristo é que é revelado a Pedro não por carne e sangue,
mas por Deus o Pai no Espírito Santo: que ele é o Filho do Deus vivo. É assim em
virtude do fato de que Pedro incorpora e expressa esta verdade e é o órgão da verdadeira
fé cujo princípio é Cristo - é em virtude disto que a pessoa de Pedro se torna a rocha
sobre a qual a Igreja é fundada. É em virtude disto também que cada bispo que expressa
a verdadeira fé também possui a verdade em Cristo; e é através desta possessão de uma
realidade interior idêntica que ele está relacionado diretamente a Pedro e a Cristo e
assim ocupa o único trono de Pedro que é também o trono de Cristo. É porque eles
expressam o Logos da Verdade que todos os bispos são, ex officio, os sucessores de São
Pedro, e estão investidos das funções apostólicas que Cristo conferiu em primeiro lugar
a São Pedro. E é porque seu ofício concretiza essas funções que o bispo tem um papel
crucial a desempenhar em qualquer estrutura orgânica que envolva as igrejas locais e
através do qual sua unidade interna e identidade na fé são dadas uma expressão exterior.

Pois qualquer que seja a posição na teoria, na prática as diferenças surgem sobre o que
constitui a verdadeira fé - diferenças tanto dentro de uma comunidade local como entre
uma igreja local e outra. "Ouvi dizer que há divisão entre vocês", escreveu São Paulo
aos coríntios; e heresias e cismas se multiplicaram nos séculos seguintes e ainda
proliferam. Portanto, onde há uma disputa sobre a verdadeira fé ou outra questão que
afeta a vida da Igreja na terra, surge imediatamente a questão sobre quem ou o que deve
decidir onde está a verdade. Quem ou o que deve decidir em qual igreja local ou grupo
de igrejas locais, dentre os quais bispo ou grupo de bispos, a tradição apostólica está
sendo mantida? Aqui, à luz do que já foi dito, só pode haver uma resposta: é com todo o
corpo de fiéis - o povo de Deus - que a responsabilidade reside em última instância. Mas
como o corpo dos fiéis está em cada comunidade local representada pelo bispo, e como
em virtude de seu ofício apostólico o bispo tem um status especial dentro da igreja
local, esta responsabilidade deve ser expressa através do bispo. São os bispos -
igualmente, unicamente e de forma unida - que, em primeira instância, são encarregados
da tarefa de salvaguardar, defender e comunicar a integridade da tradição apostólica.
Assim, quando há qualquer disputa sobre qualquer questão dentro de uma igreja local
ou entre igrejas locais, a tentativa de resolvê-la deve ser feita em primeiro lugar pelos
bispos, seja através de uma parte deles ou através de todos eles reunidos em concílio
para pronunciar sobre isso. Pela própria natureza das igrejas locais e do ofício do bispo
dentro delas, não pode haver nenhuma autoridade extra-episcopal ou extra-sacramental
que possa usurpar esta tarefa e reivindicar agir como o critério ou árbitro da tradição
apostólica ou exercer o magistério da Igreja na terra de uma maneira que desloca o
episcopado desse papel crucial.

Tudo isso resulta implicitamente ou explicitamente do que foi dito sobre a constituição
da Igreja na terra e do status do bispo dentro dela. Esta constituição e status fornecem a
base teórica e real para a estrutura conciliar através da qual as igrejas locais expressam a
unidade de sua fé e regulam qualquer disputa ou divergência entre si. O concílio - acima
de tudo, um concílio ecumênico - é um órgão de autoridade na Igreja a esse respeito,
porque expressa a plenitude da fé mantida em princípio por todas as igrejas locais e por
todos os membros da Igreja. Não deve haver confusão sobre isso. Um concílio - até
mesmo um concílio ecumênico - não é um corpo autoritário, ainda menos infalível, por
si só. Seus pronunciamentos não têm ipso facto o mesmo caráter em relação às igrejas
locais que as leis decretadas por um governo civil têm em relação aos membros daquela
sociedade a que se destinam a se aplicar. Os pronunciamentos de um concílio - até
mesmo de um concílio ecumênico - têm autoridade somente enquanto concordam, e
somente na medida em que expressam, a totalidade da verdade em Cristo manifesta em
cada igreja local e em cada membro de cada igreja local separadamente. Não é o caso de
que os bispos se reúnem para debater uma questão à maneira de um parlamento civil e
depois promulgam uma decisão majoritária que se torna uma lei obrigatória para todos
os membros da assembléia e até mesmo para aqueles que não compareceram a suas
sessões. Não é o caso também de que o episcopado como um todo é o sucessor dos doze
apóstolos, como se o colégio ou "coral" dos Doze tivessem sido divididos entre todos os
bispos locais, isso fazendo de um concílio uma espécie de continuação do apostolado
em maior escala. O episcopado não é um corpo colegial.

O que se pretende através de um concílio é que a identidade da fé manifesta em cada


igreja local, e consequentemente investida em cada bispo, seja afirmada e confirmada
através do testemunho mútuo de todos os bispos. É o fato de que seus pronunciamentos
afirmam e confirmam a unidade e catolicidade da verdade estabelecida a priori na Igreja
- e através do próprio ato de fundação da Igreja - que faz de um concílio um órgão
autoritário na Igreja. Os pronunciamentos dos concílios não são e não podem ser o
critério da autenticidade da afirmação de que uma igreja local é a Igreja de Cristo. É o
corpo inteiro da Igreja que é o critério da ortodoxia. É a Igreja que determina os
concílios, não os concílios que determinam a Igreja. É por isso que os pronunciamentos
dos concílios - mesmo dos concílios ecumênicos - não podem ipso facto ter um caráter
infalível. Infalibilidade reside somente em Cristo. Na medida em que os
pronunciamentos de um concílio expressam a "mente de Cristo", nessa medida eles são
infalíveis (embora não sejam exclusivos por este motivo: no nível humano há mais de
uma maneira de expressar a mente de Cristo e existem mesmo caminhos que são
infalíveis e ainda contradizem um ao outro do ponto de vista lógico). Poderia ser o caso,
por exemplo, tanto na teoria como na prática, de que todos os bispos de um concílios
estivessem errados e não expressassem a mente de Cristo, de modo que os
pronunciamentos daquele concílio não representassem a verdadeira fé. Também poderia
ser o caso, tanto na teoria como na prática, que a unidade e catolicidade da verdade seja
encontrada em uma única pessoa, um único membro do corpo de Cristo. Nesse caso, a
Igreja seria manifestada na terra naquela única pessoa e não em um concílio dos bispos
ou no episcopado. Como foi dito, os leigos, em virtude de sua participação no corpo de
Cristo, são co-responsáveis por manter, preservar e transmitir a tradição da Igreja. Eles
tem sua participação no magistério da Igreja e em suas funções apostólicas. E antes que
os pronunciamentos de um concílio ecumênico possam ser considerados como
autoridade, eles devem ser reconhecidos e aceitos por todo o corpo da Igreja, clero e
leigos.

4. Duas Eclesiologias Rivais

A concepção patrística da Igreja e sua estrutura orgânica descrita nos capítulos


anteriores é a de um entendimento comum a toda a cristandade. Acima de tudo, é a
tradição Cristã Ortodoxa. Isso não quer dizer que não tenha sido e ainda não seja
freqüentemente mal aplicada dentro do próprio mundo ortodoxo. Nos tempos
bizantinos, na Rússia czarista e pós-czarista, na Grécia contemporânea e em outros
lugares, esses abusos foram tão grandes que muitas vezes eclipsam ou enfraquecem a
presença da Igreja na terra de maneira trágica. Mas, apesar disso, a concepção básica do
que a Igreja é e como ela funciona na terra não foi perdida. Ainda é tão válida hoje
como quando os apóstolos fundaram as igrejas locais no mundo greco-romano.
Consequentemente, apesar dos abusos, é sempre capaz de ser reafirmada e revitalizada.
Essa reafirmação e revitalização no passado muitas vezes ocorreram em momentos
particularmente críticos: durante o tempo, por exemplo, das lutas contra os iconoclastas,
ou durante os últimos séculos da era bizantina, sob a influência da tradição hesicasta, ou
novamente em nossos tempos, parcialmente como consequência da propagação da
Ortodoxia para o Ocidente e sua perseguição em muitos dos países da Europa Oriental.
Isso significa que, até os dias atuais, nenhum abuso ou falha no entendimento se
desenvolveu até o ponto em que afetou a doutrina em si, seja corroendo certos aspectos
vitais ou acrescentando a ela de tal maneira que o que então se torna a doutrina oficial
da Igreja é algo bem diferente. Assim como as doutrinas trinitária e cristológica
ortodoxa têm mantido a forma dada pelos Padres da Igreja, a eclesiologia ortodoxa, que
deriva dessas doutrinas, também manteve sua integridade; e deve continuar a mantê-la
enquanto essas doutrinas principais ainda forem reconhecidas e aceitas. No entanto,
embora este seja o caso no que diz respeito a tradição ortodoxa, o mesmo não é o caso
em outro lugar. Em particular, na cristandade ocidental, durante o período medieval,
certas diferenças na compreensão da Igreja começaram a aparecer, desenvolvidas até o
ponto em que levaram à formulação e aceitação daquilo que equivalia a uma concepção
radicalmente diferente da Igreja e de sua estrutura. Além disso, essa concepção diferente
tornou-se agora a eclesiologia dogmática oficial. Tornou-se um artigo de fé, cuja
aceitação é uma condição de membro da congregação dos fiéis. Como essa nova
concepção dogmática oficial não era apenas diferente, mas em muitos aspectos
incompatível com aquela mantida pela tradição ortodoxa, era inevitável que elas
entrassem em conflito no plano histórico. O resultado tem sido uma brecha na
comunhão e suporte mutual entre as igrejas que reconhecem e seguem a tradição
patrística e aquelas que reconhecem e aceitam uma eclesiologia que veio a formar parte
e parcela da doutrina oficial da igreja romana. Em outras palavras, o resultado foi um
cisma entre as igrejas ortodoxas e as igrejas reconhecendo a hegemonia da igreja
romana. Além disso, o crescimento e a aplicação dessa nova eclesiologia na metade
ocidental da cristandade produziu uma reação adicional dentro desse próprio mundo; e
essa reação resultou em um novo cisma, no qual várias igrejas que anteriormente
aderiram à igreja em Roma retiraram seu reconhecimento e aceitação da autoridade
romana. Mas essas igrejas não reafirmaram a eclesiologia da tradição patrística. Pelo
contrário, elas produziram suas próprias teorias eclesiológicas, algumas das quais são
derivadas da doutrina patrística, enquanto outras são inovações mais ou menos
arbitrárias, introduzidas sob a influência de várias pressões, nacionais, políticas e assim
por diante. Daí se conclui que uma compreensão das maiores divisões da cristandade - e
tal entendimento é uma condição de qualquer ação positiva dirigida a curar essas
divisões - pressupõe uma compreensão daquela concepção da Igreja que, durante o
período medieval, gradualmente se tornou dominante na metade ocidental da
cristandade. Pressupõe uma compreensão da eclesiologia da igreja romana.

Muito resumidamente, pode-se dizer que essa eclesiologia da igreja romana difere
daquela da tradição patrística, sobretudo naquelas características relacionadas à
organização e governo da Igreja na terra. Mais especificamente, difere naqueles
aspectos relacionados à Igreja considerada como uma sociedade coletiva, corporativa e
institucionalizada, que deve ser governada de maneira muito semelhante a qualquer
outra forma de sociedade humana ou política. Notamos que a Igreja tem dois aspectos
principais: a comunicação da vida divina, a manifestação das realidades espirituais; e a
comunhão e a comunidade dos que participam desta vida divina, que participam dessas
realidades espirituais - do povo de Deus que puseram a mente de Cristo e que são
membros de seu corpo. Ao mesmo tempo, dissemos que esses dois aspectos da Igreja
não devem ser separados um do outro. Eles não correspondem, por exemplo, a uma
divisão entre a Igreja visível e a Igreja invisível, ou a Igreja no céu e a Igreja na terra, e
assim por diante. Eles se interpenetram; e embora possam ser distinguidos logicamente,
converter tal distinção lógica em uma distinção ontológica e, com base nisso, tratar
esses dois aspectos da Igreja como se eles realmente constituíssem duas entidades quase
independentes, cada uma exigindo um conjunto diferente de princípios e regulamentos
operativos, seria rasgar em pedaços o manto sem emenda da Igreja. Seria considerar a
Igreja não como uma realidade divino-humana integral, mas como uma realidade na
qual, para fins práticos, o aspecto humano é virtualmente independente do aspecto
divino. A Igreja, por definição, é constituída pela ligação vital da Divindade com a
humanidade, através da união na pessoa de Cristo das naturezas divina e humana. Isso
significa que é o próprio Deus, na Pessoa do Espírito Santo, que é o princípio real
interno ou imanente da Igreja, incorporando através das energias divinas do Espírito os
membros da Igreja no corpo de Cristo. E deve ser enfatizado que essa imanência do
divino na Igreja não se aplica apenas à Igreja no céu ou no nível sobrenatural; aplica-se
também à sua manifestação na terra, à Igreja como realidade sacramental: os dons e
virtudes da Igreja na terra e o princípio imanente de sua unidade - sua forma interior
informativa - não são apenas realidades criadas, até mesmo realidades criadas
sobrenaturais, da graça procedente de Deus e assimilando os seres humanos a ele. Eles
são, novamente, manifestações de suas energias divinas e incriadas.

Além disso, essa reciprocidade direta da união de Deus com o homem em Cristo e a
incorporação de uma multiplicidade de seres humanos ao corpo de Cristo são
entendidos como uma incorporação pessoal à Pessoa de Cristo. Elas podem ser
entendidos desta maneira porque em Cristo não apenas uma única natureza humana,
mas toda a natureza humana está unida ao divino. Não há espaço aqui para a idéia de
que a Igreja constitui um corpo místico em um sentido não pessoal, à parte da Pessoa de
Cristo. Por isso, a Igreja nunca pode ser vista simplesmente como uma sociedade ou
congregação de fiéis - como "o corpo de cristãos unidos no Espírito Santo". Deve
sempre ser encarada principalmente como uma realidade cristocêntrica: o corpo de
Cristo como uma realidade ontológica. É por isso que a eclesiologia é realmente um
aspecto da cristologia - e a cristologia é uma questão de ontologia, de reais estados de
ser.

A Igreja na terra, portanto, não é uma sociedade religiosa no sentido humano ou


político. Não é nem mesmo uma sociedade de fiéis ou uma congregação de fiéis
fundada por Cristo. É uma realidade fundada em Cristo, ou sua manifestação - seu
sacramento (mysterium) ou teofania ou ícone. Os Padres Gregos falam pouco sobre a
instituição da Igreja como tal. Não há teologia da Igreja como uma instituição terrena
por si só. A idéia deles da Igreja está firmada em suas principais considerações
doutrinais e deriva delas: de sua cristologia e teologia do Espírito Santo, de sua
contemplação do significado da encarnação e do Pentecostes. E o coração dessa
eclesiologia não é o ensinamento, mas a Pessoa de Cristo: a Igreja é vista não tanto
como fundada por sua Pessoa, mas sobre ela. É acima de tudo a Pessoa de Cristo que é a
rocha sobre a qual a Igreja é fundada. É fundada sobre e no Filho do Deus vivo. É uma
nova vida com Cristo e em Cristo. É uma uma realidade divino-humana, teândrica.

Mas isso não significa, como vimos, que a Igreja não tem nenhum aspecto institucional,
nenhuma forma social e humana necessária para sua operação na terra, no tempo e
lugar, na história e entre comunidades de homens e mulheres que vivem no tempo e no
espaço. Isso não significa que a Igreja não precise "se encarnar" em ofícios específicos
e disciplinas responsáveis por regular e orientar suas atividades na terra. Pelo contrário,
tem sua apostolicidade e ministério canônicos e os ofícios e procedimentos necessários
para mantê-los e manifestá-los entre os homens. Mas novamente esta forma humana ou
social ou modo de atividade que a Igreja é compelida a assumir para realizar sua tarefa
na terra não está separada de sua forma divina ou modo de atividade, assim como a
natureza divina de Cristo não é separada de sua natureza humana. É ainda a
manifestação de uma única atividade teândrica que anima o todo, invisível e visível,
incriado e criado, divino e humano.Está consequentemente enraizada na manifestação
da Igreja na terra como uma realidade sacramental, uma realidade eucarística. Recebe
sua sanção de sua relação com essa realidade e não tem justificativa à parte dela. As
funções apostólicas e ministeriais através das quais a Igreja se expressa de forma e
modo humano e social - como instituição - têm sua fonte e consumam-se na
manifestação da Igreja como realidade eucarística, como corpo de Cristo. O corpo de
Cristo é a realidade eucarística: "Este é o meu corpo". Essas funções e os ofícios
hierárquicos que os acompanham não são, portanto, sancionados por Cristo em um
mandato não-eucarístico. Elas não têm um status na Igreja como constituindo um corpo
místico por si mesmos, à parte da Eucaristia. Elas são órgãos do corpo vivo que se
manifestam na Eucaristia, expressões diretas da Pessoa de Cristo, funções exercidas
dentro - não sobre - da Igreja como o corpo de Cristo. Cristo é a única verdadeira cabeça
e liturgista de toda a Igreja, seja no céu ou na terra; e aqueles que exercem seu
ministério na terra - os bispos - o fazem unicamente em virtude de sua condição de
imagens de Cristo nas comunidades eucarísticas que presidem e pelas quais, em
colaboração com os leigos de cada igreja local em particular, são responsáveis.

O que esta concepção da Igreja implica e pressupõe é uma visão ou entendimento em


que o material, o criado ou o fenomenal é visto não como constituindo uma realidade
em si mesma, separado e como se fosse paralelo, mas em um nível inferior, ao
espiritual, ao incriado ou ao noumenal. Pelo contrário, é visto mais como a epifania do
espiritual, do incriado ou do noumenal. O visível está relacionado ao invisível, ou
material ao espiritual, não tanto quanto o efeito é à causa extrínseca, mas mais como
sendo o modo no qual o invisível ou o espiritual existe no tempo e no espaço. O mundo
no tempo e no espaço é visto como a extensão ou prolongamento do mundo espiritual.
O mundo espiritual - o mundo divino - é a essência interna e a realidade do mundo no
tempo e no espaço. Eles estão relacionados um com o outro não apenas analogicamente,
mas simbolicamente, no sentido de que um é a imagem do outro, e assim participa
diretamente da realidade do arquétipo do qual é a imagem. A ênfase está no criado
como a imagem do incriado; e o caminho para a realização espiritual é através da
realização do eterno no tempo, do espiritual no sensível, através de uma iluminação de
toda a existência humana e de outras criaturas. Como a Igreja é o locus onde se
consuma essa realização, ela também é vista, acima de tudo, como a entrada do eterno
no tempo, do invisível no visível - como a esfera da transfiguração da humanidade e de
toda a existência criada através da adoração e sacramento. Portanto, mesmo seu aspecto
exterior - seu aspecto humano e social - é visto não como a realização da unidade
eclesiástica e de seus princípios de governo numa forma institucional paralela ou
analogamente relacionada àqueles que pertencem a outro nível à Igreja no céu. Eles são
vistos como a expressão direta de uma unanimidade no amor, de origem e natureza
espiritual, visível e encarnada no sacramento, na fé, na oração, na liturgia e nas funções
apostólicas e hierárquicas do episcopado e do leigo.

