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ELZA MARIA DO SOCORRO DUTRA

COMPREENSÃO DE TENTATIVAS DE SUICÍDIO DE JOVENS

SOB O ENFOQUE DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA

Tese apresentada ao Instituto de Psicologia


da Universidade de São Paulo, como parte
dos requisitos para obtenção do título de
Doutor em Psicologia

SÃO PAULO

2000
ELZA MARIA DO SOCORRO DUTRA

COMPREENSÃO DE TENTATIVAS DE SUICÍDIO DE JOVENS SOB O

ENFOQUE DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA

Tese apresentada ao Instituto de


Psicologia da Universidade de São Paulo,
como parte dos requisitos para obtenção
do título de Doutor em Psicologia

Área de concentração : Psicologia Clínica

Orientador: Prof. Dr. José Tolentino Rosa

São Paulo
2000
COMPREENSÃO DE TENTATIVAS DE SUICÍDIO DE JOVENS SOB O

ENFOQUE DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA

ELZA MARIA DO SOCORRO DUTRA

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

Tese defendida e aprovada em: _____/_____/________


À minha filha Maria Luisa, projeto

mais feliz da minha existência,

pessoa que me ensina, a cada dia, a

renovar as esperanças na vida e no

amor, muitas vezes por mim

esquecidas.
AGRADECIMENTOS

À UFRN, pela oportunidade de capacitação, oferecida através do convênio

entre o Departamento de Psicologia e a USP, o qual, embora desenvolvendo-se

muitas vezes de forma limitadora e sofrida, finaliza com um saldo de enriquecimento

e ampliação de saberes, resultado deste percurso.

Ao muito estimado Prof. Dr. José Tolentino Rosa, meu orientador que, desde

o início deste trabalho e ao longo dele, sempre expressou uma acolhida generosa,

humanista e respeitadora às minhas idéias, certezas e incertezas, superando posições

e lugares no campo teórico da psicanálise e permanecendo ao meu lado como

companheiro e guia em direção a outras formas de compreensão do ser humano.

À Profa. Dra. Henriette Morato, feliz surpresa neste meu percurso,

representando um novo caminho para este trabalho e que, generosa e

disponivelmente, ajudou-me a pensar e a repensar novas e antigas idéias e, assim, a

perceber uma outra dimensão do ser.

Aos professores e colegas Oswaldo Yamamoto e Denise Dantas que, em

diferentes momentos deste trabalho, compartilharam comigo das interrogações

teóricas e angústias que o acompanharam, contribuindo, com as suas opiniões e as

suas presenças, para o enriquecimento das minhas reflexões e superação das

inquietações que perpassaram a construção dos caminhos percorridos.


Às funcionárias do Depsi, especialmente Régina, pela importante ajuda

técnica para a consecução deste trabalho e aos meus colegas de convênio, pela

cumplicidade e solidariedade que pudemos vivenciar durante esse trajeto, muitas

vezes trilhado de forma penosa, porém com a alegria de nos sabermos juntos na

amizade e companheirismo.

À minha filha Maria Luisa que soube, dentro da sua intensa vivência de

adolescente e com muita sabedoria, respeitar e aceitar os limites que esta tese impôs

aos nossos momentos de vida compartilhada, incentivando-me a alcançar e a realizar

os meus projetos.

À Maria Luiza, psicanalista, presença importante nesse meu percurso,

ajudando-me a desvelar os significados do ser e não-ser, tão intensamente

vivenciados nesse momento de vida.

Aos meus clientes e jovens desta pesquisa que um dia tentaram não viver e

que, através da sua dor e desesperança, me ensinaram sobre a vida, a morte e a

angústia de ter que ser, ajudando-me a reafirmar a crença na vida e na esperança.


Morrer não é difícil. Difícil é a vida e o seu ofício.

Maiakowski
SUMÁRIO

RESUMO ....................................................................................................................ix

ABSTRACT ................................................................................................................x

RÉSUMÉ ....................................................................................................................xi

APRESENTAÇÃO ....................................................................................................xii

CAPÍTULO I: INTRODUÇÃO ..................................................................................1

1.1 Estudos epidemiológicos e clínicos sobre tentativa de suicídio ...........................3


1.2 Justificativa ...........................................................................................................7
1.3 Objetivos .............................................................................................................11
1.4 Os questionamentos ............................................................................................12

CAPÍTULO II: ROGERS E HEIDEGGER: UM ENCONTRO POSSÍVEL

PARA COMPREENDER TENTATIVAS DE SUICÍDIO? ..................................... 16

2.1 A teoria de personalidade de Carl Rogers .......................................................... 17


2.2 Sobre Gendlin e o Befindlichkeit ....................................................................... 33
2.3 Sobre a filosofia de Heidegger ........................................................................... 36
2.3.1 Do método fenomenológico heideggeriano .................................................... 37
2.3.2 Sobre a cotidianidade .......................................................................................41
2.3.3 Da angústia e das estruturas existenciárias ......................................................42
2.3.4 Da morte ..........................................................................................................47
2.4. Heidegger e Rogers: um encontro possível? ......................................................48

CAPÍTULO III: COMPREENSÃO DA ADOLESCÊNCIA .................................. 64

3.1 Definindo a adolescência ................................................................................... 64


3.1.1 Uma definição de identidade .......................................................................... 66
3.1.2 Breve retrospectiva acerca da Psicologia da Adolescência ............................ 71
3.2 Adolescência, Cultura e Violência .....................................................................72
3.3 Um outro olhar ...................................................................................................87

CAPÍTULO IV: SOBRE O MÉTODO .....................................................................92

4.1 A experiência como uma dimensão existencial do vivido ................................. 94


4.2 Experiência e Linguagem .................................................................................. 96
4.3 A experiência segundo o pensamento de Walter Benjamin ...............................98
4.4. Experiência e Interpretação .............................................................................103
4.5. Os Rumos da Fenomenologia ......................................................................... .108
4.6. Narrativa e depoimento: um encontro possível ............................................. 112

CAPÍTULO V: AS NARRATIVAS ....................................................................... 118

CAPÍTULO VI: COMENTÁRIOS E INTERPRETAÇÃO....................................161

CAPÍTULO VII: CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÕES .......................183

CAPÍTULO VIII: REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................190


RESUMO

DUTRA, E. M. do S. Compreensão de tentativas de suicídio de jovens sob o enfoque


da abordagem centrada na pessoa. São Paulo, 2000. 195p. Tese (Doutorado).
Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.

O objetivo deste estudo foi compreender as tentativas de suicídio de seis jovens


adolescentes, entre 15 e 20 anos, residentes em uma capital do nordeste brasileiro,
através de uma ampliação teórica do enfoque da Abordagem Centrada na Pessoa,
tomando-se como referência o constructo de self, da Terapia Centrada no Cliente
desenvolvida por Carl Rogers, e propondo-se uma articulação com conceitos da
ontologia de Martin Heidegger. A análise da experiência desses jovens foi feita sobre
as próprias narrativas, obtidas, inicialmente, sob a forma de depoimentos. Os
significados aí apreendidos foram interpretados e comentados sob a perspectiva
fenomenológica e existencial, inspirada pelos referenciais teóricos do estudo e pela
própria experiência intersubjetiva da pesquisadora, como participante ativa na
relação pesquisador-pesquisado. Conclui-se que a experiência de quase-morte é vista
como um reflexo do estar-no-mundo de modo inautêntico, podendo o self ser
considerado como uma expressão desse modo de ser. A angústia, a alienação de si
mesmo e o ser-para-a-morte estão presentes nas vivências desses adolescentes,
desvelando o mundo físico, cultural e sócio-econômico no qual o ser-aí se vê lançado
na sua facticidade. Ressalta-se que a interlocução entre Rogers e Heidegger foi
importante para se ampliar a compreensão fenomenológica da experiência de quase-
morte dos jovens participantes da pesquisa.

Descritores: tentativa de suicídio; adolescente; intersubjetividade; Carl


Rogers (1902-1987); Martin Heidegger (1889-1976).

ix
ABSTRACT

DUTRA, E. M. do S. Understanding suicidal attempts of adolescents based on the


client-centered approach. São Paulo, 2000. 195p. Doctoral Thesis. Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo.

The objective of the present study was to understand the suicidal attempts of six
adolescents, between 15 and 20 years old, residents in a capital city in the Northeast
of Brazil, using a theoretical expansion of the Person-Centered Approach, based on
the construct of "self", from Carl Rogers' Client-Centered Therapy, combined with
concepts of Martin Heidegger's ontology. The analysis of the experience of these
individuals was founded on their own accounts, which were initially given in the
form of statements. The apprehended meanings were interpreted and commented
under the phenomenological and existential perspective, inspired by the theoretical
basis of the study and by the inter-subjective experience of the investigator, as an
active participant of the respondent-researcher relationship. It was concluded that the
experience of quasi-death is seen as a consequence of being-in-the-world in an
unauthentic manner, the self considered as an expression of this way of being.
Anxiety, self alienation and being toward death are present in the experiences of the
teenagers, uncovering the physical, cultural, social and economic world in which the
being-here finds itself thrown into its own facts of life. The dialogue between
Rogers' and Heidegger's ideas was important in order to broaden the
phenomenological understanding of the quasi-death experience of the participants.

Key-words: attempted suicide; adolescent; inter-subjectivity; Carl Rogers (1902-


1987); Martin Heidegger (1889-1976).

x
RÉSUMÉ

DUTRA, E. M. do S. Compréhension de tentatives de suicide chez les jeunes


sous le regard de l’approche centrée sur la personne. São Paulo, 2000. 195p.
Thèse (Doctorat). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.

Comprendre les tentatives de suicide de six jeunes adolescents, de 15 à 20 ans, qui


habitent une capitale do Nord-Est brésilien, à travers une ampliation théorique du
regard de l’Approche Centrée sur la Personne, tout en ayant comme référence
théorique la construction du self, de la Thérapie Centrée sur le Client développée par
Carl Rogers, et en proposant une articulation avec des concepts de l’ontologie de
Martin Heidegger, c’est ce qui contitue l’objectif même de cette étude. L’analyse de
l’expérience de ces jeunes a été faite sur leurs narratives, obtenues tout d’abord sous
forme de témoignage. Les significations sont interprétées et commentées sous la
perspective phénoménologique et existentielle, inspirées des références théoriques de
l’étude et de l’expérience intersubjective du rechercheur, en tant que participant actif
dans le rapport rechercheur- recherché. On conclu que l’expérience de presque- mort
est vue comme un reflexe de l’être- dans- le- monde de façon non authentique, le
self pouvant être considéré comme ume expression de cette façon d’être. L’angoisse,
l’aliénation de soi-même et l’être-pour-la-mort sont présents dans la vie de ces
adolescents, qui dévoilent le monde physique, culturel et socio-économique dans
lequel l’être se voit lancé dans sa facticité. Il est convient de souligner l’importance
de l’interlocution entre Rogers et Heidegger pour aggrandir la compréhension
phénoménologique de l’expérience de presque-mort auprès des jeunes participant de
la recherche.

Descripteurs: tentative de suicide; adolescent; intersubjectivité; Carl Rogers (1902-


1987); Martin Heidegger (1889-1976).

xi
APRESENTAÇÃO

Tenho pensado muito sobre suicídio e tentativa de suicídio entre os jovens.

Também tenho discutido bastante, tanto em sala de aula quanto em palestras e

eventos científicos; e até mesmo em entrevistas na mídia. Além de tudo, esse tema

ainda me introduziu na questão da violência, que pode ser considerada a principal

característica do ato suicida, uma vez que está fundado, quase sempre, numa ação de

extrema violência que alguém comete contra si mesmo.

Todo esse percurso me levou a pensar sobre os motivos que me conduziram a

esse estudo. Primeiro, em relação ao suicídio, pois jamais me interessaria por esse

tema antes, da forma como o faço agora. Na clínica, tive poucos contatos com

pacientes suicidas. Já na minha formação, essa questão surgia em meio a tantas

outras, não como um problema a ser compreeendido teórica ou metodologicamente;

e sim como uma possibilidade que acontecia muito distante da nossa realidade

próxima, como se não fosse comum o suficiente para que nos preocupássemos com

isso. Mais tarde, quando a violência passou a ser reconhecida como a "figura" que

xii
norteia este tema, mais uma vez quis compreender, a partir da minha experiência, se

haveria uma vinculação da violência com a minha história. Teria eu uma história de

vida em que a violência marcava a sua presença? Imaginava que não. Mas sabia, sem

que houvesse uma cognição acerca desse "saber", que algo me unia àquele estudo

sobre o qual me debruçava agora. Sabia que essa ligação era de uma natureza vivida,

forte e que me toma os sentidos, me coloca junto e igual a todos os casos dos quais

me aproximo nesse estudo, sejam eles jovens que tentam morrer ou sejam aqueles

jovens internos na FEBEM, que se rebelam de uma forma brutal, lutando por

liberdade. Sinto-me distinta, mas semelhantemente parecida. E o que nos une é um

sentimento de indignação, uma dor lancinante por sentir violentados os direitos de

ser livre, de ver-se impedida de existir de forma autêntica, de ver cerceada a

liberdade de existir de maneira autônoma; de não poder sentir o que se sente; de não

poder falar o que se pode e precisa falar; enfim, de não poder ser o que se é. Esta é a

mais sutil forma de violência, que pode culminar na dose excessiva de medicamentos

ou no engatilhar a arma que acionará o tiro no suicida. Infelizmente, essa também

pode ser a vivência dos adolescentes em alguns momentos da sua vida, tão marcada

pelas alternâncias e ambivalências no seu viver, próprios dessa etapa de vida. Após

esse mergulho em minha própria experiência como adolescente, consigo identificar

um sentimento de angústia que muitas vezes foi presente em meus momentos de

juventude e que ainda hoje, numa outra etapa de vida, é tão presente que consegue

atualizar essa experiência no meu estar-no-mundo como adulta.

Percebo o meu percurso através desse estudo como se houvesse embarcado

numa canoa, ou num barco, semelhante àqueles dos esportes radicais, que inicia o

seu trajeto numa parte tranqüila e bela do rio para, posteriormente, atravessar

13
cachoeiras caudalosas, correntezas e obstáculos no meio do caminho, jornada essa

que exige que me segure bem nas bordas do barco, para não correr o risco de cair na

água, pois essa aventura torna-se angustiante, em alguns momentos. Ao mesmo

tempo, ao lado do medo de cair e da vontade de superar os obstáculos e

poder chegar em algum ponto, há, também, a visão bonita e diversificada do que

se encontra fora do rio, nas suas margens, nas coisas pelas quais vamos passando.

Assim me sinto.

Nesse momento da viagem, vejo-me mais esclarecida quanto aos meus

motivos. Descubro uma dimensão adolescente na minha experiência. Posso desvelar,

dentro de mim, toda a violência sentida e vivenciada, que sempre esteve lá, mas que

nunca foi capaz de se mostrar. Estava guardada em algum ponto da minha

experiência; era uma coisa sentida, mas ainda não dita. No entanto, como diz

Gendlin (1978/79), essa experiência "chamou" a palavra. Esse "saber" chamou o

tema suicídio, ligou-me a ele, conduziu-me a essa aventura, sem que eu

"conhecesse", de forma consciente e articulada, o que me levava a isso.

Essa clareza do meu estar-no-mundo dessa forma me reportou à adolescente

que ainda vive em mim. E explica a sensibilidade, a mobilização com que me vejo

abraçando a causa dos jovens. Descobri que esta também é uma causa minha. Tento

"reparar" a violência antiga, hoje, no presente. Sou capaz de enxergar no jovem

adolescente a angústia que permeia toda essa fase de transição. Penso que a

adolescência sempre será um período de muitas angústias, que podem ser

acompanhadas pela violência. Tentar "ser" o que ainda não se é. Presenciar , no

próprio corpo, as mudanças que surgem e que colocam o jovem diante de um novo

14
esquema corporal, diante da exigência e necessidade de construir uma outra

consciência do seu corpo, assimilar um "estar-no-mundo" distinto do vivido até

então. Conviver com a voz que se modifica, com algo sobre o qual ele não tem

domínio. Perceber a sexualidade aflorando, no desejo adulto pelo outro, objeto do

desejo, revelado na concretude do funcionamento fisiológico do seu corpo, é

extremamente angustiante. Além de tudo, tais mudanças "solicitam" uma postura

diante do mundo diferente, o que é lembrado todo o tempo pelas pessoas do seu

convívio. Gera-se uma expectativa de um ser diferente do ser da infância. Esperam-

se comportamentos condizentes com o novo ser-adulto, em alguns momentos; e

espera-se que o ser-criança permaneça, em outros momentos. A ambivalência própria

desse momento também se faz presente nos pais e na sociedade em que o jovem

vive. Diria que é a "época da contradição": dele e dos outros, pois nessa fase, em que

esse jovem reformula os seus valores, busca identificações, separa-se dos pais para

poder se afirmar enquanto ser adulto, autônomo e, assim, conquistar um espaço

próprio, é também nesse momento que ao buscar "sair" de casa, no sentido

simbólico, principalmente, que ao chegar "fora", ele não encontra outras referências

que posssam ocupar aqueles espaços "perdidos", ou que os ocupam de forma nefasta

ou destrutiva.

Assim, posso dizer que este estudo foi inspirado pelos jovens que se mataram,

por aqueles que tentaram se matar e pela angústia do adolescente que sempre se faz

presente, de forma singular, nesse período da existência. E agora reconheço que a

maior inspiração foi mesmo aquela que só veio se revelar nesse momento: a minha

própria experiência de ser adolescente.

15
CAPÍTULO I

INTRODUÇÃO

As mortes voluntárias têm sido consideradas, em alguns países do primeiro

mundo, como um problema de saúde pública. No Brasil, embora as taxas de óbitos

não se assemelhem às daqueles países, pois ainda são consideradas baixas, já é

possível ver as mortes por suicídio como uma questão também de saúde pública, por

se constituírem num problema que se agrava a cada dia.

No que se refere às tentativas de suicídio, estas têm aumentado em todo o

mundo. Em se tratando do Brasil, embora a maioria dos estudiosos do assunto

concordem que os registros dessas ocorrências são subestimados, ainda assim é

possível considerar as taxas bastante altas. Em algumas regiões, como se pode ver

nos estudos de Andrade (1979), Cassorla (1984; 1985), Teixeira (1997) entre outros,

as tentativas de suicídio têm uma freqüência alarmante.

Em Campinas, Cassorla (1984b) encontrou 150 casos para cada 100.000

habitantes. O mais preocupante desses estudos, tanto os internacionais quanto os

16
realizados no Brasil, é a constatação de que a tentativa de suicídio é mais comum

entre os jovens com menos de 27 anos e, com raras exceções, as mulheres são

maioria. Os autores citados acima também verificaram que a uma tentativa de

suicídio geralmente outras se seguirão, podendo uma delas ser fatal. Em razão dessas

evidências, os estudos sobre as condutas autodestrutivas, de uma forma geral, têm

buscado uma compreensão mais profunda dos aspectos psíquicos que possam ter

uma relação com essas condutas, almejando, assim, um conhecimento mais

consistente que possa nortear estratégias preventivas no contexto da saúde e da

educação.

Durkheim (1992), considerava suicídio,

... todo o caso de morte que resulta directa ou indirectamente de


um acto positivo ou negativo praticado pela própria vítima, acto
que a vítima sabia dever produzir este resultado. A tentativa de
suicídio é o acto assim definido, mas interrompido antes que a
morte daí tenha resultado. (p.10).

Para este autor, o suicídio e a tentativa de suicídio se equivalem. Pensamos

que a tentativa de suicídio pode ser considerada como um suicídio que fracassou.

Mesmo porque a questão da intensidade da intenção em um e outro ato é difícil de

ser verificada. A propósito disso, retomo mais uma vez este autor, ao colocar que ,

A intenção é algo de demasiado íntimo para poder ser atingida


do exterior, a não ser por aproximações grosseiras. Até da
observação interior ela se oculta. Quantas vezes nos enganamos
sobre as verdadeiras razões que nos levam a agir! Quantas vezes
explicamos por paixões generosas ou por considerações
elevadas atos que nos foram inspirados por sentimentos
mesquinhos ou por uma rotina cega! (p.9)

17
A diversidade de resultados e opiniões científicas a respeito da intenção da

conduta autodestrutiva tem sido extremamente responsável pela dificuldade de se

alcançar um entendimento sobre essas condutas. E também um dos motivos que

fazem muitos autores, entre os quais Feijó (1998), a questionarem a validade de

resultados obtidos através de autópsias psicológicas1, sabendo-se que jamais

alcançarão os verdadeiros motivos e intenções de quem cometeu o suicídio.

Assim, como conhecer a experiência de querer morrer e que de fato pode

levar à morte? Pensamos que a tentativa de suicídio é a principal via a nos conduzir

para essas questões, já que aquele que viveu esse momento é quem poderá atribuir o

seu significado a este ato. O que importa deixar claro, nesse momento, diz respeito

ao que consideramos como tentativa de suicídio, a qual entendemos como um

suicídio interrompido. O entendimento da Organização Mundial de Saúde (OMS)

equivale ao adotado neste estudo, uma vez que a tentativa de suicídio é considerada

como todo ato em que o indivíduo causa alguma lesão a si mesmo, qualquer que

tenha sido a sua intenção e conhecimento do motivo que o levou a isto. Portanto nos

interessa, neste estudo, o suicídio não consumado, ou seja, a TENTATIVA DE

SUICÍDIO.

1.1 Estudos epidemiológicos e clínicos das tentativas de suicídio

Consideramos importante apresentar, brevemente, alguns estudos

epidemiológicos e clínicos sobre as tentativas de suicídio. Tal iniciativa poderá

contribuir para que se tenha uma noção mais concreta e realista da existência desse

1
Usar a expressão "autópsia" psicológica leva a pensar o quanto a questão da intenção da morte é de
fato negligenciada em vida, talvez pelo fato de que não se possa " ver" e nem "admitir" a possibilidade
da morte própria, e ver a do outro nos colocaria em contato com nossa própria angústia da finitude.
Autópsia remete a encontrar a morte "do" e no "outro", somente depois dele próprio morto e
interditado em seu sentido e linguagem. Autópsia é falar do outro pelo outro "em si".

18
fenômeno não só no Brasil, mas em todo o mundo, além de situar o nosso objeto de

estudo, principalmente nesse momento inicial, em relação não só aos aspectos sócio-

demográficos nele envolvidos, mas também aos determinantes de ordens diversas

relacionados a esse ato.

A estabilidade de tendências e características reveladas nos estudos

epidemiológicos sobre o suicídio não se revelam quando se trata das tentativas de

suicídio. De acordo com alguns autores (Andrade, 1979; Barros, 1991; Cassorla,

1984, 1991 e Nunes, 1988), as características epidemiológicas da população que

tenta o suicídio não são as mesmas daqueles que o cometem. Esses autores

constataram que em relação às tentativas, as mulheres as cometem mais do que os

homens, sendo os jovens com menos de 30 anos os mais suscetíveis a esse ato; e, o

que é mais alarmante: estima-se que o número de tentativas de suicídio é bem maior

do que o de suicídios exitosos. Segundo Cassorla (1985; 1987; 1991), para cada

suicídio consumado existiriam de oito a dez vezes mais o número de tentativas. Entre

os jovens de 15 a 19 anos, esta proporção chega a ser 50 a 120 vezes maior.

Oliveira e Nishiyama (1997) verificaram em estudo realizado no Paraná, que

a freqüência maior das tentativas de suicídio ocorriam entre mulheres jovens, com

idade entre 20 e 29 anos, residentes em zona urbana e apresentando como motivos

para o ato os conflitos conjugais e familiares. Os medicamentos foram utilizados por

essas pessoas na tentativa de morte.

Mello e Abreu (1990), analisando os casos atendidos num pronto- socorro em

São Paulo, também constataram uma freqüência maior entre as mulheres, embora

não tenham observado nenhuma diferença significativa em relação às faixas etárias.

Neste estudo os autores chamam atenção para o grande número de ocorrências em

19
adolescentes de 10 a 19 anos. Esses autores fazem referências a estudos realizados na

comunidade européia, onde verificou-se maior ocorrência de tentativas de suicídio

entre mulheres de 15 a 19 anos e em homens de 30 a 34 anos. Nunes (1988),

encontrou resultados semelhantes na sua pesquisa: as tentativas foram mais

freqüentes entre pacientes do sexo feminino, 76,8%, e com idade abaixo dos 24 anos

(68,8%); entre estas, 60,6% tinham entre 15 e 24 anos. O método também confirma

resultados de outros estudos, onde se vê que os medicamentos, de uma forma geral,

são mais utilizados para esse fim.

Quanto aos motivos, Cassorla (1991) encontrou, nas histórias de vida de

adolescentes que tentaram suicídio, brigas, problemas com a família, na escola e no

trabalho. Em outro estudo, Cassorla (1984), encontrou a desagregação familiar, de

onde as jovens que tentaram o suicídio vinham, em sua maioria, mostrando

perturbações emocionais e depressão desde a infância.

Bastos (1974) observou que, quanto ao meio utilizado nas tentativas de

suicídio, em primeiro lugar estão as substâncias químicas, seguidas de arma de fogo

e incêndio nas vestes. Miranda e Queiroz (1991), viram que as tentativas de suicídio

cometidas pelos pesquisados em seu estudo, alunos de um curso de medicina, 2,3%

destas aconteceram quando eles tinha entre 15 e 19 anos (as mulheres) e antes dos 15

anos (os homens). Quanto ao método, a maioria utilizou substâncias tóxicas; em

segundo lugar, precipitação de lugares elevados. Resultado semelhante foi

encontrado em estudo2 realizado com estudantes de Psicologia no RN, quando se

2
Elza Maria do S. Dutra. Ideação e tentativa de suicídio entre estudantes de Psicologia.. Relatório de
Pesquisa apresentado à PPPg (Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação), UFRN, Natal, 1998.

20
verificou que 4,9% dos alunos haviam cometido tentativa de suicídio e, dentre estes,

4,2% o fizeram entre os 13 e 15 anos.

Kotila e Lonnquist (1987)3, citados por Miranda e Queiroz (1991), mostraram

que os adolescentes que tentaram suicídio mais de uma vez tinham como origem

famílias mais pobres e mal integradas, apresentando problemas de adaptação

decorrentes de desordens de personalidade e estiveram em tratamento psiquiátrico.

Botega e outros (1995) verificaram, em estudo realizado num pronto- socorro

de um hospital universitário, que a clientela atendida por tentativa de suicídio tinha,

em média, 27 anos; 70,5% eram do sexo feminino e a maioria residia em zona

urbana. A ingestão de medicamentos ocorreu em 73% dos casos. Quanto aos

motivos, as pessoas relataram a ocorrência de uma briga com pessoa próxima no mês

que antecedeu a tentativa de suicídio. Os autores (op.cit. p.24), observaram que os

pacientes atendidos tiveram o ato precipitado por situações de crise, envolvendo

discussões e rompimentos com pessoas significativas para o paciente.

Freqüentemente, isso ocorreu em um contexto onde se mesclam dificuldades de

ordem pessoal, familiar e social.

Em relação ao Rio Grande do Norte, em pesquisa4 realizada nos boletins de

ocorrência do Hospital Geral do Estado, verificou-se que no ano de 1997, foram

atendidas, no Pronto Socorro, 251 pessoas que haviam tentado o suicídio. De

maneira geral, os números confirmam as características reveladas em outros estudos,

sendo as mulheres, 62,9%, as que mais cometeram este ato. A maioria das pessoas

3
KOTILA, L. e LONNQUIST, J. Adolescents who make suicide attempts repeatedly. Acta Psiq.
Scand., 76: 386-393, 1987.
4
Elza Maria do S. Dutra. Características epidemiológicas das tentativas de suicídio no RN.. Relatório
de Pesquisa apresentado à PPPg (Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação), UFRN, Natal, 1999.

21
que tentaram suicídio reside na capital (70,9%), têm entre 15 e 30 anos (64,2%) e é

formada por solteiros; quanto ao método utilizado, a ingestão de medicamentos é

mais freqüente.

Como se pode constatar através dos estudos citados, a tentativa de suicídio é

mais freqüente do que pensa a maioria das pessoas, não só nos países chamados de

primeiro mundo, mas também no Brasil. Contudo, o mais preocupante nesses

resultados é a constatação de que são os jovens, em sua maioria as mulheres, aqueles

que mais buscam a morte voluntária.

Tais evidências nos fazem lembrar o filósofo existencialista Albert Camus

(1952), ao afirmar que a única questão realmente filosófica diz respeito ao suicídio,

já que esse ato coloca em evidência a vida, se vale a pena ou não ser vivida.

1.2 Justificativa

A repercussão de uma tentativa de suicídio envolve reações diversas. Um ato

dessa natureza pode ser ignorado, negado ou encoberto pelas pessoas que

dele tomam conhecimento, como os médicos, amigos e familiares. No entanto,

sempre causa alguma perplexidade, principalmente quando o autor é um jovem. Tal

fato torna este ato ainda mais incompreensível, considerando-se a sociedade em que

vivemos, na qual ainda persiste o mito da "juventude feliz", reforçado por valores

que privilegiam a juventude, a beleza e a riqueza, entre outros tantos mandatos de

vida deste final de século. São esses valores os mesmos que poderão constituir-se em

objetivos que poderão aprisionar aquele jovem que se perceba excluído de tal

perspectiva e, assim, condenando-o a uma vida de angústia e insatisfações. Além de

tudo, uma tentativa de suicídio é um acontecimento que mobiliza mais fortemente

22
conteúdos de ordem afetiva, moral e religiosa em todos aqueles que, de alguma

forma, estão envolvidos em um acontecimento de tal natureza.

A clareza dos motivos que me conduziram a esse tema só emergiu na etapa

atual desse estudo. Antes, me despertou a curiosidade científica o significativo

número de suicídios de adolescentes na minha cidade, alguns anos atrás, quando

então, perguntamo-nos sobre os motivos que levariam um jovem a desejar

interromper o processo de viver. Quais os aspectos sociais, afetivos e culturais que

podem favorecer este ato? Como se constitui a subjetividade desse jovem que tentou

o suicídio, qual a sua forma de estar-no-mundo, como ele se percebe nas suas

relações afetivas, consigo e com os outros? Enfim, como seria a vivência de um

jovem que deseja eliminar a sua vida, como é o seu estar-no-mundo dessa forma

angustiada que o leva a não querer viver? Foram questões como estas que me

fizeram desejar desenvolver esse estudo, numa tentativa para compreender com mais

clareza os aspectos envolvidos nos questionamentos que me inquietavam.

A partir desse momento, iniciamos os estudos acerca desta temática

procurando conhecer, primeiramente, a estatística do suicídio no Rio Grande do

Norte, cujos resultados podem ser conhecidos através de algumas pesquisas (Dutra,

1997 e 1998c). Nos estudos de natureza epidemiológica que empreeendemos até

agora, ficou evidente uma realidade até então desconhecida no nosso estado: em onze

anos, de 1985 a 1996, houve 567 ocorrências de suicídio, sendo 26,8% (152) delas,

entre jovens de 10 a 24 anos, passando de três ocorrências em 1985 para vinte e nove

(29) em 1996. Posteriormente, passamos a nos interessar pelas tentativas de suicídio

e constatamos um número bastante significativo somente no ano de 1997, como já

revelamos antes. Além de tudo, os resultados evidenciaram, junto a outros estudos de

23
regiões diversas do Brasil, uma tendência de aumento de tentativas de suicídio entre

os adolescentes no nosso país.

Não temos dúvidas de que somente esses números já seriam suficientes para

se justificar o desenvolvimento de estudos sobre a TENTATIVA DE SUICÍDIO, e

de forma contextualizada, a partir da nossa realidade sócio-cultural. Principalmente

por se saber que o número de mortes devidas às causas externas, entre elas o suicídio,

expressam, acima de tudo, o nível de saúde mental da sociedade onde ocorre o

fenômeno, já que o número de óbitos inseridos nesta categoria também podem se

constituir num indicador de saúde da população. No entanto, o que desejamos

ressaltar é a revelação contida nos estudos sobre suicídio os quais mostram que o ato

fatal geralmente foi precedido por uma ou mais tentativas de suicídio; este dado

confirma a importância e a necessidade de se conhecer melhor a TENTATIVA DE

SUICÍDIO. Nesse sentido, os estudos que permitem uma aproximação da vivência

dos jovens pesquisados mostram-se de extrema importância, pois à medida em que o

ser-no-mundo-com-outros se revele nesses jovens, práticas preventivas poderão ser

pensadas a nível de saúde mental da sociedade, fundamentadas nas experiências

subjetivas de quem as viveu, o que, sem dúvida, impede uma generalização desse

conhecimento, mas, por outro lado, permitirá uma melhor compreensão da dinâmica

psíquica que habita o ser-adolescente.

O estudo proposto poderá contribuir de várias formas ao campo da

Psicologia, seja nas dimensões teórica, acadêmica ou prática. Conhecendo-se mais

sobre a forma de estar-no-mundo do adolescente que tenta o suicídio, certamente não

só o campo do saber psicológico poderá ser acrescido por tais conhecimentos, bem

como os resultados poderão ensejar reflexões a nível de prevenção no contexto da

24
saúde e educação; pois sabe-se que esta é uma das perspectivas que se configuram

como das mais pertinentes quando se aborda a saúde mental, ou seja , o nível de

atenção primária. Conhecendo-se mais o processo existencial que conduz o jovem a

não querer viver, será possível empreender reflexões mais embasadas cientificamente

e que possam ensejar o desenvolvimento de estratégias educativas e de saúde em

escolas, unidades básicas da rede pública de saúde, junto aos trabalhadores da área de

saúde e à população em geral, por exemplo, no sentido de informar, esclarecer,

orientar e, principalmente, de acolher as angústias e preocupações acerca das

questões problematizadas.

Além de todos os argumentos apresentados até este momento, outras

implicações do estudo planejado mostram-se igualmente válidas. Neste caso estamos

nos referindo à formação do profissional da área de saúde. Sabe-se que esse

profissional nem sempre recebe uma formação adequada para lidar com a morte,

(Kovács, 1992; Cassorla, 1991b), principalmente com as condutas autodestrutivas,

como as tentativas de suicídio; e aqui enfatizamos, principalmente, o psicólogo.

Alguns estudos comprovam esta afirmação (Almeida, 1996; Dutra, 1999). Nestes,

observou-se que a maioria dos psicólogos que atuam na rede pública de saúde não se

sentem e nem se percebem habilitados para lidar com pacientes suicidas. Portanto,

outra das implicações de um estudo de tal natureza se refere à formação desses

profissionais, já que, além deste trabalho possibilitar a divulgação de um tema ainda

tão cercado de tabus e preconceitos, poderá fornecer subsídios para a formação do

profissional da área de saúde, visando uma formação mais adequada e que atenda às

demandas dessa realidade com a qual nos deparamos atualmente.

25
1.3. Objetivos

Aliada aos argumentos expostos anteriormente, situados que estão muito mais

no âmbito do ensino e pesquisa, está a nossa prática clínica, que vem se norteando,

ao longo desses anos de profissão, através de princípios humanistas e existenciais.

De acordo com a perspectiva humanista -existencial que fundamenta a Abordagem

Centrada na Pessoa, o ser humano é considerado sob uma ótica positiva da natureza

humana, atribuindo-se-lhe uma essência eminentemente construtiva e uma tendência5

para que se desenvolva em direção ao crescimento e auto-realização e tendo como

direcionador dessa tendência, o self (Rogers, 1975).

O contato com a realidade da tentativa de suicídio gerou, a partir de então,

inúmeras reflexões em relação à articulação desses princípios com os atos

autodestrutivos, como a tentativa de suicídio. O que levaria o jovem a atingir o

máximo da autodestrutividade, expressa no suicídio e na tentativa de suicídio?

Como seria vivenciada a existência por aqueles que chegam a um nível de

sofrimento tal que os tornam desesperançados com a vida e assim tentam eliminá-la?

A partir desses questionamentos e ao longo desse estudo, tomamos

conhecimento das idéias de Heidegger na sua ontologia, o qual representou uma luz

para o entendimento da questão objeto deste estudo, aliado ao pensamento de

Rogers. Assim, o nosso objetivo constitui-se numa tentativa de compreensão da

experiência de jovens que tentaram o suicídio.

5
Para Rogers (1975, p. 159), " todo organismo é movido por uma tendência inerente para
desenvolver todas as suas potencialidades e para desenvolvê-las de maneira a favorecer sua
conservação e seu nriquecimento". Esta noção, a tendência atualizante, corresponde ao postulado
principal em que se apóia a Terapia Centrada no Cliente.

26
Portanto, interessa-nos interrogar para conhecer a experiência daquele jovem

que tentou o suicídio, a fim de encaminhar a compreensão da intenção que leva a um

ato autodestrutivo. Podemos definir o nosso objetivo, neste trabalho, como uma

tentativa de conhecer, tanto quanto possível, a experiência de alguns jovens que

tentaram o suicídio, almejando obter uma compreensão dos significados que eles

atribuem a esse ato.

1.4. Os questionamentos

Antes de explorar mais detalhadamente as questões colocadas, é importante

esclarecer melhor a origem desses questionamentos.

A escolha desse novo objeto de estudo no doutorado, a tentativa de suicídio,

levou-nos a buscar, na prática, uma maior atenção, ou, melhor dizendo, ensejou uma

postura mais atenta aos problemas teóricos, filosóficos e metodológicos que surgiram

a partir de então. Buscamos experiências profissionais específicas, como o trabalho

desenvolvido no Hospital Geral do Estado, quando tivemos oportunidade, durante

um semestre e através de um Projeto de Extensão6, de prestar atendimento aos

pacientes hospitalizados em função de tentativas de suicídio. Essa atividade teve

continuidade na Clínica-Escola da UFRN, onde os pacientes oriundos do hospital

continuavam o seu tratamento, já que a alta da hospitalização não supunha qualquer

tipo de acompanhamento, uma vez que a instituição não desenvolve atividade

ambulatorial. Além dessas atividades, a prática em consultório privado também foi

enriquecida com esse tipo de demanda, propiciando, desse modo, uma importante

articulação da prática com a teoria. Durante as experiências vivenciadas nesse tempo,

6
Elza M. S. Dutra: Intervenção de Crise nas Tentativas de Suicídio. Relatório de Projeto de
Extensão, apresentado à PROEX (Pró-Reitoria de Extensão), UFRN, 1998.

27
percebemos, com clareza, que algumas questões emergiam nesse processo de

conhecimento, impondo-se à reflexão ampla, à luz dos aspectos teóricos e

práticos/vivenciais.

A partir do contato terapêutico estabelecido com as pessoas que tentaram

suicídio nas experiências relatadas acima, observamos que alguns aspectos emergiam

com mais evidência nos casos referidos, em razão do que, lançamos algumas

questões que se configuram como os principais aspectos implicados nesse estudo.

Primeiro, a percepção que o jovem tem de si, que denominaremos de autoconceito ou

noção de self (segundo a perspectiva de Rogers); e, a seguir, os aspectos afetivos e

sócio-culturais que favoreceriam o desenvolvimento desse self.

Em princípio, supomos que a tentativa de suicídio tenha alguma relação com

o self e, conseqüentemente, com o seu desenvolvimento, segundo o pensamento de

Carl Rogers. Temos observado, durante os contatos com os pacientes suicidas, que a

tendência autodestrutiva parece impor-se ou desenvolver-se mais facilmente quando

o indivíduo não possui uma concepção positiva de si-mesmo, quando se revela com

um baixo sentimento de estima por si mesmo. Quando o auto-conceito é vivenciado

ou se desenvolve através de conflitos, inseguranças e incongruências, isso vai gerar

um autoconceito que será responsável pela auto-imagem resultante dele. Por sua vez,

a forma de estar-no-mundo com-outro será norteada pela maneira como o indivíduo

se percebe nesse mundo. Se essa auto-imagem caracterizar-se por percepções

positivas e baseadas em características reais para o indivíduo, então as suas escolhas

serão, provavelmente, compatíveis com a forma com a qual ele se percebe. Se

ocorrer o contrário, as suas escolhas serão inadequadas e gerarão insatisfação,

frustração e sentimentos de inadequação e irrealização, o que, sem dúvida, poderá

28
favorecer atitudes autodestrutivas. Tal forma de se perceber no mundo está sempre

relacionada com o contexto familiar e social em que o indivíduo está inserido. Isso

pela razão de não ser possível perder-se de vista o papel do outro, representado tanto

pelos primeiros vínculos parentais, assim como o outro, representado pela dimensão

sócio-cultural que nos circunda, na constituição da subjetividade.

Contudo, a visão teórica oferecida por Rogers em sua teoria de personalidade,

carece, ao nosso ver, de uma perspectiva mais ampla em termos do mundo

vivenciado pelo indivíduo, principalmente no que concerne ao papel desempenhado

pelo self na sua conduta. Embora esse autor retire do self o papel de uma entidade ou

homúnculo que determinaria a conduta do indivíduo, na medida em que enfatiza,

também, o campo fenomenal, ainda assim, o criador da Abordagem Centrada na

Pessoa tem sido questionado ( Moreira, 1984; 1990), pela ênfase que confere ao

poder individual da pessoa no mundo em que vive e, desse modo, privilegiando a

individualidade, que se explicita na noção de self. Daí surgiram questionamentos

relativos ao desenvolvimento do self e a sua relação com o mundo, o que nos remete

à questão da subjetividade e a importância do mundo concreto na sua constituição.

Ao buscar essa compreensão, nos deparamos com a ontologia de Martin

Heidegger, por pensarmos permitir uma visão mais ampla e compreensível dessa

interação entre self e campo fenomenal de que Rogers fala e que, no nosso entender,

pode ser ampliada através do pensamento desse filósofo, a partir da sua noção de ser-

aí e ser-com. Do mesmo modo, o olhar heideggeriano também nos permite obter uma

compreensão da tentativa de suicídio, sob a perspectiva da insegurança ontológica

que caracteriza a angústia de estar-no-mundo.

29
Assim, tomaremos a teoria de personalidade de Rogers como "pano de

fundo", "cenário" ou "terreno", sobre o qual caminharemos tecendo considerações,

valendo-nos da contribuição filosófica de Heidegger para fazer um ensaio com a

interpretação das narrativas de adolescentes que tentaram o suicídio.

30
CAPÍTULO II

ROGERS E HEIDEGGER: UM ENCONTRO POSSÍVEL PARA

COMPREENDER TENTATIVAS DE SUICÍDIO?

O motivo deste capítulo, dedicado às teorias de Heidegger e Rogers, reside na

justificativa deste trabalho, apresentada no seu início. O fato de termos adotado,

desde o início da nossa formação, o referencial Centrado na Pessoa e, com isso,

absorvido os seus conceitos, fez-nos questioná-los no momento em que nos

deparamos com uma outra demanda psíquica, revelada nas tentativas de suicídio. Isto

nos impulsionou para que investigássemos melhor os conceitos adotados, agora à luz

de uma nova realidade com a qual nos deparávamos na nossa prática clínica.

No horizonte do entendimento dessa questão, o que sempre vislumbrávamos

tinha, como fundo, a auto-percepção da pessoa, crucial nos seus momentos de

escolhas existenciais. Isso nos remetia à questão do auto-conceito, ou seja, ao self,

tal como o havíamos incorporado, através da perspectiva rogeriana. No entanto, ao

31
longo dos estudos articulados com as novas experiências profissionais, a tentativa de

morte, vista sob o olhar do self, carecia de uma visão de maior alcance. Foi quando

nos deparamos com a filosofia de Heidegger, que surgiu lançando uma luz que, além

de nos favorecer uma visão mais ampla daquilo que representava o foco do nosso

olhar, ainda amenizava as nossas inquietações.

Este capítulo tem o intuito de apresentar a teoria de personalidade tal como

elaborada por Carl Rogers, na Terapia Centrada no Cliente. Será discutido o

constructo de "self ", o qual representa o núcleo central deste corpo teórico, tendo ele

um papel importante na dinâmica do comportamento, inclusive na sua regulação,

como afirma Rogers (1975): A idéia do eu aparece, pois, como um mecanismo

regulador do comportamento ( p. 167). Ao mesmo tempo, também são apresentadas

as principais idéias que constituem o pensamento de Heidegger, objetivando, com

isso, criar uma base teórica que permita uma interlocução entre este filósofo e o

psicólogo Rogers.

Portanto, este passeio pelas construções teóricas de Heidegger e Rogers torna-

se necessário, uma vez que assim o fazendo, poderemos tentar articular uma fala que

nos traduza e que possa nos dizer dos sentidos do ser, de uma maneira concreta, tal

como se revela na facticidade da experiência existencial.

2.1. A teoria de personalidade de Carl Rogers

O self é o núcleo central da teoria de personalidade desenvolvida por Carl

Rogers. Originária da prática clínica, essa teoria é considerada, pelo seu criador, de

natureza eminentemente fenomenológica e se apóia nas teorias organísmicas da

32
personalidade, que encontram em Kurt Goldstein o seu principal representante, e na

fenomenologia, segundo as idéias de Snygg e Combs (1949).

Rogers percebeu, nos seus contatos com os clientes, que a maioria deles

costumava se referir ao "si mesmo", ao "mim", quando buscavam, na sua

experiência, aqueles aspectos que os caracterizavam como a pessoa que sentiam ser.

Desse contexto da prática clínica foram surgindo as convicções de Rogers a respeito

desse constructo.

Ao elaborar a sua teoria de personalidade, Rogers preocupou-se para que as

suas definições fossem o mais operacionais possíves e as hipóteses, verificáveis. Tal

postura ele a explicita claramente ao afirmar:

Um dos nossos objetivos permanente foi o de submeter a


dinâmica e os resultados da terapia a rigorosas investigações
experimentais. Estamos convencidos de que a psicoterapia é
uma experiência existencial profundamente subjetiva tanto para
o paciente como para o terapeuta, repleta de sutilezas complexas
e englobando inúmeros matizes da interação pessoal. Contudo,
estamos igualmente convencidos de que, se a nossa experiência
significa alguma coisa, se nela surgem profundos ensinamentos
que provocam uma modificação da personalidade, nesse caso
essas alterações devem poder ser verificadas pela investigação
experimental. (1974, p. 202)

A despeito dessa preocupação, a sua teoria contrariava os ditames científicos

da época, ao colocar a ênfase na subjetividade e ao postular, como único enfoque

possível na psicologia, o marco de referência da pessoa ( Rogers, 1975; 1975b).

A teoria de personalidade desenvolvida por Carl Rogers apresenta-se distinta

da maior parte das outras no campo da psicologia, por constituir-se muito mais numa

teoria de mudança da personalidade do que numa teoria que visa o estudo das suas

33
estruturas fixas ou imutáveis ( Rogers, 1974). Algumas influências podem ser

observadas na teoria em questão, como a Psicologia da Gestalt, através da

formulação teórica de campo fenomenal ou perceptual, de acordo com Snygg e

Combs (1949), os quais introduziram a perspectiva fenomenológica nos Estados

Unidos e a Teoria Organísmica de Kurt Goldstein.

Essas influências favoreceram o desenvolvimento de uma teoria que assume

como prioridade o vivido, a experiência subjetiva do indivíduo, ou seja, o mundo

interno da experiência. Para ele, a realidade objetiva não existe, pois cada pessoa

percebe o mundo ou essa realidade de acordo com o seu mundo interno, os seus

sentimentos, emoções e experiências; enfim, de acordo com a percepção que ela tem

do seu estar- no- mundo. A esse respeito diz ele que O organismo reage ao campo

perceptivo tal como este é experimentado e apreendido. Este campo é, para o

indivíduo, "realidade". Rogers, (1975b, p. 468). E reforça esta valorização do mundo

interno ao afirmar que o melhor ângulo para a compreensão da conduta é a partir do

quadro de referência interno do próprio indivíduo (ibidem, p. 477).

Nesse processo, a percepção que cada um tem das suas características, dos

seus afetos, humores, relações e valores, ou seja, o seu auto-conceito ou self, tem

uma importância crucial, na medida em que é essa imagem com que cada um se

percebe no mundo, que irá influenciar, para não dizer orientar ou determinar, a

conduta do indivíduo.

Rogers (1975, p. 44) é bem explícito nesse sentido, quando reafirma a

importância do self, inclusive no desenvolvimento da tendência à atualização do

organismo, atribuindo-lhe um papel determinante:

34
A conjugação destes dois fatores, a tendência à atualização e a
noção do eu- determina o comportamento. A primeira representa
o fator dinâmico, a segunda representa o fator regulador. Uma
fornece a energia; outra, a direção.

Em relação ao campo fenomenal ou perceptual, tão importante para o

constructo de self, este é definido por Rogers (1975b, p.467) como o que inclui tudo

o que é experimentado pelo organismo, quer essas experiências sejam captadas pela

consciência ou não. O campo fenomenal ou perceptual foi emprestado de Snygg e

Combs (1949) e busca refletir e contemplar a relação entre o mundo interno da

experiência e o mundo externo, e toda a influência que esta relação representa no

processo experiencial.

A fenomenologia na qual Rogers se inspira está fundamentada nas idéias dos

autores citados antes, as quais parecem refletir a fenomenologia ditada por Husserl,

já que observa-se uma valorização do mundo interno do indivíduo, princípio este

contido na intencionalidade da consciência proposto por aquele filósofo. Os autores

americanos propunham que o campo fenomênico do indivíduo era o principal

determinante da conduta e sugeriam, como tarefa da psicologia fenomenológica, a

exploração desse campo fenomênico (Snygg e Combs, 1949). Para eles, a conduta é

considerada um problema de percepção humana. As seguintes palavras de Rogers

(1974) apontam para o significado que ele atribuía à fenomenologia, quando explica

que,

Se no capítulo precedente o processo terapêutico é encarado de


uma perspectiva quase exclusivamente fenomenológica, a partir
do quadro de referência do paciente, este capítulo procura captar
aquelas qualidades de expressão que podem ser observadas por
outra pessoa e situa-se, portanto, num quadro de referência
externa. (p. 108)

35
Podemos dizer que, para Rogers, adotar uma perspectiva fenomenológica

como ele o fez, significa priorizar o marco de referência interno do outro, na intenção

de penetrar nos seus significados pessoais, por considerar que a verdade de cada

pessoa é a sua percepção da realidade, tal como ele a vive na sua experiência. Morato

(1987) reconhece uma atitude fenomenológica e existencial em Rogers, ao dizer :

Creio poder inferir que Rogers assume uma atitude


investigadora e científica a partir da utilização do método
fenomenológico. Ou seja, a necessidade de um despojamento e
suspensão de julgamento para entrar em contato com o outro,
captando-o, reconhecendo-o, e comunicando-se.(...) Rogers põe
em prática princípios existencialistas, reenfatizando o método
fenomenológico. (p.36)

Concluímos que esta postura situa-se muito mais próxima e identificada com

a fenomenologia de Husserl, no que ele nos apresenta em torno dos seus

pressupostos mais básicos, como o princípio da intencionalidade da consciência.

Dessa forma, amparando-se no constructo desses autores, Rogers (1975b, p.

467), assim se refere ao indivíduo inserido nesse campo perceptual: todo indivíduo

vive em um mundo continuamente mutável de experiências, das quais ele é o centro.

Esse pensamento reafirma a importância do indivíduo como centro de suas

experiências. Mesmo considerando-se o campo perceptual, que implica tudo que

afeta a existência do indivíduo, a ênfase continua sobre a pessoa; ou seja, o mundo é

percebido a partir da sua própria referência pessoal. Tal postura nos leva a visualizá-

la como uma perspectiva de inspiração husserliana, já que poderíamos reconhecer

nesse pensamento, uma ênfase na subjetividade, à medida em que valoriza a

consciência e seus significados, pensamento presente no princípio da

intencionalidade da consciência e no eu transcendental.

36
Tal opinião é acompanhada por Morato (1987), ao relacionar a atitude

despojada de Rogers para contactar com a experiência do outro como expressão de

um compromisso com a perspectiva fenomenológica e também por Pagès (1976), ao

estabelecer um paralelo entre o tema da compreensão de si tal como o proposto por

Rogers, que leva à congruência, com Husserl. Reconhece, na empatia, a colocação

entre parênteses, ou seja, a redução fenomenológica de Husserl, quando o terapeuta

se abstém dos seus próprios valores para compreender o outro.

Rogers (1975b, p.484), nos apresenta duas importantes definições do self. Na

sua primeira versão, assim o constructo é visto por ele:

A estrutura do si-mesmo é uma configuração organizada das


percepções do si mesmo que são admissíveis à consciência. Se
compõe de elementos tais como as percepções das próprias
características e capacidades, os perceptos e conceitos de si-
mesmo em relação com os demais e com o meio; as qualidades
de valor que se percebem como associados com as experiências
e com os objetos; e as metas e ideais que se percebem como
possuindo valor positivo ou negativo. É, portanto, a pintura
organizada existente na consciência, seja como figura, seja
como fundo, do si-mesmo em relação, juntamente com os
valores positivos ou associados a estas qualidades e relações
percebidas como existentes no passado, presente e futuro.

Na segunda versão da sua teoria de personalidade, Rogers (1959,p. 200), esta

se apresenta mais sintética, com definições mais elaboradas, ao mesmo tempo em

que é possível se observar uma marcante influência da perspectiva existencialista.

O self, conceito de self e estrutura de self são assim definidos por ele:

Estes termos referem-se à gestalt conceitual, consistente e


organizada, composta de percepções das características do "eu"
ou "mim" e as percepções das relações entre o "eu" ou "mim"
com os outros e os vários aspectos da vida, junto aos valores
relacionados a essas percepções. É uma gestalt que é disponível

37
à consciência, mas não necessariamente consciente. É uma
gestalt fluida e mutável, um processo, mas que em qualquer
momento é uma entidade específica a qual é parcialmente
definível em termos operacionais por uma técnica Q ou outro
instrumento de medida7.

Nessas definições do constructo self, principalmente na primeira versão,

percebe-se, claramente, uma característica do self de natureza relacional,

constituindo-se não só da percepção que o indivíduo possa ter dos seus atributos

pessoais, como também destes em relação ao mundo.

O self apresenta algumas características: é consciente, é uma gestalt ou

configuração organizada e contém, principalmente, percepções do próprio

indivíduo, em relação ao mundo.

O caráter consciente do self responde à necessidade de Rogers de comprovar

cientificamente, dentro dos parâmetros positivistas, a sua teoria. Amparado somente

nas percepções conscientes, o self poderia, assim, ser verificado objetivamente e

receber uma definição operativa, posição esta constatada, principalmente, na última

definição. Esta opinião pode ser observada na sua referência ao self, aqui traduzido

como eu:

Tendo em vista o fato de que toda noção teórica representa uma


abstração mais ou menos arbitrária da realidade, há diversas
maneiras de definir o eu. De acordo com Hilgard, por exemplo,
a definição do eu inclui dados tanto conscientes quanto
inconscientes. Esta é, sem dúvida, uma maneira legítima de
abstrair a partir dos fenômenos. Não é, contudo, em nossa

7
Rogers, C. (1959, p. 200): Self, Concept of self, Self-structure. These terms refers to tha organized,
consistent conceptual gestalt composed of perceptions of the caracteristics of the "I"or "me" and the
perceptions of the relatioships of the "I"or "me" to others and to various aspects of life, together with
he valus attached to these perceptions. It is a gestalt wich is available to awareness though not
necessarily in awareness. It is a fluid and changing gestalt, a process, but at any given moment it is
aspecific entity which is at least partially definable in operational terms by means of a Q sort or other
instrument or measure.