É precisamente essa visão ou compreensão que é enfraquecida ou obscurecida na


teologia que produziu a concepção da Igreja que se tornou a eclesiologia oficial da
igreja romana. De acordo com essa teologia, o material, o criado, o fenomenal é visto
muito mais como possuindo uma realidade em si mesma, como uma realidade
independente, do que como a epifania do espiritual, do incriado e do noumenal. As
coisas estão relacionadas a Deus e ao mundo espiritual como um efeito para uma causa
e não como uma imagem para o arquétipo. É a coisa em si, na dimensão espaço-
temporal, que é vista, não a sua semelhança com Deus. O mundo visível é das naturezas
e causas, potencialidades e ações, não um mundo simbólico mostrando o divino, nem
uma epifania ou uma teofania. Em outras palavras, o sentido da participação - do criado
no incriado, do material no espiritual - é menos efetivo. As coisas visíveis são vistas não
como participando, ainda menos como modos de existência de realidades invisíveis.
Elas são vistas, na melhor das hipóteses, como coisas analógicas às invisíveis, que por si
mesmas têm seu ser em outro nível superior e, por assim dizer, paralelo. Na teologia
medieval ocidental como um todo, a consciência da distância que separa o Criador da
criação é excessiva para permitir o desenvolvimento desse sentido de coisas visíveis
constituindo uma espécie de microcosmo teomórfico que está por trás da eclesiologia
patrística tradicional. Pelo contrário, o que é enfatizado é o senso de uma lacuna
ontológica entre o mundo espiritual e o mundo do tempo e lugar, entre o divino e o
humano, entre Deus e a natureza. Correspondentemente, o caminho para a realização
espiritual não é tanto a realização da eternidade no tempo, do divino no humano, como
de uma peregrinação do homem em direção a Deus. É menos uma questão de
transfiguração e deificação (theosis) do que de eventual beatitude através da concessão
da graça como um novo princípio de ação dando ao homem a capacidade de toda uma
ordem de objetos e fins dos quais ele é, por natureza, incapaz e permitindo-lhe realizar
ações que, por serem meritórias, o ajudarão em sua jornada ao céu.

Os pressupostos teológicos ou doutrinais que são refletidos nessa atitude serão


examinados mais detalhadamente nos capítulos posteriores. Aqui, o que deve ser notado
é como esta atitude, por sua vez, é refletida na eclesiologia da igreja romana. Pois o que
é enfatizado nesta eclesiologia não é tanto a união indissolúvel dos elementos divinos e
humanos da Igreja, nem tanto a participação dos aspectos criados e visíveis da Igreja em
seus aspectos incriados e invisíveis, ou a Igreja como a entrada da eternidade no tempo,
uma teofania. O que é enfatizado é mais a lacuna entre a Igreja em seus aspectos e
elementos divinos, incriados e invisíveis, e a Igreja em seus aspectos e elementos
humanos, criados e visíveis: a lacuna entre a Igreja como a manifestação das realidades
espirituais e da Igreja como a sociedade ou congregação de cristãos que vivem no
mundo do tempo e lugar. Deus é visto como a primeira causa e o princípio ativo da
Igreja e sua unidade; mas ele não é visto como também a sua real morada e forma
substancial, o seu princípio imanente de realização ontológica. Em vez disso, o que
constitui essa forma e princípio são considerados realidades criadas sobrenaturais,
porém criadas, da graça, da fé e da caridade. Ao mesmo tempo, a idéia da reciprocidade
da união de Deus com o homem em Cristo e esta união com a humanidade é
enfraquecida também por uma tendência a negligenciar a idéia de que em Cristo não
apenas uma única natureza humana, mas toda a natureza humana é unida a Deus na
Pessoa do Logos divino. Consequentemente, a multiplicidade de seres humanos
chamados na Igreja para a união com Deus pode ser visualizada como atingindo essa
união apenas em um sentido não pessoal: eles não participam da união das duas
naturezas, divina e humana, em uma só Pessoa, mas formam uma entidade divino-
humana independente como uma comunidade de muitas pessoas compartilhando a
mesma vida divina. Isso significa dizer que a idéia da Igreja como um corpo místico é,
de algum modo, afastada da idéia de união de Deus com o homem na Pessoa de Cristo.
O significado de tal afastamento será discutido mais detalhadamente abaixo. Aqui, o
que é importante notar é como ela também contribui e reforça a idéia da Igreja como
uma sociedade religiosa em um sentido puramente humano e social - uma societas
hominum fidelium ou congregatio hominum fidelium: a Igreja como o corpo universal
daqueles que compartilham a luz da santa fé, como dizia Santa Catarina de Siena.

Pois o que começa a emergir como resultado da ascendência crescente dessas idéias na
consciência eclesiástica da cristandade medieval ocidental é uma teoria segundo a qual a
Igreja é vista operando em dois níveis quase independentes, mas paralelos, um divino e
outro humano, um incriado e o outro criado, um invisível e o outro visível. Ela opera em
duas ordens de realidade quase independentes, mas paralelas. Existe a Igreja no céu, a
Igreja Triunfante, mantida por Deus em paz e perfeição e operando de acordo com a lei
divina; e existe a Igreja na terra, in via: a Igreja Militante, que, porque tem que lidar
com os seres humanos, no mundo histórico do tempo e espaço, tem que assumir a forma
humana e social como qualquer comunidade de homens unidos em busca de um
propósito comum. E como essa Igreja na terra é uma realidade humana e social - uma
realidade sociológica - ela precisa operar de acordo com a lei humana da mesma
maneira que qualquer outra construção social ou política. Isto significa dizer que a
Igreja é agora concebida como operando de acordo com dois tipos distintos de lei, uma
divina e outra humana; e o sentido de que é uma realidade única operando de acordo
com uma única lei divino-humana e teândrica, é, se não perdido, então tão silenciado
que cessa, para todos os propósitos práticos, de ser eficaz.

A conseqüência disso é que agora se assume que a Igreja na terra tem que ser governada
exatamente da mesma maneira que qualquer outra sociedade ou instituição terrena e
humana. Tem que ser orientada e direcionada para o cumprimento do seu propósito.
Mas o padrão segundo o qual deve ser governada e guiada não é arbitrário. Seu modelo
é fornecido pelo padrão eficaz para a Igreja no céu. Isso significa que todos os
princípios que são entendidos como governantes da existência da Igreja no céu devem
ser traduzidos em uma forma terrena equivalente, de modo que o padrão da Igreja na
terra siga, tanto quanto possível, o padrão da Igreja no céu. Em termos mais precisos, os
princípios internos que devem ser assim traduzidos em seus equivalentes institucionais e
humanos dizem respeito sobretudo às três categorias de fé, graça e vida comum. Em
outras palavras, a Igreja na terra deve possuir um magistério (que fornece o critério
positivo para a vida em verdade); um sacerdócio (que opera os canais da graça, os
sacramentos); e um episcopado (que é o instrumento através do qual a sociedade dos
cristãos na terra é governada). Deste modo, os princípios que governam a Igreja no céu
são traduzidos em seus equivalentes apostólicos, hierárquicos e sociais; e as formas em
que são incorporados constituem uma só e única imitação institucional e organizacional
no plano visível da Igreja invisível. Eles são o corpo místico tornado visível. De fato,
eles são a própria substância do corpo místico.

Neste ponto, deve ser enfatizado que, embora a Igreja seja assim concebida como
funcionando em um duplo plano e de acordo com uma dupla lei de unidade e
organização, isso não significa de modo algum que a eclesiologia romana sustente que
existem duas Igrejas. Não existe um corpo místico invisível e uma instituição visível
sem conexão com ele. Pelo contrário, as próprias formas institucionais são tomadas
como constituindo o próprio corpo místico. Elas são identificadas com ele. Elas são
estabelecidos por Deus e são da essência da Igreja e, portanto, não são suscetíveis a
mudanças. Portanto, teoricamente, pelo menos se não na prática operacional, a analogia
da unidade divino-humana na Pessoa de Cristo é válida, embora seja agora apenas uma
analogia. Isto significa dizer que, de uma maneira analógica, a Igreja visível é ainda a
manifestação e instrumento da vida invisível de Cristo. Pensa-se que a organização
social visível realiza no espaço, no tempo, e conserva através do tempo a realidade
interior e invisível da vida em Cristo. A Igreja como instituição é considerada como o
instrumento da Igreja como corpo místico, as duas formando uma realidade única. Na
Igreja na terra considerada como uma realidade eucarística, é claro que isso é
claramente o caso: há continuidade direta entre os aspectos invisíveis e visíveis da
Igreja e eles compõem uma única realidade. Na medida em que, também, os fiéis
participam da Eucaristia, eles são membros da Igreja através da participação direta no
corpo de Cristo. A Eucaristia e a Igreja são ambas designadas como o corpo de Cristo.
De fato, para a tradição patrística, como vimos, a designação da Igreja como o corpo de
Cristo deriva do que é basicamente uma concepção eucarística da Igreja.

Na concepção da Igreja que se torna efetiva no mundo medieval romano, no entanto, a


idéia da Igreja na terra como o Corpo místico não é determinada exclusivamente por sua
manifestação como uma realidade eucarística. Pois além da ideia da Igreja como
realidade eucarística, esta concepção inclui também a ideia de que a Igreja possui uma
função apostólica, um ministério e a forma de uma instituição jurídica corporativa que,
embora constituam também o Corpo místico, são ainda não determinados pela Igreja
como realidade eucarística. Pelo contrário, é dito que eles foram determinados por
Cristo em um mandato explícito, porém extra-eucarístico. Isto significa dizer que
enquanto na concepção patrística tradicional a função apostólica da Igreja como a
realização da unidade eclesiástica em uma forma social é sancionada e determinada pela
Igreja como uma realidade eucarística, nesta concepção romana ela é sancionada e
determinada por Cristo em um mandato não-eucarístico e, portanto, tem status de corpo
místico à parte da Eucaristia. Da mesma forma, as funções hierárquicas da Igreja são
vistas como manifestações desse corpo não porque aqueles que as exercitam estão em
uma relação particular com o corpo de Cristo como uma realidade eucarística. Elas são
vistas como manifestações deste corpo porque aqueles que as exercitam exercem um
ministério que é, vicariamente e instrumentalmente, o do próprio Cristo. E o
entendimento é que este ministério é realizado com a autoridade direta de Cristo e que é
justificado com base no fato de que, enquanto Cristo não estiver vivendo de maneira
mística ou interior na congregação dos fiéis, a participação na instituição da Igreja e seu
governo pelos funcionários hierárquicos são necessários. Em outras palavras, esta nova
concepção da Igreja prevê pelo menos dois atos distintos e independentes de instituição
realizada por Cristo: aquele pelo qual Ele estabeleceu a função apostólica da Igreja, e
aquele pelo qual Ele estabeleceu a Igreja como uma realidade eucarística. Através de
ambos, Ele estabeleceu o corpo místico da Igreja na terra. A incorporação neste corpo
místico, portanto, não é somente ou mesmo acima de tudo através da participação na
Eucaristia. É também - e, na verdade, principalmente - através da participação na forma
institucional visível da Igreja e na subscrição de suas leis. É essa própria forma
institucional que agora é considerada como possuindo um caráter católico; e, portanto, é
filiação a ela, e a subscrição a ela, o que em si constitui a filiação à Igreja Católica: não
se pode participar na catolicidade da Igreja de Cristo ou ser um membro do corpo de
Cristo sem essa adesão e subscrição à instituição visível da Igreja. É isso que explica a
grande ênfase na forma externa da unidade da Igreja. Na visão patrística, a unidade do
povo de Deus é derivada, acima de tudo, de sua participação direta na indivisibilidade
do corpo de Cristo na Eucaristia. Nesta perspectiva, também a catolicidade reside acima
de tudo no fato de que toda a verdade em Cristo é manifestada em cada igreja local e
que através do mistério eucarístico celebrado em cada igreja local todo o corpo de fiéis
pode participar nela. Mas na visão romana das coisas, a unidade do povo de Deus é
vista como dependente, acima de tudo, da condição de membro da instituição visível da
Igreja; e a catolicidade da própria igreja local é vista como residindo, acima de tudo, no
fato de ela ser um membro dessa instituição corporativa mais ampla e abrangente. Isso
significa que a Igreja é vista como manifestada na terra não tanto em cada igreja local
autêntica - apostólica e episcopal - mas em uma instituição coletiva, corporativa e social
da qual cada igreja local constitui uma parte. Além disso, cada igreja local pode ser
considerada como católica somente na condição de que ela se constitua uma parte dessa
sociedade abrangente e ampla. E como esta sociedade em si é tratada para propósitos
práticos da mesma maneira que qualquer outra forma de sociedade humana ou política,
segue-se que ela deve ser governada da mesma maneira. Tem que haver no plano social
e comunal algum órgão ou instrumento que promulgará as leis necessárias para
administrá-la e para incorporar todos os povos nela. Tem que haver alguma autoridade
que represente sua unidade e lhe dê uma realidade institucional e eclesiástica. É aqui
que encontramos a coroa e o pivô do que, de acordo com esta eclesiologia romana,
constitui a estrutura da Igreja na terra: o papado. Pois é o papado que é considerado o
órgão central ou instrumento do governo da Igreja na terra; e a autoridade que
representa o princípio da unidade da Igreja na terra é identificada no papa.

5. O Papado

O conceito do papado é parte integrante da visão romana da Igreja que acabamos de


considerar, e não tem nenhum significado fora dela. Para entendê-lo, portanto, é preciso
vê-lo neste contexto. Assim, mais uma vez, indicaremos as principais características
dessa visão. Ela se desenvolve a partir da proposição de que o propósito da vida humana
é ser incorporado em um corpo, o unum corpus das epístolas paulinas, que deve ser
identificado com o corpo do próprio Cristo. Esta incorporação tem, em última análise,
um significado espiritual ou místico, e a sociedade que os cristãos redimidos devem
formar é a sociedade celestial do Reino de Deus. Essa sociedade é a Igreja, a noiva de
Cristo, ou seu corpo místico (corpus mysticum), como uma realidade não-material ou
supra-terrestre. Mas Cristo também deu à Igreja uma extensão material ou terrestre, a
fim de adaptá-la ao serviço das necessidades de uma humanidade decaída, vivendo nas
condições imperfeitas da história. Ele fundou-a na terra.

Essa forma terrestre da Igreja não é, naturalmente, não relacionada à sua forma celestial
ou mística. Pelo contrário, é uma espécie de projeção dessa forma celestial ou mística, e
só existe na medida em que a reflete. É, por assim dizer, a contrapartida da forma divina
da Igreja, uma tradução desta forma e da sociedade celeste em uma forma terrestre e
uma sociedade terrena, na medida em que isso é possível nas condições caídas deste
mundo. Desta forma, pode-se dizer que a Igreja tem um caráter dual e, a esse respeito,
reflete seu fundador, Cristo, que tem uma natureza dual. Ela é ao mesmo tempo o corpo
místico de Cristo, uma realidade espiritualizada e um corpo terreno de homens e
mulheres vivos. E assim como o propósito da forma celestial da Igreja é cumprido
através da incorporação de todas as almas cristãs no corpo místico de Cristo, o propósito
da forma terrena da Igreja é cumprido através da incorporação de todos os homens e
mulheres vivos em sua sociedade. A Igreja, isto é, quer seja considerada em sua forma
celestial ou terrena, é uma corporação e, mais particularmente, em sua forma terrestre, é
uma sociedade civil ou uma única entidade corporativa da qual todos os homens e
mulheres são potencialmente membros. O propósito da Igreja na terra é abraçar todo o
povo cristão - e, em última análise, todas as pessoas - nesta corporação universal unida
pelo elo comum da fé cristã. Pois somente desta maneira estas pessoas podem estar
preparadas para se tornarem membros da sociedade celestial e entrarem no Reino de
Deus.

Para cumprir este propósito, e para formar esta sociedade cristã universal, a forma
terrestre da Igreja deve ser governada. Sendo uma construção humana e social, deve ser
governada de maneira similar a qualquer outra forma de sociedade humana e terrestre.
O governo exige duas coisas. Em primeiro lugar, exige uma distinção entre governantes
e governados; e, segundo, que os governantes devem ser adequadamente qualificados
para governar de acordo com o propósito subjacente da sociedade sobre a qual eles
governam. Essas duas condições são de fato complementares, já que é a posse da
qualificação apropriada para governar uma dada sociedade que distingue o governante
dos governados. No que diz respeito à Igreja, o propósito em questão é conseguir a
incorporação da humanidade no corpo de Cristo e na unidade da fé cristã. Pode-se dizer
que todos os fiéis estão qualificados para alcançar este propósito e, portanto, todos
devem participar do governo da Igreja. Infelizmente, neste mundo caído, este não é o
caso.

Na queda, o homem perdeu sua qualificação. Ele perdeu sua participação em Cristo, a
imagem de Deus. Ele está em escravidão, em cativeiro ao poder do mal, ao diabo. Tal é,
de fato, sua escravidão que ele é incapaz de se libertar por seus próprios esforços
sozinhos. É precisamente por isso que ele tem a necessidade da assistência sobrenatural
da Igreja: o propósito da Igreja na terra é ajudar a libertá-lo de seu cativeiro. Sendo este
o caso, ele claramente não está qualificado para participar do governo da Igreja. Dizer
que ele é qualificado equivaleria a dizer que ele é capaz de dirigir os meios pelos quais
sua libertação deve ser alcançada e que ele é de fato capaz de libertar-se de sua
escravidão por seus próprios esforços sozinhos. E isso seria contradizer a realidade de
seu estado decaído e as limitações ao seu conhecimento, livre arbítrio e força que
implica. Estando nesse estado, seu papel só pode ser aceitar a graça que é o propósito da
Igreja mediar.