38
opinião, uma maneira cientificamente muito útil. Com efeito,
porque faz intervir dados inconscientes, tal definição não se
presta, no momento atual, a definições operacionais. Por isto,
parece-nos mais útil conceber o eu como uma estrutura de
experiências disponíveis à consciência. Esta concepção abriu,
por outro lado, o caminho a um poderoso movimento de
pesquisa. Rogers (1975, p. 168)

Como uma configuração organizada ou gestalt, o self passa a ser regido pelas

leis do campo perceptual. Isto significa que não se trata de uma percepção ou

estrutura rígida do si-mesmo; pelo contrário, envolve mudanças e flutuações bruscas

que assumem novas organizações de acordo com os aspectos envolvidos na maneira

de estar-no-mundo. É uma percepção que flui e se movimenta de acordo com o estar-

no-mundo da pessoa e a qual reflete os seus afetos, idéias e humores e que a

existência nos propicia o seu experienciar, como nos mostra Rogers (1975):

O eu (...) essencialmente, é uma Gestalt cuja significação vivida


é suscetível de mudar sensivelmente e até mesmo sofrer uma
reviravolta, em conseqüência da mudança de qualquer um destes
elementos. O caráter estrutural do eu pode se comparar às
figuras ambíguas encontradas nos manuais de Psicologia da
Forma e que apresentam, por exemplo, um traçado que se
percebe como o contorno de um vaso, e logo- em conseqüência
de um ligeiro desvio da atitude perceptual- como duas figuras
humanas de perfil. Alguma coisa deste gênero pode produzir-se
na imagem que o cliente faz de si mesmo. Por ocasião de algum
acontecimento, às vezes insignificante, sua atitude em face de si
mesmo se modifica dando origem a uma mudança considerável
na idéia que faz de si mesmo. O eu se revela então, como uma
gestalt que se modifica, não essencialmente, por meio de adição
ou de subtração, mas por meio de organização e de
reorganização. (p. 167).

Tal como apresentado por Rogers, o self expressa, com muita evidência, a

ênfase no subjetivo e individual. Poder-se-ia afirmar que, em termos gestaltistas, o

indivíduo seria figura, enquanto o mundo seria o fundo dessa configuração. Isto

39
mostra a natureza de tal definição, que surge de uma prática psicoterápica e situada

numa teoria de personalidade, no âmbito da psicologia clínica e por isso preocupada

com os processos subjetivos do indivíduo.

O self, ainda que se constitua numa configuração perceptual e mutável,

acolhe as características que dizem mais do indivíduo ou que ele as percebe assim e

as quais tendem a ser preservadas em função da tendência à atualização do self. Esta

dimensão consciente do self, ou seja, os atributos que o indivíduo considera como

fazendo parte de si, é responsável tanto pelo desenvolvimento saudável do indivíduo

quanto pela patologia das suas condutas, o que vai depender da forma como essas

experiências serão simbolizadas, se serão distorcidas ou negadas. Isto é, se elas

correspondem a um acordo, que Rogers chama de congruência, entre a experiência

sentida e a sua simbolização; ou seja, entre a experiência do organismo e o auto-

conceito do indivíduo.

A função do self, além daquela de influenciar a percepção do mundo,

constitui-se, acima de tudo, como regulador da conduta, substituindo a avaliação

organísmica que ocorria na fase em que a criança assim funcionava, antes de se

constituir como um eu separado dos pais ou figuras significativas. A discrepância na

conduta desenvolve-se como resultado da distorção na percepção daquelas

experiências que não se relacionam ao self. As outras, que são percebidas como

compatíveis com o self, se desenvolvem e mantêm o conceito já estabelecido.

Através desse processo incorreto de simbolização é que se daria a incongruência, ou

seja, o desacordo entre a experiência e a sua simbolização e a inautenticidade do

indivíduo e, conseqüentemente, da sua conduta, já que o self é considerado, nessa

teoria, como o responsável pela regulação desta última. É nessa direção que as

40
palavras de Rogers (1994, p. 49)8, se dirigem: Assim, chega-se ao reconhecimento de

que, sob condições próprias, o self é um fator básico na formação da personalidade

e na determinação do comportamento.

Desse modo, a congruência passa a ser considerada por Rogers como um

processo de comunicação interna, quando a experiência sentida é simbolizada

corretamente na consciência. Funcionar de forma congruente significa contactar com

a experiência sentida e poder representá-la na consciência, sem que seja preciso

distorcê-la ou negá-la, em função de um auto-conceito já organizado, ao qual

determinadas experiências podem mostrar-se incompatíveis. Essa maneira de

funcionar consistiria, então, num modo incongruente de ser que, na verdade, significa

agir de forma inautêntica, fundada numa concepção de si não verdadeira; seria

assumir valores de outros, seria alienar-se do seu si-mesmo.

A teoria de personalidade de Rogers recebeu grandes contribuições dos

estudiosos da abordagem desenvolvida por ele. Um dos seus principais colaboradores

foi Eugene Gendlin que, ao desenvolver a Teoria da Experienciação e da Mudança

de Personalidade, consolidou alguns princípios introduzidos por Rogers e modificou

outros. Alguns autores ( Rezola, 1975; Spiegelberg, 1972) afirmam que Gendlin

conseguiu resolver um conflito com o qual Rogers se debatera a vida inteira: fazer

uma ciência subjetiva, sem perder de vista os rigores metodológicos do positivismo,

além de colocar essa teoria numa dimensão verdadeira e concretamente existencial,

através do conceito de "experiencing".

8
Some Observations on the Organization of Personality. The American Psychologist, vol. 2 (9): 358-
368, 1947. Discurso proferido pelo autor ao término de seu mandato como Presidente da Associação
Americana de Psicologia, na Reunião Anual de setembro de 1947.

41
Este termo foi introduzido por Gendlin, sendo definido por ele como o

processo do sentimento corporal concreto, o qual constitui a questão básica do

fenômeno psicológico e da personalidade (1970, p. 138)9. Enquanto que Hart (1970,

p. 10), escreve em relação à definição do termo: a palavra experienciação refere-se

tanto à teoria, quanto ao fenômeno da experienciação. Algumas das mudanças

ocorridas na teoria desenvolvida por Rogers foram possíveis através deste novo

conceito, bem como da nova concepção de autenticidade, surgida a partir das idéias

de Gendlin.

Uma das dificuldades identificadas na teoria de personalidade desenvolvida

por Rogers diz respeito ao conceito de congruência (Rezola, 1974; Gendlin, 1970).

Questiona-se em como se poderia conceber a congruência, uma perspectiva

fenomenológica, sabendo-se que a experiência, por definição, não era consciente,

enquanto o self, sim. Sendo a verificação empírica uma preocupação constante de

Rogers, como se poderia medir a congruência, se esses aspectos possuíam tais

características?

A meta de Rogers, inalcançável, como bem reconhecia ele, seria fazer uma

ciência que, sem desprezar os referenciais positivistas, ainda pudesse valorizar e

focalizar a experiência humana. A necessidade de Rogers de conciliar estas duas

tendências também é considerada por Rezola (1974) e Pagès (1976), que a entende

como derivada dos conflitos de Rogers entre as ciências e a religião, vividos desde o

início da sua formação profissional. Por isso Pagès (ibidem) diz que Rogers tenta

satisfazer e integrar duas exigências aparentemente contraditórias: uma exigência

fenomenológica e outra experimental (p. 30).

9
Experiencing is the process of concrete, bodily feeling, which constitutes the basic matter of
psychological and personality phenomena. Gendlin, (1970, p. 138).

42
Assim, Gendlin, com a teoria da experienciação mencionada antes,

efetivamente colabora para que esse conflito seja solucionado. Nessa teoria, a

congruência passa a ser concebida não mais como uma equação entre o organismo e

a consciência, mas como uma forma de experienciar-se pleno e imediato, e a

experienciação torna-se o aspecto principal da teoria de Rogers, o que possibilitará

um novo entendimento do self.

A teoria de Gendlin foi formulada pela primeira vez em 1955 e pretendia,

acima de tudo, articular a filosofia com a teoria de Carl Rogers, estabelecendo,

assim, um novo fundamento para a sua teoria de personalidade, como afirma

Spiegelberg (1972).

O esforço de Gendlin para aproximar a filosofia existencialista da

psicoterapia pode ser observada em um texto dedicado a este tema, Gendlin (1970b),

no qual ele propõe uma relação existencial, que se funda no processo de

experienciação, tanto do paciente quanto do terapeuta: o relacionamento

experiencial, o encontro existencial, então, é completo e mutuamente pessoal e não

somente profissional; é mais do que verbal, é uma ação recíproca e conectada (p.

76)10.

Segundo este autor, o existencialismo, muitas vezes, é encarado como

visando objetivos vagos, abstratos, constituindo-se eles num convite para se

glorificar o efêmero, o que, na sua opinião, é um erro. Pois o que se pretende é a

experiência diretamente sentida e ser-aí em sua concretude pré-ontológica e pré-

definida. Gendlin, (1970b, p. 86). Para ele, então, o existencialismo tem êxito se nós

10
The experiential relationship, the existential encounter then, is fully and mutually personal and not
just professional; it is much more than verbal, it is a concrete interplay and connectedness. Gendlin
(1970b, p. 76).

43
equacionarmos "existência" com "experienciação"; as idéias apresentadas aqui

confirmam o seu movimento pessoal para aproximar essa filosofia da psicoterapia,

como já foi dito antes, e tendo como apoio e fundamento do seu pensamento, o

processo de experienciação.

A experienciação tornou-se o constructo principal da teoria de Gendlin e

consiste num fluxo de experiência que é anterior à lógica, mas não contrário a ela.

Constitui-se numa fonte de significados, os quais surgem de uma interação entre a

experiência e os processos simbólicos.

Sendo a experienciação anterior à lógica, é de natureza existencial, porém não

se opõe àquela. Para Gendlin (1962, p. 8),

Até agora se assumiu ou que o significado reside na


experienciação sentida e que a lógica não fazia mais que
distorcê-la, ou que este reside na lógica e o sentimento, portanto,
não é mais que um caos que deva ser evitado. Isto não é certo. O
significado se forma da interação entre a experienciação e algo
que funciona como símbolo.

Experienciação é um processo fluido e sempre em movimento, da experiência

concreta e de natureza processual. Enquanto experiência é considerada como o

sentimento de ter experiência, a experienciação refere-se à experiência concreta, o

funcionamento puro, presente e contínuo disso que ordinariamente é chamado

experiência; Gendlin (ibidem, p. 11).

Daí em diante, Rogers incorpora esta nova perspectiva da experienciação e

passa a definí-la assim:

A experienciação se refere ao sentimento fluido de ter


experiências, a essa corrente parcialmente informe de

44
sentimentos que temos em todo o momento. É pré-conceitual,
contém significados implícitos; é algo basicamente prévio à
simbolização ou conceitualização. Pode ser conhecido pelo
indivíduo mediante a referência direta- isto é, atendendo
interiormente a este fluxo de experiências. Esta referência direta
é uma diferenciação fundamentada em uma atenção ou
indicação subjetiva ao processo da experiência. Este processo
fluente é suscetível de simbolização e esta pode estar baseada na
referência direta. Mas também podem realizar-se simbolizações
mais complexas, tal como a chamada conceitualização. O
significado se forma da interação entre a experienciação e os
símbolos. (1963, p. 126-127)

Ao lado de todas essas mudanças, Gendlin (1970) propõe uma nova

concepção para a congruência, que passa a ser denominada de autenticidade. Para

ele, diferentemente de Rogers, cuja congruência seria a simbolização correta da

experiência, a autenticidade, tendo como base agora a experienciação, não se

constitui mais na simbolização da experiência, mas na abertura do ser ao vivido.

A autenticidade, tal como proposta por Gendlin, diferentemente da noção

rogeriana, passou a representar não mais a simbolização da experiência, mas a

posssibilidade de abertura para o mundo, a possibilidade de se vivenciar as

experiências.

Carl Rogers foi alvo de muitas críticas ao longo da sua trajetória profissional.

Algumas delas dirigem-se ao lugar da fenomenologia em sua teoria. Moreira (1990),

partindo de uma visão fenomenológica apoiada em Merleau-Ponty, afirma não ser

possível o enfoque fenomenológico na Abordagem Centrada na Pessoa, em razão da

noção de pessoa dessa perspectiva centrar-se na subjetividade e individualidade do

homem, e por isso, dicotomizando-o entre mundo interno e externo, o que lhe retira o

caráter histórico e mundano. Diz a autora, em relação à psicoterapia de Rogers, que

é preciso que evolua para uma concepção de homem enquanto ser-no-mundo e,

45
como tal, como fenômeno em mútua constituição com o mundo (p. 162). Outras

contradições e paradoxos rogerianos também são apontados por diversos autores

(Pagès, 1976; Dutra 1982; Moreira, 1990 e Almeida, 1999).

Por outro lado, Pagès (1976) considera Rogers um fenomenólogo, embora ele

não tenha se preocupado com isso em sua obra e nem tal termo seja encontrado nos

seus escritos. Diz ele que,

Rogers é implicitamente fenomenólogo, em nossa opinião, na


medida em que, para ele, a fonte de qualquer conhecimento
autêntico reside em uma experiência imediata de si e de outrem;
uma experiência que, partindo da experiência cotidiana, se
desprende do que esta contém de preconceitos e de molduras
intelectuais deformantes; Rogers a descreve como "uma pura
cultura", sem inibições ou precauções intelectuais, não limitada
pelo conhecimento de sentimentos contraditórios. (p. 31).

A esse respeito, já havíamos mencionado antes a nossa opinião,

compartilhada por Pagès, da visão de um Rogers fenomenólogo. No entanto, é

preciso situar a perspectiva fenomenológica à qual nos referimos, uma vez que,

desde Husserl, esse método seguiu direções distintas, de acordo com os seus

pensadores.

Certamente, se partimos de uma perspectiva husserliana, que atribui à

consciência os significados da experiência, colocando o eu transcendental em

evidência, ao mesmo tempo que institui o sujeito em relação direta com a realidade,

entende-se que tais premissas podem ser identificadas nas proposições de Rogers,

principalmente no que se refere à empatia, ao mundo perceptual e fenomênico e na

importância que ele confere ao mundo da experiência do sujeito no mundo. Foge dos

objetivos deste trabalho pensar em termos do que seria a verdadeira fenomenologia,

46
penetrar na questão das essências, da verdade do ser e outros conceitos que, vistos de

perspectivas diferentes, modificam o objeto da fenomenologia. Porém não restam

dúvidas de que, sem o saber e sem que tenha se preocupado com a questão da

fenomenologia, Rogers construiu uma teoria na qual se percebe uma presença da

fenomenologia enquanto método e filosofia. No entanto, voltaremos a discutir a

questão da fenomenologia em Rogers tomando como ponto de partida o pensamento

de Heidegger.

A despeito do que acabamos de dizer, uma das críticas mais freqüentes

(Moreira, 1990; Pagès, 1976), refere-se ao fato de Rogers propor uma postura

fenomenológica enquanto clínico e exercer um fazer científico amparado em

princípios positivistas. No entanto, no que tange ao self, o que se revela nas

entrelinhas dessa formulação teórica é uma concepção de natureza fenomenológica,

husserliana, diga-se de passagem, já que focaliza o eu transcendental e, assim, a

subjetividade; e existencial, na medida em que apresenta a existência humana como

um processo que se pauta nas possibilidades de um poder-ser que se constrói a cada

momento da experiência.

Nessa perspectiva, o entendimento de Rogers sobre o que constitui o self

poderia repousar numa compreensão filosófica que prioriza a experiência subjetiva;

contudo, ao mesmo tempo, poderia também parecer contemplar o estar-no-mundo do

indivíduo à medida em que coloca o campo fenomenal como parte dessa experiência.

Seria esta uma posição eminentemente fenomenológica e existencial? Talvez seja

importante esclarecer, uma vez mais, de qual perspectiva fenomenológica e

existencial se esteja falando. Como poderia ser compreendido o self caso ouvíssemos

47
a fenomenologia heideggeriana? Seriam as contribuições de Gendlin um caminho

possível para essa aproximação?

2.2-Sobre Gendlin e o Befindlichkeit

Gendlin parece ter enriquecido a perspectiva da Terapia Centrada no Cliente

ao tentar aproximá-la da visão de Heidegger. Para isso, ele procurou no conceito de

Befindlichkeit, principalmente, a ponte para um referencial filosófico à esta

abordagem. Befindlichkeit representa um dos mais importantes conceitos da

ontologia pensada por Heidegger, ao mesmo tempo em que se apresenta como um

dos mais incompreendidos.

Befindlichkeit, segundo Heidegger (1927), é um dos três parâmetros básicos

da existência humana, juntamente com a compreensão e a linguagem. Para Gendlin

(1978/79), refere-se `aquilo que é ordinariamente chamado estar em um estado de

espírito, estar num humor e também ao que é chamado sentimento (p.43).

Heidegger oferece um modo diferente de pensar essa experiência ordinária. Esse

conceito denota como nos sentimos nas situações Gendlin (1978/79, p. 45).

Usualmente, sentimento é pensado como alguma coisa interior, contrariamente ao

significado proposto por Heidegger, o qual se refere a alguma coisa tanto interna

quanto externa, antes que a divisão dentro-fora seja feita. Como afirma Gendlin

(ibidem), nós vivemos sempre em situações, no mundo, num contexto, vivendo com

outros, tentando conseguir algumas coisas e evitando outras. O humor ou estado de

espírito não é somente interno; mas antes, representa um estar-no-mundo. Como

afirma ele:

48
As situações não existem separadas de mim. A situação não é
puramente os atributos físicos, mas fatores relacionais humanos,
o que eu posso e não posso fazer, necessitar, esperar, adquirir,
usar, evitar e assim em diante. Todos os atributos dos fatos
como situações são em termos da vida de alguém, fazendo,
usando e evitando, alterando ou falhando em alterar. Mas isso
significa que não há fatos dados como terminados para nós, ou
ao nosso redor. Ao dizer como eu me sinto, isso é um processo
de viver que ultrapassa o que foi dado quando comecei a falar. E
para dizer a você como eu me sinto é, naturalmente, um
diferente ser-no-mundo, do que dizer para mim mesmo ou para
outra pessoa. Gendlin (1970b, p. 85)

Pode-se pensar o befindlichkeit como um conceito interacional, mais do que

psíquico. Entretanto, ele consiste em ambos, pois existe antes que tal distinção seja

feita. Interação também não diz desse termo, já que pressupõe a existência de duas

partes a serem integradas, o que não corresponde ao seu sentido. Para Heidegger

(1927), os seres humanos são seu estar-no-mundo-com-outros. Humanos são ser-aí e

ser-com.

Um outro parâmetro existencial é a compreensão. Significa que nem sempre

conhecemos o nosso estado de espírito, embora tenhamos uma certa compreensão

dele, do nosso viver no momento. Não significa uma compreensão cognitiva e sim

implícita, do nosso existir.

A linguagem é o outro parâmetro constituinte da existência. Sobre a fala,

Heidegger (1927) afirma que ela sempre está envolvida em qualquer sentimento ou

humor; na verdade, em qualquer experiência humana. É a articulação da

compreensão, o que não significa dizer que sempre haverá uma fala que diga o que

alguém vive, em palavras. Mas que há sempre falas e escutas para cada um e abertura

à fala do outro, pois isso faz parte do que somos e do que vivemos, de modo que a

fala já está envolvida no nosso viver, seja qual for o que podemos atualmente falar

49
ou não. Resumindo, nós nos sentimos vivendo em situações com outros, com uma

compreensão implícita do que estamos fazendo e com uma comunicação entre nós já

envolvida. Um sentimento é sempre tudo isso. Falar é a articulação da

compreensibilidade.

A partir dessa perspectiva do befindlichkeit, Gendlin (1973) reflete sobre uma

nova relação entre filosofia e psicologia, a qual implica a eliminação de conceitos

como fora-dentro, self, afetivo e cognitivo, entre outros. O importante reside nos

"modos de ser" e não em conceitos e propõe uma reestruturação do conceito de

sentimento, o qual deve ser compreendido como um sentido implícito e em mudança,

que ocorre através de passos ou degraus de explicação ou articulação. Aqui se

constata, uma vez mais, a importância da experienciação, já que esta significa nada

mais que um sentimento concretamente sentido e que pode ser levado adiante,

quando se faz uma referência direta a ele, como nos mostra Gendlin (1970), em sua

teoria. O sentimento conhece como falar e demanda somente as palavras certas,

sendo ele suficiente para trazer as palavras ao discurso da pessoa.

Gendlin sugere que se compreenda Heidegger experiencialmente, sem,

contudo, reduzir a ontologia à psicologia, já que as implicações disso são muito mais

amplas do que se imagina, envolvendo não só esta, mas também outras ciências. Ele

entende que ao falar em befindlichkeit, Heidegger fala da estrutura básica do ser-no-

mundo e também do mundo e de qualquer assunto-questão ou problema de qualquer

ciência a que o homem tem acesso. Esse befindlichkeit é, contudo, o mesmo

sentimento ou sensação estudado em psicologia. (1978/79, p.54) Compreender

Heidegger experiencialmente é compreender a relação inerente entre viver, sentir,

compreender e cognições de quaisquer espécies.

50
Para Heidegger (1927), o befindlichkeit também se relaciona com o método,

pois é a revelação da qual o método fenomenológico depende. Se a descoberta do

befindlichkeit não está lá como parte do método, então não haverá fenomenologia,

mas uma livre-flutuação. Para ele, o fenômeno, no sentido básico do método

fenomenológico, não é aquele que é imediatamente óbvio, mas aquele que se mostra

em resposta ao logos, à colocação ou formulação, enfim, à fala. Insiste em que a

estrutura ontológica do ser humano e outras questões só podem ser estudados em

relação ao befindlichkeit; só podem ser compreendidos fenomenologicamente e

nunca como uma tese flutuante: Somente como fenomenologia a ontologia é possível

( ibidem, p.35).

Assim, podemos entender o befindlichkeit, após a compreensão de Gendlin

(1978/79), a partir do processo de sentimento que se vive todo o tempo e ao qual se

pode referir a cada momento. Nesse sentido, o befindlichkeit é parte constituinte da

experienciação, já que revela o sentimento que se vive em cada momento da

existência concreta. Sobre o pensamento de Heidegger, de uma maneira geral,

tentaremos, a seguir, apresentar um panorama da sua filosofia, na intenção de

favorecer uma discussão entre algumas das suas idéias e aquelas discutidas até este

momento.

2.3. Sobre a filosofia de Heidegger

Martin Heidegger foi um filósofo que provocou muitas polêmicas no campo

da filosofia e também fora dela. Tendo sido discípulo de Husserl, opôs-se à sua

fenomenologia, ao elaborar uma ontologia em que a questão do ser e do sentido do

ser se constituíam na sua busca, pensamento apresentado na sua obra inacabada, Ser

e Tempo (1927).

51
A sua trajetória de vida foi marcada não só pela importância do seu

pensamento filosófico, mas também por fatos políticos que fazem desse homem,

ainda hoje, objeto de discussões, depositário de ódios e amores em função dos seus

envolvimentos com o regime alemão nacional-socialista, na época da segunda

guerra. Até a sua vida amorosa tem sido alvo de especulações11, tal o interesse

despertado pelo homem Martin Heidegger.

Consideramos importante ressaltar algumas questões contidas na sua obra,

muitas delas envolvendo a questão do método da fenomenologia e do seu objeto, as

quais se constituem nas principais diferenças filosóficas entre Heidegger e o seu

mestre e criador da fenomenologia, Edmund Husserl. Ao mesmo tempo,

discutiremos as idéias principais da ontologia heideggeriana, e que representam as

questões axiais do seu pensamento.

2.3.1 Do método fenomenológico segundo Heidegger

Heidegger foi discípulo de Husserl, em Freiburg, mas, paralelamente aos

estudos que empreendia com o mestre, desenvolveu seminários com alunos mais

adiantados, na intenção de discutir as questões filosóficas que o inquietavam.

Embora tenha se iniciado com Husserl, como tantos outros, rompeu com a sua

fenomenologia ao longo do tempo.

Heidegger teve que voltar à Aristóteles e à metafísica, para encontrar o ser.

Perguntava ele sobre a redução, responsável pela sua principal divergência com

11
Ver o livro Hannah e Heidegger, de Elzbieta Ettinger, Petrópolis, R.J., Zahar, 1996, no qual a autora
comenta a correspondência entre os dois filósofos, num relacionamento amoroso que durou cinquenta
anos, e em que o homem Heidegger é apresentado com uma imagem nem sempre muito positiva.

52
Husserl. Seria o voltar " à coisa mesma", a consciência e sua objetividade, ou é o ser

do ente em seu velamento e desvelamento? ( Heidegger, apud Steiner, p.40).

Heidegger não aceitava a radicalidade da redução, pois o aspecto principal da

sua filosofia consistia no mundo da vida, na facticidade do ser-aí; portanto, a

fenomenologia transcendental de Husserl pretendia eliminar esta facticidade, ao

assumir todo o mundo da vida no eu transcendental. Assim, o transcendentalismo

reduziria a compreensão do ser à dimensão da subjetividade o que, para ele, seria

limitar o ser-aí.

Entendo que, para Heidegger, a compreensão do ser, embora incompleta, por

se dar na cotidianidade do ser-no-mundo, ou seja, na sua facticidade, ainda assim

seria uma busca da verdade do ser, como bem lembra Steiner (ibidem), quando

afirma que,

A fenomenologia heideggeriana se tornaria uma meditação da


finitude. A idéia de verdade e não-verdade, de velamento e
desvelamento aponta para a incompletude de toda a
compreensão do ser e da verdade na medida em que se dão na
facticidade do ser-aí. (p.49).

Seria, então, através da analítica existencial que Heidegger pretendia abordar

a questão do sentido do ser, alcançando o fenômeno da temporalidade, em relação ao

que, Steiner vai adiante:

O ser do ser-aí é a existência. A explicitação da estrutura


ontológica da existência visa a compreensão da constituição da
existência. O conjunto das estruturas que constituem a existência
é a existencialidade. A analítica destas estruturas tem o caráter
da compreensão existencial. Estas estruturas têm o nome de
existenciais. Heidegger os distingue radicalmente das categorias;
estas são determinações do ente que não é ser-aí. (p.81).

53
O pensamento de Heidegger sobre o ser indica o caminho do que é velado, e a

partir do qual, segundo Stein (1983), Heidegger propõe a sua concepção de método,

na tentativa de superar o velamento da questão do ser:

A fenomenologia heideggeriana pretende ser um método que se


situa nos antípodas da subjetividade (...) Heidegger aplica o
método fenomenológico, fundado num modelo binário:
velamento-desvelamento. A aplicação do método
fenomenológico a estas duas frentes visa pensar o ser que, na
medida em que está velado, deve ser conduzido ao
desvelamento. (p.21)

Assim Stein apresenta a problemática heideggeriana:

Compreendido o ser como velamento e desvelamento, decidido


que o ser é "a coisa mesma", estabelecido que o ser desde a
antiguidade se dá como tempo, determinado que o método da
filosofia é o mostrar fenomenológico, está resumida toda a
problemática heideggeriana e o que a separa das experiências e
das intenções de Husserl. Tarefa fundamental da filosofia será,
portanto, para Heidegger, captar o ser como velamento e
desvelamento através de um método e no horizonte adequados.
O método será a fenomenologia esboçada em Ser e Tempo. O
horizonte será o tempo que desde a antiguidade se liga ao ser.
(p. 42).