Quem, então, está qualificado para governar? O elemento constitutivo básico da Igreja
na terra é o sacramento da Eucaristia e, por extensão, os outros sacramentos,
particularmente o batismo, através dos quais a graça é mediada para a humanidade.
Como a função primordial da Igreja é a mediação dessa graça, e como ela é mediada
pelos sacramentos, que formam, portanto, o elemento constitutivo básico da Igreja,
segue-se que aqueles que, em primeira instância, são qualificados para governar a
Igreja, são aqueles qualificados para controlar e administrar os sacramentos. Estes são o
episcopado e o clero subordinado: aqueles que são ordenados. Há, portanto, antes de
tudo, uma separação radical dentro da Igreja na terra entre seus membros leigos e
sacerdotais - entre ordo laicalis e ordo sacerdotalis - porque somente padres ordenados
são qualificados para controlar e administrar os sacramentos.

Mas se esta qualificação de ordenação divide a Igreja na terra em governantes e


governados em relação à sua organização como um corpo constituído, ela ainda não
inclui o princípio que realmente constitui a Igreja desta maneira ou funciona como o
princípio operativo e orientador de sua unidade durante o curso de sua peregrinação
terrestre. O corpus, em outras palavras, deve ter uma cabeça ou um princípio último
monárquico de governo. Este princípio, claro, é Cristo. Ele na verdade constitui a Igreja
e é a cabeça suprema da Igreja tanto em sua forma celestial quanto terrestre. Mas por
causa da dicotomia entre Deus e o homem e a lacuna ontológica entre eles (superada no
caso único da união hipostática entre o divino e o humano na pessoa de Cristo), o
próprio Cristo, após sua ascensão, não pode agir como princípio operante e orientador
imanente da Igreja na terra diretamente, em sua própria Pessoa; e nem, como vimos,
nenhuma outra pessoa da Trindade pode agir como esse princípio. Consequentemente,
na sua ausência, por assim dizer, e até a sua Segunda Vinda, Cristo tem que nomear
alguém que irá agir em seu lugar e ser seu vigário na terra.

De fato, em vista dessas circunstâncias, e em reconhecimento ao fato de que a Igreja na


terra, durante sua peregrinação terrena, deve ter uma forma humana e social, paralela à
que tem no céu, Cristo não somente provê alguém para tomar seu lugar e ser seu vigário
depois de sua ascensão. Ele também, enquanto ele mesmo está na terra, na verdade
designa a pessoa em quem a Igreja deve ser fundada e delega-lhe os poderes necessários
para realizar essa tarefa e ser o princípio governante da Igreja na terra e o centro de sua
unidade. Ou melhor, ao nomear a pessoa sobre a qual a Igreja terrestre deve ser fundada,
ele simultaneamente designa a maneira pela qual este princípio supremo de governo da
Igreja na terra deve ser representado através do tempo, na história, até sua Segunda
Vinda. Isso ele faz em sua comissão a São Pedro. O registro verdadeiro deste ato deve
ser encontrado acima de tudo em dois textos do Evangelho. No primeiro, (o conhecido
texto 'Tu es Petrus' de Mateus 16. 18-19) não se trata do estabelecimento do mandato
petrino, mas da promessa de que ele será estabelecido. No segundo (João 21: 15-17),
onde ele cobra Pedro com os cuidados de seu rebanho ('Apascenta meus cordeiros',
'Apascenta minhas ovelhas'), esta promessa original é cumprida. Em outras palavras,
Cristo, em sua comissão a São Pedro, não apenas determina em quem esta autoridade
presidencial sobre a Igreja é investida. Ele também providencia providencialmente para
sua posterior e continuada investidura naqueles que sucedem São Pedro na Sé
Apostólica fundada por São Pedro em Roma. É o papa de Roma que é o legítimo
herdeiro de São Pedro. Ele é o vigário de São Pedro. De fato, como São Pedro é o
vigário de Cristo, o papa é, em última instância - como o papa Inocêncio III foi o
primeiro oficialmente a afirmar - também o vigário de Cristo.

O que exatamente isso significa? Ou quais são os poderes investidos por Cristo no
ofício petrino ao qual o papa adere? Basicamente são poderes jurisdicionais, poderes
para ligar e desligar. 'Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus', Cristo dissera a
Pedro; e isso é considerado da maneira mais literal como significando que o que é
ligado - ou desligado - no céu é assim tratado como uma conseqüência direta de estar
ligado ou desligado na terra. A esse respeito, esses poderes petrinos são absolutos e
irrevogáveis, e nenhuma corte ou tribunal superior pode anulá-los, neste mundo ou no
seguinte. Também não há limite de escopo para o seu exercício: o "tudo" abrange tudo e
todos, sem exceção. Em resumo, o que Cristo entregou a Pedro e Pedro ao pontífice
romano é uma plenitude de poderes, poderes absolutos para governar a Igreja na terra.
Como tal, devem ser distinguidos dos poderes carismáticos sacramentais que o papa,
como bispo de Roma, compartilha igualmente com todos os outros bispos e que são
transmitidos em seqüência, por intermédio de bispos devidamente consagrados, desde
os apóstolos (e não de Pedro sozinho). Os poderes jurisdicionais absolutos do papa - os
requeridos para o governo da Igreja - não são transmitidos dessa maneira. Eles são
transmitidos diretamente de São Pedro, e não é necessário nenhum rastreamento através
de uma linha de intermediários episcopais.

De fato, a esse respeito, o papa não é nem mesmo o sucessor do papa anterior. Ele é o
sucessor direto de São Pedro, seu herdeiro - indignus heres beati Petri, como diz a
fórmula bem conhecida. O termo 'herdeiro' é em si originalmente um termo jurídico
romano. De acordo com a lei romana, o herdeiro sucede a pessoa morta na medida em
que o herdeiro continua o falecido legalmente. Todos os direitos, deveres, bens,
responsabilidades e assim por diante do falecido são transmitidos diretamente ao
herdeiro; e deste ponto de vista não há diferença entre o herdeiro e o falecido. É de
acordo com um princípio semelhante que o papa é considerado o herdeiro dos poderes
conferidos por Cristo a São Pedro. Ele não herda as características individuais de Pedro.
Ele não é o apóstolo Pedro. Mas ele herda a propriedade - o ofício - dado a Pedro por
Cristo. E com relação a este ofício, não há diferença entre o papa e São Pedro. De fato,
com relação a este ofício - com relação a esses supremos poderes jurisdicionais - não há
diferença entre o papa, São Pedro e Cristo. Cristo entregou esses poderes a Pedro e
Pedro os entregou ao papa. Portanto, o papa é o vigário de Cristo na terra - vicarius
Christi - seu agente especial designado para governar toda a Igreja na terra, de acordo
com os poderes monárquicos que Cristo conferiu a Pedro e que o papa herdou
posteriormente.

Não é apenas em relação a esse conceito de sucessão, no entanto, que o papado está em
dívida com o direito romano. De fato, uma vez que a idéia da Igreja na terra como a
sociedade coletiva, corporativa e jurídica de seres humanos batizados surgiu da maneira
que ela surgiu, de modo que se tornou necessário implementar princípios e práticas para
governar essa sociedade em linhas efetivas para outras sociedades humanas, então era
mais ou menos inevitável que o modelo para esses princípios e práticas fosse
encontrado na lei e no governo romano. Este era praticamente o único modelo
disponível. Além disso, os papas medievais e seus conselheiros eram na maior parte
nascidos e criados em Roma e mergulhados em suas tradições jurídicas. Portanto, essa
submissão ao direito romano caracteriza muitos aspectos do papado. Caracteriza o
conceito de primazia em si. Como a sociedade corporativa de todos os cristãos
batizados, a Igreja é dotada de qualidades corporativas no modelo da lei romana. Seu
governo, como o de qualquer outra sociedade, precisa de orientação e reconhecimento
dessa autoridade pelos governados. E como esta sociedade é um corpo - um corpus - a
união corporativa de cristãos - segue-se que essa autoridade diretiva deve ser exercida
por uma cabeça. A união corporativa deve ser governada monarquicamente pela cabeça.

O modelo para essa liderança a ser exercido pelo papa foi fornecido pelo estado e pelo
sistema legal romano. Foi fornecido pelo Principado Augustano. Como princeps,
Augusto era chefe de todo o estado. Como tal, ele possuía auctoritas suprema.
Originalmente, na República, essa auctoritas havia sido investido no senado romano.
Mas, no Principado Augustano, passou para Augusto, e o senado (que aliás forneceu o
modelo para o colégio de cardeais) tornou-se cada vez mais um parceiro passivo.
Assim, como princeps Augustus possuía a mais alta autoridade no estado.
O princeps representava o princípio da primazia, e a autoridade (auctoritas) agora
ligada a ele era uma fonte de decisão que suplementava e, ao mesmo tempo, transcendia
outras fontes de decisão. Essa autoridade não podia ser compartilhada. Mas poderia ser
exercida por meio de poder positivo legalmente assegurado. E esse poder - ou esses
poderes - poderiam ser compartilhados. Tal compartilhamento não dividiu a monarquia
do Principado. Apenas suplementou ou ampliou.

Foi este Principado, com a autoridade ligada a ele, que o papa reivindicou, alegando que
a igreja romana, sozinha, era a apostolica sedes, com a exclusão de todas as outras
igrejas, e que, consequentemente, somente ela havia herdado a comissão petrina. A
direção do corpo corporativo da sociedade cristã exigia o exercício do poder
jurisdicional e esse poder havia sido dado a São Pedro por Cristo. São Pedro tinha
poderes monárquicos para governar a Igreja na terra, e esses poderes constituem
um principatus. Como o papa ocupa a apostolica sedes, ele é o único sucessor de São
Pedro e, consequentemente, ele sozinho herda o principatus de São Pedro e a soma total
dos poderes jurisdicionais que o acompanham. Pode-se sugerir que o fato de que a
Igreja na terra veio a ser considerada como um corpo jurídico, corporativo e governável
de cristãos exigindo ser governado em uma base monárquica, e o fato de que o modelo
para essa monarquia era encontrado no Principado Romano, forçou na igreja romana e
em seus conselheiros a interpretação particular da comissão petrina e suas
conseqüências que é mantida até os dias atuais. Em outras palavras, pode-se dizer que
não é a comissão petrina e suas conseqüências que determinam a forma de governo
eclesiástico representado pelo papado. É a idéia do que é a Igreja na terra e, portanto, de
como deve ser governada, que determina a interpretação dada às palavras de Cristo a
Pedro e ao significado atribuído a elas.

Este, então, é o caráter do ofício petrino que o papa ocupa. Sua ocupação, é claro,
separa o papa de outros bispos, que participam igualmente com ele dos poderes de
ordenação como sucessores dos apóstolos. Os poderes de jurisdição concentram-se
unicamente nas mãos do papa. Ele pode delegar esses poderes a outros bispos (e mesmo
àqueles que não são bispos). Mas nenhum outro bispo pode exercer esses poderes em
relação à sua própria diocese, ou em qualquer capacidade jurisdicional, a menos que o
papa os tenha delegado a ele. De um ponto de vista, de fato, esses poderes não são
intrínsecos à Igreja. Eles não estão de forma autônoma na Igreja. Porque a sua
concessão a Pedro por Cristo precedeu a fundação da Igreja: Pedro não foi edificado
sobre a Igreja, a Igreja foi edificada sobre Pedro. Ele podia, portanto, exercê-los
independentemente da Igreja. Eles não são, portanto, poderes na Igreja ou da Igreja que
Pedro, e posteriormente os papas, possuem em virtude de serem membros da Igreja, ou
de ocupar um cargo especial na Igreja. Eles são poderes sobre a Igreja. Por isso,
estritamente falando, o ofício papal não é um ofício na Igreja ou da Igreja. É um ofício,
ou função, acima e fora da Igreja, existe por si mesmo; é uma propriedade por si só.
Representa uma totalidade de poderes concentrados no papa e exercitados pelo papa
sobre a Igreja na terra. E se alguns desses poderes são exercidos por outros na Igreja, é
porque o papa, como seu detentor exclusivo, os delegou.

Deste modo, o ofício papal é separado de todos os outros ofícios da Igreja. Até o
próprio papa o ocupa independentemente de seu cargo como bispo da Igreja em Roma.
Pois, embora o papa também seja bispo de Roma, e assim tenha que ser consagrado
bispo, a eleição papal em si não torna o papa um bispo, e um papa eleito pode, em
teoria, operar seus poderes petrinos antes de ser um bispo consagrado. Isso enfatiza a
distinção entre os poderes de jurisdição e os poderes da ordem carismática e
sacramental que distingue a função papal da de outros bispos. Também enfatiza o grau
em que o papa, como papa, se distingue dos membros da Igreja, o congregatio fidelium.
A Igreja e seus membros, como tal, não tem nada a ver com o ofício papal. Este
pertence ao papa apenas; e, teoricamente falando, não existem laços jurídicos entre o
papa e a Igreja como a congregação dos fiéis, de acordo com os quais o papa é
responsável por seus decretos e ações à Igreja. Os cristãos, como um corpo, faltando
todos os direitos inerentes a este respeito, não podem reivindicar qualquer controle
sobre o papa nem conferir quaisquer direitos de jurisdição sobre qualquer outra pessoa.
Todos esses direitos e poderes residem exclusivamente no papa; e o exercício deles por
outros na Igreja é uma concessão da parte do papa.

Desta forma, o governo da sociedade cristã terrestre se realiza como o mais completo
paralelo, ou analogia, possível nas condições deste mundo de seu paradigma celestial:
como Cristo é a cabeça e o princípio da unidade da sociedade celestial, também o papa,
vigário de Cristo, é cabeça e princípio da unidade da Igreja em sua forma terrena, da
sociedade cristã em sua forma terrena. Ele é a autoridade final sobre o que constitui a fé
cristã e o legislador supremo, convertendo as ordenanças celestiais em leis positivas,
cuja execução depende da capacidade da Igreja de cumprir seu propósito na Terra. E
toda esta organização da sociedade cristã universal e as instituições e leis necessárias
para o seu funcionamento e preservação não são, alega-se, invenções humanas. Elas são
fornecidas e estabelecidas na revelação cristã, conforme registrado nos Evangelhos. A
Igreja na terra não precisa, portanto, adquirir algo que já não possua através do próprio
ato de sua fundação. Ela só tem que afirmar contra a oposição (presumivelmente
diabólica) o que já é sua em virtude da filiação divina e qual é a expressão visível do
plano de Deus para a humanidade. Além disso, seres humanos individuais, através do
fato de nascerem neste mundo, nascem em um estado decaído no qual eles perderam por
causa do pecado de Adão sua participação em Cristo, a imagem de Deus.
Consequentemente, eles não podem alcançar a salvação e evitar a condenação sem a
aquisição da graça. Mas a única maneira pela qual eles podem adquirir graça é através
dos canais sacramentais mediados pela Igreja. Segue-se, portanto, que a única maneira
pela qual eles podem ser salvos é através da filiação à sociedade eclesiástica. E uma
condição de tal filiação - e portanto de salvação - é a submissão e obediência às leis e
instituições desta sociedade e àqueles que as administram. Isso significa que, em última
análise, é submissão e obediência ao papa que é uma condição de tal filiação, uma vez
que ele é o chefe supremo e o princípio governante dessa sociedade. Daí a lógica da
famosa Bula, Unam Sanctum, emitida pelo papa Bonifácio VIII em 1302: 'Instados pela
fé, somos obrigados a crer em uma Igreja santa, católica e apostólica. . . sem a qual não
há salvação nem remissão de pecados. . . que representa um corpo místico, cuja cabeça
é Cristo, e a cabeça de Cristo é Deus.' E: 'Declaramos, afirmamos, definimos e
pronunciamos que, em prol de sua salvação eterna, cabe a cada criatura humana estar
sujeita ao pontífice romano'. Por isso, vários séculos depois, em 1870, os
pronunciamentos do primeiro Concílio Vaticano, onde a igreja romana afirma 'a
instituição da primazia no bem-aventurado Pedro', uma primazia 'não apenas de honra,
mas de jurisdição verdadeira e apropriada'; 'a perpetuidade do primado do bem-
aventurado Pedro nos pontífices romanos', 'seus sucessores, em quem ele vive e preside
e julga até hoje'; e 'o poder e a natureza da primazia do pontífice romano' como sendo 'o
poder supremo que governa a Igreja Universal'. Por isso, finalmente, a afirmação do
Papa Pio XII no Mystici Corporis Christi de que 'andam pelo caminho do erro perigoso,
aqueles que acreditam que podem aceitar a Cristo, enquanto rejeitam a lealdade genuína
ao Seu vigário na terra.'

A Igreja visível como a sociedade cristã com o papa em sua cabeça existe acima de
todos os seus membros; e enquanto cada membro pode alcançar significância ou status
positivo apenas no grau em que ele participa da vida corporativa da Igreja, o contrário
não é o caso. É na realidade corporativa da sociedade cristã que a boa vida reside e, para
participar nela, o indivíduo deve sujeitar-se sem reservas aos funcionários divinamente
designados que a governam e às leis promulgadas por eles. De fato, as ofensas contra
essas leis devem ser punidas da mesma maneira que a heresia, pois agora não há
distinção real entre elas: ambas são ofensas contra as leis da sociedade cristã, e é serviço
ou ofensa contra o bem-estar desta sociedade que distingue o bem do mal. É o bem-estar
de toda a sociedade cristã que agora define o propósito do cristão individual, já que o
bem-estar individual só pode ser encontrado no serviço à comunidade como um todo.
Tal serviço é, de fato, tanto uma obrigação política quanto um comando divino. E é
aqui, nessa necessidade de servir a sociedade cristã contra seus inimigos internos e
externos até o ponto de martírio ou a inflição de morte, que está a explicação do
envolvimento central da Igreja romana em empreendimentos como as Cruzadas, a Santa
Inquisição, a queima de uma Joana d'Arc, um Savonarola ou um Giordano Bruno e a
condenação de Galileu.

Seria errado, no entanto, concluir este capítulo sem enfatizar mais diretamente um ponto
para o qual já foi feito referência. As correntes eclesiológicas das quais o papado
emerge marcam um afastamento da tradição patrística. Mas isso não significa que as
igrejas ortodoxas tenham perseguido através dos séculos um caminho de lealdade
irrepreensível e inabalável aos princípios patrísticos, enquanto a igreja romana e aquelas
igrejas que aderem a Roma os abandonaram completamente. Em primeiro lugar, deve
ser lembrado que o modelo para a chefia que o papa reivindicou foi fornecido, como
observamos, pelo Principado Augustano. Era uma autoridade imperial; e o fato do papa
reivindicá-lo não significava que os sucessores dos imperadores romanos que
governavam o império bizantino o haviam renunciado. Pelo contrário, continuaram a
afirmá-lo e, com ele, seu direito de exercer o controle imperial sobre os assuntos da
Igreja. Em outras palavras, no que diz respeito as igrejas ortodoxas, o imperador, tanto
em Bizâncio quanto subseqüentemente na Rússia, assumiu muitas vezes esses direitos
governamentais prescritivos sobre a Igreja reivindicados pelo papado. O grau em que
ele conseguiu implementar esses direitos na prática é uma questão que está fora do
escopo da presente discussão; mas não há dúvida de que a acusação de que as igrejas
ortodoxas se permitiram facilmente se fundir com o Estado e até mesmo se subordinar
aos interesses do Estado é algo que não pode ser negado. Por outro lado, também deve
ser lembrado que quaisquer que sejam os direitos que o imperador tenha reivindicado
em relação à Igreja, ele não era um sacerdote da Igreja, e muito menos um bispo; e que
este fato funcionava como uma restrição definitiva à sua autoridade: ele não podia
reivindicar, como o papa veio a reinvindicar, que possuía a liderança tanto
do sacerdotium quanto do imperium, e que a plenitude de todo o poder espiritual e
temporal estava investido em seu ofício.