Um aspecto inovador em Heidegger e que aumenta a distância entre ele,

Husserl e outros filósofos, diz respeito ao primado da tendência para o encobrimento

(Ser e Tempo, 1927). Ao invés de pensar como aqueles filósofos, de que a realidade

se apresenta aos nossos olhos, esperando ser por nós apreendida, ele acredita que o

homem e o essencial nas coisas tendem para o disfarce ou estão efetivamente

encobertos. Por isso, ele se volta para o como, buscando o modo de levar o objeto de

sua investigação à revelação. Steiner, (1983, p.103). E este é o ser que deve se

54
revelar no ente, resultado de uma busca constante de desvelamento do que está

velado, a partir de si mesmo. Esse processo recebe várias denominações ao longo do

pensamento do filósofo, passando de "ser dado", depois "encontro", "descoberta", "

revelação", vindo a dominar o termo "desvelamento", que, às vezes, surge como

"clareira".

O termo hermenêutica é assumido por Heidegger ao longo da sua obra,

embora sofra modificações principalmente em relação ao lugar que nela ocupa.

Entretanto, pode-se dizer que este termo é utilizado por ele no sentido da

compreensão, melhor dizendo, da ontologia da compreensão. Por isso sua

fenomenologia é uma ontologia hermenêutica Steiner (ibidem).

Embora ainda hoje a obra do filósofo seja identificada como uma ontologia

hermenêutica, o seu pensamento evoluiu ao longo dela, inclusive no que se refere ao

hermenêutico, ao deixar de lado os termos hermenêutica e hermenêutico. Diz

Heidegger (apud Stein, op.cit. p.91), a esse respeito: Isto não aconteceu, como

muitos pensam, para negar o significado da fenomenologia, mas para deixar o

caminho de meu pensamento numa região sem nome. E explica que utilizou esta

palavra para caracterizar o pensamento fenomenológico e no intuito de levar o ser do

ente a se manifestar como fenômeno.

Assim, o que prevalece e sustenta a vinculação do ser humano com a

diferença ontológica é desta maneira a linguagem. Ela determina a relação

hermenêutica. É a linguagem, portanto, que determina a vinculação hermenêutica do

homem com o acontecer do ser. E continua a afirmar que ...a linguagem é a casa do

ser, ser que acontece como fenômeno na linguagem.

55
2.3.2. Sobre a cotidianidade

A cotidianidade é considerada por Heidegger (1979), como uma forma de

existência inautêntica, que se constitui de três aspectos fundamentais: a facticidade, a

existencialidade e a ruína.

A facticidade significa que o homem é lançado ao mundo, sem que para isso

tenha feito qualquer escolha. Vale lembrar que para este filósofo, o mundo tem um

significado distinto daquele que o vincula somente ao mundo físico. Do modo como

ele a emprega, a palavra mundo diz do conjunto das condições geográficas,

históricas, sociais e econômicas em que a pessoa está inserida (Heidegger, 1979).

A existencialidade ou transcendência, diz respeito ao que torna o homem um

ser de possibilidades e projetos. Um ser que, ao atribuir significados às coisas do

mundo, dele se apropria de maneira singular. E é justamente a respeito desse

pressuposto que Stein (in Heidegger, 1979), nos brinda com uma interpretação do

pensamento de Heidegger que, a meu ver, é surpreendentemente pertinente às

reflexões teóricas que buscamos desenvolver neste trabalho. A existencialidade,

segundo a visão do filósofo, significa a existência interior e pessoal, aquilo que

projeta o homem no mundo: Trata-se de uma projeção no mundo, do mundo e com o

mundo, de tal forma que o eu e o mundo são totalmente inseparáveis (p.VIII). Trata-

se de uma frase curta, mas que, nas entrelinhas, perpassa a questão do self, de acordo

com Rogers, abordado neste estudo.

O terceiro aspecto contido na cotidianidade seria a ruína, que representa a

perda de si-mesmo e que vem a ocorrer em razão da impessoalidade da vida humana,

que mergulha num mundo massificado, o qual o pressiona em termos dos seus

56
valores e princípios, favorecendo, desse modo, uma forma de vida inautêntica.

Assim, o homem restringiria a sua vida ao que é público, afastando-se do seu mundo

privado, e alienando-se da sua existência, vivendo uma vida na impropriedade, o que

significa não se apropriar das coisas do mundo de acordo com o seu Ser, o que o faz

sentir-se como um ser-para-a-morte. Significa, acima de tudo, afastar-se do si-

mesmo, reflexo do seu Ser verdadeiro.

Para o filósofo, foco dessa discussão, o ser jamais poderá ser analisado

objetivamente, pois a sua determinação de ser-no-mundo impede que isto aconteça.

Para isso, a fenomenologia heideggeriana vigiará o âmbito do velamento e

desvelamento em que residem todas as essências, Steiner (1983, p. 48). Para o

filósofo, a essência do ser-aí é a existência, o que diz da irredutibildade do ser-aí.

2.3.3 Da angústia e das estruturas existenciárias

Para Heidegger, a angústia representa o único estado de ânimo que conduz o ser-

aí para uma compreensão de si-mesmo. Para Boss (1981), cada angústia humana tem

um de que, do qual ela tem medo. E continua:

(...) O do que de cada angústia é sempre um ataque lesivo à


possibilidade do estar-aí (dasein) humano. No fundo, cada
angústia teme a extinção deste, ou seja, a possibilidade de um
dia não estar mais aqui. O pelo que da angústia humana é por
isto o próprio estar-aí, na medida em que ela sempre se preocupa
e zela só pela duração deste. Por isso, as pessoas que mais
temem a morte são sempre as mesmas que mais têm medo da
vida, pois é sempre o viver da vida que desgasta e põe em perigo
o estar-aí. ( p. 26)

A angústia tem um papel "reparador", podemos pensar assim, nesse processo

inautêntico de viver. Esse sentimento levaria o homem a mergulhar em si mesmo e,

57
assim, ao autoconhecimento, o que pode significar a sua saída da vida alienada, na

medida em que o redime pela traição de si mesmo, favorecendo uma retomada de

outros caminhos pelo mundo. Nesse ponto se vislumbram duas alternativas: ou o

homem poderá retornar da angústia para o cotidiano que continua a afastá-lo de si

mesmo, ou poderá ser conduzido a uma superação desse vazio, para um caminho em

direção ao seu próprio SER, a uma existência mais reveladora do seu SER. Nesse

sentido, a angústia pode ser uma abertura para a autenticidade, constituindo-se essa

crise por que passa o indivíduo, numa chance de uma retomada dos seus projetos e

possibilidades, como bem o demonstra Procópio (1999), ao refletir sobre o

significado desse momento para o encontro do indivíduo consigo mesmo. Nesta

mesma direção segue o pensamento de Boss (1981, p. 36), acentuando o valor de se

enfrentar a angústia:

(...) Mas se alguém se mantém realmente aberto à essência total


e não disfarçada da angústia, é aí justamente que ela abre aos
seres humanos aquela dimensão de liberdade na qual, e só então,
se possibilita o desdobrar das experiências do amor e da
confiança. Pois a angústia, liberada da mesquinhez subjetivista,
do mesmo modo que o amor, leva o estar-aí humano não só à
possibilidade do maior e mais rico, mas também, imediatamente,
à possibilidade do totalmente diferente diante de tudo que, antes
de mais nada, é, e que como algo que é, tem, ainda assim, seus
limites restritivos. Em outras palavras, ela ainda abre para a
dimensão- bem diversa- do "Não-Estar" do "Nada", mas daquele
grande nada que, ao contrário do vazio da nulidade meramente
nihilista, abriga tudo dentro de si, e de tal forma que ele tanto
pode encobrir como também desvelar-nos e desvelar as coisas
do mundo.

Nesse retorno ao mundo, quando o homem se projeta em direção às suas

possibilidades, ele nunca está só, mas junto-com, pois ele é um ser-com,

transcendendo-se em si-mesmo e em relação ao mundo. Por constituir-se num ser de

possibilidades e que se projeta numa dimensão infinita de possibilidades é que o

58
homem vivencia uma permanente inquietação, por deparar-se sempre com a tensão

entre o que é e poderá vir a ser. Em razão do que, para Heidegger (1979, p. X), a

inquietação estrutura o ser do homem dentro da temporalidade, prendendo-o ao

passado, mas, ao mesmo tempo, lançando-o para o futuro, de forma que é ao

assumir o passado e se projetando no futuro que o homem marca a sua presença no

mundo, assumindo as suas escolhas e se apropriando da sua existência.

Sabendo-se que o ser se revela através e sob o ente, que volta ao ser-aí,

importa encontrar os modos como o ser-aí se mostra dissimulado na sua

cotidianidade, que para Steiner (ibidem, p. 103) assim se dá:

Heidegger descobre o ser-aí no movimento de fuga de si mesmo,


numa tentativa de não se assumir na sua totalidade, como
preocupação, que se articula como existência, facticidade e
decaída ou ser-adiante-de-si, já-ser-em e junto-dos-entes. O ser-
aí se vela para si mesmo, encobre suas possibilidades e assim
barra a possibilidade de uma revelação de ser. A atitude do
filósofo, para contornar a fuga do ser-aí de si mesmo, é partir da
análise da cotidianidade e descobrir nela o homem no
movimento de fuga. Somente, uma vez realizada a analítica do
ser-aí cotidiano, se descobre como o ser-aí pode assumir-se, pela
decisão enérgica, na sua verdade, para descobrir que sempre está
simultaneamente na não-verdade. Este interesse pela não-
verdade é o sinal da fuga de si mesmo.

Heidegger, em Ser e Tempo (1927), define o que para ele são os aspectos

axiais da sua filosofia. Um deles refere-se à pre-sença, que pode ser compreendida

como o modo de ser do ente, segundo as suas palavras: Como atitude do homem, as

ciências possuem o modo de ser desse ente (homem). Nós o designamos com o termo

pre-sença (p. 38). A pre-sença remete ao ser-no-mundo, à medida em que também é

parte da existência, como mostra o filósofo:

59
Chamamos existência ao próprio ser com o qual a pre-sença
pode se comportar dessa ou daquela maneira e com o qual ela
sempre se comporta de alguma maneira. (...) A questão da
existência sempre só poderá ser esclarecida pelo próprio existir.
A compreensão de si mesma que assim se perfaz, nós a
chamamos de compreensão existenciária. Entendemos a
existencialidade como a constituição ontológica de um ente que
existe. (p. 39)

Aqui já se percebe a valorização da facticidade no pensamento heideggeriano

e o lugar que a compreensão ocupa, esta que constitui, juntamente com a linguagem

e o befindlichkeit, humor ou disposição afetiva, as estruturas existenciárias do ser. A

compreensão, desse modo, seria o "como" em direção à descoberta do ser, como

afirma o filósofo: Assim, a compreensão do ser, própria da pre-sença, inclui, de

maneira igualmente originária, a compreensão de "mundo" e a compreensão do ser

dos entes que se tornam acessíveis dentro do mundo (p. 40). A compreensibilidade

seria possível pelo fato de o homem poder antever e projetar as suas possibilidades,

ao mesmo tempo em que o faz refletindo sobre o passado. Isso significa compreender

a si mesmo, além de acolher a interpretação, já que esta se dá através da apropriação

do que foi compreendido.

Tal pressuposto nos leva a conceber a compreensão na pesquisa não só como

uma compreensão que se limita à experiência imediata ou restrita à subjetividade da

dimensão psicológica. Implica também, acima de tudo, em se encarar tal experiência

como expressão, em termos ônticos, da estrutura de um ser e da sua revelação, da

qual tal experiência é portadora, nos permitindo, assim, penetrar no ser do ente.

Através da compreensão, que já faz parte do ser, por isso é pré-ontológica,

desvela-se o ser, naquilo mesmo em que ele se vela. Da mesma maneira, na

compreensão, o mundo no qual o ente se encontra inserido também se revela, já que

60
faz parte da existência e esta, se encontra no tempo, como lembra Heidegger

(ibidem): (...) o tempo como horizonte de toda compreensão e interpretação do ser

(p. 45). E continua: Persiste o fato de que, na acepção de ser e estar no tempo, o

tempo serve como critério para distinguir as regiões e modos de ser (p. 46).

Depreende-se disso que o tempo desempenha uma função ontológica fundamental no

pensamento desse filósofo.

A compreensão, como já foi apresentado antes, é fundamental no pensamento

fenomenológico de Heidegger. E, como tal, passa a constituir-se num sustentáculo à

pesquisa que apresentamos neste trabalho. Referenda não só o método do fazer a

pesquisa, como também, o que é mais importante para nós, legitima a inspiração

fenomenológica desse estudo, ao mesmo tempo em que passa a se constituir numa

base de sustentação filosófica para a teoria psicológica que o norteia. A propósito da

compreensão, Heidegger (ibidem, p. 200), diz que Compreender é o ser existencial

do próprio poder-ser da pre-sença de tal maneira que, em si mesmo, esse ser abre e

mostra a quantas anda seu próprio ser. E continua:

Como abertura, a compreensão sempre alcança toda a


constituição fundamental do ser-no-mundo. Como poder-ser, o
ser-em é sempre um poder-ser-no-mundo. Este não apenas se
abre como mundo, no sentido de possível significância, mas a
liberação de tudo que é intramundano libera esse ente para suas
possibilidades. (p. 200)

O próprio filósofo se pergunta o por quê da compreensão conduzir às

possibilidades, ao que logo responde: Porque, em si mesma, a compreensão possui a

estrutura existencial que chamamos de projeto. A compreensão projeta o ser da pre-

sença para a sua destinação de maneira tão originária como para a significância,

entendida como mundanidade de seu mundo (p.200).

61
2.3.4 Da morte

A morte é uma possibilidade com a qual o homem se depara ao longo da vida

e que perpassa toda a sua existência. Para Heidegger (1927, p. 28), a morte não se

encontra ao final de uma jornada de vida, como uma etapa prevista de um percurso

vivido, já que ela pode acontecer a qualquer momento. No sentido mais amplo, a

morte é um fenômeno da vida. Deve-se entender vida como um modo de ser ao qual

pertence um ser-no-mundo. Esta possibilidade atinge todos os homens, de forma

indistinta. A morte consiste numa possibilidade concreta da existência, inerente ao

SER do homem, ao seu-poder-ser, como afirma o filósofo:

O ser-para-a-morte é antecipação do poder-ser de um ente cujo


modo de ser é, em si mesmo, um antecipar. Ao desentranhar
numa antecipação esse poder-ser, a pre-sença se abre para si
mesma, no tocante à sua extrema possibilidade. Projetar-se para
seu poder-ser mais próprio significa, contudo: poder se
compreender no ser de um ente assim desentranhado: existir.
(...) Deve-se ainda atentar para o fato de que, primariamente,
compreender não diz agarrar um sentido, mas compreender-se
em suas possibilidades de ser, desentranhadas no projeto.

Sendo o ser-aí, o dasein, um ser de abertura e, assim, de possibilidades, a

morte também representa uma possibilidade. Aliás, é a possibilidade mais concreta

com que o homem pode contar, como afirma ele: A morte é uma possibilidade

ontológica que a própria pre-sença sempre tem de assumir. A morte afirma a

finitude da vida e da existência. E representa, além de tudo, a única certeza que se

tem na vida. Entretanto, essa certeza, reconhecida por todos, pode também significar

uma fuga do si-próprio, na medida em que a certeza se confirma a cada vez que se

sabe da morte de alguém, o que, de alguma maneira, nos assegura que estamos vivos.

62
A existência do ser-aí no cotidiano favorece ou mesmo leva o homem a

desenvolver um falatório sobre a certeza da morte, como lembra Heidegger (ibidem):

A public-idade da convivência cotidiana "conhece" a morte


como uma ocorrência que sempre vem ao encontro, ou seja,
como "casos de morte". Esse ou aquele, próximo ou distante,
"morre". Desconhecidos "morrem" dia a dia, hora a hora. "A
morte" vem ao encontro como um acontecimento conhecido,
que ocorre dentro do mundo. (...) O discurso pronunciado ou, no
mais das vezes, "difuso" sobre a morte diz o seguinte: algum
dia, por fim, também se morre mas, de imediato, não se é
atingido pela morte. (v. II, p. 35).

Por isso Heidegger concebe o ser como um ser-para-a-morte, pois desde que

nasce o homem já está apto para morrer. A morte, para ele, não significa o final de

uma etapa de vida, quando se espera que ela aconteça. Na verdade, a morte que

atravessa a existência é uma presença que pontua as escolhas da vida. A morte

sinaliza para a vida, na medida em que aponta para a autenticidade ou não do ser-aí.

Aceitando a finitude, através do ser-para-a-morte, o homem é capaz de re-significar a

sua pre-sença no mundo, fazendo da sua existência uma revelação do seu si-mesmo

verdadeiro e autêntico.

2.4. Heidegger e Rogers: um encontro possível?

Como bem o disse Gendlin anteriormente, não se trata aqui de reduzir uma

filosofia, nesse caso a ontologia de Heidegger, a uma teoria psicológica; e nem o

contrário. Trata-se, ao invés disso, da tentativa de viabilizar uma interlocução entre o

pensamento de Heidegger e a noção de self na teoria de Rogers, visando a construção

de um horizonte teórico que possa servir como fundamento para a compreensão das

tentativas de suicídio, objeto deste trabalho.

63
Muitos aspectos envolvidos em ambas as teorias nos obrigam a colocá-las a

uma grande distância, dificultando, assim, uma aproximação. Contudo, se

destacarmos alguns aspectos do pensamento rogeriano, particularmente aqueles

pertinentes ao self e reformulados após as contribuições de Gendlin, as diferenças

não serão eliminadas, mas tornar-se-ão passíveis de aproximação, ao assumirem uma

nova configuração.

Algumas questões podem ser apontadas desde já. Comecemos por pontuar

alguns aspectos que se mostram, num primeiro momento, incompatíveis no corpo

teórico desses dois autores. Posteriormente, e ao longo deste texto, discutiremos as

possibilidades de uma leitura heideggeriana de algumas noções teóricas do

pensamento rogeriano.

Se nos detivermos no self e no ser-aí, podemos verificar que, enquanto o self

se baseia somente no que é consciente, tal como mostram as primeiras definições de

Rogers sobre esse constructo, o ser-aí inclui todas as dimensões da existência, não se

limitando ao que é consciente ou inconsciente. O pensamento rogeriano, no que

respeita ao self, prioriza o mundo interno, o vivido, ou seja, a subjetividade.

Para Heidegger, o transcendentalismo de Husserl limitaria o ser-aí. Aqui

temos uma característica da ontologia de Heidegger que mostra a sua clara oposição

ao subjetivismo encontrado no eu transcendental de Husserl. Tal posição pode ser

entendida como igualmente contrária àquela também vista em Rogers, na sua

concepção de self: a ênfase na subjetividade, como já foi dito antes.

A questão do velamento e desvelamento do ser, pressuposto da filosofia de

Heidegger, nos leva a pensar que, em razão disso, não é possivel pensar o ser

64
humano, nesse caso o ente, como prioritariamente sujeito às influências do self, que

não diz tudo dele. Também em função disso não se pensa o ente como uma

subjetividade que se destaca no mundo e na sua existência a partir dela. Ao invés

disso, com Heidegger, torna-se possível pensar o ente como revelação do ser, que,

por sua constituição existencial, está inserido num mundo que já existe, mergulhado

na sua facticidade, o que decorre da sua característica ontológica de ser-aí (Dasein),

um ser de abertura a tudo que já está e também um ser de relação, um ser-com.

Tal pensamento comprova que a ontologia de Heidegger, bem como a

analítica existencial, transcende qualquer posição teórica que tente reduzir, explicar

ou compreender o ente através de self, pulsão, ou características que , de uma certa

forma, fragmenta-o, eliminando, assim, a sua estrutura de dasein. Isso já foi

reconhecido por vários autores, entre eles Biswanger e Boss (1979), Boss (1981) e,

inclusive, pelo próprio Heidegger (1927), ao tratar da Análise Existencial. A

despeito disso tudo, esta questão ainda será alvo de discussão neste trabalho, ao

longo da sua evolução.

Da mesma forma, se tomarmos como referência o campo fenomenal, tal como

proposto por Rogers, num primeiro momento podemos perceber, como no constructo

self, uma limitação em relação ao ser-aí, estrutura existencial presente na ontologia

de Heidegger.

No entanto, a despeito dessa evidência, é preciso reconhecer a importância

do campo fenomenal como uma idéia que pode aproximar o self do ser-aí. Seguindo

esse pensamento, trazemos uma citação de Rogers (1994, p. 43). que ilustra muito

bem este ponto de vista. Diz ele que à medida que ocorrem na percepção do self e na

percepção da realidade, as mudanças ocorrem também no comportamento. Esta fala

65
nos faz pensar num estado constante de abertura no qual o campo fenomenal se

constitui e representa. Por ser um campo fenomenal e amparado no processo de

percepção do mundo que surge a cada momento da experiência, e, sendo assim,

mutável, é oportuno pensar que esta idéia contempla e se sustenta num modo de

pensar o homem que inclui a sua abertura ao mundo. Esta abertura se dá justamente à

medida em que a experiência de viver ocorre; e esta ocorre todo o tempo. Por que

não pensar, então, que tal condição de abertura e por que não dizer, possibilidade de

mudança, representam a estrutura do ser-aí e suas possibilidades de ser?

O campo perceptual é importante na determinação da conduta e inclui o

próprio indivíduo e tudo que o cerca, tal como as situações vividas, as forças

fisiológicas e também culturais. Todos esses fatores influenciarão a conduta do

indivíduo, que será empreendida em função da percepção que ele tem desses

aspectos. Podemos propor que esta é uma maneira de se entender a facticidade do

ser, ou seja, o homem vivendo nas situações do mundo, correspondendo ao modo de

ser-com, estrutura do ser-aí heideggeriano.

A conduta, de acordo com o pensamento de Rogers, seria determinada pela

percepção que se tem de si mesmo, de um estar-no-mundo em determinado

momento. O self, então, se situa na abertura para o mundo que constitui o ser-aí. O

self, tal como Rogers o concebe, se constitui, ele próprio, num poder-ser do homem,

já que representa uma configuração perceptual que se apóia no fenômeno da

percepção e, em sendo mutável, impossível de ser enquadrado em concepções rígidas

e estáticas de características do ser e potencialmente passível de assumir uma

configuração diferente em cada situação vivida, o que significa dizer, a partir da

experiência imediata.

66
No que se refere à autenticidade, considero que esta, juntamente com a

perspectiva do self, não exclui o ser-aí proposto por Heidegger. Isso porque o ser-aí,

pelo fato de constituir-se numa abertura ao mundo, se revela através de um ser-si-

mesmo que, em algum momento, no cotidiano da existência e enquanto pre-sença,

assume escolhas, apropriando-se do seu estar-no-mundo. Podemos dizer que nesse

momento existencial, o ser-no-mundo se revela tomando como fundamento a

experiência de ser-com do ente. E isso implica em perceber-se de um certo modo em

relação ao mundo, num estado de abertura ao que se apresenta na existência e cujo

processo de viver ocorre na experiência de se ser a cada momento. Assim, sugerimos

que a filosofia de Heidegger mostraria a direção para onde o ser se revela. Rogers,

com a sua psicologia, nos diz como o ser pode se revelar, psicologicamente, na

concretude da experiência.

Citamos uma frase de Rogers (1974, p. 129), que ilustra muito bem o que

acabamos de colocar. Referindo-se ao processo de mudança que ocorre na terapia,

assim ele se refere ao self, traduzido aqui como eu: O eu, neste momento, é (grifo do

autor) esse sentimento. (...) O eu é, subjetivamente, num momento existencial. Não é

qualquer coisa que se percepcione. Podemos pensar esse sentimento de ser como

uma expressão do befindlichkeit, tão bem traduzido anteriormente por Gendlin,

como um sentimento. O self, nesse sentido, é a experiência de ser, de existir; como

diz Rogers (1959, p. 223), o self é a consciência de ser, de funcionar, e não uma

idéia ou noção estritamente consciente, como a sua definição nos leva a entender. É

este caráter existencial contido no self que busco explicitar .

67
Em relação ao desenvolvimento do self, um aspecto merecedor de atenção e

importante nesta discussão é a sua relação com o outro. Segundo Rogers (1959)12, o

self se desenvolve a partir da diferenciação da experiência:

Esta representação na consciência de ser e funcionar elabora-se


através da interação com o meio, particularmente o meio
formado pelos outros significativos, num conceito de self, um
objeto perceptual no seu campo experiencial. (p. 223)

Podemos apreender, nesta formulação do desenvolvimento do self, a presença

do mundo na experiência de ser. O self não representa nem uma entidade que já faz

parte da bagagem biológica e genética do homem e nem tampouco surge do nada.

Ele somente se constituirá a partir da relação do indivíduo com o outro, quando este

homem vê cumprir-se a sua vocação originária, que é ser-com, exercitando a sua

abertura ao mundo da experiência, própria do ser-aí.

Podemos entender o self, segundo as idéias de Rogers, imbuído de uma

natureza fenomenológica, no sentido heideggeriano. Vale ressaltar, inclusive, o

caráter de poder-ser que esta noção comporta, ao incluir a perspectiva de passado,

presente e futuro, na vivência atual, que se abre para um projeto que se situa sempre

numa possibilidade de ser, e que não se fecha ou se encerra aí. Pois à medida em que

as experiências surgem e eu me volto para elas, sou capaz de seguir esse fluxo e me

situar diante do mundo, assumindo

escolhas e me projetando na existência que essa experiência revela e nela me

envolve. Tal constatação nos permite enxergar, nesse ponto, o ser-aí, no que respeita

12
This representation in awareness of being and functioning, becomes elaborated, through
interaction with the environment, particularly the environment composed of significant others, into a
concept of self, a perceptual object in his experiential field . Rogers, C. (1959, p. 223).

68
ao ser de possibilidades, ao poder-ser que caracteriza o ser de Heidegger e que pode

ser identificado, igualmente, no si-mesmo tratado por Rogers.

Podemos dizer que o que Rogers denomina de incongruência e que passamos

a denominar de inautenticidade, após Gendlin, se aproxima do que Heidegger chama

de impropriedade. Quando o ser deixa de ser o si-mesmo, em razão da cotidianidade,

ou seja, responde ao seu estar-com de forma distante do si-mesmo, de forma

inautêntica, estaria existindo na impropriedade. Mas então, cabe-nos questionar sobre

o ser e a sua característica de velamento-desvelamento, de nunca permanecer de uma

forma ou outra, mas, ao invés disso, nesse processo de ser e não ser. Seria possível

ao ser não viver na impropriedade? E como fazer para que tal forma de existir não o

afaste totalmente de uma existência que, sem pretender a completude do ser, o

impede de viver as suas alternâncias? O que faria o ser se apropriar do seu si mesmo

e sair da impropriedade? Sendo o ser um ser-aí, o que significa que ele é lançado ao

mundo com o que já está aí, encontrando-se nessa abertura, como preservar o si-

mesmo sem perder o ser-aí ? Como existir em relação, no ser-com, sem que se perca

na impropriedade? A resposta, para alguns (Procópio, 1999; Almeida, 1999), está no

cuidado. Como afirma Almeida:

Através do cuidar, encontramos a constância do si mesmo, isto


é, a posssibilidade de ele permanecer na resolução de ser si-
mesmo próprio. O cuidado mostra-me que posso sair da
impropriedade, de como se é e entrar na propriedade, ou seja,
tomar posse do meu poder-ser, empunhá-lo, algo sempre jogado
adiante e que nunca é aquilo já configurado, porque o poder-ser
está sempre adiante de mim: a impropriedade está na realidade e
a propriedade na liberdade. (p.7).

Retomando o pensamento desse autor e levando-o adiante, quando diz que a

propriedade está na liberdade, em razão do si mesmo abrir-se à sua experiência e às

69
suas possibilidades, ao processo de existir que nele ocorre todo o tempo, e o qual lhe

aponta aquilo que nele lhe é singular e próprio. Esta é uma noção de liberdade que

tem como fundamento a liberdade experiencial. Isto é, baseia-se na capacidade de

abertura, própria do ser-aí, que permite ouvir a experiência, ser a própria

experiência, como já o dissera Rogers (1975): A liberdade de que se trata aqui é de

uma outra ordem. Relaciona-se essencialmente com a experiência. (...) Consiste no

fato de que o indivíduo se sente livre para reconhecer e elaborar suas experiências e

sentimentos pessoais como ele o entende. (p.46)

Enquanto a noção de self, tal como proposta por Rogers, sustenta-se somente

no que é consciente, o que Gendlin sugere é que a autenticidade seria um processo

além do que chega à consciência. Assim, o cuidado de que falamos antes consistiria,

além de tudo, na abertura à experiência, o que significa nem limitar e nem excluir a

simbolização da experiência preconizada por Rogers, mas ampliá-la. Estar-no-

mundo na propriedade, significa existir ao mesmo tempo num estado de abertura

para o mundo, em relação, no ser-com, o que significa estar aberto à experienciação,

que é a própria existência, num fluido e permanente processo de viver. Significa

assumir o risco de escolher a cada momento o que se quer, o que se pode e não pode

ser. Nesse processo, a capacidade de se contatar com a experiência sentida nesse

mundo de relação, bem como a sua conscientização, é fundamental para que o ser se

conduza de forma responsável e autêntica em direção à realização dos seus projetos,

sem que se perca do seu si mesmo e caia na impropriedade.

Outro aspecto passível de aproximação entre as idéias de Rogers e Heidegger

refere-se à cotidianidade, constituinte da existencialidade, condição em que é

enfatizado o papel que o outro, entendido como o impessoal, influencia o si-mesmo

70
do ser-aí. Isto quer dizer que é a partir da aproximação do outro indeterminado e da

sua apropriação indevida, na convivência do ser-com-no-mundo, que o homem se

perde de si-mesmo. Assim, mais uma vez, instaura-se uma proximidade entre as

idéias desses homens, pois Rogers destaca claramente a importância que o outro

desempenha na construção de um modo de ser inautêntico desse homem, de modo

que tal perspectiva nos faz reconhecer, em ambos, a relevância do mundo cotidiano

na não-verdade do ser ou da pessoa. Relevância essa expressa pelo outro, que

também é parte do si-mesmo, já que o ser-com é parte do ser-aí, na ruína ou de-

cadência, ou mesmo na existência incongruente ou inautêntica, como dizem Rogers e

Gendlin.

A diferença mais visível a ser destacada nas idéias desses homens nas

questões que vimos discutindo até agora, refere-se aos lugares de onde eles falam. De

um lado, contempla-se o homem de um horizonte filosófico, ôntico; de outro, o

homem é visto sob a luz das suas vivências individuais e subjetivas, num processo

experiencial e sob a ótica de uma teoria psicológica.

Embora Rogers seja interpretado por alguns como positivista na sua

formulação teórica, é possível entender o self como uma dimensão através da qual o

ser se revela; ou seja, é possível fazer uma leitura fenomenológia e existencial do

self, de acordo com o pensamento de Heidegger. Claro está que um dos aspectos que

afasta essas teorias se situa em relação ao alcance da filosofia de Heidegger,

evidenciada na sua ontologia. Exemplo disso é a sua concepção de dasein: ser-aí,

mergulhado num mundo e inseparável dele.

Enquanto isso, embora Rogers pretenda dar um caráter total à existência

concreta do homem através do self e o campo fenomenal, ainda assim a sua

71
concepção se mantém restrita, prioritariamente, às experiências subjetivas,

conscientes, e que falam do mundo vivencial e psicológico. Se pensarmos esse

aspecto em relação ao ser-aí, que tem no aí a abertura ao mundo, o que o remete

para além de um mundo que privilegia o subjetivo e experiencial, não restam dúvidas

de que noção de self é superada por esse conceito; além disso, por tratar-se de uma

ontologia que visa alcançar o sentido do ser e a sua verdade, esta concepção é

certamente muito mais ampla do que o self, que tem na teoria de personalidade de

Rogers, a sua morada. Apesar dessas diferenças, entendemos o self como

identificado com o que é denominado de si mesmo por Heidegger. Sendo assim, o

self poderia ser pensado como uma revelação do ser-aí; seria a dimensão concreta e

vivencial do desvelamento do ser, que se mostra no mundo concreto, em

determinado momento da existência, através de uma percepção ou modo de estar-no-

mundo.

O caráter fenomenológico e existencial do self pode ser facilmente

identificado nas seguintes palavras de Rogers, ao considerar o processo psicoterápico

na Terapia Centrada no Cliente:

O ponto final do processo é o momento em que o paciente


descobre que pode ser (grifo do autor) a sua experiência, com
toda a sua variedade e contradição superficial; que ele se pode
definir a partir da sua própria experiência (grifo meu), em vez
de tentar impor-lhe uma definição do seu eu, negando-se a tomar
consciência dos elementos que não entram nessa definição.
Rogers, (1974, p. 81)

Vemos o self, então, muito mais como um meio de se exercitar a abertura do

ser-aí, na medida em que ao abrir-se à experiência do modo como ela se apresenta

para o indivíduo no mundo, ele também estará abrindo-se e disponibilizando-se para

72
mergulhar nas suas posssibilidades de ser. Como destacamos na citação acima, a

experiência permite ao indivíduo ser quem ele é, a se apropriar da sua experiência e,

ao fazê-lo, também estará se apropriando do seu ser-no-mundo. Assim, podemos

dizer que o self, aqui entendido como o fluxo de sentimentos que compõe a

experienciação, poderia ser entendido como uma revelação do ser, o qual, pela sua

natureza, se revela e se vela, seguindo o mesmo fluxo da experienciação.

Pensamos que, contactar e se apropriar da experiência nos faz retomar o si

mesmo; é o cuidado, que nos leva a nos desvincularmos, aos poucos, do impessoal,

situado nos outros do cotidiano. Significa um retorno ao si mesmo, ao ser verdadeiro

e, assim, existir na propriedade, como fala Heidegger.

Por mais que se aponte a tradição positivista de Rogers e, conseqüentemente,

a sua teorização do self, herdeiro dessa tradição, difícil será não reconhecer, apesar

disso tudo, uma construção teórica que carrega, no seu âmago, uma filosofia que

valoriza a experiência de se estar-no-mundo de maneira concreta e vívida.

Heidegger (1927, v.II, p.52) diz que o ser si-mesmo em sentido próprio

determina-se como uma modificação existenciária do impessoal. Ao pensar sobre

isso, vemo-lo sinalizar para um questionamento que vimos fazendo ao longo deste

trabalho, em relação ao si-mesmo; mais precisamente, a essa expressão tal como

utilizada por Rogers e por esse filósofo.

Temos nos perguntado sobre o que haveria de comum entre essas expressões.

O que, concretamente, Heidegger quer dizer ao falar em si-mesmo? Quais as

dimensões concretas que constituem esse pressuposto? Ou seja, como é possível

abordar o si-mesmo na cotidianidade para que não se torne uma expressão

73
essencialmente abstrata? Pensamos que é isso que a Análise Existencial , através de

Biswanger e Boss (1979), se propõem a fazer, quando transferem a ontologia

heideggeriana para o contexto da psicologia clínica. E aqui esboçamos uma tentativa

de promover um pensar sobre tal pressuposto numa direção que possa delimitar as

fronteiras entre o que é pensado por Rogers e pelo filósofo.

Inclinamo-nos a pensar e a interpretar o si-mesmo como sendo um voltar ao

ser próprio, verdadeiro, de cada um. É saber que distante da impessoalidade do

cotidiano, algo nos diz do que em nós é verdadeiro e do qual podemos nos apropriar

e lançar-nos ao mundo, com autenticidade. Em que consiste tal revelação? Propomos

que Rogers pode favorecer ou pelo menos lançar uma luz visando este

entendimento. Vale lembrar que a singularidade que tratamos aqui não significa a

ausência do mundo na experiência. Partimos do princípio de que esse homem do qual

falamos está inserido num mundo e dele faz parte em todas as situações.

O reconhecimento de que algo me é próprio, pode surgir na experiência, no

sentir, no afeto, na sensação, ou seja, na experienciação. Alguma coisa que poderá

nesse momento primeiro, traduzir-se apenas num estado afetivo, de humor, numa

disposição, o que se situaria naquilo que é denominado de befindlichkeit, pela

ontologia heideggeriana e que constitui, igualmente, a experienciação. Esse estado ou

experiência também pode ser reconhecido conscientemente, como algo que diz de

mim mesmo, vivência que, inclusive, poderá ainda ser articulada ao mundo através

da linguagem, que servirá de veículo para que se manifeste o estar-no-mundo-

daquela-maneira.

Certamente essa visão também comporta a inclusão do self, tal como

proposto por Rogers, como uma expressão do si-mesmo, desta vez restrito à

74
dimensão consciente da experiência. No entanto, se trouxermos Gendlin (1970) para

esta discussão, com a sua formulação de experienciação a qual, sem negar a noção de

self rogeriana, empresta-lhe um caráter mais amplo, incluindo dimensões que

alcançam o mundo vivido e concreto da existência, e que não se atém à dimensão

consciente da experiência, como o faz Rogers, certamente fica mais próxima a

discussão que vimos empreendendo até aqui. O que nos leva a sugerir, então, que o

self poderia ser a tradução psicológica do que é tratado por Heidegger como o si-

mesmo, expressão do ser-aí.

A experienciação, segundo Gendlin (1970), envolve um processo vivencial

corporalmente sentido, sem que se manifeste, necessariamente, no nível consciente.

Constitui-se, de acordo com o seu pensamento, num processo essencialmente

existencial de viver. É assim que ele concebe a autenticidade, de acordo com a sua

teoria de mudança de personalidade e da experienciação. Para Gendlin, ser autêntico

significa seguir o fluxo da experiência imediata, que ocorre o tempo inteiro,

simplesmente porque é esse processo que nos permite dizer que existimos. É um

fluxo constante e permanente de experiência, um processo que é corporalmente

sentido, e que se torna uma referência pela qual nos posicionamos diante do mundo,

efetuando escolhas, nos afirmando na existência e nos apropriando dela.

Esse conceito nos ajuda a entender que mesmo se sabendo da impossibilidade

de distinguir no processo de viver, a fronteira entre o que é vivido, chamado de

mundo interno e o que pode ser nomeado de mundo externo, sinaliza para a vivência

de estar-se existindo concretamente, através da experiência, que pode ser reveladora

de uma dimensão do si-mesmo. Pensar dessa forma permite-nos levar adiante

75
algumas reflexões sobre a prática psicoterápica, tendo como ponto de partida as

questões filosóficas ressaltadas aqui.

Assim, passar de uma forma de-cadente e impessoal de viver, para assumir o

próprio ser, exige que se efetue escolhas a partir do si-mesmo. E o que isso significa

senão ter uma nova visão do mundo e das alternativas que a vida oferece,

vislumbrados a partir do que se sente, se pensa, se quer ou se percebe como

compatível com o que sou? Não se constituiría isso na obtenção de uma percepção

mais profunda e sentida como pertencente a si-mesmo, a qual norteia e influencia

uma determinada maneira de estar-no-mundo? Isso é o self. À medida em que se

assume uma escolha, do mesmo modo se estaria assumindo uma experiência

subjetiva que se impõe na sua verdade e a qual se constrói não de forma isolada,

alheia ao mundo circundante, mas no ser-no-mundo.

A idéia de Rogers ao propor a teoria de personalidade, é esta. Infelizmente,

na tentativa de formular uma teoria com status científico, o que para ele parece

significar a ciência experimental, e ao seguir aquela parte da sua formação de

tradição metafisica13, faz do homem um ser fragmentado no seu estar-no-mundo,

dividido em experiências conscientes e inconscientes. Em razão do que, tanto Rogers

quanto outros autores e suas propostas de entendimento do homem não encontram

acolhida em pensamentos filosóficos como aqueles afirmados por Heidegger, pelo

fato de conceberem este homem a partir de uma visão psicológica que acaba

reduzindo a sua existência a um self, ego, consciência ou algo semelhante.

13
exemplo disso é a sua tentativa de quantificar o grau de maturidade obtido na terapia, através de um
instrumento de inspiração positivista: ROGERS, C. (1954), Changes in the maturity of behavior as
related to therapy, Chicago, USA, Chicago Press, 1954.

76
Heidegger faz uma crítica ao personalismo da teoria de Husserl, que serve,

com muita propriedade, à teoria de personalidade de Rogers, alvo do nosso interesse

neste trabalho, principalmente na questão do self. Diz ele que mesmo a interpretação

fenomenológica da personalidade, em princípio mais radical e lúcida, não alcança a

dimensão da questão do ser da pre-sença (p.83).

A pre-sença é um ente que, na compreensão de seu ser, com ele


se relaciona, e comporta. Com isso, indica-se o conceito formal
de existência. A pre-sença existe. Ademais, a pre-sença é o ente
que sempre eu mesmo sou. Ser sempre minha pertence à
existência da pre-sença como condição que possibilita
propriedade e impropriedade. A pre-sença existe sempre num
destes modos, mesmo numa indiferença para com ele. (1927, p.
90 ).

Esta formulação nos permite compreender que a pre-sença, sendo ela mesma,

sempre se dá de acordo com o se apropriar ou não dela mesma (grifo meu), refletida

numa forma de ser que se apropria, propriedade; ou que não se apropria,

impropriedade, dela mesma. Então, quando aproximamos a forma de ser preconizada

por Rogers como incongruente, ou como diz Gendlin, inautêntica, podemos

interpretá-las como uma expressão da pre-sença, desta vez acontecendo na

impropriedade. Ou seja, os conceitos psicológicos propostos por aqueles psicólogos

podem ser interpretados ontologicamente, como constituindo-se numa expressão do

ser, seja na propriedade ou na impropriedade.

A partir das discussões e problematizações realizadas até este momento,

inclinamo-nos a pensar na possibilidade de uma aproximação entre Heidegger e

Rogers, partindo de algumas das suas idéias, as quais acabamos de expor.

77
Deve-se ressaltar o fato de que falamos de teorias de distintos campos de

saber e, desta forma, tratando de objetos de estudo diferentes. E ainda que, mesmo

reconhecendo-se a natureza positivista e fragmentada com a qual Rogers aborda o

homem, é possível identificar, no seu pensamento, uma filosofia de inspiração

fenomenológica e existencial. Esse reconhecimento nos permite tentar uma

aproximação entre o seu pensar e o de Heidegger, principalmente a partir das

mudanças na sua teoria, graças ao seu discípulo Gendlin.

É com a ajuda da filosofia moderna aliada às proposições rogerianas sobre o

desenvolvimento do self, que pretendemos compreender as tentativas de suicídio

experienciadas pelos jovens participantes deste estudo. Contudo, uma questão ainda

se coloca neste momento, e que concerne à escolha do jovem adolescente como

protagonista deste estudo. Sabe-se que tanto o suicídio como a tentativa de suicídio

ocorrem em todas as faixas etárias, embora ultimamente seja possível constatar-se

aumento de tentativas de suicídio entre: pacientes com esquizofrenia (depressão

esquizofrênica) e entre jovens. Entretanto, cabe-nos propor algumas indagações

sobre a justificativa do nosso interesse e o que nos direcionou para esses sujeitos.

Além disso, como entendemos essa fase denominada "adolescência" e como é por

nós considerada? Em razão de tais considerações, achamos pertinente dedicar o

próximo capítulo ao tema ao qual denominamos de "compreensão da adolescência".

78
CAPÍTULO III

COMPREENSÃO DA ADOLESCÊNCIA

3.1. Definindo a adolescência

A adolescência é reconhecida como a fase de transição entre a infância e a

idade adulta14. Diversos autores ( Muuss, 1973; Pfromm Neto, 1976; Hollingshead,

1960; Hall, 1916), entre muitos outros, possuem a sua própria definição dessa fase,

comumente amparadas tanto em critérios cronológicos e fisiológicos quanto

psicológicos e/ou sócio-culturais, que envolvem este momento da vida do jovem.

Também é verdade que esse momento representa uma descontinuidade no seu

desenvolvimento, em razão de todas as mudanças que provocam na vida do

indivíduo, e que se constitui em uma característica intrínseca desse mesmo processo

de desenvolvimento. Assim Muuss (1973), define a adolescência:

14
A palavra adolescência é derivada do verbo latino "adolescere", significando "crescer" até à
maturidade. Muuss (1973, p. 16).
- De acordo com o Dicionário de Psicologia de PIÉRON, H., p. 9, adolescência é o período do
desenvolvimento humano, correspondente à fase de maturação sexual e que assim conduz ao estado adulto.

79
Sociologicamente, adolescência é o período de transição da
dependência infantil para a auto-suficiência adulta.
Psicologicamente, adolescência é uma "situação marginal" na
qual novos ajustamentos, que distinguem o comportamento da
criança do comportamento adulto em uma determinada
sociedade, têm que ser feitos. Cronologicamente, é o tempo que
se estende de aproximadamente doze ou treze anos até a casa
dos vinte e um, vinte e dois, com grandes variações individuais e
culturais. (p. 16)

No entanto, para Pfromm Neto (1976, p. 1), (..) embora não seja possível

fixar limites universais e exatos para sua duração, os doze e os vinte anos,

aproximadamente, são em geral admitidos como as idades iniciais e finais desta

etapa.

Para Aberastury (1981),

...adolescência (latim, adolescência, ad: a, para a + olescere:


forma incoativa de olere, crescer), significa a condição ou o
processo de crescimento. O termo se aplica especificamente ao
período da vida compreendido entre a puberdade e o
desenvolvimento completo do corpo, cujos limites se fixam,
geralmente, entre os 13 e os 23 anos no homem, podendo
estender-se até os 27 anos. Embora se costume incluir ambos os
sexos no período compreendido entre os 13 e 21 anos, os fatos
indicam que nas adolescentes se estende dos 12 aos 21 anos, e
nos rapazes dos 14 aos 25 anos em termos gerais. (p. 89)

A adolescência constitui-se numa crise no desenvolvimento da criança,

decorrente primeiramente das mudanças corporais, com a puberdade, que

paralelamente ou posteriormente é acompanhada pelas mudanças psicológicas, ao

mesmo tempo em que sofre as influências sociais e culturais do contexto em que

vive, o que vai provocar alterações na vida do jovem. Essas alterações nos níveis

mencionados irão gerar conflitos no adolescente e, dependendo da forma como

80
forem vivenciados e absorvidos, poderão favorecer o desenvolvimento de uma

identidade adulta com mais ou menos competências existenciais para se assumir esse

novo lugar no mundo, pois é nesse momento em que se delineia, mais efetivamente,

a identidade do adulto que surge. Podemos dizer que aqui se inaugura uma

subjetividade adulta; como diz Ausubel15, apud Pfromm Netto ( 1976, p. 3), é um

período de extensa reorganização da personalidade, que resulta de mudanças no

status bio-social entre a infância e a idade adulta.

Embora a adolescência seja considerada como um processo de

desenvolvimento que ocorre a partir de mudanças físicas e psicológicas próprias

desta fase, não é possível ignorar e deixar de reconhecer que a identidade do

adolescente já vem se constituindo desde a infância; portanto, este período reflete

não só o período anterior, bem como as novas mudanças maturacionais, numa

reorganização dessas estruturas, como reconhece Psathas (1963). A constituição da

adultez certamente não representa uma identidade totalmente original, uma vez que

esta nova forma de ser-no-mundo traz consigo as influências das marcas das

experiências infantis. Ao chegar à fase adolescente, o jovem sofrerá as influências de

todas as alterações físicas e psicológicas, bem como da cultura na qual ele está

inserido, o que, vale ressaltar, ocorre desde o momento em que o homem é lançado

ao mundo.

3.1.1 Uma definição de identidade

As discussões sobre a adolescência sempre envolvem a questão da identidade,

uma vez que a transição do período de desenvolvimento infantil para o adulto,

reconhecida como sendo a fase da adolescência, implica uma diferente organização

15
D.P. Ausubel, Theory and problems of adolescent development. New York, Grune & Stratton, 1954.

81
da identidade deste novo ser que se anuncia. Porém, discutir o conceito de identidade

não se constitui em fácil tarefa, uma vez reconhecida a imensa variedade dos seus

usos nos diversos contextos das ciências humanas. E nem é este o nosso objetivo

neste trabalho. Para nós é suficiente esclarecermos e fundamentarmos o nosso

entendimento acerca da noção de identidade à qual nos referimos aqui.

Para isso, nos apoiamos nos estudos de Erickson (1976; 1987), que é

reconhecido como aquele que cunhou o termo identidade, nos seus estudos sobre a

infância e adolescência, e que é definido por ele como um sentimento subjetivo de

uma envigorante uniformidade e continuidade (1987, p. 17), embora isso não

signifique uma cristalização desse sentimento, pois, como enfatiza o mesmo autor, a

identidade nunca é "estabelecida" como uma "realização" na forma de uma

armadura da personalidade ou de qualquer coisa estática e imutável (p.22). Esse

mesmo autor reconhece a dificuldade de se estabelecer algumas dimensões desse

conceito, já que, para ele, estamos tratando de um processo ' localizado' no âmago

do indivíduo e, entretanto, também no núcleo central da sua cultura coletiva; um

processo que estabelece, de fato, a identidade dessas duas identidades ( ibidem,

p.21).

Nas suas palavras identificam-se, claramente, dois aspectos que compõem o

sentimento de identidade, que passa a ser detalhado pelo autor e que revela a

importância da presença do outro na constituição desse sentimento, reafirmando,

assim, a impossibilidade de se dissociar a experiência subjetiva e a sua constituição,

do mundo. Este pensamento é retomado ao longo deste estudo, razão porque o

ressaltamos desde já. Erickson (1987), afirma que,

82
Se fizermos agora uma pausa para anunciar alguns requisitos
mínimos que nos permitam sondar a complexidade da
identidade, teremos de começar por dizer algo deste gênero ( e
digamo-lo sem pressa): em termos psicológicos, a formação da
identidade emprega um processo que ocorre em todos os níveis
do funcionamento mental, pelo qual o indivíduo se julga a si
próprio à luz daquilo que percebe ser a maneira como os outros
o julgam, em comparação com eles próprios e com uma
tipologia que é significativa para eles; enquanto que ele julga a
maneira como eles o julgam, à luz do modo como se percebe a
si próprio em comparação com os demais e com os tipos que se
tornaram importantes para ele. Este processo é, felizmente ( e
necessariamente ), em sua maior parte, inconsciente- exceto
quando as condições internas e as circunstâncias externas se
combinam para agravar uma dolorosa ou eufórica "consciência
de identidade".
Além disso, o processo descrito está sempre mudando e
evoluindo; na melhor das hipóteses, é um processo de crescente
diferenciação e torna-se ainda mais abrangente à medida que o
indivíduo vai ganhando cada vez maior consciência de um
círculo, em constante ampliação, de outros que são
significativos para ele- desde a pessoa materna até a "
humanidade". O processo "inicia-se" algures no primeiro
"encontro" verdadeiro da mãe e do bebê como duas pessoas que
podem tocar-se e reconhecer-se mutuamente; e só " termina"
quando se dissipa o poder de afirmação mútua do homem.
Entretanto, como foi sublinhado, o processo tem sua crise
normativa na adolescência e é determinado, de múltiplas
maneiras, pelo que ocorreu antes, e determina grande parte do
que ocorrerá depois. ( p. 21)

A adolescência contém a pergunta: "Quem sou eu" ? Acrescentamos a esta, a

indagação que fazemos ao longo de todo este trabalho: "Como é a experiência de não

querer viver do adolescente?" Não temos dúvidas de que uma relaciona-se à outra, já

que esta fase contém todas as ambivalências possíveis de serem vividas pelo

adolescente, principalmente pela ambivalência dos afetos. É uma fase de constituição

de um ser diferente do ser-criança, o que pode causar grandes sofrimentos e

angústias àquele que a vivencia. Como afirma Cassorla (1998),

É nesta fase também que o jovem entra em contato com uma


realidade fundamental, que não pode mais negar ou odiar, como

83
fizera enquanto criança. Essa realidade é que ele é um indivíduo
separado de seus pais, e que deverá encontrar-se consigo
mesmo, com todas as dificuldades, turbulências e satisfações
que essa busca determina. Encontrar-se consigo mesmo significa
que agora terá que descobrir quem ele é, e a partir dessa
constatação descobrir como usará esse seu "ser" para enriquecê-
lo com experiências e viver sua própria vida, permitindo-se ser
alguém que sente que a vida vale a pena ser vivida. (p. 14)

A reorganização da identidade do jovem sofre a influência direta da cultura

onde está inserido; ou seja, a ideologia do mundo circundante se apresenta como

aquela que preencherá os vazios ideológicos que esse novo ser busca preencher,

cabendo-lhe um papel de destaque no sentido de poder constituir-se numa valorosa

ou nefasta influência aos seus jovens. Isso por saber-se que nesse momento de vida,

o adolescente busca identificações, ideologias, junto às figuras por ele mitificadas, os

heróis, seus pares e, principalmente, através da cultura, cujos valores, assim espera o

jovem, sejam distintos daqueles absorvidos pela sua identidade infantil e, dessa

forma, possam legitimá-lo como um ser apropriado da sua nova condição de ser-no-

mundo como adulto. A esse respeito, Erickson (1987, p. 130), reconhece que,

E, com efeito, é o potencial ideológico de uma sociedade que


fala mais claramente ao adolescente que está tão ansioso por ser
afirmado pelos seus pares, confirmado pelos professores e
inspirado por "modos de vida" que valham a pena ser vividos.
Por outro lado, se um jovem pressentir que o meio tenta privá-lo
radicalmente de todas as formas de expressão que lhe
permitiram desenvolver e integrar o passo seguinte, ele poderá
resistir com o vigor selvático que se encontra nos animais que
são forçados, subitamente, a defender a própria vida. Pois, de
fato, na selva social da existência humana, não existe sentimento
vivencial sem um sentimento de identidade.

Da mesma forma que se fala na busca de identidade do jovem, é preciso,

igualmente, ressaltar aquilo a que este último autor se refere como confusão de

identidade, resultado da alienação que também é vivenciada pelo adolescente e que

84
faz parte da construção desse novo lugar no mundo por ele buscado. A dificuldade

de se inaugurar uma nova identidade perfaz todo o caminho percorrido pelo jovem.