Em segundo lugar, essas mesmas correntes das quais o papado emergiu fizeram-se
sentir, e continuam a se fazer sentir, no mundo ortodoxo. A teoria da Pentarquia
elaborada nos tempos bizantinos, segundo a qual os poderes governamentais supremos
da Igreja na terra são investidos nos cinco principais patriarcados, é uma manifestação
direta delas. Assim também, é a alegação, apresentada pelo Patriarca de Constantinopla
no século XIV, no sentido de que ele possui alguma autoridade especial e superior em
relação a outros bispos - uma alegação de que se pode observar a influência contínua em
certas ações e declarações inconvenientes do patriarca constantinopolitano nos últimos
anos. De fato, toda a concepção e status dos patriarcados, na maior parte relíquias de
uma estrutura imperial desaparecida, precisam ser reexaminados à luz dos princípios
patrísticos. Tampouco as igrejas ortodoxas são inocentes em apoiar, e mesmo promover,
atos de perseguição e repressão em que a liberdade religiosa e intelectual foi sacrificada
à suposta integridade de uma sociedade dita cristã.

Terceiro, o papado e a teoria em que se baseia podem ter sobreposto e até deslocado a
estrutura conciliar da organização eclesiástica e os princípios patrísticos sobre os quais
se baseia. Mas de maneira nenhuma eliminaram a idéia de que a Igreja é, acima de tudo,
um organismo sacramental ou as conseqüências dessa idéia quando se trata do status e
da função do bispo; e tanto essa ideia como suas consequências podem ser reafirmadas -
na verdade, estão cada vez mais sendo reafirmadas - no mundo católico romano. No
entanto, o que parece estabelecer um limite para essa reafirmação é o fato de que o
papado se estabeleceu como parte e parcela da estrutura imutável da Igreja na terra. São
alguns dos argumentos apresentados em apoio a este status que devem ser discutidos
agora.

6. Perspectivas e Fórmulas do Cisma

Ficará claro que a concepção romana da Igreja na terra como uma vasta organização
social e corporativa, cujos poderes supremos de jurisdição e magistério estão investidos
no papado, ultrapassa a concepção patrística em que todos esses poderes são investidos
no episcopado como um todo e são exercidos não somente por cada bispo agindo de
forma independente em sua própria diocese, mas quando necessário, através do sistema
de concílios da igreja. Também ficará claro que, uma vez que essa concepção romana é
incompatível e irreconciliável com a tradição patrística, a tentativa de implementá-la no
plano histórico não poderia deixar de produzir um cisma entre as igrejas que a aceitaram
e aquelas que não a aceitaram. Deve-se reconhecer que quaisquer que sejam as outras
causas - culturais, políticas e assim por diante - possam ter contribuído para o cisma, a
causa subjacente é o choque e a oposição dessas duas eclesiologias fundamentalmente
irreconciliáveis. Ao mesmo tempo, como já dissemos, essas próprias eclesiologias e as
formas institucionais a que elas dão origem estão enraizadas em diferenças doutrinárias
subjacentes, particularmente cristológicas e trinitárias; e, portanto, a causa final ou
causas do cisma são teológicas. No entanto, como vimos, a concepção romana da Igreja
na terra e seu governo sustenta-se na afirmação de que está enraizada, não na teologia,
mas na própria revelação cristã, conforme se manifesta nos Evangelhos. Ela se sustenta
na afirmação de que se baseia em critérios objetivos independentes da teologia ou
doutrina. Antes de prosseguir, portanto, para examinar as diferenças doutrinárias que de
fato fundamentam essas eclesiologias conflitantes, devemos primeiro considerar as
credenciais pelas quais o ponto de vista romano é apoiado. Isto, entre outras coisas,
também proporcionará uma oportunidade para indicar mais especificamente alguns dos
principais fundamentos eclesiológicos para o cisma. A compreensão romana é que a
primazia de São Pedro e, portanto, dos papas como sucessores de São Pedro se baseiam
sobretudo nos dois textos evangélicos que já observamos (Mateus 16.18-19 e João 21.
15-17. Um terceiro texto petrino - Lucas 22. 32: "Mas eu roguei por ti, para que a tua fé
não desfaleça; e tu, quando te converteres, confirma teus irmãos." - é apresentado pelo
Primeiro Concílio do Vaticano para apoiar, não a primazia papal, mas o papal
infalibilidade, embora os dois estejam inter-relacionados). O que isso significa é uma
reivindicação de que a autoridade para a constituição externa da Igreja, conforme
prevista na concepção romana, está nos próprios Evangelhos; e o que está incluído nesta
constituição externa é o papado como o único órgão histórico da unidade da Igreja na
terra e como o supremo poder jurisdicional sobre o episcopado e sobre a congregação
dos fiéis. O que primeiro deve ser examinado, portanto, é essa afirmação de que a
constituição da Igreja na terra, conforme prevista do ponto de vista romano, é autorizada
pelas Escrituras.

Talvez a primeira coisa a ser notada aqui seja o fato de que, como já vimos, os textos
petrinos nas Escrituras são suscetíveis a várias interpretações. Às vezes, por exemplo, a
"rocha" na qual a Igreja é fundada é identificada com o próprio Cristo, às vezes com a
pessoa de São Pedro, às vezes com a verdadeira fé, e assim por diante. Novamente, as
chaves para ligar e desligar são consideradas como a posse comum de todos os
apóstolos por escritores como Orígenes, Santo Ambrósio, Santo Agostinho e outros:
elas não são de modo algum já consideradas como a prerrogativa exclusiva de São
Pedro. Esta é apenas uma outra maneira de dizer - o que, de fato, é óbvio - que o modo
como se lê e assim interpreta o texto petrino ou qualquer outro texto do Evangelho, e o
significado que alguém atribui a eles, deve depender dos princípios e critérios de
compreensão, especificados ou não especificados, que se traz para a leitura deles. Não
se pode ler textos bíblicos - ou quaisquer outros textos - em, por assim dizer, um vácuo
e à parte das próprias pressuposições de compreensão. E essas próprias pressuposições
devem representar ou pelo menos implicar um ponto de vista teológico. Consciente ou
inconscientemente, elas devem estar enraizados na teologia. Por isso, a interpretação
romana dos textos evangélicos em questão também está enraizada em uma perspectiva
teológica.

O segundo ponto que pode ser observado a esse respeito é que os escritos do Novo
Testamento não são uma entidade dada, como as Tábuas da Lei de Moisés. São
registros da vida e ensinamentos de Cristo feitos por aqueles que participaram de sua
missão terrena ou que viveram em um tempo bastante próximo a ela e que receberam
relatos de testemunhas. O próprio cânon escriturístico foi estabelecido a partir de vários
desses registros, selecionados e organizados de uma maneira específica novamente de
acordo com certos princípios e critérios de compreensão - princípios e critérios
novamente expressando ou implicando um ponto de vista teológico, neste caso
relacionado à iniciação nos mistérios da Igreja. Em outras palavras, o cânon das
escrituras é estabelecido pela Igreja e de acordo com seus próprios propósitos, e
não vice versa. Isso quer dizer que a constituição da Igreja na terra precede o
estabelecimento do cânon das escrituras: a Igreja na terra já é constituída antes de
qualquer decisão sobre o que é Escritura e o que não é Escritura. É claro que isso deixa
sem resposta a questão de quem ou qual autoridade na Igreja estabelece o cânon das
escrituras. Do ponto de vista patrístico, a resposta seria que todo o corpo da Igreja,
bispos e leigos, sob a direção do Espírito Santo. Do ponto de vista romano, a resposta
consistente deve ser que a autoridade final recai sobre o papa de Roma, quaisquer que
sejam a parte que outros bispos ou leigos possam desempenhar. Se este é o caso, então
depara-se com a curiosa conclusão de que o papa de Roma, como suprema autoridade
magistral e jurisdicional sobre a Igreja na terra, estabelece o cânon escriturístico que, na
interpretação romana dos textos petrinos nele incluídos, estabelece São Pedro e,
posteriormente, o papa de Roma como a suprema autoridade magistral e jurisdicional
sobre a Igreja. Mas mesmo se pudesse ser demonstrado que o papa de Roma
desempenhou um papel único e autoritário na determinação do cânon das escrituras,
ainda resta o fato de que é a Igreja já constituída que determina esse cânon; daí a
constituição da Igreja, e do papado como o órgão de sua unidade exterior, não pode ter
sido deduzida da Escritura. Mesmo se for dito que eles são determinados diretamente
por revelação, à qual os Evangelhos testemunham, a mesma dificuldade permanece:
ainda há a questão de quem ou qual autoridade estabelece a autenticidade da revelação
ou fornece a interpretação autêntica dos fatos da revelação. Seja qual for o modo como
se olha, ainda se enfrenta a conclusão de que a constituição e estrutura da Igreja na terra
não pode ser derivada tout court da Escritura ou da revelação, mas deve depender dos
princípios e critérios segundo os quais elas são interpretadas - princípios e critérios que
novamente serão de caráter teológico. O máximo que se pode dizer a esse respeito é que
nenhuma interpretação que contradiz especificamente os fatos da revelação pode ser
válida, conforme registrados nos Evangelhos. Para além disso, os Evangelhos são
irrelevantes no que se refere à constituição da Igreja; e os textos petrinos em si não
confirmam nem refutam a afirmação de que Cristo conferiu a São Pedro esse tipo de
primazia com a qual ele é creditado na teoria eclesiológica romana.

No entanto, estes textos parecem indicar algo de importância crucial no que diz respeito
à constituição da Igreja na terra e que São Pedro tem alguma função particular a este
respeito. Neste ponto, portanto, é relevante ver como a questão dos poderes
eclesiásticos, sua transmissão e o papel de São Pedro são considerados na tradição
patrística. Para começar, essa tradição não assume que o problema exegético dos textos
consiste simplesmente em decidir se Cristo quis dizer que a Igreja foi fundada na fé de
Pedro ou na pessoa de Pedro ou no próprio Cristo. Mas ela afirma que o texto de 'Tu es
Petrus', seja qual for o significado preciso que alguém lhe atribui, é um privilégio não
do papado, mas do episcopado como um todo. 'O episcopado é um', como diz São
Cipriano. 'É um todo do qual cada um desfruta de posse plena.' O episcopado é uma
posse sobre uma totalidade na qual cada bispo possui aquela autoridade plena que Cristo
primeiro (em um sentido cronológico) conferiu a Pedro. A autoridade designada por
Cristo a Pedro (seja qual for) é investida em todo o episcopado. Todos os bispos se
sentam na única cadeira ou trono de Pedro. Esta cadeira ou trono é uma descrição
concentrada da autoridade e funções que cada bispo desfruta em virtude de seu ofício, e
que de fato constituem seu ofício. E há apenas 'uma cadeira fundada em Pedro pela
Palavra do Senhor' (como diz São Cipriano); e todo bispo é o sucessor de Pedro,
entronizado como tal na cadeira de Pedro.

Ao mesmo tempo, embora assim todos os bispos sejam sucessores de São Pedro,
quaisquer poderes que tenham sido conferidos a Pedro por Cristo não foram conferidos
a ele somente de todos os apóstolos. Eles foram conferidos (mesmo que posteriormente)
por Cristo a todos os apóstolos, incluindo aqueles missionários itinerantes que têm o
título de 'apóstolo', como Timóteo ou Tito, e que são mencionados no Didache (xi. 4-5).
A passagem bíblica vista como confirmando isso é Mateus 28. 18-19. Além disso, há
uma clara distinção entre apóstolos e bispos. Os apóstolos haviam recebido uma missão
universal de ensino de Cristo - um ministério que consistia em anunciar ao mundo
inteiro o Evangelium (Evangelho) do qual haviam sido testemunhas. O campo de ação
de cada bispo, por outro lado, é restrito, exceto quando ele age em Concílio com outros
bispos, na comunidade local sobre a qual ele preside. Ou seja, enquanto os apóstolos
foram designados para ensinar e fundar igrejas locais onde, como regra geral, eles não
administravam os sacramentos, o ofício do bispo é definido precisamente pelo fato de
que ele é a imagem de Deus no centro sacramental local no qual a presença de Cristo é
manifestada. Suas funções são, portanto, essencialmente sacramentais e litúrgicas,
sendo determinadas em primeiro lugar por seu status como imagem de Deus na igreja
local. Mas porque eles também estão ocupados em proclamar, manter e transmitir a
verdadeira fé em uma mesma igreja local fundada originalmente, direta ou
indiretamente, pelos apóstolos, essas funções também são apostólicas; e elas também
são jurisdicionais e magistrais.

As funções apostólicas do bispo - seu ministério - estão, portanto, íntima e


indissoluvelmente ligadas às suas funções sacramentais e litúrgicas. Elas estão ligadas
ao mistério eucarístico que perpetua através do tempo o evento ao qual os apóstolos
prestaram testemunho. A Eucaristia é a atualização da obra de Cristo, e o ensino da
verdade é um aspecto dessa atualização. E esta verdade é sempre apostólica - baseada
no testemunho dos apóstolos - porque, como a obra de Cristo se atualiza no mistério
eucarístico, não há diferença entre o tempo dos apóstolos e aquele em que a Eucaristia é
celebrada em qualquer igreja local. Como comunidade sacramental, a igreja local é
também a guardiã dos ensinamentos apostólicos. A pessoa que em relação a essa
comunidade e como seu representante proclama este ensinamento é o bispo. Desta
forma, o bispo é o sucessor dos apóstolos.

Em suma, todos os bispos igualmente sucedem a qualquer poder conferido por Cristo
aos apóstolos. Mas eles não lhes sucedem como se estivessem independentemente de
suas funções sacramentais, ou como se pudessem exercê-las à parte de suas funções
sacramentais, sob a alegação de que são de algum modo extra-eclesiais e não são
inerentes à Igreja como um organismo sacramental. Eles sucedem em virtude
justamente de seu lugar e status dentro da comunidade sacramental. À parte deste lugar
e status, ou fora desta comunidade, tal sucessão seria impossível e inconcebível. É a
função sacramental que confere a função governamental. Aqueles que estão
qualificados para administrar os sacramentos são também aqueles que, em virtude de
seu status sacramental, são qualificados para organizar e guiar a comunidade cristã. É o
que se chama ordenação, e somente isso, que confere poderes jurisdicionais e
magisteriais. Não há espaço nesta concepção para a ideia de que as funções de ensino e
governamentais na Igreja podem receber a sua legalidade de qualquer fonte extra-
sacramental ou extra-eclesial. Na natureza das coisas, não pode haver poderes,
governamentais ou outros, exercidos sobre a Igreja na terra. Só pode haver poderes
exercidos dentro da Igreja, derivados da Igreja. Como já observamos, as funções
apostólicas e outras são vistas como funções especiais do corpo vivo de Cristo,
necessárias para a manifestação no mundo do tempo e lugar, na história, daquela vida
que anima o todo. A Igreja na terra não tem uma identidade autônoma ou quase
autônoma que exija o exercício de uma jurisdição ou de um governo sobre ela. Pensar
que tem tal identidade é conceber erroneamente sua natureza. E não há poderes
possuídos por Pedro que não sejam compartilhados igualmente pelos outros apóstolos e
aos quais todo bispo que ocupe validamente uma sé apostólica não suceda. Não há nada
a receber de Pedro que não possa ser e não tenha sido igualmente recebido dos outros
apóstolos.
Nesse caso, por que Pedro é considerado, em algum sentido especial, como tendo um
papel crucial na constituição da Igreja na terra? A resposta para isso é dupla. Primeiro,
ele recebeu esses poderes de Cristo antes dos outros apóstolos e isso lhe confere uma
certa primazia de honra entre os apóstolos. Segundo, de acordo com a evidência bíblica
registrada nos primeiros doze capítulos dos Atos dos Apóstolos, ele foi o primeiro,
provavelmente no próprio dia do Pentecostes, a agir como a imagem de Cristo na
celebração do mistério eucarístico. Nós notamos que, como regra geral, os apóstolos
parecem não ter administrado os sacramentos nas igrejas locais que eles fundaram. Mas
este caso de Pedro na comunidade local de Jerusalém parece ser uma exceção
significativa. Pois foi Pedro quem presidiu a assembleia eucarística dos primeiros
cristãos reunidos em volta dos apóstolos. Assim, é Pedro quem inaugura o período da
história em que Cristo está presente no Mistério sacramental entre o seu povo escolhido.
É Pedro, em outras palavras, que é o primeiro depois de Cristo e como a imagem de
Cristo a estabelecer a Igreja como uma realidade sacramental na terra. E ele faz isso em
virtude da função essencialmente litúrgica que ele cumpre na comunidade local da
Igreja em Jerusalém. Se alguém lembra que o sentido original da palavra "igreja" no
Novo Testamento é o da comunidade local, e que no Evangelho de São Mateus (18.17)
essa comunidade local é acima de tudo a de Jerusalém, pode-se perguntar se as palavras
de Cristo a Pedro em Mateus 16 não se referem ao papel que Pedro está destinado a
desempenhar em relação à comunidade de fiéis em Jerusalém. Em todo caso, estas
palavras de Cristo, mesmo que não falem diretamente de nenhuma sucessão, têm uma
aplicação direta e necessária a todos aqueles que cumprem as mesmas funções que
Pedro cumpriu em Jerusalém nas comunidades locais da Igreja criadas pelos apóstolos
no modelo instituído por Cristo na Última Ceia. É à luz destas considerações que se
pode entender o lugar especial atribuído a Pedro tanto entre os apóstolos como em
relação à Igreja na terra. É à luz disso também que se pode perceber em virtude de quais
funções todos os bispos podem ser considerados sucessores e se sentar na cathedra una,
que é também a cathedra Petri.