Retornamos a Erickson (ibidem, p. 132), que interpreta com muita clareza esse

momento:

Em geral, é a incapacidade para decidir uma identidade


ocupacional o que mais perturba os jovens. Para se manterem
juntos, eles superidentificam-se temporariamente com os heróis
de facções e de multidões, ao ponto de uma perda aparentemente
completa da individualidade. Entretanto, nesta fase, nem mesmo
o "apaixonar-se" constitui inteiramente- ou sequer
primordialmente - uma questão sexual. Em considerável medida,
o amor adolescente é uma tentativa para se chegar a uma
definição da identidade própria mediante a projeção de uma
imagem difusa da própria pessoa numa outra, vendo-a assim
refletida e gradualmente aclarada. É por isso que boa parte do
amor jovem é conversação. Por outro lado, o esclarecimento
também pode ser procurado por meios destrutivos. Os jovens
poderão tornar-se extraordinariamente dedicados a um clã,
intolerantes e cruéis na sua exclusão de outros que são
"diferentes", na cor da pele ou formação cultural, nos gostos e
talentos, e, freqüentemente, em aspectos mesquinhos de
vestuário e gestos, selecionados como sinais de "ser do grupo"
ou "não ser do grupo". É importante compreender, em princípio
(o que não significa que se justifiquem todas as suas
manifestações), que tal intolerância pode ser, por algum tempo,
uma defesa necessária contra um sentimento de perda de
identidade. Isso é inevitável num período da vida em que o
corpo muda radicalmente suas proporções, em que a puberdade
genital inunda o corpo e a imaginação com toda a espécie de
impulsos, em que a intimidade com o outro sexo se aproxima e,
ocasionalmente, é imposta à pessoa jovem e em que, enfim, o
futuro imediato a coloca diante de um número excessivo de
possibilidades e opções conflitantes. Os adolescentes não só se
ajudam uns aos outros, temporariamente, no decorrer desse
conturbado período, formando turmas e estereotipando-se a si
próprios, aos seus ideais e aos seus inimigos, mas também
testam, insistentemente, as capacidades mútuas para lealdades
constantes, no meio de inevitáveis conflitos de valores.

Todos nós vivenciamos essa fase e por isso sabemos que é um momento de

vida permeado por vivências dolorosas e também felizes; por buscas, incertezas e

85
angústias, e que levam o adolescente a mergulhar num mar de instabilidades, que

beiram o limite entre o normal e o patológico, podendo constituir-se, assim, no lugar

favorável ao não querer-viver, ou seja, ao suicídio ou à tentativa de suicídio. Tal

“comoção”, como diz Aberastury (1981), é o que caracteriza aquilo a que Maurício

Knobel (1981) denomina de “Síndrome normal da adolescência“. É a etapa dos

desequilíbrios extremos e instabilidades pelos quais passa o adolescente. É uma fase

necessária para o jovem, considerando-se que é nesse processo que ele vai

estabelecendo a sua identidade de adulto, principal finalidade da adolescência,

quando se perdem partes da sua personalidade infantil, através dos lutos vividos

nesta fase, como propõe Aberastury (1981).

3.1.2 Breve retrospectiva acerca da Psicologia da Adolescência

Embora seja possível identificar atualmente um grande interesse pelo estudo

da adolescência, é somente no início deste século que a preocupação científica com a

adolescência passou a existir, a partir dos estudos de G. Stanley Hall, considerado o

pai da "Psicologia da Adolescência", segundo Muuss (1973). Para Pfromm Neto

(1975), tal como a psicologia, o estudo da adolescência possui um passado longo,

mas uma breve história, enquanto estudo científico, que tem início neste século. O

interesse pelo jovem sempre esteve presente nas cerimônias de iniciação das

civilizações primitivas, nas especulações filosóficas e textos literários produzidos ao

longo da história da humanidade.

Hall16 apud Muuss (1973), baseou-se na literatura alemã do final do século

XVII, ao incluir os trabalhos de Schiller e Goethe e descreveu a adolescência como

16
G. Stanley Hall. Adolescence, (2 vol.), New York, Appleton, 1916.

86
um período de "tempestade e tensão". Este psicólogo fez uma analogia entre os

temas desse grupo de escritores e as características da adolescência: idealismo,

revolução contra o arcaico, manifestação de sentimentos pessoais, paixão e

sofrimento.

No entanto, estudos posteriores, realizados em sociedades primitivas por

estudiosos da antropologia, entre os quais (Benedict, 1934), (Mead, 1928; 1930)

entre outros, mostram que a adolescência não é necessariamente uma fase de

conflitos e tensões, e evidenciam a relevância do aspecto cultural no processo da

adolescência.

Vários autores continuam a ver na adolescência uma crise, embora pareçam

menos extremados do que Stanley Hall, como foi visto antes. Debesse (1958; 1960) e

Anna Freud (1958), também consideram esse período como de perturbação; esta

última, inclusive, afirma que tal perturbação constitui-se, ela mesma, na normalidade

da adolescência. Tal opinião, por sua vez, vai ao encontro do pensamento de

Aberastury (1980), ao identificar nesta fase uma "comoção" e Knobel (1981), ao

referir-se à "síndrome normal da adolescência".

3.2. Adolescência, cultura e violência

Segundo o pensamento de Arminda Aberastury (1980; 1981), são

identificados no processo de desenvolvimento da adolescência três fases ou

momentos vivenciados pelo jovem e que se relacionam aos seus lutos. O primeiro,

diz respeito ao luto pelo corpo infantil, em razão das alterações fisiológicas e

corporais características desta fase; o segundo, refere-se ao luto pela perda da

identidade e dos papéis infantis, levando o jovem a assumir-se independentemente

87
diante do mundo; e o terceiro, é o luto pela perda dos pais da infância, o que é

expresso pela ambivalência, tão presente nesses momentos, de busca de dependência

e independência dos pais, numa tentativa de mantê-los como antes. Esta situação

também é vivida com muita dificuldade pelos pais, que, ao verem os filhos

crescerem, percebem, em si mesmos, o seu próprio envelhecimento e o quão

prescindíveis já se tornaram na vida dos seus filhos.

Todos esses aspectos irão configurar um quadro em que o jovem vive

momentos de extrema instabilidade de humor, conduta, atitudes ambivalentes de

dependência e independência, em busca de valores e referências que lhe propiciem a

construção de uma identidade adulta. É nesse momento que o adolescente torna-se

um receptáculo, devido à sua situação de vulnerabilidade, das influências da

sociedade, principalmente da família, primeira reprodutora dos padrões e valores

sociais. A Síndrome normal da adolescência, como afirma Knobel (1992, p.28), é o

produto da própria situação evolutiva e surge da interação do indivíduo com o

meio”. E continua:

o adolescente isolado não existe, como não existe ser algum


desligado do mundo, nem mesmo para adoecer. A patologia é
sempre expressão do conflito do indivíduo com a sua realidade,
seja através da inter-relação de suas estruturas psíquicas ou do
manejo das mesmas frente ao mundo exterior.

Temos, aqui, uma perspectiva que reforça a abordagem psicossocial que os

principais suicidologistas, desde Durkheim (1992) já colocavam, ao afirmarem que o

suicídio constitui-se num fenômeno social, transcendendo, dessa forma, a dimensão

estritamente individual. Tal perspectiva conduz a maioria dos estudiosos das

condutas autodestrutivas, como a tentativa de suicídio, à convicção de que o estudo

88
dos aspectos relacionados a tais condutas não pode prescindir de uma visão do

indivíduo inserido no contexto social. Como diz Maris (1971) , não se pode negar a

synergia; se preferirmos utilizar outras terminologias com significados semelhantes,

podemos falar em Psicologia da Gestalt, Teoria de Campo de Lewin ou até de Física

Quântica e Holismo, para nos referirmos às redes de relações que são muito bem

expressas no princípio de que “o todo é mais do que a soma das partes”. Esse

princípio respalda a afirmação de que o sistema social é também uma importante

variável a se considerar quando se busca compreender o que leva as pessoas a

cometerem um ato autodestrutivo, o qual funda-se, sempre, numa ação de extrema

violência que alguém comete contra si mesmo .

A necessidade de se perceber a totalidade na qual o jovem se insere nesse

mundo também nos remete à filosofia, quando se almeja contemplar o homem

através de uma visão do ser do homem. Nessa mesma direção, portanto, encontram-

se as reflexões de Heidegger na sua ontologia, ao conceber o ser como constituído

de uma vocação originária para estar-com o outro num mundo e existir numa

abertura para um vir-a-ser constante na sua existência.

Sabendo-se que a adolescência se constitui num momento de crise, assim o

jovem se torna mais susceptível aos reflexos de uma realidade frustrante. Para

Aberastury (1981), o adolescente detém uma vulnerabilidade especial para assumir

as projeções da sociedade, seja ela macro ou micro (como é a família). Dessa forma,

o adolescente pode representar um objeto propício às projeções, conflitos e aspectos

doentios do meio em que vive. Esse pensamento também é compartilhado por

Figueiredo (1998), ao questionar se não seria o adolescente um "pára-raios" das

89
impropriedades17 da nossa sociedade, uma vez que este ser possui uma sensibilidade

e vulnerabilidade para se constituir num depositário das patologias sociais, como já

afirmaram, além da última autora citada, Kalina e Kovadlof (1984) e Cassorla

(1998).

Nessa fase de desenvolvimento, ao mudar o seu corpo de criança para o de

um adulto, o jovem também modifica o seu estar-no-mundo. Muda, principalmente, a

sua identidade. Necessita, nessa etapa, adotar uma ideologia, valores e normas de

conduta que possibilitem uma nova forma de estar-no-mundo como adulto. Porém

nem sempre essa é uma tarefa fácil, considerando-se o mundo em que vivemos

nesses tempos de final de século e globalização, o que torna oportuna a indagação: e

se o mundo se encontra em transição, com a sociedade confusa, incoerente em

relação às suas ideologias, valores morais e ética, como essa realidade irá influenciar

a constituição da identidade nesse jovem ao qual nos referimos? E o que dizer dos

pais, quando eles próprios, como parece ser a situação da maioria atualmente,

experimentam a insegurança, incerteza e confusão diante da mudança dos valores da

nossa sociedade globalizada e sem saberem como conduzir a educação dos filhos

porque nem eles mesmos estão sabendo orientar-se em relação ao seu próprio rumo

de vida ? Qual a influência que esse panorama exerce sobre os nossos jovens?

Kalina e Kovadloff , (1984.p.26) enfatizam o papel do social e da cultura e

afirmam que,

a sociedade propõe ao indivíduo uma ordem alienada:


pede-lhe que mude para se adaptar, que se adapte para
obedecer, que obedeça para que nada se altere senão em
função dos interesses daqueles que detêm o poder político
e econômico. Quando descobre a injustiça, deve aceitá-la;
17
O autor denomina "impropriedade constitutiva", um modo de funcionamento psíquico marcado por
uma condição de violência tão alastrada quanto invisível. Figueiredo, ( 1988, p. 55).

90
quando apreende o valor das perguntas, adverte,
simultaneamente, a necessidade de calar. Suas
contradições não são toleradas porque não há tempo nem
recursos efetivos para lhe dar o apoio de que necessita.
Sua solidão lhe oferece duas saídas definidas: encontrar
um paliativo artificial ou renunciar à vida. Como se vê, a
opção é drástica. Pede-se-lhe que escolha uma das duas
formas de auto-sacrifício: ou o suicídio coletivo,
socialmente legitimado (alienação, vícios, submissão
ideológica), ou o suicídio pessoal que, entre outras formas,
pode assumir perfeitamente a de qualquer dos
extremismos políticos aos quais estamos tão acostumados
em nossa época.

A formação da identidade do adolescente é resultante da forma como o jovem

vivencia os conflitos característicos dessa fase, tais como a perda do corpo infantil e

o luto dessa perda, assim como o luto pela perda dos pais da infância, da

bissexualidade, como acredita Aberastury (1980), aliados à sua história passada.

Nesse período é crucial a maneira como os pais do adolescente lidam com essa crise,

que, por sua vez, os remete à sua própria adolescência.

Outro aspecto relevante é a cultura, como já foi ressaltado, assim como o

contexto social que envolve o jovem e a sua família. A relevância do papel da

cultura nesse processo de formação da identidade do adolescente é ressaltada nas

idéias de Erickson (1987), Levisky (1998), Figueiredo(1998), Outeiral (1998) e

outros. Nesse sentido, podemos dizer que, além da cultura propriamente dita, existe

uma cultura do adolescente, que diz respeito aos valores, formas de condutas,

atitudes e símbolos que são próprios do jovem. Tais aspectos irão determinar a

maneira como este jovem vai se constituir como identidade social.

A cultura do adolescente, à qual nos referimos antes, muitas vezes é

intolerante com este, impaciente e preconceituosa; outras vezes, não. Existem

91
culturas que reconhecem esse período de passagem para a idade adulta, favorecendo

a sua transição de forma positiva, quando formalmente criam rituais de passagem.

Outras vezes, como acontece na sociedade brasileira atual, percebe-se uma cultura

em que o adolescente é visto como protagonista de episódios de violência com os

quais nos deparamos no cotidiano. A ênfase da violência recai, em muito, sobre os

jovens, tão em moda nos noticiários da mídia.

Como acredita Cassorla (1998), é preciso reconhecer uma relação estreita

entre violência e adolescência, constituindo-se a tentativa de suicídio como uma das

suas mais violentas formas de expressão, pensamento tão bem manifestado em suas

palavras:

A violência se manifesta na sociedade de várias formas, e ela


poderia ser considerada a antítese do amor. A falta de condições
básicas de sobrevivência é a violência básica; aqui incluímos
desde a fome e a miséria, a falta de oportunidades e a
coisificação do ser humano, visto como objeto de uso e abuso,
desumanizado. Seguem-se os mecanismos sofisticados que
impedem que a pessoa pense, manipulada por idéias perversas,
por vezes travestidos de ideais de consumo, "religiosos" ou
ideológicos. E, no meio disso tudo, nos defrontamos com a
violência mais concreta que envolve maus-tratos, acidentes,
tortura e morte, incluídas as condutas autodestrutivas. (p. 16)

Levisky (1998) pensa que os adolescentes de hoje vivem os mesmos mitos

presentes nas culturas primitivas, cujas características são a coragem, desafios e

descobertas dos seus potenciais físicos e psíquicos. Assim, o grafiteiro que sobe

vários andares de um prédio para deixar a sua marca, pode ser uma expressão dessa

coragem e necessidade de afirmação, assim como o uso de drogas e até a morte

voluntária podem significar uma forma de dizer: eu existo!

92
Podemos dizer que, se reconhecermos que a cultura na qual o indivíduo está

inserido é extremamente importante para o seu desenvolvimento, o mesmo se aplica

ao jovem, por constituir-se ele, assim como os outros entes, num ser que existe no

mundo e a partir dele. O fato de se enfatizar o tema "adolescente" neste trabalho visa

ressaltar, além do reconhecimento da cultura como fornecedora de elementos de

identidade do indivíduo, que ao se falar em adolescente considera-se que, em razão

dessa fase representar um período importante do desenvolvimento humano, marcado

por características bem definidas, a cultura na formação da identidade do jovem

assume um lugar dos mais relevantes, não devendo, por isso, ser ignorado, quando se

pretende conhecer a experiência desses jovens.

No âmbito da Psiquiatria e da Psicologia, o suicídio e as tentativas de suicídio

de adolescentes têm sido objeto de estudo principalmente nas últimas décadas, o que

não deixa de ser um período recente, considerando-se que esta questão caminha

paralela à evolução do homem. A esse respeito, Chabrol (1990), reclama da pouca

atenção dispensada a essas questões e argumenta que isso pode ser explicado em

razão da psicopatologia do adolescente ser encarada como "previsível" (grifo do

autor) e normal nessa fase de desenvolvimento. Tal argumento é enfatizado por Anna

Freud (1958), que reconhece a normalidade das condutas inconseqüentes e

imprevisíveis na fase adolescente. Consideramos pertinente a opinião do citado autor

e ainda acrescentamos que as sinalizações emitidas pelo adolescente, tais como o

isolamento, a depressão, a angústia, entre outras, muitas vezes são banalizadas e

subestimadas e o que se vê posteriormente são condutas autodestrutivas, como as

tentativas de suicídio.

93
Aberastury (1980), chama a atenção para o aspecto da inserção social do

adolescente no mundo adulto. É nesse momento que o adolescente busca novos

valores éticos, intelectuais e afetivos nos novos planos de vida que passa a

estabelecer, o que sem dúvida não é vivido com poucos conflitos. Ao mesmo tempo

em que o adolescente busca a liberdade, independência e afirmação, ele também

sofre o conflito em relação à perda do corpo infantil, dos pais da infância e todos os

lutos que essas perdas representam. Pensamos que pode ser nesse momento de vida

do adolescente que se dá o "vácuo", o vazio existencial, conseqüência da

impossibilidade de ultrapassar a dificuldade vivenciada, pela incapacidade de

estabelecer projetos, metas e ideais de vida.

O suicídio e as tentativas de suicídio também têm sido investigados sob a

ótica da Psicologia Existencial, já que noções como morte, consciência, liberdade,

projeto de vida , entre outros, fazem parte da condição humana, interesse principal

tanto da doutrina filosófica do Existencialismo quanto da própria Psicologia

Existencial. Angerami (1992), afirma que apesar dessa temática ser bastante

"vulnerável e delicada", os estudos sobre o suicídio têm avançado, apesar de

reconhecer que noções existenciais como tédio e solidão somente num passado

recente ganharam a devida importância na análise do suicídio. Para ele é importante,

igualmente, no que concorda com Kalina e Kovadloff (1984), que a compreensão do

suicida passe por uma inserção dele na sociedade. E segue adiante colocando que do

mesmo modo que existe uma correlação entre o suicida e a sua família, essa

correlação também existe entre este e a sociedade em que vive e morre.

Para Angerami (1992, p.50), existe uma relação significativa entre o suicídio

e a solidão, o tédio existencial e a falta de sentido na vida. E afirma que o suicida em

94
seu gesto pode estar manifestando total falta de adaptação às próprias condições

sociais e um profundo inconformismo diante da condição humana.

Tillich (1976), referindo-se à questão da ansiedade, a qual pode ser associada

ao desejo de morrer, relaciona esta ao "não-ser" em oposição ao "ser". Para Sartre

(1978), um dos mais conhecidos existencialistas contemporâneos, o exercício da

liberdade faz parte da condição humana e propõe que a existência precede a

essência, o que significa dizer que o homem se constrói a cada momento. É agindo,

existindo, que ele se faz. Considera que,

o homem é, antes de mais nada, um projeto que se vive


subjetivamente, em vez de ser um creme, qualquer coisa podre
ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projeto;
nada há no céu inteligível, o homem será antes de mais nada o
que tiver projetado ser. Não o que ele quiser ser. (p.6).

E continua : um homem nada mais é do que uma série de empreendimentos,

que ele é a soma, a organização, o conjunto das relações que constituem estes

empreendimentos (ibidem, p.14). Heidegger (1927), por sua vez, também destaca a

singularidade da existência humana, ao dizer que o ser é diferente de uma pedra, já

que esta, diferentemente do homem, é incapaz de escolher, pensar e agir.

Não há como separar a constituição da subjetividade desse jovem da cultura

ou, melhor dizendo, do mundo no qual ele vive, nos seus mais diversos contextos:

social, cultural, físico, biológico, etc. A dimensão subjetiva do ser humano não é um

lugar isolado, separado do mundo que o cerca. O "ser-com", como a expressão já

evoca, é um ser de convivência, de relacionamentos, que se constitui enquanto

subjetividade através do outro, do seu olhar, da sua palavra, dos vínculos afetivos

estabelecidos com esse outro. O "ser-aí" provoca o estado de abertura desse jovem

95
para o mundo; por isso ele se torna, principalmente nessa fase de mudança, um

receptáculo às influências sociais, como bem o colocam Kalina e Kovladof (1984). O

adolescente torna-se um campo fértil, onde muitos tipos de sementes podem ser

plantadas, uma vez que, além da vulnerabilidade natural que o caracteriza nessa

etapa de desenvolvimento, ele é um ser que, originariamente, se coloca

existencialmente num estado de abertura para o mundo, o "ser-aí", de acordo com a

ontologia de Heidegger (1927).

A nova forma de estar-no-mundo que o jovem constrói nessa fase, envolve

uma auto-imagem, um self, que é uma parte da experiência vivida por ele a cada

momento. É o reconhecimento do que ele apreende e que surge na sua experiência,

como representando o que ele é naquele momento. Significa, ampliando a noção de

Rogers (1975), o seu-estar-no-mundo em cada momento da sua existência, que surge

através da sua experienciação, a qual envolve o mundo circundante mais amplo que

está aí, incluindo o passado, presente e perspectiva de futuro, numa dimensão de

temporalidade que é constitutiva do ser.

Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer que vivemos num mundo

onde se observa a perda de identidade das culturas, como, por exemplo, os índios

Kaiowás, população onde o índice de suicídio é altíssimo (Meihy, 1991); a

perseguição de valores vinculados ao sucesso a-qualquer-custo, a competição

incentivada, sem falar na institucionalização da impunidade e da violência, que aos

poucos passam a ser legitimadas pela nossa sociedade18, além das desigualdades

sociais com as quais convivemos cotidianamente; e então, para sobrevivermos a essa

18
Quem não se recorda dos jovens que incendiaram um índio em Brasilia e que praticamente já foram
absolvidos pela justiça ?

96
realidade, nos embrutecemos um pouco mais a cada dia. Podemos dizer que vivemos

todos numa sociedade suicida, onde as pessoas se matam silenciosamente, em

decorrência da falta de condições dignas e humanas de vida. É suficiente nos

lembrarmos dos milhões de desempregados e das inúmeras crianças que morrem de

desnutrição antes do primeiro ano de vida, para não falar nos milhares que não têm

oportunidade de se alfabetizar ou que morrem à mingua nas portas dos hospitais por

falta de uma política social que respeite e garanta aquele que é um direito sagrado e

insubstituível de qualquer cidadão: o direito à vida.

A adolescência se caracteriza por um comportamento crítico e rebelde dos

jovens em relação aos valores sociais vigentes. É natural que se espere atitudes de

revolta contra o modo de vida da família e da sociedade, reclamando por novos

costumes e formas de vida, ou seja, ao que já está constituído como normas sociais e

de condutas. No entanto, pensamos que o comportamento do jovem de hoje sofreu

modificações, como é de se esperar em cada fase da história. O momento histórico

que atravessamos nos leva a tecer algumas considerações a partir das características

da sociedade atual.

O que se observa nos nossos adolescentes de hoje, idéias que já vimos

desenvolvendo antes, (Dutra, 1998), é um comportamento quase que totalmente

alienado das críticas sociais, ao se submeterem, agora, não mais à autoridade da

família, mas também esta, tal qual o jovem, se conduz através dos caminhos que a

mídia e os valores da sociedade globalizada lhes aponta. Vemos os adolescentes,

como a maioria dos adultos, fecharem os olhos, a boca e os ouvidos às questões

políticas e sociais; conseqüentemente, à realidade que lhes cerca. A sua capacidade

de rebeldia e contestação se encontra esmagada pelo poder dos meios de

97
comunicação. O jovem de hoje, diferentemente daquele de vinte, trinta anos atrás, já

não carrega nenhuma bandeira política e ideológica como, por exemplo, a do

Comunismo, a de Paz e Amor, Liberdade sexual, que caracterizaram os jovens dos

anos sessenta. Porque até essa característica de rebeldia em favor dos seus ideais

arrefeceu, e a única forma do jovem expressar a sua insatisfação é extremamente

mórbida e destrutiva, recorrendo às drogas, ao sexo irresponsável em tempos de

AIDS e cometendo o suicídio deliberado e consciente, além daqueles chamados de

indiretos ou inconscientes, como são evidenciados através de determinadas formas de

vida autodestrutivas e dos gestos suicidas. Este é o caso dos milhares de jovens

drogados, alienados, ou que levam uma vida autodestrutiva (basta ver o alto número

de acidentes de trânsito, os “pegas” ou “rachas”, a violência mortal nas escolas, o

uso de armas e as lutas entre as gangues), sem falar no número de suicídios exitosos

e nas tentativas de morte voluntária que têm crescido nos países do primeiro mundo e

que se repetem no Rio Grande do Norte e em outros estados do Brasil. Podemos

dizer que vivemos, todos, numa sociedade mórbida e suicida, a qual induz e

favorece os jovens a não aceitarem o sistema de vida e projetos que lhes são

oferecidos e à qual ele responde de uma forma radical, que é mostrando que não vale

a pena viver.

Todo esse panorama irá favorecer um dano à subjetividade do adolescente, o

que é reconhecido por Levisky (1998), ao afirmar que as dificuldades existentes no

estabelecimento dos contornos geográficos entre os diferentes níveis de

subjetividade (intra, inter e transpessoal), geram elevadas doses de angústia, apatia,

negação e desesperanças, terrenos propícios para as drogas e violência (p.27).

98
Nesse momento da vida o adolescente vê-se buscando, em razão da fase de

desenvolvimento que vivencia, referenciais, valores e uma ideologia que muitas

vezes ele não encontra em nossa sociedade, a qual, ao estabelecer os padrões sociais,

cria uma escala de valores e propõe estilos de vida aos quais ele deve adequar-se.

Esse jovem vê a sua auto-estima vincular-se e submeter-se às expectativas de

realização dessa sociedade. Adota valores, conceitos e maneiras de ser que não

refletem a sua experiência genuína, o seu verdadeiro ser, buscando, unicamente,

corresponder às expectativas que o outro (família, sociedade) lhe impõem. Como diz

Levisky (1998), o sentimento de impotência se exacerba e ampliam-se as frustrações

pelas distâncias que se estabelecem entre ideal do ego insuflado pela cultura

narcisista e as possibilidades de realização egóica (p. 29).

Assim, esse jovem tenderá a orientar a sua vida muito mais em função de um

si-mesmo idealizado, que pode ser traduzido como um ser absorvido pela

cotidianidade, vivendo na decadência, como pensa Heidegger (1927). Tal

generalização de comportamento contribui para a construção de uma sociedade

massificada e inautêntica, na medida em que as pessoas perdem o contato com as

suas experiências mais genuínas, com o seu ser verdadeiro e passam a se conduzir

em função e em busca de uma imagem virtual, ideal, perdendo, cada vez mais, a

coragem de ser, como disse Tillich (1976) e vivendo na impropriedade, como diz

Heidegger. O jovem passa a vivenciar as suas experiências de uma forma inautêntica,

já que as mesmas não se adequam ao seu auto-conceito, como bem o coloca Rogers

(1974).

A deficiência nesse processo de experienciação vai fazer com que as

experiências mais autênticas não sejam vivenciadas. Tal modo inautêntico de viver

99
acarretará escolhas existenciais inadequadas, porque incompatíveis com o seu ser

verdadeiro, levando a pessoa a uma existência marcada pelo fracasso, pela baixa

auto-estima, irrealização e infelicidade, gerando uma total incapacidade de amar e ser

amado. Dá-se, então, o vazio existencial e a falta de sentido para a vida, que podem

levar o jovem a, numa postura fatal, querer sair do vazio e tentar preencher esse

vácuo em que se encontra, ainda que seja em direção a um desconhecido que lhe

resgatará do sofrimento, ainda que seja ceifando a sua vida através de um ato de

extrema violência, como o são o suicídio e a tentativa de suicídio.

Esta é uma das dimensões do poder de destruição que a sociedade atual tem

sobre o psiquismo humano, e que é reconhecido por Levisky (1998):

Na atualidade, a globalização associada aos poderes da mídia e


econômicos exercem o maior controle, a maior escravidão
praticada sobre a mente humana jamais conhecida. Junte-se a
estes ingredientes as intensas e rápidas transformações
tecnológicas e sociais e teremos como resultado a fragmentação
da relação têmpora-espacial, regressões a estados primordiais da
mente (concretude do pensamento, cisões, negação da realidade,
onipotência, busca de satisfação imediata dos desejos, baixa
tolerância às frustrações). Estas condições psicológicas
favorecem a passagem ao ato e contribuem para o aumento da
violência, graças a uma sociedade insuficiente para dar conta de
toda a excitabilidade e frustração que gera sobre seus
integrantes. (p.29).