Assim, embora no próprio Novo Testamento não exista um esclarecimento específico


sobre como os poderes conferidos por Cristo aos apóstolos, seja individualmente ou
coletivamente, devem ser transmitidos aos seus sucessores, o ponto de vista da tradição
patrística é bastante inequívoco. É um ponto de vista que, mais uma vez, contraria
diretamente a tese da primazia papal mantida pela igreja romana. Como já observamos,
a primeira suposição fundamental desta tese é que Cristo deu o poder das chaves e o
poder de ligar e desligar somente a São Pedro; que isso era uma comissão puramente
pessoal; e que os outros apóstolos só compartilhavam esses poderes porque lhes haviam
sido transmitidos por São Pedro. Assim, de acordo com esta tese, toda a constituição da
Igreja na terra e todo o governo da comunidade cristã dependem dessa comissão pessoal
para Pedro. A segunda suposição fundamental desta tese é que assim como há uma
distinção de poder - uma discretio potestatis - entre São Pedro e os outros apóstolos, no
sentido de que os outros apóstolos recebem seu poder jurisdicional de São Pedro, assim,
nesse modelo, há uma distinção similar de poder entre o papa e os outros bispos. A
teoria é que o papa incorpora a plenitude do poder jurisdicional em seu ofício, de modo
que qualquer poder exercido por outros bispos é exercido porque o papa o delegou a
eles. Mesmo assim, uma distinção no exercício desse poder ainda é mantida, no sentido
de que, enquanto os outros bispos só podem exercê-lo cada um em relação à sua própria
diocese, o papa o exerce sobre toda a Igreja. O regime de toda a Igreja reside
unicamente no ofício papal. Ele reside unicamente no ofício papal porque se encontra
exclusivamente com Pedro. Pois, embora os outros apóstolos tenham recebido
diretamente de Cristo o poder de fundar igrejas e de iniciar comunidades eucarísticas,
eles receberam qualquer poder jurisdicional que possuíam somente de São Pedro. Deste
modo, embora em relação à sua dignidade sacramental - suas potestas ordinis - todos os
bispos sejam iguais, porém, em virtude da comissão petrina, o poder jurisdicional
supremo sobre toda a Igreja na terra - o potestas regendi - é investido somente no papa e
outros bispos só podem derivá-lo do papa.

O grau em que esta tese papal está em desacordo com o ponto de vista consagrado na
tradição patrística será imediatamente aparente. Mas há um aspecto crucial desta tese
que ainda não consideramos. Se o modelo fornecido por São Pedro e outros apóstolos é
ter sua equivalência no papa e nos outros bispos, deve haver um vínculo válido e
inequívoco entre eles. Os direitos que o papa reivindica como sucessor de São Pedro são
direitos jurídicos e, portanto, o direito a esses direitos deve ser estabelecido numa base
jurídica. A teoria, claro, é que esse vínculo é fornecido pelo próprio Pedro. Seja como
primeiro bispo de Roma, ou como fundador da Igreja em Roma, Pedro entregou esses
poderes pessoalmente cometidos a ele somente entre todos os apóstolos por Cristo ao
papa somente entre todos os bispos. Porque o papa é bispo da sé fundada, se não
ocupada, por Pedro - a única verdadeira apostolica sedes - somente ele é o vigário de
São Pedro. E como Pedro é o príncipe dos apóstolos, também o papa é o príncipe de
toda a Igreja.

No entanto, quando, onde e como este vínculo direto entre São Pedro e o pontífice
romano foi estabelecido? Se houvesse alguma declaração no Novo Testamento ou em
algum outro escrito apostólico sobre isso, essas perguntas poderiam ter sido
respondidas. Mas não há referência específica ou mesmo oblíqua nesses documentos em
relação a Pedro nomeando seu sucessor, muito menos a nomeação do bispo de Roma
como seu sucessor. De fato, a primeira referência a Pedro consagrando o bispo de Roma
como seu sucessor ocorre em uma carta conhecida como a Epístola de Clemente a Tiago
(a Epistola Clementis), supostamente escrita pelo papa Clemente I a São Tiago, irmão
do Senhor, em Jerusalém. De acordo com esta carta, antes de morrer, São Pedro colocou
as mãos sobre Clemente como bispo de Roma e lhe confiou sua cadeira de discurso. Ao
mesmo tempo, ele havia falado diante da comunidade romana reunida: 'Eu concedo a
ele (Clemente) a autoridade de ligar e desligar a fim de que tudo o que ele (Clemente)
decidir sobre a terra, seja aprovado no céu, porque ele ligará o que deve ser ligado e ele
desligará o que deve ser desligado.' Este é o único documento em que o que foi tomado
como evidência concreta de que São Pedro legalmente nomeou o pontífice romano para
ser seu herdeiro pode ser encontrado. Ele foi apresentado em praticamente todas as
comunicações papais durante a Idade Média como o título de posse que estabeleceu o
ofício do papa, foi incorporado em numerosas coleções canônicas e foi citado como
evidência para as reivindicações papais no século XVI no Concílio de Trento. No
entanto, mesmo quando tomado em seu valor aparente, apresentava certas dificuldades,
pois ignorava o fato de que havia dois bispos de Roma antes de Clemente - Linus e
Cletus (ou Anencletus). Assim, os apologistas e exegetas papais foram induzidos a
explicar que Linus e Cletus tinham sido bispos simples e não precisavam exercer
o apostolatus porque São Pedro ainda estava vivo e assim o exercia por si mesmo. Foi
somente quando sua morte estava próxima que ele sentiu a necessidade de transmitir
seus poderes de jurisdição apostólica e funções de ligar e desligar. Naquela época
Clemente era bispo de Roma e por isso foi Clemente que se tornou o primeiro pontífice
romano de pleno direito.
Contudo, ao resolver essa dificuldade dessa maneira, os escritores e exegetas papais
foram compelidos a fazer pela primeira vez essa outra distinção tão crucial para a tese
papal. Eles foram obrigados a distinguir entre os poderes de jurisdição petrinos e os
poderes de ordenação, que se referiam apenas à função sacramental do bispo. Pois foi
somente por meio de tal distinção que se poderia explicar como Linus e Cletus eram
bispos sem ter possuído poderes jurisdicionais, bem como poderes sacramentais. De
acordo com a epístola de Clemente, Pedro também conferiu poderes episcopais a
Clemente. Assim, Clemente combinou ambos os conjuntos de poderes e recebeu ambos
diretamente de São Pedro. Mas deve ser salientado que, mesmo pelo seu valor aparente,
as palavras citadas neste documento segundo as quais São Pedro supostamente investiu
Clemente com poderes jurisdicionais sobre toda a Igreja na terra são palavras que
qualquer outro apóstolo poderia ter usado para consagrar um bispo de qualquer outra sé.
Assim, foi bastante arbitrário considerá-las como indicando que apenas Pedro possui
tais poderes ou que, pelo uso dessas palavras, ele investe esses poderes somente no
bispo de Roma.

No entanto, o valor deste documento - o único documento atestando a nomeação de


Pedro do bispo de Roma como seu sucessor - está gravemente comprometido pelo fato
de que não foi escrito até algum tempo no final do século II ou início do século III. De
fato, não foi traduzido (consideravelmente 'corrigido') do grego para o latim até o final
do século IV. Isso significa que não há nenhum testemunho específico ou inequívoco de
quando, onde ou como São Pedro entregou seus poderes especiais ao papa, e ao papa
sozinho. Com base na evidência de um tipo histórico, pareceria que São Pedro e São
Paulo fundaram a Igreja em Roma; que o primeiro bispo foi Linus; que nem São Pedro
nem São Paulo foram eles mesmos bispo de Roma; e que não há título de documento
válido para a alegação de que o bispo de Roma sucede exclusivamente à comissão de
São Pedro, o que quer que isso tenha sido.

Sendo este o caso, somos obrigados a reconhecer que, assim como o significado que
atribuímos aos textos petrinos nos Evangelhos deve depender dos princípios e critérios
de compreensão e interpretação que alguém traz à leitura dos Evangelhos, o mesmo se
aplica no que diz respeito a tese da primazia papal. Concordar que a primazia de São
Pedro, estabelecida por Cristo, é atribuída exclusivamente aos pontífices romanos que
são seus sucessores, deve depender de princípios e critérios para os quais não há
confirmação específica nem nos Evangelhos, nem em quaisquer outros escritos
apostólicos, ou, de fato, em qualquer documento que não seja aquele emitido sob a
égide do próprio ofício papal em apoio às suas próprias reivindicações.
Consequentemente, somos forçados a reconhecer que a forma que a igreja romana e o
papado assumiram durante o período medieval foi determinada não por revelação, nem
pelas Escrituras, nem por qualquer ordenança apostólica. Foi determinado pela
crescente ascendência de certas idéias sobre o que constitui a Igreja e a sociedade cristã.
Como essas próprias idéias refletem um certo entendimento doutrinário, é uma
consideração desse entendimento que devemos nos voltar agora.

7. A Cristologia do Cisma

De acordo com a tradição patrística, a Igreja, como vimos, é uma realidade divina-
humana integral. É uma realidade teândrica. Sua forma terrena - sua forma humana e
social - está enraizada em sua forma divina e é indissoluvelmente uma com ela. Não
pode ser separada de sua forma divina, assim como a natureza humana de Cristo não
pode ser separada de sua natureza divina. Tratar esses dois aspectos da Igreja como se
eles constituíssem duas entidades quase independentes, cada uma exigindo um conjunto
diferente de princípios e regulamentos operativos é, dissemos, rasgar em pedaços o
manto sem emenda de Cristo. É cometer o ato original de cisma, do qual todo cisma
adicional no plano histórico deve derivar. É considerar a Igreja não como uma realidade
divino-humana integral, da qual a única cabeça real, seja na terra ou no céu, é a Pessoa
viva de Cristo, mas como uma realidade na qual, para fins práticos, o aspecto humano é
virtualmente independente do aspecto divino. Neste caso, a Igreja na terra deixa de ser
vista como a manifestação direta de Cristo - seu sacramento, teofania ou ícone. Torna-
se, ao invés disso, seu instrumento, uma organização social e humana por meio da qual
aqueles capacitados para agir, de forma vicária e instrumental, realizam seu propósito
salvador.

Essa concepção patrística da Igreja depende, é claro, de um sentido muito realista da


Eucaristia e da presença eucarística. A Igreja é o corpo de Cristo e o corpo de Cristo se
manifesta no mistério eucarístico: 'Este é o meu corpo'. Como sacramento de Cristo, a
Igreja não é apenas uma realidade criada. É uma realidade que é simultaneamente e
indissoluvelmente criada e incriada. Cristo está presente na Eucaristia não apenas
espiritualmente ou psiquicamente. Ele está presente também corporalmente (somatikos).
E, correspondentemente, através da Eucaristia, Cristo habita naqueles que dela
participam não apenas espiritual e psiquicamente, mas também corporalmente. Há uma
integração corpórea e não apenas espiritual com Cristo. Cristo é a videira; aqueles que
participam dele através da Eucaristia são os ramos tanto corporal quanto
espiritualmente. Como diz Cirilo de Alexandria: 'Pois o Filho está em nós, por um lado,
corporalmente, como homem, unido e misturado conosco por meio da Eucaristia; e
também espiritualmente, como Deus, pela energia e graça de seu próprio espírito,
renovando o espírito que está em nós para a renovação da vida.' O significado de
'corporalmente' é eucarístico e eclesial. Incorporação em Cristo é incorporação na
Igreja. Estar unidos com Cristo, espiritual, psiquicamente, fisicamente e participar da
Eucaristia; ter um lugar no Reino de Deus e comungar nos santos mistérios - essas,
notamos, são operações simultâneas. Elas formam uma única ação ou realização.

O que tudo isso, por sua vez, pressupõe é uma forma particular de cristologia. É uma
cristologia que vê a relação entre Deus e o homem em Cristo não apenas como uma
justaposição ou cooperação de dois elementos virtualmente independentes, o divino e o
humano. Pelo contrário, vê-o como uma união do divino e do humano em Cristo, a tal
ponto que é impossível conceber o humano sem o divino ou o divino sem o humano.
Fala-se do Deus-homem - o theanthropos. Isto não é eliminar a realidade da natureza
humana em Cristo, ou dizer que há alguma confusão das duas naturezas nele, ou que
cada natureza não preserva sua própria identidade dentro da união. Mas é dizer que a
natureza humana em Cristo, embora não tenha hipóstase própria, não está, portanto, sem
uma hipóstase, porque a do Logos divino torna-se também a hipóstase da natureza
humana. Em Cristo, a natureza humana é enhipostasiada no Logos divino. O Logos
divino, que naturalmente tem sua hipóstase ou é sua hipóstase, tomou em sua hipóstase
um corpo humano, alma e intelecto como seu próprio corpo, alma e intelecto, de modo
que sua natureza humana não tem sua própria hipóstase independente. A natureza
humana de Cristo é a soma de todas as características humanas tomadas como um todo
que o Logos encarnado tem como tal. Essa natureza humana não pode ser considerada
separada da hipóstase do Logos, exceto de uma maneira puramente abstrata. Existem
duas naturezas - divina e humana - mas somente um Cristo. É o mesmo sujeito que age
em todas as ações, sejam elas divinas ou humanas, de Cristo. É o Logos divino que é o
sujeito não só dos milagres, mas também dos sofrimentos.

Essa compreensão da cristologia é refletida em uma antropologia que novamente se


recusa a admitir qualquer separação ontológica radical entre o homem e Deus. Mesmo
depois da Queda, o homem não perde uma certa afinidade natural com Deus. Embora
haja uma perda de incorruptibilidade e imortalidade, não há depravação total. Adão
nunca escapa totalmente das mãos de Deus. Ele nunca está totalmente isolado de Deus.
Mas em Cristo, mesmo essa alienação parcial do homem de Deus é curada pela união do
humano com o divino. Cristo renova a criação primitiva. Ele restaura todas as coisas
para si mesmas. Ele reúne o que foi anormalmente separado pelo pecado humano. E
deve ser lembrado neste contexto que em Adão é toda a natureza humana que é criada,
não simplesmente a de um único indivíduo. Da mesma forma, na recapitulação realizada
em Cristo, é a totalidade da natureza humana que é restaurada ao seu estado primordial -
mesmo dotada de maiores possibilidades. 'Pelo sacrifício de Cristo, o primeiro homem
foi salvo, aquele homem que está em todos nós', como diz o Pseudo-Crisóstomo. É a
natureza humana como tal que é criada originalmente à imagem de Deus; e o que "cai"
em Adão é novamente a natureza humana e o que é "restaurado" em Cristo é novamente
a natureza humana. Isso significa que toda a natureza humana - na verdade, todo ser
criado - agora participa da vida divina, quer indivíduos estejam cientes disso ou não.
Em outras palavras, essa mesma união entre o humano e o divino, realizada plenamente
e hipostaticamente em Cristo, também é realizada potencialmente no caso de cada ser
humano. Cada ser humano, ao energizar em sua vida individual, a natureza Adâmica
original em cada um de nós, que foi totalmente restaurada ou ressuscitada ou
transfigurada em e através de Cristo, pode realizar sua própria participação na vida e
caráter do próprio Deus Triuno. Ele pode realizar a integridade de sua natureza
teândrica.

Mas é precisamente na Igreja que essa realização é efetuada. É a Igreja que é o locus da
deificação do homem. É na Igreja que o seu ser natural, como realidade divino-humana,
é afirmado e confirmado. E deve ser enfatizado que esta é a realidade dele, esteja ele
ciente disso ou não. Pois como em Cristo Deus está indissoluvelmente unido à
humanidade, assim no homem sua natureza humana está indissoluvelmente unida ao
divino. E a Igreja é a manifestação dessa união. Ela se manifesta completamente no
corpo de Cristo. Ela se manifesta parcialmente em todos os indivíduos, na medida em
que eles participam desse corpo. Ao participar deste corpo, eles mesmos se tornam o
corpo de Cristo. E o que eles se tornam é o que são: uma realidade divino-humana. É a
afirmação ou proclamação existencial deste mistério, tanto do lado de Deus como do
lado do homem, que constitui a Igreja.

Segue-se daí que, assim como é um erro considerar a natureza humana de Cristo como
se tivesse uma hipóstase própria, independente ou adicional à do Logos divino, também
é um erro considerar a natureza humana dos seres humanos na Igreja como uma
realidade independente em si mesma. Uma condição de estar na Igreja é que essa
natureza humana já está enhipostasiada na vida do Logos divino. A condição de estar na
Igreja é que se participa no corpo de Cristo. A pessoa se torna um membro do corpo de
Cristo. Mas o corpo de Cristo é em si uma realidade espiritualizada, da qual o sujeito é o
Logos divino. Portanto, todos os que são membros desse corpo - que fazem parte desse
corpo - participam de uma realidade espiritualizada cujo sujeito é o Logos divino. Seu
verdadeiro e próprio sujeito é, portanto, esse mesmo Logos. A natureza humana deles
tem o Logos como sua hipóstase. E isso é assim, estejam eles conscientes disso ou não,
se reconhecem formalmente sua filiação à Igreja ou não.

Sendo este o caso, a tentativa de organizar a Igreja na terra como se os seres humanos
nela - a congregação dos fiéis - pudessem ser definidos apenas em termos de sua
natureza humana, ou pudessem ser vistos como entidades semi-autônomas existentes
por elas mesmas, à parte do divino, e assim pudessem constituir uma espécie de
sociedade humana em si mesma, é conceber erroneamente a própria natureza da Igreja,
como esta é entendida na tradição patrística. É ignorar sua realidade divino-humana
integral. É vê-la, em alguma medida, separada de suas raízes na vida divina. É falhar em
perceber que é a hipóstase do Logos que é seu verdadeiro e próprio sujeito - é o
verdadeiro e próprio sujeito de seus membros, que são seus membros apenas na medida
em que são incorporados ao corpo de Cristo e assim se tornam o corpo de Cristo. A esse
respeito, é também interpretar mal a natureza dos seres humanos. É defender uma
antropologia equivocada ou reduzida. E como a antropologia é um reflexo da
cristologia, é defender uma cristologia equivocada ou reduzida. Assim, se quisermos
entender a forma como a Igreja na terra foi dada no mundo romano durante o período
medieval - na qual foi feita a tentativa de construí-la em uma organização social e
corporativa, com suas próprias leis e governo nas linhas de qualquer outra sociedade
terrena e humana - devemos nos voltar para a cristologia que a sublinha. Pois assim
como é a cristologia que temos considerado que determina a concepção patrística da
Igreja, também será uma forma diferente de cristologia que determina a concepção da
Igreja que se tornou efetiva para o mundo romano.