Contudo, a violência não pode ser considerada somente pelo seu aspecto

nefasto. Esta é a idéia de Figueiredo (1998), que discorda da crença de se falar em

violência somente sob um ponto de vista condenatório. Para ele, não há sociedade

que seja destituída de fatos agressivos e violentos, acreditando que, ....se há,

evidentemente, condições de violência excessiva e destrutiva, há, também, em

qualquer cultura, uma prática inevitável e, atrevo-me a dizer, indispensável de

violência, violência estruturante e constitutiva das subjetividades (p. 54).

100
O aspecto da crise ética e moral da sociedade globalizada, especialmente a

sociedade brasileira, e seu reflexo na constituição da subjetividade do adolescente,

também é abordado por este autor, ao referir-se à produção de falsos-selves:

Em termos winnicottianos, poderíamos falar numa produção


social de verdadeiros falsos-selves, com a ressalva de que, como
veremos adiante, o caráter de impostura desta identidade nunca
fica completamente dissimulado. (p. 58).

Por outro lado, ele reconhece a dificuldade dos adultos, mergulhados que

estão nessa impropriedade, para constituirem-se num amparo e poderem acolher

esses jovens de forma segura nos desafios que eles lhes dirigem. Reconhece que o

enfrentamento da imaturidade do adolescente é sempre problemático em qualquer

sociedade (p. 63). E é ainda mais sério quando a sociedade, como a nossa, tal a

diversidade de tipos de violência que temos presenciado e que nos acomete, ela

mesma encontra-se às voltas com a impropriedade. O que leva o autor a hipotetizar a

existência de um "sofrimento adolescente" no nosso país, maior do que seria

esperado nas culturas menos cindidas e constitutivas de subjetividades menos

dissociadas (p.63). Não poderia este panorama relacionar-se às condutas suicidas dos

nossos jovens?

Assim, no desespero que surge desse contexto psicossocial, a morte se

apresenta não como um fim em si mesmo, pois como muitos já colocaram, o suicida

não deseja morrer, mesmo porque a morte lhe é desconhecida, já que o que dela se

conhece são manifestações que habitam o nosso imaginário de formas diversas. A

morte surge como saída do sofrimento. A morte é a alternativa para calar a dor. A

morte pode ser a alternativa para a solidão existencial que dilacera a vida. Como diz

Angerami (1992, pág. 47):

101
A solidão ao transformar-se num processo contínuo e doloroso
pode até culminar em suicídio. Ato de desespero quando não se
enxerga nenhuma outra saída para uma situação insuportável. A
morte se apresenta, então, como única alternativa para a
sensação de não suportar o peso da própria vida, da própria
condição humana.

3.3. Um outro olhar...

Esta forma de ver o adolescente representa um olhar existencial sobre o

momento de vida desse jovem. É uma perspectiva que vai além das mudanças

biológicas, físicas, culturais e sociais. É uma perspectiva que enxerga não somente

todas essas características, mas, acima de tudo, as supera, ao encontrar o tema maior

da vida, que é a existência.

Embora sejamos seres com características biológicas que nos fazem também

um ser do reino animal, nos destacamos de outros animais justamente pelo fato de

sermos dotados de uma experiência singular a cada um de nós, que é a nossa própria

existência. Embora sejamos iguais aos outros seres vivos que habitam o mundo,

deles nos distinguimos pela capacidade de pensar, sentir e falar, pois, como disse

Heidegger (1927), a linguagem é a morada do ser. É através das palavras que o ser

se revela, num jogo de velamento-desvelamento, que reflete o que na sua essência,

cada ser humano é naquele momento da experiência. Nos dizemos pela experiência,

com a linguagem.

Assim também se passa com o jovem adolescente. Diríamos que mais do que

no ente adulto, o processo de viver, de ser, torna-se, muitas vezes, mais penoso e

intenso do que para aqueles. A crise da adolescência, vista sob esse ângulo, assume

diferentes dimensões quando se pensa nos significados existenciais que essas

102
mudanças podem representar para esse ser que se instaura no seu novo mundo

existencial.

Perceber o corpo se transformando, assumindo novas formas, texturas,

dimensões físicas e alterações semelhantes, que ao jovem ser se impõem, significa,

talvez, sentir-se alçado a estar num novo patamar do mundo, sem que se queira ou

esteja preparado para isso, porque nunca se sabe até onde irá essa transformação e

quais implicações elas acarretarão no seu estar-no-mundo. Significa ter que se

submeter a essa mudança, deixar-se levar pelos apelos do corpo e da alma, sem que

se tenha qualquer domínio sobre eles. É uma explosão hormonal, fisiológica, que se

acompanha de uma mudança existencial com todas as implicações que esse processo

acarreta. É viver o risco de não escolher a posssibilidade que virá, já que todas aí já

estão. É desconhecer-se num mundo já conhecido e repleto dos seus "lugares".

Mudar fisicamente quer dizer, igualmente, mudar também fisicamente no mundo.

Fisicamente e simbolicamente, significa começar a "perder" roupas e calçados. É não

mais "caber" nos antigos tamanhos do seu mundo. Seja no mundo das coisas

materiais, seja no mundo dos afetos. Crescer significa não caber mais no lugar da

criança que era; e que às vezes precisa continuar sendo, pela impossibilidade de ser

diferente. E isso causa angústia, sofrimento. E não só isso. Crescer é também tentar

acompanhar a mudança fisica com a mudança psicológica, afetiva e emocional e

estabelecer novos vínculos a partir desta nova configuração, o que geralmente não

ocorre de forma simultânea. É viver esse descompasso com toda a perplexidade e

estranheza que provoca.

Que sofrimento pode isso representar! Contudo, nem sempre o adolescente é

visto sob tal perspectiva. Costuma-se tratá-lo, comumente, de "aborrecente"! É a fase

103
das reclamações, inquietudes, contradições e irritações. E isso tanto aborrece quanto

incomoda tremendamente os seres adultos. Mas também é a fase das grandes

gargalhadas com os amigos...Da cumplicidade...Mas não com os pais, o que às vezes

os coloca em situações regressivas de ciúme, inveja e sentimento de abandono....

Tudo isso porque o adulto geralmente olha para o jovem com o olhar de um ser

distante, que não consegue sair desse lugar. Quando não, acontece o que disse antes:

é o olhar que transporta as irrealizações, o que já foi e os projetos inconscientes do

adolescente que ele foi e do que não foi ou não pode ser.

O viver do adolescente é repleto de angústia, mesmo que ela se apresente de

outras formas: como excessiva alegria, oposições constantes, condutas destrutivas e

outras mais....Isso não exclui, certamente, as também verdadeiras experiências de

alegria de viver. Porque tudo isso é parte da existência humana. As alternâncias...As

contradições....As inquietudes....Ambivalência tão presente nesse momento, e que faz

o adolescente viver tudo isso de forma intensa e visceral o processo existencial do

que significa viver. É a existência que também se transforma junto com a voz, os

pelos que crescem, os desejos pelo outro. Ser adolescente é experienciar na pele, no

corpo, nos sentimentos e pensamentos, as transformações e a fluidez da existência. E

também a incompletude. É um mar revolto que se precisa singrar, até se poder

alcançar a calmaria. É um ensaio intensivo do que é a vida. É um risco constante de

um ser que não se sabe e de um não ser intermitente, que surge na ambivalência de

todos os momentos.

Adolescer, crescer, é ter que se apropriar de um ser que se revela a cada

momento, novo, e que inaugura a escolha de se ser o que não se sabe, a cada

momento. Desde a aparente facilidade, para nós, adultos, de se escolher uma roupa

104
para sair, até a escolha dos amigos, lugares, jeitos de ser, preferências musicais, até a

escolha da profissão, representam um risco que, pela sua novidade, implica em

momentos de grande sofrimento e angústia. É uma fase de transformação. De

transição, e em sendo assim, nada é completamente. Tudo é e não é. Todas as coisas

existem num processo de vir-a-ser, próprio da condição humana, mas que surge na

adolescência como uma tempestade que cai de repente e fortemente, sobre as cabeças

do jovem, encharcando todo o seu ser.

Adolescer é escolher, no novo que surge e que vai constituindo uma nova

identidade, uma possibilidade entre tantas, desconhecidas, inauguradas naquele

instante. Significa, mais do que tudo, ter que se apropriar de um ser que ainda não

é...sendo. E isto, reconheçamos, é uma tarefa sempre existencialmente difícil.

Viver os lutos do que já se foi, na adolescência, é também experienciar o ser-

para-a-morte. Significa também viver essa possibilidade do ser, que é a morte. E que

para o adolescente é constante. A sua crise de passagem também significa que ele

vive a alternância entre viver e morrer: do que já foi, ainda é e do que será. Surge no

luto da criança que já não é, mas que ainda não deixou de ser completamente. É a

vivência intensa da incompletude de um ser que se transforma, sem deixar de ter

sido. É viver os lutos das perdas, a morte do ser, vivendo, ao mesmo tempo, com a

perspectiva de um futuro, de um projeto que se faz a cada momento. Viver a

adolescência, portanto, é experienciar todas as contradições que a condição humana

nos oferece, de uma vez só, e intensamente.

Por isso reclamamos mais respeito e compreensão a esses jovens. Pois

ninguém, mais do que eles, sentem na pele todos os preços que a vida nos fazem

pagar, ao escolher os nossos projetos. São eles quem mais se arriscam a viver na

105
impropriedade, a exercitar uma vida inautêntica, por se encontrarem numa situação

de extrema vulnerabilidade existencial e, assim, presas fáceis para as armadilhas do

mundo. O jovem é um ser que nesse momento da sua existência, ainda não é

totalmente independente; pois é nesse momento que ele desenvolve uma identidade

que servirá, também, de sinalizador para a sua apropriação do ser que ele é.

Aqui se encontram as razões da escolha do adolescente como protagonista

deste estudo. Embora sabendo que as condutas suicidas ocorrem nas diversas faixas

etárias e pelos mais diferentes motivos, aos quais jamais poderemos responder de

forma conclusiva, penso que com o adolescente, por todas as idéias apresentadas até

agora, esses acontecimentos assumem uma feição diferente. A experiência de não

querer viver, muitas vezes expressa através de uma tentativa de suicídio, como é

visto neste estudo, pode ter uma configuração diferente, já que encontra-se envolta

pelas singularidades que fazem desse período do desenvolvimento humano, a

adolescência, uma fase tão crucial para a construção inicial e permanente, de uma

existência que possa ser exercida de forma autêntica e consciente da sua condição de

um ser de posssibilidades.

O capítulo seguinte tratará da forma como se desenvolveu este estudo, o

método utilizado e as razões que justificaram a sua escolha.

106
CAPÍTULO IV

SOBRE O MÉTODO

Embora esteja falando sobre essas coisas, mas


eu me sinto bem agora. Acho bom estar falando. É bom
porque eu conversando assim, eu desabafo mais. Você
procura tirar tudo; quando a gente conversa com
alguém sobre alguma coisa que aconteceu, algum
problema, algum tempo atrás, já vai saindo do corpo e
da memória, entendeu? Você vai procurando, é como
se fosse uma alma perdida. Quando a gente morre o
nosso espírito não sai do corpo? Então, pra mim é a
mesma coisa quando eu vou contando as histórias pra
pessoa; vai saindo aos poucos...a alma perdida...Que é
a dor dos sofrimentos que eu já passei. Aí já vão saindo
essas histórias da minha vida toda. Mas não é pra todo
mundo que eu conto, mas só para as pessoas que eu
confio é que eu conto. É alívio. Parece que a cada dia
que eu conto a minha história diminui o meu
sofrimento.

(Excerto da Narrativa 2: Valda, 18 anos)

107
O trecho do depoimento de Valda nos diz da sua experiência, além de

sinalizar o caminho metodológico percorrido nesta pesquisa, em direção àquilo que

Benjamin (1994) chama de narrativa. A narrativa de Valda revela dimensões que

envolvem uma perspectiva fenomenológica e existencial da pesquisa, pois trata,

basicamente, da sua experiência ao viver uma tentativa de morte. Ela nos conta a sua

história, narrando os fatos, acontecimentos e afetos que percorrem a sua trajetória

vivencial. E na medida em que o faz, desvela a sua experiência, ao mesmo tempo em

que a constrói e reconstrói, através da linguagem. Ao contá-la, ela nos introduz na

sua vida, nos sensibiliza e nos coloca como participantes da sua experiência, fazendo

do pesquisador um sujeito dessa experiência, a propósito do que, Schmidt (1990)

afirma que cabe ao pesquisador colocar-se, então, mais como um recolhedor da

experiência, inspirado pela vontade de compreender, do que como um analisador à

cata de explicações (p70).

A relevância da participação do pesquisador no contexto da pesquisa é

enfatizada por vários autores, ao se referirem à modalidade da pesquisa qualitativa.

Ainda que tal perspectiva metodológica não suponha a utilização de variáveis

apriorísticas, diferentemente do método quantitativo, não implica na ausência do

cientista, como coloca Triviños (1995, p.123):

...mas isso não significa que o pesquisador assuma uma postura


neutra; ao contrário, ele é sujeito participante da pesquisa,
diretamente implicado na relação pesquisador-pesquisado. (...)
O investigador, sem dúvida, ao iniciar qualquer tipo de busca,
parte premunido de certas idéias gerais, elaboradas
conscientemente ou não. É impossível que um cientista, um
buscador ou fazedor de verdades, inicie seu trabalho despojado
de princípios, de idéias gerais básicas.

108
Carl Rogers expressa idéia semelhante a respeito da pesquisa, ao afirmar :

Uma das minhas convicções mais profundas diz respeito à razão


de ser da pesquisa científica e da explicação teórica. Em minha
opinião, a finalidade capital deste tipo de empreendimento é a
organização coerente de experiências pessoais significativas. A
pesquisa não me parece, pois, alguma atividade especial, quase
esotérica, ou um meio de adquirir prestígio. Vejo a pesquisa e a
teoria como um esforço constante e disciplinado visando
descobrir a ordem inerente à experiência vivida. ( 1975, p. 149).

Schmidt (1990, p. 59), vincula o pesquisar (grifo meu) à experiência, quando

afirma que,

A pesquisa, muitas vezes, é a elaboração de elementos diversos


e difusos da teoria e da experiência, elaboração construída em
torno de um fenômeno. Nesse sentido, uma pesquisa concluída é
o relato do percurso de um pesquisador ou de um grupo.

É, então, na direção da experiência, que esta pesquisa se encaminhou,

apoiando-se na narrativa como uma das suas formas de expressão. Este trabalho

inspirou-se numa atitude compreensiva acerca da experiência contada, a qual,

posteriormente, foi comentada e interpretada, tomando-se como base as reflexões

filosóficas e teóricas às quais a experiência das entrevistadas conduziram, com o

intuito de apreender os significados que nela se revelaram.

4.1. A experiência como uma dimensão existencial do vivido

O termo experiência19 tem sido empregado para nomear situações das mais

19
Segundo o Dicionário de Filosofia, MORA, J.F., p. 263, o termo experiência é empregado em
vários sentidos: 1) A apreensão por parte de um sujeito de uma realidade, uma forma de ser, um modo
de fazer, uma maneira de viver, etc. A experiência é, então, um modo de conhecer algo imediatamente
antes de todo juízo formulado acerca do apreendido. 2) A apreensão sensível da realidade externa.
Diz-se então que essa realidade é dada por intermédio da experiência, mais comumente também antes
de toda reflexão - e, como diria Husserl, pré-predicativamente.
- De acordo com o Dicionário de Psicologia e Psicanálise, CABRAL, A., p. 113, experiência é a
aquisição prática, pelo indivíduo, dos conhecimentos que o contato direto com os eventos físicos ou
mentais lhe proporciona. Segundo E.B. TITCHENER, é a totalidade dos fenômenos mentais
diretamente recebidos em determinado momento, assim excluindo a inferência

109
diversas. O uso dessa palavra costuma ser variado e confuso. No entanto, a

experiência sempre nos remete àquilo que foi aprendido, experimentado, ou seja,

aquilo que em algum momento, foi vivido pelo indivíduo.

Na psicologia, não se dispõe de uma teoria da experiência, em razão do que,

tal termo tanto pode referir-se a um objeto de pesquisa relacionado a um

experimento, no contexto da pesquisa experimental, como também nos remete à

dimensão vivencial da psicoterapia, ao mundo vivido, singular e existencial do

indivíduo.

Assim Rogers (1975, p. 161) define experiência, segundo a sua teoria:

Esta noção se refere a tudo que se passa no organismo em


qualquer momento e que está potencialmente disponível à
consciência; em outras palavras, tudo que é suscetível de ser
apreendido pela consciência. A noção de experiência engloba,
pois, tanto os acontecimentos de que o indivíduo é consciente
quanto os fenômenos de que é inconsciente.

A noção descrita pelo criador da Abordagem Centrada na Pessoa

constitui-se numa definição psicológica e refere-se a todos os acontecimentos

que ocorrem no mundo fenomenal ou campo perceptual do indivíduo; refere-

se, ainda, a tudo aquilo que afeta a experiência vivida no momento, sejam esses

aspectos conscientes ou inconscientes. Ou seja, podemos entender a

experiência, tal como proposta por Rogers, como referência ao mundo vivido,

ao momento existencial da pessoa, incluindo-se aí todas as vivências que

compõem tal momento, mesmo que algumas delas não sejam conscientes, mas

certamente fazem parte e influenciam o seu estar-no-mundo em determinado

momento.

110
Nesse sentido, experimentar, para Rogers (ibidem, p. 162), representa a

"versão-processo" da experiência. Reitera o que já foi dito antes, pois

relaciona-se "ao aspecto vivido, ativo e mutável dos acontecimentos sensoriais

e fisiológicos que se produzem no organismo".

Gendlin (1970), um dos mais produtivos colaboradores de Rogers,

propõe uma teoria do experienciar (Gendlin, 1962), e sugere que o experienciar

seja considerado um processo, devendo ser visto em termos do quadro de

referência desse processo.

No entanto, a palavra experiência, ainda que de usos muitas vezes

confusos, em psicologia sempre significa " eventos psicológicos concretos"

(idem,ibidem, p.138), o que nos conduz ao significado de experienciar como

querendo dizer um processo sentido, experimentado interiormente,

corporalmente sentido e que torna o material concreto da personalidade ou seu

conteúdo constituídos por esse fluxo de sensações corporais ou sentimentos.

Para Gendlin (1973), a experiência já está sempre organizada pela, ou nas

situações. Este autor propõe-se a discutir fenomenologia e análise lingüística a partir

da filosofia da experienciação, refletindo sobre uma nova abordagem

fenomenológica, que solucionaria o problema básico para uma diferente forma de

abordagem.

4.2. Experiência e Linguagem

Gendlin (1973) entende que ser-no-mundo é a forma de Heidegger definir os

humanos como ser-aí, como experienciando situações. De acordo com ele, as

situações são diferenciadas através da linguagem e distinções lingüísticas em muitas

111
texturas de situações com as quais nós vivemos.A linguagem é usada para distinguir

situações e para diferenciá-las. Quando se estuda experiência e afirmações em

relação às experiências, é preciso estar claro que elas já estão ou são sempre

relacionadas e essa relação ocorre em torno de situações. Assim, não se estuda

experiência pura como se ela fosse um tipo de massa, pois a experiência é sempre

organizada pela história evolucionária do corpo e também pela cultura e situações

organizadas parcialmente pela linguagem (p. 291).

Embora a linguagem esteja sempre envolvida na complexa organização da

experiência, ela nunca está totalmente envolvida. O papel da linguagem não diz tudo

de uma experiência. Quando se relaciona a linguagem a uma situação, não se está

fazendo isso pela primeira vez, pois a linguagem já está envolvida na experiência.

Nesse momento, Gendlin se refere a um método criado por ele, de

focalização, que pretende fazer referência direta ao processo de sentimento, ou seja, à

experiência. Assim, quando a experiência direta serve como base para afirmações ela

não está à parte da situação, já que a estrutura situacional está implícita. É possível,

por isso, estruturar situações com sentimentos e palavras (Gendlin, 1973).

Refere-se aos passos da referência direta ( uso de palavras para afirmar,

separar alguns aspectos da experiência que podem ser chamados "este"ou "aquela"

experiência ). As palavras usadas podem ser pronomes demonstrativos ou podem ser

algo descritivo. O que eles dizem pode ser vago, mas "apontam" para alguma coisa,

sendo esta a principal colocação da sua teoria, afirmando que no processo de

referência direta, no “reconhecimento”, o sentimento parece chamar pela palavra.

Se alguém tem o sentimento, então a palavra vem. A relação entre palavras e

112
experiência aparece aqui como uma relação direta- a palavra diz a experiência, a

experiência chama pela palavra (p.263).

Esse pensamento de Gendlin coloca a linguagem num lugar privilegiado

dentro da fenomenologia, pois, de acordo com essa última frase, através da palavra

pode-se abordar ou encontrar a experiência, a existência, o ser-aí, o ser-com, pois a

linguagem, trazendo o sentimento à tona, revela também a situação, ou o contexto

situacional, já que todos estão relacionados entre si.

4.3. A experiência segundo o pensamento de Walter Benjamin

Benjamin (1994), filósofo alemão, tinha como conceito central de sua

filosofia, a experiência e, como expressão desta, a narrativa. Dizia ele que a

narrativa é uma forma artesanal de comunicação. Ela mergulha a coisa na vida do

narrador para em seguida retirá-la dele (idem, p. 205). Embora, na sua opinião, a

narrativa estivesse desaparecendo (ele escreveu sobre isso nos anos 40), já que a

experiência estava em baixa, esta seria a forma de comunicação mais adequada ao

ser humano, já que reflete a experiência humana. Por essas razões, adotamos a

narrativa como método de pesquisa desta tese.

Entretanto, a despeito da opinião desse autor sobre o desaparecimento da

narrativa, ainda assim esta forma de pesquisar a experiência tem sido bastante

adotada nos meios acadêmicos. Exemplo disso é a pesquisa realizada por Morato e

Schmidt (1998) que estudaram, através de narrativas, a experiência de alunos num

curso de psicologia. Há quem advogue, inclusive, em favor da utilização da narrativa

de forma bem mais ampla, pelos pesquisadores atuais. Daí originam-se os

113
questionamentos de Schmidt (1990), se não seria adequado e pertinente, para os

pesquisadores atuais,

... trabalhar a sua experiência e a de outros (incluindo-se


sujeitos de pesquisa, pesquisadores e teóricos), transformando a
pesquisa num produto que, embora possa não ter a solidez e a
durabilidade das narrativas de outros tempos, seja útil enquanto
apreensão e elaboração de fragmentos da realidade vivida?
(p.64).

Para Benjamin (1994), na narrativa o narrador retira da experiência o que ele

conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros (p.201)

É a narrativa, pela sua característica oral, aquela que mantém as tradições e as

conserva, o que não ocorre quanto ao romance, que se origina do indivíduo isolado e

trata, geralmente, do sentido da vida, encerrando sempre a história com um final que

é, então, imposto ao leitor. Na narrativa, por sua vez, o conselho, como forma de

sabedoria, está presente. No entanto, aqui, o conselho é encarado de maneira distinta

daquele assimilado pelo senso comum, uma vez que aconselhar é menos responder a

uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está

sendo narrada (p.200). Assim, o conselho passa a significar a continuação de uma

história que se tece à medida em que é contada, e carrega consigo a sabedoria de um

saber que perpassa o tempo.

Um outro aspecto que favoreceu o declínio da narrativa foi o surgimento de

uma nova forma de comunicação, a informação. Surge como reflexo de um momento

histórico em que a burguesia se consolida, passando a imprensa a representá-la,

como um dos seus mais importantes instrumentos.

114
A informação, além de ser estranha tanto ao romance quanto à narrativa,

passa a ser mais ameaçadora à preservação da cultura da experiência, uma vez que a

informação precisa ser plausível, o que não acontece com a narrativa, que não

pretende explicar ou informar qualquer fato. A consolidação deste tipo de

comunicação, a informação, implicará na alteração do que se entende por saber. Se

antes o "saber" vinha de longe, seja este entendido na sua dimensão temporal ou no

sentido de se perpetuar na tradição, com a informação passa-se a exigir uma

verificação imediata do que se comunica. Com a narrativa tal não ocorre, em razão

do que o autor responsabiliza a informação pelo declínio da narrativa. Nesse sentido,

os fatos e as informações já vêm trazendo as suas explicações, diferentemente da

narrativa, já que, segundo Benjamin (ibidem, p. 203), metade da arte da narrativa

está em evitar explicações. A propósito do que, faz referências a um texto de Leskov,

escritor russo, afirmando que o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor.

Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado

atinge uma amplitude que não existe na informação (p.203).

Benjamin considerava a arte de contar uma história, um acontecimento

infinito, pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do

vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma

chave para tudo o que veio antes e depois (p.37). Desse modo, a narrativa, ao invés

de ser uma lembrança acabada de uma experiência, ela se reconstrói à medida em

que é narrada, uma vez que narrar alguma coisa consiste na faculdade de

intercambiar experiências, configurando-se naquilo que Eco (1993 ) chama de obra

aberta, posição antecipada por Benjamin (1994), na sua obra " O Narrador",

segundo prefácio da obra aqui referida.

115
A narrativa contempla a experiência contada pelo narrador e ouvida pelo

ouvinte da narração. Este, por sua vez, ao contar aquilo que ouviu, transforma-se ele

mesmo em narrador, por já ter amalgamado à sua experiência a história ouvida. E

esta é a mesma situação da clínica.

A consonância com tal modo de pensar a experiência e a narrativa como a sua

expressão, levaram-nos a eleger a narrativa como técnica metodológica deste estudo.

Através da narrativa, buscamos apreender a experiência, tal como ela é vivida pelo

narrador, neste caso, os jovens adolescentes que tentaram suicídio. Entendemos que a

modalidade da narrativa mantém os valores e percepções presentes na experiência

narrada. É a história de uma tentativa de morte que está sendo transmitida naquele

momento para o pesquisador. O narrador não "informa" sobre a sua experiência, mas

conta sobre ela, dando oportunidade para que o outro a escute e a transforme de

acordo com a sua interpretação, levando a experiência a uma maior amplitude, tal

como acontece na narrativa.

A narrativa tem a capacidade de suscitar, nos seus ouvintes, os mais diversos

conteúdos e estados emocionais, uma vez que, diferentemente da informação, ela não

nos fornece respostas. Pelo contrário, a experiência vivida e transmitida pelo

narrador nos sensibiliza, nos alcança nos significados que atribuímos à experiência,

assimilando-a de acordo com as nossas. Nesse sentido, a narrativa se aproxima

daquilo que se constitui como uma obra aberta, já defendida por Eco (1993) que, ao

propô-la, faz uma distinção entre esta e uma obra acadêmica e científica, distinção

esta em torno da criatividade. Discorda, inclusive, de Paul Valéry, que afirma "il n'y

a pas de vrai sens d' une texte" e conclui afirmando que um texto pode ter muitos

116
sentidos (p.165), que é o caso da obra aberta. Porém não aceita a opinião de que um

texto poderá ter qualquer sentido.