Para colocar essa cristologia que se tornou eficaz para o mundo romano em sua devida
perspectiva, devemos voltar ao século V e às tentativas da escola de teólogos em
Antioquia de refutar o que era conhecido como a heresia apolinariana. Apolinário
defendia que a verdadeira unidade na pessoa de Cristo seria inteligível apenas se o
Logos não assumisse todo o homem, a natureza humana completa (corpo, alma e
intelecto), mas caso se unisse ao corpo e à alma humana de tal maneira que ele próprio
se tornasse o intelecto, o princípio agente, no ser novo e unido. Essa idéia de uma
unidade substancial entre o Logos e a natureza humana, que resultou na natureza nova e
composta do Logos encarnado, pareceu aos teólogos de Antioquia eliminar a verdadeira
humanidade de Cristo. Parecia eliminar o significado do elemento humano na natureza
de Cristo, ou pelo menos reduzi-lo a uma completa passividade. Por isso os
antioquianos insistiram que as naturezas divina e humana em Cristo deviam ser
consideradas como perfeitas cada uma em si mesma. Eles insistiram na realidade
totalmente humana de Jesus, incluindo seu livre arbítrio humano. Ao contrário de
Apolinário, que viu em Cristo apenas uma substância do Logos, à qual, além de suas
próprias características ou atributos, aqueles da natureza humana imperfeita haviam sido
anexados, os antioquianos afirmaram que as duas naturezas em Cristo não eram
alteradas por sua união. Mas os eles não aceitaram que a união fosse uma união
substancial. Eles acreditavam que as duas naturezas de Cristo, como ambas realmente
existiam nele, tinham cada uma sua própria hipóstase. Eles falaram das duas hipóstases
de Cristo como sinônimo das duas naturezas em Cristo. Para eles, Cristo era um homem
que pensava e se sentia como homem e tinha seu desenvolvimento corporal, intelectual
e moral como outros homens. Ao mesmo tempo, ele também era perfeito e completo em
sua divindade. Mas, embora considerassem a natureza divina do Logos totalmente
presente em Cristo, ainda assim a via como uma realidade independente de sua natureza
humana, independente em sua essência e em suas manifestações. O Logos não era a
hipóstase, o sujeito interior da natureza humana e divina em Cristo. A natureza humana
manteve sua própria realidade como uma hipóstase por si mesma. Era autônoma ou
semi-autônoma. Mantinha (até certo ponto) seu próprio livre arbítrio e tinha um
desenvolvimento e atividade independentes. E foi a essa natureza humana autônoma ou
semi-autônoma que os antioquianos atribuíram o mérito da nossa salvação. Foi por
causa do esforço e cooperação do homem, Jesus, que o Logos residiu nele.

Para seus oponentes - os teólogos de Alexandria liderados por Cirilo de Alexandria -


esse modo de pensar dos antioquianos pareceu dividir Cristo em duas pessoas e dois
filhos - o Filho de Deus e o filho de Maria, o primeiro o Filho de Deus por natureza e o
segundo apenas por adoção. Parecia não permitir a real unidade de Cristo - 'um Senhor
Jesus Cristo', como a formulação de Nicéia expressou. Pelo contrário, parecia sugerir
que existem dois sujeitos em Cristo, um divino e um humano. E enfatizando a
independência da natureza humana e afirmando que foi através do esforço e da
cooperação do homem Jesus que o Logos habitou nele, poderia facilmente levar à
conclusão de que a salvação reside nos esforços do homem, como um ser imperfeito
independente, em fazer o bem e imitar a Cristo. Para Cirilo, por outro lado, o poder do
pecado e da morte não poderia ser derrotado ou superado pelos esforços humanos ou
méritos do homem Jesus. A salvação é dada e realizada somente por Deus. Mas este não
poderia ser o caso, a menos que o Logos tenha assumido a natureza humana e realmente
tenha feito ela sua própria natureza. A união de Deus e do homem em Cristo não é
apenas da justaposição ou cooperação entre duas realidades virtualmente independentes.
É uma questão de união delas. O Logos incorporado é um só, e há apenas um sujeito - o
Logos - em todos os estágios da vida humana de Jesus.

As formulações do quarto Concílio Ecumênico realizado em Calcedônia, em 451,


representavam um compromisso entre os pontos de vista antioquiano e alexandrino.
Este compromisso, expresso no famoso Tomo a Flaviano, do Papa Leão Magno,
afirmava a plena realidade das duas substâncias (substantias) em Cristo e insistia na
unidade da pessoa - ou na identidade do sujeito - nas atividades divinas e humanas de
Cristo. No entanto, embora tenha sido o texto de Leão que forneceu a base para a
formulação calcedoniana, ainda assim, na prática, foi o ponto de vista antioquiano que
se tornou dominante na tradição teológica ocidental. É o ponto de vista que enfatiza a
plena realidade das duas naturezas em Cristo ("cada natureza preservando seu próprio
modo de ser"; nas palavras de Leão: "agit utraque forma quod proprium est") e não a
unidade das duas naturezas na pessoa de Cristo, com a hipóstase do Logos divino como
o único sujeito real da operação dessas duas naturezas. Que este deve ter sido o caso é,
sem dúvida, devido à presença nesta tradição ocidental de tendências que já
pressupunham uma espécie de cristologia dualista, uma que vê Cristo mais como Deus e
homem do que como uma união ou síntese theantrópica. Já em Tertuliano, por exemplo,
Cristo é visto acima de tudo como um mediador entre Deus e a humanidade; e no que se
tornaria a teoria dominante da redenção nesta tradição - a teoria na qual a idéia de Cristo
como a vítima sacrificada desempenha um papel tão grande - o que é enfatizado acima
de tudo é a humanidade de Cristo como algo tão distinto de sua divindade que ele pode
oferecer ela ao Pai como um sacrifício expiatório. Essa teoria, além disso, também
pressupõe o sentido de uma grande lacuna ontológica entre Deus e o homem: Deus e o
homem representam dois pólos completamente distintos entre os quais o ato de
mediação ou expiação deve ocorrer. A natureza humana é encarada como uma realidade
existente em si mesma. Pode estar ligada ao divino, mas pode ser vista como existindo à
parte do divino.

De fato, essa concepção da natureza humana como uma realidade auto-subsistente, com
uma existência histórica própria à parte do divino, é mais aparente no pensamento de
Santo Agostinho. É evidente, acima de tudo, em relação ao entendimento de Agostinho
sobre o pecado e suas conseqüências. Segundo Agostinho, em Adão todos os homens
pecaram. Este pecado é transmitido de geração em geração através do ato de gerar em
si. Como conseqüência, ele entregou o homem ao diabo. Privou-o completamente de
sua participação no divino, à imagem de Deus, o Logos. Sua vontade é pervertida ou
corrompida. Está em escravidão. E não pode ser libertada da escravidão sem a entrada
de outro fator extrínseco: a graça divina. Sem essa graça redentora, o homem não pode
fazer nada. Ele não está nem em posição de escolher Deus. Por si mesmo, ninguém
consegue nada além de mentira e pecado. De fato, mesmo no Paraíso, a possibilidade de
não pecar (o posse non peccare) não pertence ao homem ou está dentro de seus próprios
poderes. A capacidade de evitar o pecado não faz parte da natureza do homem. Mesmo
a disposição do bem em si - e isso mesmo no Paraíso - não pode vir do homem sem o
estímulo prévio da graça. Não há cura para as aberrações que são parte e parcela da
natureza humana à parte da graça. Não só o homem não pode ser salvo sem graça, mas
se o homem é salvo, é devido à graça que lhe foi dada. E se esta graça é dada ou não,
não depende do homem ou de qualquer coisa que ele faça: depende de Deus. A graça é
um dom extrínseco. Não é inerente à natureza do homem como tal.

No contexto com o qual estamos aqui ocupados, o que é importante sobre essa
compreensão do pecado e suas consequências é que ela pressupõe precisamente a idéia
de que a natureza humana como tal - ou a humanidade como tal - pode existir e existe
como uma realidade independente de Deus, totalmente separada de Deus. O homem
pode e existe privado de graça, privado de sua participação no divino. De fato, esta é a
condição na qual ele nasceu neste mundo, e é por isso que, para Agostinho, crianças não
batizadas são automaticamente condenadas. O que é pressuposto em outras palavras é
uma dicotomia radical entre Deus e o homem. Há uma lacuna ontológica virtualmente
intransponível entre eles. Isso significa que é bastante legítimo - na verdade, é
vitalmente necessário - fornecer aos seres humanos regras e regulamentos com os quais
possam viver essa vida como se pudessem ser definidos em termos de sua natureza
humana apenas ou pudessem ser considerados como entidades semi-autônomas
existentes por si mesmas, à parte do divino. É perfeitamente legítimo, até mesmo
necessário, organizá-los numa sociedade com base nisso. De fato, do ponto de vista
cristão, isso é ainda mais necessário porque, a menos que isso seja feito, os seres
humanos serão simplesmente compelidos a seguir os desejos e artifícios de seus
próprios corações em inevitável condenação. Santo Agostinho é bem consciente de que
esta é a consequência do seu pensamento. Isto é evidente em seu desenvolvimento de
sua teoria de duas sociedades, a que é a cidade de Cristo e a outra que é a cidade do
diabo. É verdade que para Agostinho estas duas sociedades ou duas cidades são
realmente realidades escatológicas. Elas abraçam toda a raça humana (assim como os
anjos) e toda a história. Elas não podem ser identificadas, portanto, simplesmente com o
estado romano ou secular, por um lado, e a Igreja em sua forma terrena, por outro. Mas
quando se lembra que, para Santo Agostinho, é somente através do batismo e
incorporação na instituição visível da Igreja que os seres humanos podem receber a
graça sem a qual estão sentenciados à condenação apenas por seu pecado original,
mesmo sem a adição de qualquer pecado pessoal, não é difícil ver onde o argumento de
Agostinho deve levar. A sociedade de César - a sociedade secular - é vendida ao
pecado. Está condenada à destruição. Não pode haver compromisso entre ela e o Reino
de Deus. César e todos os seres humanos no mundo secular, portanto, devem abandonar
suas pretensões à independência e submeter-se às leis da sociedade cristã incorporadas
na instituição visível da Igreja, ou devem aguardar seu destino inevitável por meio da
desintegração interna. Cristo, diz Agostinho, não disse 'meu reino não é do mundo', mas
'meu reino não é deste mundo'. Não é o de César. 'Venha a nós o teu reino' tem um
significado literal e mundano. E 'teu reino' pode ser trazido à existência através do
reconhecimento e aceitação da justiça universal de Deus.

No entanto, o que esta justiça é - de acordo com a qual apenas Deus governa pela graça
sobre uma sociedade que lhe obedece - só pode ser decidido pelas autoridades
competentes na Igreja na terra. São apenas essas autoridades que encaminharão todas as
instituições, todas as observâncias da lei e da moralidade que pertencem à paz temporal,
para a paz eterna com Deus. Essa é a característica essencial do Reino de Deus. Por
isso, este Reino já está presente no mundo. É a sociedade divina, a congregação dos
fiéis, a igreja visível no mundo. Entra-se pelo batismo e é governado pelo episcopado.
Aqui, no ensinamento de Santo Agostinho, está o plano teórico completo para aquela
concepção da Igreja na terra que veio a dominar a mente romana. Em um mundo
condenado como incuravelmente corrupto, outra ordem sagrada entrou. Esta ordem
resgata-o tirando dela, na arca da Igreja, aqueles que estão destinados a ser
resgatados. A menos que alguém se refugie nesta arca sobrenatural da Igreja, perecerá
eternamente. É uma visão que leva diretamente às proposições da Bula do Papa
Bonifácio, Unam Sanctam. Mas o que tudo isso representa ou implica é, deve ser
repetido, uma perspectiva cristológica vitalmente diferente daquela da tradição
patrística. Em vez de ser reconhecido não apenas que uma semente do Logos, como diz
Justino Mártir, está implantada em toda a raça humana, mas também, e
concomitantemente, que em Cristo toda a natureza humana está unida ao divino, de
modo que todos os seres humanos, simplesmente em virtude de sua existência,
participam, mesmo que apenas passivamente, no divino, esse reconhecimento é
diminuído, para não dizer eclipsado. O que toma o seu lugar é uma visão em que a
encarnação tende a ser considerada não como uma restauração da norma a toda a
natureza humana, mas como pertencente a um único indivíduo, a figura histórica de
Jesus. Até mesmo o pleno significado da própria encarnação é reduzido de uma maneira
que afeta vitalmente a compreensão da natureza do homem e, portanto, toda a questão
da salvação humana. Pois o que a tradição patrística está preocupada em afirmar é que,
se Deus é Deus, e Deus é manifesto em Cristo, então a criação, a redenção e a
santificação devem ser idênticas em sua origem e assim fundamentalmente idênticas em
caráter. Se todos os homens possuem como seu direito de nascimento humano o que
Justino chama a semente do Logos ou se, em outras palavras, Cristo é o arquétipo da
humanidade, então, por maior que seja a diferença entre o absoluto e o relativo, o
incriado e o o criado, Deus e homem, não pode haver dicotomia radical ou lacuna
ontológica entre eles. Não pode haver disparidade total entre a natureza de Cristo e a
nossa. Elas são, em última instância, do mesmo caráter e a encarnação tem um
significado pessoal direto.

Mas uma vez que este significado cósmico da encarnação é reduzido ou eclipsado - e
com ele toda a doutrina Logos com sua insistência na imanência do divino na criação -
então a divindade de Cristo como Filho de Deus é vista não apenas como distinta de sua
humanidade, mas também como separada de qualquer imagem de si mesma no homem.
O senso de imanência divina ou da participação do homem em Deus é perdido. De fato,
se a ordem criada, incluindo a natureza criada do homem, é vista como tão corrupta e
pervertida que virtualmente é a antítese da graça, então é difícil não concluir que o
Criador deve ser de alguma forma diferente do Redentor. Em qualquer caso, seria, em
tais circunstâncias, quase uma blasfêmia sugerir que a natureza humana pode realmente
estar realmente unida a Deus, muito menos unida a Deus corporalmente (somatikos).
Existe uma dicotomia fatal entre as duas. Elas são virtualmente opostas. É claro que, se
Deus e o homem eram um em Cristo, esses opostos teriam de ser reunidos de alguma
forma. Mas dada a atitude subjacente na tradição teológica ocidental à natureza criada
do homem, e à natureza humana em geral, era inevitável que essa união das duas
naturezas em Cristo fosse expressa em uma cristologia que enfatizasse mais a diferença
entre as duas naturezas do que a sua unidade pessoal em Cristo.

Em todo caso, visto que o resto da humanidade não é diretamente afetado pela
encarnação de Deus no Jesus histórico, e ainda está em escravidão ao pecado original e
suas conseqüências e assim privada de graça, a instituição da Igreja é agora de
importância bastante exclusiva: trata-se praticamente do único instrumento para unir o
homem e Deus. Pois é somente essa instituição que, por meio de sua hierarquia,
controla os únicos canais por meio dos quais a graça da divindade transcendente pode
fluir e redimir uma humanidade condenada à desintegração. Em outras palavras, pode-
se dizer que a diferença ontológica radical entre Deus e o homem - essa lacuna deixada
pelo senso de que a divindade de Cristo como Filho de Deus é, por causa do pecado,
separada da imagem de si mesmo no homem - é preenchida pela instituição visível da
Igreja. É preenchida pela idéia de que a Igreja é, não tanto o corpo místico de Cristo,
mas um corpo místico por si só, à parte da Pessoa de Cristo.

O que isso significa pode ser indicado em poucas palavras. Vimos como, de acordo com
a tradição patrística, é a Eucaristia a manifestação do corpo de Cristo que, acima de
tudo, determina a Igreja na terra. Através da Eucaristia cada um dos fiéis comunga no
corpo de Cristo e assim na Igreja. O corpo de Cristo, a Eucaristia e a Igreja descrevem
uma e a mesma realidade. E enquanto o que chamei de significado cósmico da
encarnação é mantido, é muito fácil ver como a pertença à Igreja significa incorporação
no corpo de Cristo, que é idêntico em caráter e substância ao corpo do Jesus histórico.
Pois em Cristo toda a natureza humana é unida ao divino, toda é misticamente ligada ao
seu corpo. Mas uma vez que esse significado é reduzido ou eclipsado, de modo que o
corpo de Cristo se identifica de maneira exclusiva com o corpo do Jesus histórico, é
difícil ver como a pertença à Igreja pode significar incorporação no corpo de Cristo da
mesma maneira. Todos os fiéis não podem se tornar membros do corpo histórico de
Jesus. Em outras palavras, há uma necessidade de fazer alguma distinção, mesmo que
apenas mental, entre o corpo histórico de Jesus, 'nascido da Virgem', e o 'corpo que é a
Igreja'. E esses dois corpos, por sua vez, devem ser distinguidos do corpo eucarístico.

De fato, já no pensamento de Santo Agostinho há uma distinção entre o corpus Domini,


que é o corpo eclesial, e o corpo sacramental. O corpo eclesial inclui o corpo
eucarístico, mas não se identifica com ele. Pelo contrário, se pensa que o pão
consagrado e o sangue da Eucaristia é o corpo de Cristo que ele tomou do corpo
eclesial. Em outras palavras, em vez da Eucaristia designando a Igreja, é agora a Igreja
que designa a Eucaristia. Até cerca do século IX, o termo corpus mysticum foi aplicado
à Eucaristia para distingui-lo do 'corpo nascido da Virgem' e do 'corpo que é a Igreja',
embora todos os três sejam considerados partes do corpus Christi. Ao mesmo tempo, a
fim de descrever a Igreja como essa entidade social coletiva, o 'corpo dos cristãos',
conforme concebido de acordo com a tese papal, o termo corpus Ecclesiae foi usado; e
alguém poderia ser um membro deste corpus sem participação
no corpus eucarístico. Em outras palavras, pode-se considerar a Igreja como uma
entidade sociológica coletiva, como um corpus, sem que este corpus seja idêntico ao
corpo de Cristo manifestado na Eucaristia. Pode-se fazer isso porque já havia sido feita
uma distinção entre o corpo eclesial de Cristo e o corpo eucarístico. E à medida que o
próprio corpo eucarístico se identifica cada vez mais com o corpo "histórico" de Jesus,
tanto o corpo eucarístico como o corpo "histórico" tornam-se cada vez mais distintos do
corpo eclesial.

Ao mesmo tempo, o termo corpus mysticum, que originalmente designara a Eucaristia, é


transferido para a Igreja considerada como uma entidade sociológica jurídica
corporativa por si só. Por volta do século XII, seu uso como significando a Igreja visível
já é comum entre os escolásticos. O passo final é dado quando o vínculo entre o corpus
mysticum e a Eucaristia é rompido: a Unam Sanctam de Bonifácio é uma evidência de
que isso já é o caso no século XIV. O corpus mysticum é agora usado para designar não
o corpo eucarístico, mas a Igreja como sociedade humana, uma associação auto-
suficiente formada para o bem-estar de seus membros. Em outras palavras, o corpus
mysticumassume o significado do antigo coletivo e sociológico corpus Ecclesiae.
Tornou-se uma entidade social jurídica. Ele é assimilado à estrutura visível da Igreja
como uma coletividade supra-individual com o papa como sua cabeça - até mesmo
dando poder do papa sobre coisas temporais, como proibir a comunhão a alfaiates que
produzem roupas masculinas com fendas na parte inferior ou para costureiras que
fornecem roupas femininas com aparência muito luxuosa ou com uma longa cauda. É
deste modo que se pode dizer que é o senso de uma lacuna ontológica existente entre
Deus e o homem, com a concomitante diminuição do senso de que é acima de tudo a
Eucaristia como o corpo de Cristo que determina a Igreja na terra, que dá origem à ideia
de que a Igreja como uma corporação sociológica e jurídica coletiva constitui um corpo
místico por si só. E esta idéia se reflete, como vimos, na idéia de que os vários seres
humanos chamados na Igreja para serem participantes da graça divina estão unidos, não
à Pessoa de Cristo para formar uma síntese divino-humana com ele, mas em uma união
não-pessoal no corpo místico da Igreja, considerada como uma entidade divino-humana
por si só.

Mas mais uma vez o que tudo isso representa ou implica é uma cristologia que enfatiza
as duas naturezas de Cristo muito mais do que enfatiza sua unidade pessoal. É esta
cristologia que permite e promove a concepção da natureza dual do corpus Christi, da
mesma forma que permite e promove a concepção de que a Igreja na terra não é
simplesmente uma comunhão eucarística ou sacramental, mas é também uma sociedade
corporativa e jurídica que tem que ser governada em linhas políticas da mesma maneira
que outras sociedades humanas corporativas. Na medida em que o civitas Dei é também
o corpus da sociedade cristã terrena, nessa medida, argumento conclui, exige-se um
governo nas linhas políticas terrenas. Toda a teoria do governo eclesiástico, elaborada e
aplicada no mundo romano durante o período medieval, está enraizada na cristologia
subjacente à visão romana da Igreja. Da mesma forma, se esta teoria e, acima de tudo, o
ofício do papado, são inconcebíveis e sem sentido no que diz respeito a visão patrística
da Igreja, é porque esta visão patrística está enraizada em uma cristologia diferente. Em
outras palavras, essas eclesiologias conflitantes derivam de diferentes pressuposições
cristológicas. A eclesiologia está enraizada na cristologia. Consequentemente, o cisma
também está enraizado na cristologia.

8. Doutrina Trinitária e o Cisma

A cristologia e a doutrina trinitária estão inter-relacionadas. Seria de se esperar,


portanto, descobrir que as diferentes perspectivas cristológicas e suas correspondentes
eclesiologias delineadas nos capítulos anteriores têm suas contrapartes e são reforçadas
por diferentes concepções da Trindade. De fato, não poderia ser de outra forma. O
dogma da Trindade é a base de todo pensamento teológico. A eclesiologia é um aspecto
desse pensamento. A própria Igreja está fundamentada no mistério da Trindade. É uma
expressão, uma manifestação da vida da Trindade. Separar a eclesiologia da doutrina
trinitária e tratá-la como um assunto em si mesmo equivale a considerar a Igreja como
uma espécie de instituição histórica criada para o benefício da humanidade, mas que não
possui raízes genuinamente ontológicas no divino. É considerá-la como uma mera
abstração. É inevitável, portanto, que qualquer divergência na compreensão da Trindade
seja refletida em diferentes concepções da Igreja, porque é a compreensão da Trindade
que determina a eclesiologia da mesma forma como determina todos os outros aspectos
do pensamento teológico. Não é por acaso que a principal questão dogmática entre as
igrejas ortodoxa e católica romana - a da processão do Espírito Santo - é uma questão de
doutrina trinitária.

Com efeito, existem diferenças vitais entre a compreensão patrística da Trindade e a


concepção que se tornou dominante no pensamento católico romano. Resumidamente, a
doutrina da Trindade é uma tentativa de expressar a idéia da unidade e diversidade das
três Pessoas, ou hipóstases, em Deus. É uma tentativa de expressar o mistério de Deus
que é simultaneamente Um e Três, uma Mônada e uma Tríade. A ideia em si de que
existem três pessoas em Deus não é simplesmente uma questão de especulação
teológica. A Trindade não é o resultado de uma teogonia ou de uma revelação divina. É
a realidade básica da própria existência divina. É o dado primordial desta existência.
Consequentemente, é o dado primordial da teologia. Toda teologia deve ter sua base no
reconhecimento do caráter triádico do divino, no fato de que Deus é uma tríade de
hipóstases divinas. Ao mesmo tempo, essa distinção em Deus deve ser concebida de tal
maneira que, embora não perca nenhuma de suas realidades absolutas, não comprometa
a idéia correspondente da unidade absoluta de Deus. A natureza de Deus, ou sua
essência, é uma. Mas é uma unidade que está presente em três pessoas. Isto,
obviamente, não tem significado quantitativo. Número in divinis não é uma quantidade,
sujeito às leis de adição e subtração e assim por diante. Na Trindade, três é igual a um,
um é igual a três.

Diante da questão de dar alguma expressão adequada a essa realidade triuna de Deus -
uma expressão que preserva o sentido da unidade essencial sem enfraquecer o sentido
da distinção absoluta das três Pessoas - o pensamento patrístico formula uma doutrina
na qual as três Pessoas da Trindade é vista como hipostaseando, ou concretizando, ou
apropriando a essência divina total. Cada Pessoa é uma maneira única de possuir essa
mesma essência. Cada uma recebe ela das outras e cada uma confere ela as outras. Isso
não significa que haja qualquer partilha ou divisão da essência entre as três Pessoas. As
hipóstases não são três partes, ou aspectos, ou funções da essência. Cada hipóstase
inclui em si toda a essência de uma maneira exclusivamente pessoal.
Correspondentemente, não há confusão das três Pessoas na essência comum. Tampouco
a essência é uma qualidade não-pessoal, existindo por si mesma e separada de sua
concretização nas três Pessoas.

Isso, por sua vez, não significa que a diversidade pessoal em Deus tenha precedência
sobre a natureza comum, ou que a identidade essencial das três Pessoas seja
ontologicamente posterior à sua distinção hipostática. Não há três Deuses, cada um com
uma natureza independente, que é a mesma que a possuída pelos outros. Mas isso
significa que o princípio da unidade na Trindade não é uma essência comum impessoal,
ou não-personalizada, pela simples razão de que, no modo patrístico de ver as coisas,
não existe uma essência comum impessoal ou não personalizada. Não há nem essência
impessoal nem Pessoas não-essenciais. Há apenas os dois simultaneamente: uma
natureza, ou essência, e três hipóstases, nenhuma antes da outra. Há identidade absoluta
e diversidade absoluta; e conceber uma sem a outra, ou à parte da outra, ou conceber
uma essência simples que não seja personalizada, ou uma Pessoa que não é
essencializada, já é cair abaixo do nível dessa doutrina patrística e perder visão do
antinomia fundamental e irreprimível que está em seu coração.

No entanto, se a essência comum, ou natureza, não é o princípio da unidade das três


Pessoas, onde este princípio pode ser encontrado? Se a posse da essência comum não
determina essa unidade, o que ou quem a determina? Aqui a resposta patrística é
bastante inequívoca: o princípio da unidade na Trindade é a Pessoa (não a essência) do
Pai. É o Pai que é a única fonte das hipóstases divinas do Filho e do Espírito Santo, que
determinam suas origens e comunicam a elas e a sua essência única. Isso pode parecer
simplesmente substituir um princípio de prioridade por outro. Pode parecer que é
simplesmente substituir o Pai pela essência, de modo que agora a prioridade, em vez de
ser atribuída à essência, é atribuída ao Pai, com a consequência de que o Filho e o
Espírito Santo têm uma espécie de posterioridade ou subordinação. Mas aqui
novamente a tradição patrística apresenta um modo de pensamento, ou um
conhecimento, que é fundamentalmente antinomiano em caráter, no sentido de que
transcende as leis da lógica. Logicamente, uma causa é anterior aos seus efeitos. No
entanto, embora o Pai seja chamado a causa das hipóstases do Filho e do Espírito Santo,
e estabeleça seus relacionamentos mútuos, ele não está por isso antes deles, nem possui
qualquer jurisdição sobre eles, nem sua monarquia implica qualquer inferioridade ou
subordinação da parte deles, ou qualquer dignidade superior radical da sua parte. O Pai
é de fato a fonte da posse comum da mesma essência pelas Pessoas da Trindade. Porém,
ele mesmo não deve ser identificado com essa essência, nem a essência é sujeita à
Pessoa do Pai, no sentido de que é sua propriedade única que ele confere ao Filho e ao
Espírito Santo. Pelo contrário, pode-se dizer que ele é a causa das outras hipóstases
precisamente porque ele não é sua essência, mas possui essa essência em comum com o
Filho e o Espírito Santo. Pessoas e essência são estabelecidas simultaneamente, sem que
uma prossiga logicamente da outra. Cada Pessoa é assim Deus por natureza, não em
virtude de derivar sua essência de outra Pessoa. No entanto, ela é Deus apenas porque
ela é co-essencial (homoousios) com as outras. Ao mesmo tempo, as três juntas são
Deus, porque o Pai é a única fonte de toda a divindade: não há divindade à parte dele. É
o Pai, presidindo em perfeito amor, que assegura a unidade sem romper a igualdade
total dos Três. Não há princípio impessoal pré-hipostático na Trindade que forneça essa
unidade ou essa igualdade. Como princípio concreto da unidade na Trindade, o Pai
estabelece relações com as outras duas hipóstases que tanto as distinguem como as
ligam a ele. Essas relações são expressas dizendo que, enquanto o Pai é não-gerado e
sem princípio (anarchos), o Filho é gerado pelo Pai e o Espírito Santo procede do Pai.
O que essas expressões denotam não é de modo algum a natureza das três hipóstases em
si mesmas. Elas servem apenas para indicar seu modo de origem (tropos hyparxeos) e
para permitir que seja feita uma distinção entre elas. Deste ponto de vista, elas devem
ser entendidas sempre em um sentido apofático. Tudo o que elas nos dizem sobre as três
Pessoas é que o Pai não é o Filho, que o Filho não é o Espírito Santo e que o Espírito
Santo não é o Pai. Elas não nos dizem o que é o modo de geração ou de processão, ou
como um deles difere do outro; mas afirmam que, embora o Filho e o Espírito tenham
uma fonte comum, essa comunidade de origem não elimina a diversidade absoluta entre
o Filho e o Espírito Santo, ou entre essas duas pessoas e o Pai. Desta forma, elas não
afirmam uma lógica positiva de relacionamentos; elas simplesmente descrevem essas
relações de maneira suficiente para diferenciar as três Pessoas da Trindade. Considerá-
las como algo além de sinais que indicam a qualidade absoluta dessa diversidade
pessoal seria falsificar seu significado. Além disso, deve ser enfatizado que essas
relações de origem não são a base das hipóstases. Cada Pessoa na Trindade é uma
Pessoa tanto através de seu relacionamento consigo mesma quanto através de seu
relacionamento com as outras Pessoas. Como já foi dito, cada Pessoa possui a natureza
comum, ou essência, de uma maneira que é pessoal e particular para si mesma. Portanto,
cada Pessoa, em sua realidade única, transcende a mera relação de origem e seu
conteúdo e qualidade não são de modo algum exauridos por ela. É a diversidade inicial
das três Pessoas que estabelece suas relações mútuas, e não vice versa. Portanto,
novamente, essas relações não podem ser reduzidas a uma dualidade. Elas não podem
formar díades no interior da Trindade. Elas são sempre triplas ou triádicas. Ao mesmo
tempo, são sempre tri-únicas, no sentido de que, em qualquer consideração de uma
Pessoa, as outras Pessoas estão sempre presentes. Uma nunca pode ser sem as outras.

Assim, esses relações não são e nunca podem ser relações de oposição. Só se pode opor
dois princípios. A Trindade é sempre três princípios. É por essa razão que qualquer
formulação da Trindade em termos de um sistema de oposição de relações, ou de
relações de oposição, é estranha à tradição patrística. As relações na Trindade são as de
diversidade, ou reciprocidade, e de comunidade no Pai, não de oposição ou de
separação, que são relações causais. O Filho e o Espírito Santo revelam e manifestam o
Pai, que é sua única fonte hipostática. O Espírito é a imagem do Filho. Ele é a Força e o
Espírito do Logos, eternamente repousando nele e manifestando-o, mas não procedendo
dele. Filho e Espírito vêm conjuntamente do Pai tão intimamente como palavra e
respiração. Toda atividade divina tem sua fonte no Pai, é realizada pelo Filho e
concluída e manifestada pelo Espírito. O Espírito não é, portanto, apenas uma função ou
agente do Logos, ontologicamente dependente dele. Nem correspondentemente ele é
apenas um vínculo (nexus amoris) entre o Pai e o Filho unidos na mesma natureza e
assim constituindo o único princípio de sua processão. Ele é outra Pessoa divina,
independente em sua origem da Pessoa do Filho. Dentro da Trindade, é o Espírito que
distingue o Pai do Filho sem produzir oposição entre eles. Ao mesmo tempo, é no
Espírito que Deus sai de sua essência e manifesta eternamente sua glória: a glória na
qual a energia única da Trindade, que procede da essência da qual o Pai é a fonte, é
manifesta em múltiplas energias incriadas e atos e predeterminações - as idéias divinas
ou logoi através das quais Deus cria, sustenta e santifica suas criaturas. O Espírito Santo
é o grande poder santificador.

Essa compreensão patrística da doutrina da Trindade, que preserva a antinomia da


essência e das hipóstases, sem de modo algum relativizar a unidade absoluta da essência
ou a diversidade absoluta das três Pessoas, é modificada na teologia latina, e seu
equilíbrio sutil é perturbado. Essa modificação pode ser vista como uma consequência
de uma tentativa de impor maior clareza e consistência lógica à doutrina. Reflete uma
tendência, implícita ou explícita, a assumir que as leis da lógica se aplicam às realidades
trinitárias. A esse respeito, representa uma certa racionalização da doutrina da Trindade,
a intrusão de um modo de pensamento puramente abstrato que separa a teologia de suas
raízes na experiência e visão vivas e suprime contradições e paradoxos em que tal visão
e experiência devem ser frequentemente expressas. O resultado é uma certa diluição do
conteúdo da teologia, submetendo esse conteúdo às normas da filosofia racional. A
teologia se torna uma tentativa de ordenar os fatos da revelação de acordo com as leis da
análise lógica.

Com efeito, o que os teólogos latinos tendem cada vez mais a enfatizar é a idéia
do Summum Ens, do Absoluto em quem nenhuma diferenciação de qualquer tipo pode
ser encontrada. Este, que é o princípio da unidade in divinis e é inteiramente simples, é
identificado com a essência divina ou natureza (latim: substantia). Este dogma do
princípio da unidade que é identificado com a essência divina, por sua vez, começa a
moldar a compreensão e formulação da doutrina da Trindade. O ponto de partida desta
doutrina torna-se o conceito da essência não-pessoal. A primazia da essência é afirmada
sobre a realidade concreta das Pessoas. Na ordem dos conceitos, a essência precede a
Pessoa e a Pessoa se torna uma espécie de eflorescência ou modo da essência comum.
As Pessoas são consideradas, por assim dizer, relações ideais em Deus da essência de
Deus com ela mesma. Neste caso, como é a essência (e não o Pai) que é o princípio da
unidade na Trindade, as relações de origem são identificadas com as hipóstases e pensa-
se que as expressam totalmente. Como São Tomás afirma, "o nome da pessoa significa
a relação" (Summa Theologiae Ia, 9.24. A4). Por isso, são as relações internas da
essência que devem diversificá-la. Na vista patrística, é a essência que é contida pela
Pessoa, de tal maneira que cada hipóstase é vista como a maneira pessoal na qual a
mesma essência está presente. Isso significa que, em sua realidade única, cada hipóstase
transcende a mera relação de origem. Ao mesmo tempo, a diversidade absoluta das três
Pessoas nunca é relativizada de tal maneira que se torna possível vislumbrar uma
essência que seja não-pessoal ou uma Pessoa que seja não-essencial. Do ponto de vista
latino, no entanto, em que a unidade essencial tem precedência sobre a diversidade
pessoal, são as relações de origem que, de maneira virtualmente exclusiva, determinam
as próprias hipóstases e definem seu conteúdo. As Pessoas tornam-se relações da
essência que pode ser considerada não-pessoal, porque se pensa que constitui o
princípio da unidade e, portanto, é superior a toda a diversidade das Pessoas. A unidade
é considerada como anterior à diversidade. A diversidade torna-se relativa à unidade,
que é absoluta. É a absoluta simplicidade da essência que é considerada como a base da
Trindade e como agrupando ou absorvendo a diversidade das Pessoas em si. Quando se
trata de definir as relações das hipóstases, a teologia latina introduz outro
conceito. Vimos que na tradição patrística não há lugar para basear essas relações na
ideia de oposição. Só se pode opor dois princípios. A Trindade é três princípios. Mas
uma vez que a primazia da essência divina e sua unidade são enfatizadas ao ponto em
que se torna virtualmente impossível vislumbrar as Pessoas da Trindade como definidas
por qualquer coisa que não sejam suas relações mútuas, então é inevitável que essas
relações sejam vistas como fundadas em um sistema de oposições. Isso significa não
apenas que as hipóstases são inteiramente definidas por sua oposição recíproca, mas
também que a própria Trindade é dividida em dois conjuntos de díades dentro dos quais
essa oposição pode ser vista como operando. A primeira díade é a do Pai e o Filho; a
segunda é a do Pai e o Filho, considerados como um único princípio, e o Espírito Santo.
O Pai gera o Filho. Mas como o Pai e o Filho são um em essência, e o Filho possui tudo
o que o Pai possui, eles juntos constituem o único princípio da processão do Espírito.
Por causa da unidade da essência do Pai e do Filho, o Espírito é o Espírito de ambos e
procede de ambos: a Patre Filioque, tanquam ab uno principio, como a fórmula latina
expressa.

Essa concepção diádica da Trindade, por sua vez, significa que as relações e diferenças
mútuas entre as três hipóteses são vistas como fundamentadas em sucessivas privações.
O Filho é Deus privado da faculdade de gerar (que pertence apenas ao Pai). O Espírito é
Deus privado tanto da faculdade de gerar como da virtude espirativa segundo a qual ele
procede e que é possuída em comum pelo Pai e Filho apenas. Assim, o Espírito Santo,
como hipóstase, não tem nada em comum com o Pai ou o Filho e parece ser reduzido a
uma espécie de apanágio, impotente em si, de ambos. A noção de que o Espírito Santo
deriva sua subsistência hipostática do Filho, assim como do Pai, e a falha em distinguir
entre essa subsistência e a eterna manifestação da natureza divina na Pessoa do Espírito
significa inevitavelmente que todas as suas atividades são vistas como sendo de algum
modo dependentes do Filho. Dentro da Trindade, ele age como o vínculo entre o Filho e
o Pai. Na missão redentora do Filho, ele é o instrumento ou agente do Filho, ou seu
vigário, operando através da ação impessoal da graça criada. De fato, nessa perspectiva,
é difícil visualizar qualquer manifestação energética da Trindade fora da essência: a
determinação de manter a todo custo a idéia de uma simplicidade divina que não admite
qualquer diferenciação tornou-se tão grande que tudo que existe fora da essência pode
ser considerado apenas como efeitos criados ou dons criados e atos de vontade. A glória
e graça santificante são igualmente criadas. Esta conclusão é imposta ao pensamento
latino pelo fato de que o ponto de partida de sua triadologia é a idéia da preeminência da
unidade da essência sobre a diversidade das Pessoas. De fato, do ponto de vista
patrístico, essa diversidade não apenas perde sua qualidade absoluta e se torna relativa
(e assim secundária); mas, se a geração e a processão são atividades não da hipóstase
do Pai, mas da essência comum, é difícil perceber como o Pai e o Espírito Santo não
participam em sua própria origem. Em qualquer caso, o reconhecimento do Espírito
Santo como acima de tudo a hipóstase da manifestação divina, o grande poder
santificador, independente em sua origem da hipóstase do Filho, é diminuído, se não
eclipsado, na triadologia latina; e é claro que as duas maneiras de vislumbrar a Trindade
- a tradição patrística e a que veio a dominar o pensamento católico romano - são ambas
muito diferentes em si mesmas e determinadas por princípios muito diferentes.

Nesse ponto, surge a questão de como essas diferenças são refletidas - de fato,
subjacentes - nas eclesiologias rivais que examinamos. Aqui, o que pode ser notado
primeiro é como a compreensão trinitária romana realmente condiciona o entendimento
cristológico romano delineado no último capítulo, com todas as consequências que essa
cristologia em si tem na esfera da eclesiologia. Se a unidade essencial e a simplicidade
de Deus são enfatizadas, como são na triadologia romana, ao ponto em que as
hipóstases divinas são virtualmente reduzidas a relações dentro da essência, então é
difícil ver como, em Cristo, Deus se torna homem da mesma maneira que esta
encarnação é considerada na tradição patrística; pois na tradição patrística Deus não é
definido por sua essência apenas, e as diversidades hipostáticas têm um significado mais
do que relacional ou relativo. Uma união, no sentido de total reciprocidade e
interpenetração, entre a essência divina e a natureza humana é impensável. Na melhor
das hipóteses, o que pode ser considerado à luz da doutrina trinitária romana é uma
cristologia em que Cristo é visto como Deus e homem. A divindade de Cristo como
Filho de Deus é vista, isto é, distinta de sua humanidade. A dicotomia entre elas
permanece. Não há síntese real. A diferença entre o divino e o humano é enfatizada
mais do que sua unidade pessoal em Cristo. Além disso, mesmo que o divino e o
humano sejam de algum modo reunidos no caso de Cristo, este caso é único. Há pouco
ou nenhum escopo para a idéia de que em Cristo toda a natureza humana é unida -
mesmo fisicamente unida - ao divino. Há pouco ou nenhum escopo para a doutrina do
Logos encarnado em toda a criação. Seres criados - humanos e outros - podem ser
considerados realidades existentes por si mesmas, à parte do divino. Isso significa que
todo o sentido do mistério teândrico é enfraquecido na teologia romana.
Correspondentemente, o sentido da Igreja como expressão desse mistério teândrico -
como o locus da deificação em que se realiza a união indissolúvel da natureza humana
com o divino no corpo de Cristo - também é enfraquecido. Consequentemente, a porta é
aberta para uma visão em que a Igreja é vista como uma comunhão eucarística ou
sacramental ecomo uma sociedade corporativa ou jurídica exigindo governo nas linhas
de qualquer outra sociedade humana corporativa.

Além disso, a forma que este governo da Igreja na terra assume no mundo romano, com
o ofício do papa em seu centro, também está implícita na compreensão trinitária
romana. Vimos que a doutrina patrística afirma uma antinomia última entre unidade e
diversidade, essência e hipóstase, na Trindade. Unidade e essência não têm prioridade,
ontológica ou outra, sobre diversidade e hipóstases. As Pessoas da Trindade não são
partes, funções ou aspectos de um todo abrangente que é a essência. Pelo contrário, cada
pessoa é o todo. Cada pessoa é uma maneira única de possuir a essência comum. A
essência nunca é não-pessoal e a Pessoa nunca é não-essencial. Isso, por sua vez,
estabelece a estrita igualdade de dignidade entre as três Pessoas. Nenhuma Pessoa pode
reivindicar preeminência ou jurisdição sobre outra. Cada uma possui a essência comum
em sua totalidade. Cada uma possui o princípio de sua própria unidade em sua
totalidade. Ao mesmo tempo, ela não possui essa essência ou esse princípio de unidade
à parte das outras Pessoas, nem pode exercê-las à parte das outras. Essência e unidade
nas Pessoas da Trindade são tri-únicas, e são expressas nessa reciprocidade e
comunidade que caracterizam as relações entre as três Pessoas.

É essa concepção patrística da Trindade que é como se fosse o correlato objetivo e a


garantia da estrutura das inter-relações entre as igrejas locais na terra, no sentido de que
essas relações são baseadas, como vimos (capítulo 3 acima), em uma compreensão da
relação entre pessoas que, por sua vez, se baseia, em última análise, na compreensão da
natureza das relações entre as Pessoas da Trindade. Cada igreja local é a Igreja em sua
totalidade. Não é apenas uma parte ou um aspecto ou função de um todo abrangente
composto de todas as igrejas locais e governado por uma única cabeça e chamado a
Igreja. É a Igreja em sua totalidade em virtude do fato de que manifesta a plenitude da
verdade cujo princípio é a Pessoa do Logos divino. Nesse sentido, é o centro de sua
própria unidade e catolicidade.Mas, ao mesmo tempo, não pode reivindicar possuir ou
exercer essa plenitude da verdade em maior ou menor grau do que qualquer outra igreja
local na qual a Pessoa de Cristo é manifesta, ou ser mais o centro de unidade e
catolicidade do que qualquer outra igreja local. Deve haver uma igualdade estrita de
dignidade entre todas as igrejas locais. É essa igualdade em dignidade, incorporada nos
bispos, que se encontra, como vimos, na base da organização conciliar por meio da qual
as igrejas locais expressam a unidade da fé e regulam qualquer disputa ou divergência
entre elas. Pois assim como as Pessoas da Trindade não podem expressar sua unidade
intrínseca à parte uma da outra, as Igrejas locais podem exercer a unidade e catolicidade
de que cada uma possui a plenitude somente nessa reciprocidade e intercomunhão que
caracterizam as relações entre as três hipóstases divinas. Aqui a unidade está implícita
na diversidade, diversidade na unidade, sem prioridade em qualquer direção. Neste
entendimento há lugar para um primus inter pares, como existe na Trindade, onde este
lugar é ocupado pela Pessoa do Pai. Mas não há lugar para um ofício como o do papado.

Na triadologia romana, essa antinomia entre unidade e diversidade, essência e hipóstase,


que por sua vez determina as relações entre as igrejas locais e a igualdade absoluta de
todos os bispos em todos os aspectos das funções apostólicas e magisteriais da Igreja na
terra, não é totalmente reconhecida. O equilíbrio entre os termos em cada par é
perturbado. Ele está perturbado em favor do primeiro em ambos os casos. A unidade
tem precedência sobre a diversidade, a essência sobre as hipóstases. A qualidade
absoluta da essência é afirmada, mas as hipóstases são, em algum sentido, relativizadas,
ou pelo menos são definidas mais ou menos exclusivamente em termos de suas relações
com a essência. A essência tem uma preeminência que lhe permite ser considerada
como superior às hipóstases, como uma realidade totalmente auto-suficiente, unida em
si e absorvida em si mesma. É o princípio causal e a fonte das hipóstases, a única base
ontológica da existência delas; e é na unidade da essência impessoal e comum delas que
Pai e Filho juntos "projetam" o Espírito Santo.

Quando este esquema ideal das coisas é traduzido nas formas visíveis da Igreja na terra
(que deve imitar, como observamos, seu paradigma celestial), segue-se que a ênfase
será colocada em um princípio de unidade impessoal de um modo que se assemelha
àquele colocado em tal princípio na concepção latina da Trindade. Isto significa que a
unidade na diversidade e a diversidade na unidade, que caracteriza as relações entre as
igrejas locais e entre os seus bispos na concepção patrística das coisas, tem que ser
substituída por um sistema no qual a unidade e catolicidade da Igreja na terra são
identificado primeiramente em um único ofício que reivindica precedência a respeito de
outros ofícios episcopais e atua como o princípio determinante no estabelecimento das
relações entre eles, e entre as igrejas locais sobre as quais eles presidem. Com efeito,
este ofício é dado forma concreta no papado. O papa preside a Igreja na terra de uma
forma análoga àquela em que a essência preside a Trindade. Ele representa a base
ontológica da Igreja em sua forma visível, pois a essência é a base ontológica das
hipóstases e, portanto, em última instância, da Igreja em sua forma invisível. Seu ofício
é igualmente completo em si mesmo, isento da Igreja e possuindo jurisdição sobre ela.
Ele é a imagem do Pai Celestial e do Vigário de Cristo. Ele representa, isto é, a unidade
da essência comum e impessoal do Pai e do Filho; e como o Pai e o Filho, em virtude
dessa essência comum, "projetam" conjuntamente o Espírito, que é ontologicamente
dependente deles, também o funcionamento dos canais da graça santificante na Igreja na
terra depende da comunhão com o papa. O paralelo é evidente, e sua lógica é explícita
no Unam Sanctam de Bonifácio; e evidente também é a interconexão crucial entre o
ensino latino sobre a processão do Espírito Santo e o ofício do papado: o Filioque
sustenta este ofício.

De fato, a concepção do papel do Espírito Santo está no coração do cisma. Vimos que a
eclesiologia patrística pressupõe uma visão em que o criado e o incriado, material e
espiritual, fenomenal e noumenal são vistos como aspectos de uma única realidade. Um
é o símbolo ou a imagem do outro - símbolo ou imagem, no sentido de que participa da
realidade do arquétipo do qual é o símbolo ou a imagem. Toda a criação é um ícone do
divino. É uma epifania do divino. Deus é a presença interior no centro de cada partícula
do mundo criado. Tudo é uma expressão do esplendor de seu ser e proclama sua bênção.
E tudo espera por aquela revelação, que é a realização de sua verdadeira identidade, na
qual Deus será tudo em todos. Tudo aspira a essa transfiguração em que sua beleza e
magnificência interiores são reveladas.

Para que tal visão seja válida, Deus deve ser entendido como muito mais do que aquele
que põe em movimento o processo cósmico, a causa incriada e transcendente de efeitos
criados ilimitados relacionados a ele de forma extrínseca, mas não intrinsecamente. Ele
deve ser muito mais do que o Deus dos filósofos - o Deus de Descartes tão repudiado
por Pascal. Ele deve ser visto como a base interior e operativa de toda a sua criação.
Essa percepção é expressa na tradição patrística distinguindo em Deus sua essência,
totalmente transcendente e incognoscível, de suas energias incriadas. É através de suas
energias que Deus manifesta sua glória eterna. É através delas que ele está presente no
coração de sua criação e de todas as criaturas. Pois elas estão presentes nas idéias
divinas ou logoi através dos quais ele cria, sustenta e santifica suas criaturas. Como tais,
são concebidas e compreendidas na vida eterna do Logos, através de quem e em quem
todas as coisas são feitas. Mas elas são manifestas através da atividade do Espírito
Santo. O Espírito Santo é o grande poder não só de santificação, mas também de
manifestação. É o Espírito Santo que planta as sementes do Logos divino na criação,
que alimenta seu crescimento e as faz frutificar.

A Igreja é congruente com essa visão. Pode-se dizer que a Igreja é essa visão traduzida
em termos formais concretos. É a manifestação do Logos encarnado. É o Logos
encarnado que é a cabeça da Igreja. Mas a cabeça e o corpo formam uma única
realidade indivisível. 'Entre o corpo e a cabeça não há lugar para qualquer brecha - o
menor intervalo causaria nossa morte', como diz São João Crisóstomo. E esse corpo do
Logos encarnado - do qual o Logos encarnado é o princípio e que constitui a Igreja - ele
mesmo é constituído pelo logoi divino, aquelas sementes divinas que são a realidade
interna e mais íntima de tudo o que é e que são implantadas em toda a criação, humana
e outra, pela atividade do Espírito Santo. São estes logoi divinos, concebidos e
compreendidos na própria pessoa do Logos, que constituem, individual e coletivamente,
o corpo de Cristo que é a Igreja.

Essencialmente, portanto, a Igreja não é uma entidade histórica ou institucional. É


interior a nós. O Reino dos Céus, que é comunidade na vida da Igreja, está no interior. É
nossa identidade mais íntima. É a identidade mais íntima de tudo o que é. É o mundo
dentro do mundo, o cosmos do cosmos. Toda a criação é o sacramento de Cristo. Toda a
criação, em virtude das sementes divinas intrínsecas e internas em todas as criaturas,
constitui a Igreja e é o ícone de Deus, sua epifania. Nos seres humanos, em todas as
criaturas, a Igreja está latente, não realizada, esperando para ser revelada. É realizada e
revelada na Eucaristia. É a Eucaristia que é o núcleo da Igreja. Através da participação
na Eucaristia, o corpo de Cristo em nós, a Igreja em nós, é trazido de seu estado latente
e passivo para um estado de atividade. É energizado e cumprido, primeiro no homem e
depois, através do homem, no resto da criação. A Eucaristia tem um significado
cósmico e não simplesmente divino-humano. Assim, a Igreja também tem um
significado cósmico e não simplesmente divino-humano. Ou melhor, seu caráter divino-
humano inclui o cósmico. O cósmico está incluído no mistério teândrico que ela
manifesta. É toda a criação que é renovada e transfigurada na e através da Igreja.
Nesse sentido, a Igreja é mais que uma realidade crística. É também uma realidade
Pentecostal, a manifestação do Espírito Santo. O Espírito não está subordinado ao Filho.
Ele não é uma função ou instrumento do Logos. Sua atividade, de fato, é uma pré-
condição do evento crístico. Nem é o Pentecostes uma mera conseqüência ou
continuação da encarnação. É o clímax de toda a economia trinitária de revelação e
santificação. No evento Pentecostal, o Espírito desce em pessoa, revelando
hipostaticamente à criação a presença interior de Cristo, ativando o corpo de Cristo -
o logoi divino - no coração de todas as criaturas, manifestando a Igreja da qual ele é, em
sua própria Pessoa, o princípio de informação interior e a realização ontológica. É
através do derramamento do Espírito Santo na criação que toda a criação é transfigurada
no mistério eucarístico celebrado diante do trono de Deus. E esse derramamento - esse
evento Pentecostal - é um evento eclesial. É o evento que estabelece a Igreja em sua
plena unidade e catolicidade no coração de todas as criaturas.

Além disso, a união que o Espírito consuma em nós não é uma união não-pessoal. Nós
não somos formados em um corpo místico, divino-humano, que é distinto do corpo de
Cristo. Nem nossa identidade pessoal é dissolvida em uma impessoalidade corporativa.
Pelo contrário, nossa incorporação é no corpo do Logos encarnado; e se este corpo é
uma realidade única, não obstante, o logoi que o constitui - as sementes divinas no
coração de tudo - são particulares para cada ser humano, para cada criatura. É na
verdade do nosso próprio ser que somos iniciados pelo Espírito Santo, cada um da
maneira específica à nossa natureza particular. É o Espírito Santo que diversifica na
unidade em Cristo. As pessoas humanas, assim como as pessoas da Trindade, possuem
uma qualidade absoluta e não é possível sacrificar essa qualidade ou absorvê-la em uma
essência-unidade impessoal, em um Uno indiferenciado, a menos que ela seja aleijada e
pervertida, e forçada a servir a qualquer propósito: político, social, religioso, ou mesmo
divino, que é, ou pode ser, mais sagrado do que aquele intrínseco a si mesmo. Estamos
unidos por distinção, distintos por união. Nós formamos um corpo, mas somos diversos
em nossas múltiplas e únicas identidades. Encontramos nossa herança e somos
estabelecidos cada um a nosso modo, naquela liberdade que é a liberdade insustentável
dos filhos de Deus. Nós recebemos nossa herança e somos estabelecidos, cada um à
nossa maneira, na liberdade insuprimível dos filhos de Deus.

9. Epílogo

Em 1894, em sua encíclica Praeclara Gratulationis, o papa Leão XIII fez algumas
observações sobre a relação entre as igrejas ortodoxas e as submissas à reivindicação de
uma hegemonia jurisdicional por parte da sé romana. Entre outras coisas, ele afirmou
que '. . .o que os separa de nós não é tão grande; de fato, com algumas poucas exceções,
concordamos inteiramente. . .que, em defesa da fé católica, recorremos frequentemente
a argumentos e testemunhos emprestados dos ensinamentos, dos ritos e costumes do
oriente. A questão principal da dissensão é a primazia do Pontífice Romano. . . '.

A primazia do Pontífice Romano pode muito bem ser a questão principal da dissensão,
no sentido de que é frequentemente o tema central quando a relação entre as igrejas
ortodoxas e a igreja romana está em discussão. Mas um dos propósitos deste livro tem
sido mostrar de forma tão clara e decisiva quanto possível que a questão da primazia do
Pontífice Romano não é uma questão por si só. O ofício do papado só tem sentido e
coerência quando estabelecido dentro de um quadro de certos princípios e critérios
teológicos. É a aceitação prévia deste quadro que determina este ofício. É a aceitação
prévia desta estrutura que determina se alguém pode ou não concordar com a alegação
de que este ofício tem um status legítimo em relação à Igreja. Pedir a um cristão
ortodoxo - um que é consciente de sua herança - que reconheça e aceite o papado é
pedir a ele que mude toda a sua posição doutrinária. Do mesmo modo, para um católico
romano aderir e basear sua compreensão espiritual nas pressuposições doutrinárias da
tradição patrística, mantendo sua lealdade ao ofício papal, é colocar-se em uma posição
que, em última análise, é insustentável e assim, expor-se à acusação de que é vítima de
ignorância, de duplopensar ou de hipocrisia, ou de uma mistura de dois ou de todos os
três ao mesmo tempo. A questão do papado é uma questão teológica.
Fundamentalmente, é uma questão de teologia cristológica e trinitária. Pretender que é
algo menos que isso é meramente brincar com as palavras.

Não há como fugir dessas conclusões; e nenhuma discussão ou diálogo sobre primazia,
infalibilidade, a comissão Petrina, união das igrejas, e assim por diante, pode ter
qualquer significado a menos e até que isso seja reconhecido. As diferenças doutrinais
estão na raiz do cisma. O cisma só pode ser curado quando houver acordo prévio sobre
as realidades fundamentais da fé cristã.

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