A narrativa, tendo florescido no ambiente artesanal, seja ele na terra, nos

campos ou no mar, pode ser vista como uma forma artesanal de comunicação, como

lembra Benjamin:

Contar história sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se


perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se
perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história.
Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais
profundamente se grava nele o que é ouvido. (1994, p. 205)

O autor, na sua forma de ver a narrativa, reconhece-a, legitimando-a, como

expressão de uma dimensão fenomenológica e existencial. Supõe que, de uma certa

maneira, o ato de contar e ouvir uma experiência envolve um estar-com-no-mundo,

uma relação de intersubjetividades, que se dá num universo de valores, afetos, num

passado que se articula com o presente e apoiado numa situação que reflete, revela,

conserva e transcende o mundo em que esses personagens estão inseridos. Podemos

confirmar esse pensamento quando ele diz que quem escuta uma história está em

companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia (p.213)

Pensamento que também é compartilhada por Schmidt (1990 ), ao reconhecer

que ,

A narrativa é preciosa pois conecta cada um à sua experiência, à


do outro e à do antepassado, amalgamando o pessoal e o
coletivo. E o faz de uma maneira democrática ou, mais
precisamente, da única maneira possível para que uma prática
social seja democrática- fazendo circular a palavra, concedendo
a cada um e a todos o direito de ouvir, de falar e de protagonizar
o vivido e sua reflexão sobre ele. (p. 51)

117
Portanto, ao se trabalhar com as narrativas de jovens adolescentes sobre as

suas tentativas de suicídio, estamos não só participando da sua história expressa na

experiência vivida, mas também participando da sua reconstrução, através da

profusão de sentidos, em função do seu não-acabamento essencial , como diz Jeanne

Marie Gagnebin, no prefácio das Obras Completas de Benjamin (1994). Significa

ainda dizer que esse não-acabamento expressa o sentido de abertura que constitui o

ser na sua existencialidade.

4.4. Experiência e Interpretação

A nossa compreensão do sentido de interpretação, tal como utilizado neste

trabalho, apóia-se no entendimento sugerido por Figueiredo (1994), para um novo

sentido da interpretação. Ele propõe uma terceira via de entendimento da

interpretação, além de outras duas mais comuns, e apontadas por ele; aquela que

envolve um juízo reprodutivo e outra, que considera o significado subjetivo da obra;

ambas, no entanto, sustentando-se numa relação sujeito-objeto. Essa nova

perspectiva concebe a interpretação como fala que responde a uma virtualidade

entreouvida (p.19).

Desse modo, a interpretação

...responde à obra, fala a obra, (realiza a obra) mas ainda não


fala da obra, não é um julgamento da obra nem uma decifração
dela na sua suposta objetividade. Esta interpretação não goza da
liberdade que se espera de um juízo; ela é solicitada ao
intérprete pela experiência que a obra lhe propicia (e se ela não
propicia nada de muito notável, nada haverá para interpretar);
ela é uma exigência ao intérprete colocada pela sua própria
experiência com a obra. Esta interpretação tem, portanto, uma
dimensão existencial. (idem, ibidem, p.20).

118
Embora o autor esteja se referindo ao contexto da clínica psicanalítica ao

utilizar essa concepção de interpretação, e por isso distinto do plano da pesquisa

científica aplicada, entendo que essa perspectiva assemelha-se ao significado da

compreensão tal como a exercitamos não só na relação entre entrevistador-

entrevistado, mas também no tratamento e interpretação da narrativa. Com isso quero

dizer que a relação estabelecida nessa técnica de pesquisa, situa-se muito mais

próxima de uma relação de intersubjetividades, própria do existir humano e da

própria clínica e a qual se insere numa perspectiva existencial, do que aquela da

pesquisa científica tradicional. Isso porque o encontro ao qual nos referimos aqui,

implica na abertura dos sujeitos à experiência, nesse caso, pesquisador-pesquisado,

quando um deles revela-se para o outro, que, por sua vez, é afetado por essa e na sua

experiência.

Para Figueiredo (1994, p.18), desde Heidegger, compreensão e interpretação

são dimensões originárias do estar-no-mundo; ou seja, o homem é compreendendo

o mundo que se abre para ele e interpretando os entes que se mostram a ele dentro

do mundo. Para Heidegger, (1927, p. 204), A interpretação se funda existencialmente

na compreensão e não vice-versa. Interpretar não é tomar conhecimento de que se

compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na compreensão.

Compreensão e interpretação, desse modo, andam juntas em direção a uma

abertura do ser. Isto é o que se pode depreender das palavras de Heidegger: Toda

compreensão guarda em si a possibilidade de interpretação, isto é, de uma

apropriação do que se compreende (ibidem, p. 218)..

119
Assim como Heidegger e outros autores, Figueiredo (1995, p.67), também

considera a linguagem como meio universal da experiência, o que a institui como

abertura ao "ser-com".

Ainda em referência a isso, Schmidt (1990, p.70) diz que,

A experiência, porém, como objeto de pesquisa delineia-se


como objeto e conteúdo de uma busca- análoga à do narrador-
que, seguindo o impulso central do desejo do encontro, se abre à
pluralidade de sentidos e esbarra sempre no indizível, no não
alienável, no que não se entrega.

Pode-se dizer, portanto, que Figueiredo fala da clínica como a escuta do

excluído, do que ainda não se revelou. É através da escuta compreensiva que o ser se

vela e revela, exercitando aquela que é a vocação originária do ser: nunca atingir uma

completude ou desvelamento total.

A linguagem ocupa um lugar central na filosofia heideggeriana. Sendo ela a

morada do ser, como já se falou anteriormente, é na linguagem que o ser se desvela.

É ainda a linguagem aquela que assume a condução na direção da elaboração do

método e da analítica existencial. Assim,

(...) o método fenomenológico visa o redimensionamento da


questão do ser, não através de uma abstrata teoria do ser, nem
numa pesquisa historiográfica de questões ontológicas, porém
numa imediata proximidade com a praxis humana, como
existência e facticidade, a linguagem- o sentido, a denotação, -
não é analisada num sistema fechado de referências, mas ao
nível da historicidade. (..) podemos encontrar(...) no método
fenomenológico de Heidegger uma certa onto-lógica do dizer,
isto é, uma explicitação da dimensão pré- ontológica da
linguagem, ligada à compreensão do mundo como horizonte da
transcendência. Steiner (1983, p. 100).

120
Oportuno destacar a importância desse aspecto da hermenêutica

heideggeriana no que se refere à pesquisa científica, na medida em que fundamenta

uma praxis que ao mesmo tempo em que busca alcançar a experiência vivida,

possibilita, numa outra dimensão, o encontro da verdade do ser que se desvela na

linguagem. Nesse sentido, a narrativa, modalidade adotada neste estudo, vai ao

encontro de um pensamento filosófico que, acima de tudo, respalda e sustenta uma

maneira de se fazer o saber científico.

No entender de Heidegger (1927),

O discurso é constitutivo da existência da pre-sença, uma vez


que perfaz a constituição existencial de sua abertura. A escuta e
o silêncio pertencem à linguagem discursiva como
possibilidades intrínsecas. (...) O discurso é a articulação
"significativa" da compreensibilidade do ser-no-mundo, a que
pertence o ser-com, e que já sempre se mantém num
determinado modo de convivência ocupacional. (p.220).

Tomando como base esse pensamento, podemos pensar a narrativa e a sua

ênfase na experiência, como uma das formas através da qual o ser-no-mundo exercita

a sua compreensibilidade, pois à medida em que o narrador conta a sua história, esta

carrega consigo os significados que constituem o seu estar-no-mundo, cujo ser-aí se

revela e se encobre nas palavras, principal articuladora da sua compreensão num

modo de existência.

Desse modo, aproxima-se a experiência da interpretação; e a narrativa, tal

como proposta por Benjamin (1994), do ser-aí constituinte da estrutura existencial do

ser, presente na ontologia de Heidegger. O que nos leva a dizer que a pesquisa que se

utiliza da narrativa, visando compreender a experiência e do modo que fazemos aqui,

121
situa-se numa ótica fenomenológica e existencial. O que também significa

reconhecer que a relação pesquisador-pesquisado acontece na dimensão da

experiência de ambos, transcendendo, assim, os papéis destinados a esses sujeitos na

pesquisa científica tradicional, já que a experiência comporta um trabalho de

elaboração do vivido cujo sentido se completa ao ser comunicado, transmitido

(Schmidt,1990, p.36). Pensamento semelhante está contido nas palavras de Valle

(1991, p. 181), ao relatar uma experiência de pesquisa:

Em minha convivência com os pais de crianças com câncer, o


que se apresentou foi a busca de um sentido que poderia ser
revelado na intersecção das minhas experiências com as deles,
quando retomava as minhas experiências passadas nas presentes
ou ainda quando retomava as experiências deles nas minhas. Isto
se constituiu na intersubjetividade das minhas próprias vivências
e as dos pais com os quais me relacionei, obtidas através de seus
discursos.

Isso não é o que acontece, primordialmente, no contexto de uma relação

terapêutica? Daí vem a semelhança dos usos da interpretação, tal como sugerido por

Figueiredo, antes citado, e que tem origem na clínica psicanalítica.

Nesse sentido, torna-se pertinente lembrar o processo que ocorre na relação

entre o que se fala, e aqui o discurso surge como parte desta fala e aquele que ouve.

Heidegger (1927), mais uma vez, nos oferece a oportunidade de refletirmos

fenomenologicamente a esse respeito, quando afirma que A conexão do discurso com

a compreensão e sua compreensibilidade torna-se clara a partir de uma

possibilidade existencial inerente ao próprio discurso, qual seja, a escuta. Para ele,

escutar é o estar aberto existencial da pre-sença enquanto ser-com os outros (p.

222).

122
Importante ressaltar a relevância existencial também daquele que escuta e a

sua capacidade para isso. Heidegger diz:

Somente onde se dá a possibilidade existencial de discurso e


escuta é que alguém pode ouvir. Quem "não pode ouvir" e "deve
sentir" talvez possa muito bem e, justamente por isso, escutar.
(... ) Discurso e escuta se fundam na compreensão. A
compreensão não se origina de muitos discursos nem de muito
ouvir por aí. Somente quem já compreendeu é que poderá
escutar. (ibidem, p. 223).

Entretanto, embora as idéias argumentadas antes nos conduzam ao

entendimento do que seja uma pesquisa de inspiração fenomenológica, não deixa de

ser relevante, ao mesmo tempo, alguns comentários em relação às diferentes

compreensões dos significados da fenomenologia.

4.5. Os rumos da fenomenologia

Embora tenha se consolidado no início deste século, a fenomenologia, na sua

história, se inaugura através dos trabalhos de Husserl no século passado, os quais

giravam em torno da matemática e da psicologia, ocasião em que os estudos

realizados sofriam grande influência de Franz Brentano e Karl Stumpf.

A filosofia, com o advento da fenomenologia, representou grandes mudanças

no cenário filosófico da Europa naquela época e desde então, em todo o mundo. A

esse respeito Stein (1983) afirma que:

O sopro de renovação da filosofia européia continental trazido


pela obra de um desconhecido livre-docente, as Investigações
Lógicas de Edmund Husserl, publicadas no início deste século,
só tem similar no movimento grandioso do idealismo alemão,
única corrente filosófica imediatamente anterior que se
aproxima, pela riqueza de suas conseqüências, do movimento
fenomenológico. (p. 30)

123
Através das idéias de Husserl, o método fenomenológico propõe a apreensão

da realidade através de uma "volta às coisas mesmas", respondendo a outro

princípio, o da intencionalidade. Para Husserl, a consciência é sempre intencional. E

nas palavras de Forghieri (1993, p.15),

A intencionalidade é, essencialmente, o ato de atribuir um


sentido; é ela que unifica a consciência, o objeto, o sujeito e o
mundo. Com a intencionalidade há o reconhecimento de que o
mundo não é pura exterioridade e o sujeito não é pura
interioridade, mas a saída de si para um mundo que tem uma
significação para ele.

Mas para alcançar o mundo-vivido, a essência do fenômeno, é preciso um

distanciamento de tudo que existe a priori, o que é alcançado através da redução

fenomenológica que, ainda segundo Forghieri (ibidem), consistiria num retorno ao

mundo vivido; colocar em suspenso os conhecimentos, idéias, teorias e preconceitos,

retornando, assim, à experiência do sujeito, visando alcançar a essência do

conhecimento.

De acordo com essa perspectiva, através da redução fenomenológica é

possível captar o sentido e o significado que as experiências vividas possuem para as

pessoas no seu viver. E está claro que nesse processo encontra-se implicada a

presença do pesquisador, a sua vivência, como afirma Merleau-Ponty (1994, p. 11):

...é no contato com a nossa própria experiência que elaboramos as noções

fundamentais das quais a Psicologia se serve a cada momento. Mas, para alcançar

isso, é preciso se fazer a redução fenomenológica, que, embora almejada, nunca será

completa, como afirma Merleau-Ponty (op.cit.): O maior ensinamento da redução é

a impossibilidade de uma redução completa. Para ele, então, a redução

124
fenomenológica consiste numa profunda reflexão que nos revele os preconceitos em

nós estabelecidos e nos leve a transformar este condicionamento sofrido em

condicionamento consciente, sem jamais negar a sua existência (p. 22).

Entretanto, a fenomenologia, desde Husserl, assumiu novas e complexas

ramificações, como bem o reconhece May (1963). Mesmo formando escola, Husserl,

em função das suas idéias, dividiu os seus seguidores. No entanto, as tendências

surgidas então se aglutinavam em torno de uma idéia do movimento

fenomenológico: às coisas mesmas.

Para Stein (1983, p. 33), essa palavra de ordem

Escondia em si o princípio axial de toda a fenomenologia: cada


espécie de ente tem seu modo próprio de se revelar ao
investigador e, constatações filosóficas, para terem sentido,
somente podem ser feitas quando fundadas nesta auto-revelação.

Assim, é importante esclarecer que falar em pesquisa de inspiração

fenomenológica neste trabalho não significa adotar, entre outros aspectos, a

perspectiva husserliana de redução fenomenológica. O método por nós adotado

ancora-se numa perspectiva fenomenológica que não contempla a redução

fenomenológica. Ao contrário, parece caminhar no sentido inverso. Ou seja,

justamente por saber-se da impossibilidade de uma redução completa, tal como já

fora reconhecido por Merleau-Ponty anteriormente citado, entendemos que o retorno

ao mundo da experiência implica no reconhecimento de que somos seres de abertura

e de relação.

O pensamento acima aponta para uma das diferenças reconhecidas entre

Heidegger e Husserl, quanto à questão do objeto e método da filosofia, já

125
apresentada por Stein (1983), referindo-se às diferenças entre Heidegger e Hegel.

Segundo ele, Heidegger se afasta do modelo especulativo-dialético (triádico) de

Hegel, em razão deste se apoiar na subjetividade, constituindo-se no seu estatuto

fundamental. Desde Ser e Tempo (1927), a superação da subjetividade coloca-se

como a saída para o redimensionamento da questão do ser. Heidegger, no seu método

fenomenológico, busca libertar-se das conotações subjetivas já presentes em Husserl.

Diante do que, Stein (ibidem) afirma que o método especulativo-dialético de Hegel

tem como organon a razão ligada à subjetividade; por sua vez, o método

especulativo-hermenêutico, de Heidegger, se constitui a partir da compreensão

ligada ao ser-aí.

As divergências filosóficas entre Husserl e Heidegger se dão, principalmente,

a partir da idéia de mundo da vida, da facticidade da vida e o ser-no-mundo, que se

constitui, ademais, no aspecto que interroga o ser, além de representar o núcleo que

sustenta a crítica desse filósofo à fenomenologia transcendental de Husserl.

Para Heidegger (1927),

O ser-aí já vem sempre envolto na autenticidade e


inautenticidade, na verdade e na não-verdade, no velamento que
acompanha todo o desvelamento. Desta maneira a
fenomenologia não será mais o instrumento de redução de tudo
à subjetividade, nem um caminho para transformar tudo em
'objeto'. A fenomenologia heideggeriana vigiará o âmbito do
velamento e desvelamento em que residem todas as essências.
(p.142)

Acredita Heidegger (1927) que é essa a vocação do homem: o ser de abertura

e de relação (ser-aí e ser-com), que o coloca no mundo, junto a outros seres e entes,

posição esta que elimina qualquer teoria, método ou qualquer coisa que classifique o

ente em mundo interno e externo, ou que o fragmente em partes ou momentos, tal

126
como se faz necessário na redução fenomenológica, pois, como já afirmara

Heidegger (ibidem), existimos numa disposição afetiva, num "befindlichkeit", que,

inclusive, nos dota de uma compreensibilidade anterior à dimensão cognitiva e da

consciência. Esse é o mundo vivido, o mundo da experiência e da existência e, por

isso, irredutível. Nós "somos" e "ex-sistimos" (grifo meu) de forma total, nesse

momento, inseridos no mundo da experiência, que se constrói e reconstrói à medida

em que existimos junto-com o mundo, não se limitando, assim, à subjetividade.

4.6. Narrativa e depoimento: um encontro possível

As narrativas desenvolveram-se durante entrevistas realizadas com jovens

adolescentes, através de depoimentos sobre a sua experiência de quase-morrer.

Adotamos o termo depoimento após contato com os textos de Queiroz (1991), que

empreende vasto estudo acerca de técnicas de pesquisa. Para ela, nas Ciências

Sociais este termo não possui a mesma conotação que tem na sua área de origem, a

jurídica. Enquanto que nesta, o depoimento significa o conhecimento a respeito do

fato sob julgamento, nas Ciências Sociais este termo significa o relato de algo que o

informante efetivamente presenciou, experimentou, ou de alguma forma conheceu,

podendo assim certificar (1991, p.7).

A mesma autora estabelece algumas diferenças entre o depoimento e a

história de vida. As diferenças residem nas distintas formas de agir do pesquisador,

em uma e outra técnica. Diferentemente da forma como atua nas histórias de vida, no

depoimento o pesquisador dirige a entrevista em direção ao assunto que lhe interessa,

além do depoimento poder ser finalizado em apenas um encontro, o que não acontece

quando se pretende pesquisar uma história de vida, que exige vários encontros, os

quais são dirigidos, prioritariamente, pelo narrador.

127
Das características que constituem o depoimento tal como as apresentadas

pela autora, adotamos aquela da brevidade, podendo ocorrer em somente um

encontro, como realmente aconteceu em todas as entrevistas, e pela definição de

depoimento, que se insere na narrativa.

No que respeita ao relacionamento entre narrador e pesquisador, embora o

depoimento se limite apenas a uma parte da história de vida do narrador, o relato da

sua experiência revela e transmite dimensões existenciais que assumem

configurações próprias naquele momento, com aquele pesquisador, que também é

"tocado" na sua experiência por tal narrativa. Embora seja a história de algo que lhe

aconteceu, naquele momento a experiência ganha um novo formato e se revela de

acordo com o total da estrutura existencial das pessoas envolvidas.

Embora as entrevistas tivessem como objetivo apreender a experiência dos

entrevistados sobre a tentativa de suicídio cometida, a nossa escuta transcendia a

finalidade previamente estabelecida, não se limitando a ela. A partir do momento em

que se pedia para que o jovem contasse um pouco da sua experiência, criava-se um

espaço onde o ritmo era dado por ele e a pesquisadora atuava acompanhando, de

perto, lado a lado, os afetos e sentimentos que surgiam nesse momento. Muitas

vezes interferimos assumindo uma postura de facilitadora da experiência, ao

favorecer o contato do narrador com a sua experiência que, não raro, era carregada

de emoções que afloravam a partir da revivescência dos seus momentos de angústia,

dor e desesperanças, atualizados naquele momento de contato.

As palavras de Valda revelam o processo existencial que esse momento

representa, significando compartilhar-com-o-outro a sua dor e, assim, amenizá-la. É

o ser-com que aí se revela. Como diz ela, é a alma perdida que busca se encontrar.

128
Essa busca do encontro que muito bem pode ser entendida como a revelação do ser,

pois é pela fala que o homem, o ente, se manifesta. É através dela que o homem se

revela, explicita-se e pode captar o significado das suas experiências, pois à medida

em que se expressa, ele se transforma, exercitando a sua possibilidade de um

construir-se, de um vir-a-ser constante. É a angústia que, ao se revelar nas palavras,

encontra o outro, o ser do outro. E na medida em que a sua experiência se abre para o

ser-com, coloca-nos como parte dela. Não se trata, portanto, de um pesquisador que

observa o sujeito. Não significa ouvir a sua história de longe, analisando-a,

interpretando-a logicamente; enfim, não existe uma postura de estar "de fora", como

observador, da experiência.

Pelo contrário, a experiência da narrativa é uma experiência também minha.

Faço parte, como pesquisadora, psicóloga e pessoa, ou seja, na minha totalidade ali

presente, desse momento existencial. Existimos, naquele momento, como seres-com;

numa imbricação impossível de ser definida ou classificada como mundo interno e

externo, como dentro e fora. A sua experiência toca a minha experiência de viver

aquele momento. Os meus afetos, a minha disposição afetiva, estão ali, atuantes. Ou

seja, existimos naquele momento, com um afeto, um humor, ou estado de espírito.

Por isso não me sinto e nem me coloco como alguém indiferente ou inatingível pelo

que está ocorrendo. Vivo ali, existo na experiência do outro, que se articula com a

minha experiência. Existimos com-juntamente, como seres que exercitam a sua

estrutura de ser-no-mundo, encontrando ressonância nas palavras de Benjamin

(1994): O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência

ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus

ouvintes (p.201).

129
A escolha de um método de inspiração fenomenológica pareceu o mais

compatível com as questões perseguidas nos objetivos quando se planejou este

trabalho. E foi configurando-se à medida em que a articulação das dimensões

intelectual e vivencial evoluíam ao longo do trajeto por mim percorrido em todo esse

tempo de atividade profissional. No entanto, essa perspectiva veio a se consolidar

definitivamente como método a partir das entrevistas, à medida em que elas iam

acontecendo, pois, como as palavras de Valda expressam, o ato de contar a sua

experiência não se restringe somente a dar a conhecer os fatos e acontecimentos da

sua vida. Mas significa, além de tudo, uma forma de existir com-o-outro. Significa

com-partilhar o seu ser-com-o-outro. Assim, as narrativas que constituíram as

entrevistas realizadas, definiram o método deste estudo.

Os jovens entrevistados foram selecionados tomando como referência os

boletins de urgência do Hospital Walfredo Gurgel, onde se encontra o maior Pronto-

Socorro do Estado e através de indicações de pessoas que conheciam alguém

próximo que havia tentado suicídio. Foram entrevistados seis jovens, sendo cinco

mulheres e um homem; duas pessoas em suas próprias residências, duas no hospital,

onde encontravam-se internados (o rapaz e uma das moças), com queimaduras no

corpo em conseqüência da tentativa de suicídio; a outra, no seu local de trabalho e a

última, na Clínica-Escola da Universidade. Todos os jovens têm idade entre 15 e 20

anos e, sem que este aspecto tenha sido requisito para a escolha dos entrevistados,

todos pertencem a um nível sócio-econômico baixo.

Os depoimentos foram gravados, transcritos e literalizados, para,

posteriormente, serem submetidos à apreciação dos entrevistados, para que eles

conferissem a sua fidelidade à narrativa feita. Embora todos tenham permitido a

130
divulgação dos seus nomes, resolvemos mantê-los preservados; assim, optamos pela

utilização de nomes fictícios. A seguir, os depoimentos foram comentados e

interpretados, a partir dos significados que se revelavam na experiência narrada e

como produto das reflexões feitas pela pesquisadora na sua vida pessoal e

profissional, sempre ancoradas numa ótica existencial da condição humana.

131
AS MENINAS DESSE MUNDO

As meninas desse mundo são como as que eu tenho visto. Têm corpo de
menina e vivência de mulher. São meninas filhas do abandono. Seviciadas, abusadas
e feridas na sua dignidade. São solitárias, indefesas e desprotegidas. Brigam pelas
ruas, disputando os seus amores e territórios. Os seus corpos trazem as marcas da
luta. Unhas que cortam a pele, deixando um risco no corpo e no coração.
Ferimentos que materializam a raiva de si mesmas e do mundo. Agressão que fere a
vida. Corpo machucado que anda, vive e expõe o tanto de destrutividade contido em
si.

São meninas que choram, por muitas coisas. Pelo amor perdido,
principalmente o amor a si mesmas. São meninas que exibem a autoridade de quem
muito já viveu. E no entanto deixam que as lágrimas deslizem pelo seu rosto, como
só uma criança abandonada pode fazê-lo. Um pranto de desamor. Sonham com o dia
em que alguém virá resgatá-las dessa vida. Talvez um príncipe encantado, montado
num cavalo branco, e que surge nos seus sonhos trazendo a felicidade. Como num
conto de fadas....

São meninas que gritam para serem ouvidas, nem que seja através de um
ensaio da morte, destruindo-se. Que se desesperam e ingerem soda cáustica,
venenos, medicamentos e se atiram ao mar. Que gritam por socorro. Que desejam
ser amadas. Que choram pelo pai ausente. Que lamentam a incompreensão. Que se
sentem sozinhas no mundo. E ainda precisam continuar vivendo. Para isso se
armam e confrontam os inimigos, principalmente aqueles da alma. E enfrentam os
seus "fantasmas" lutando com raiva e revolta. No entanto, elas só querem um pouco
de amor... Elas pedem carinho e um colo... Elas buscam aquilo que perderam no
meio do caminho e que nunca deveriam ter perdido: o direito de serem meninas.
Somente meninas... Simplesmente meninas....


Produção da pesquisadora após entrevista com uma das jovens deste trabalho, e que expressa, acima
de tudo, a relação intersubjetiva na vivência da experiência.

132
CAPÍTULO V

AS NARRATIVAS

Narrativa 1- Elizabete, 20 anos.

Vou falar sobre a minha experiência de vida... inclusive sobre as tentativas de

suicídio que cometi. Tudo começou meio por acaso... A nossa família veio do

interior em 1989 e viemos morar aqui nesse município perto da capital... eu tinha...

então...12 anos. Foi quando eu tive uma oportunidade e me envolvi com drogas...por

um certo período. Deixei de lado em 96, 97, quando eu entrei aqui no CAIC e me

deram oportunidade para trabalhar. Me deram carta branca, sabe? Disseram: "– olha,

você vai tomar conta de uma equipe de futsal feminina". Maravilha...adoro esporte!

Aí...foi quando eu comecei a trabalhar isso. Tentei sair da droga... mas surgiram

outras coisas: problemas financeiros em casa... porque eu sou muito de ajudar à

família... eu não gosto que falte nada em casa...e um certo dia...no ano passado...deu

aquele desespero... "– Bom, tenho que acabar com minha vida". E até hoje meus pais

não sabem... a família não sabe....

133
Bom... então saí das drogas....Mas ficaram aquelas ameaças entendeu? Os

caras com quem eu tinha me envolvido diziam: "–Vou entregar pra sua família". Me

desesperei...pois para a minha família...sou eu na terra e Deus no céu...De tudo eu

faço para eles... estou presente em tudo... e de repente... pensei: "- Não....Tenho que

acabar tudo... porque eu não quero que minha família saiba".

Fui muito ameaçada por essas pessoas que eu falei.... eram de fora daqui...da

máfia da droga...do Rio e São Paulo..... Cheguei a tentar me matar várias vezes...

foram umas cinco tentativas.... A última que eu tentei foi agora.... Acho que não faz

dois meses... Já tem uma psicóloga aqui... que vem me acompanhando... pra tentar

amenizar as coisas....

Em maio do ano passado...no final de semana....estava sem dinheiro...pedi a

minha mãe mas ela não tinha.... Fui até à casa de um colega... consegui três reais e

saí.... Fui pra praia.... Cheguei lá e me joguei ao mar... sem saber nadar.... Fui salva

por outras pessoas que viram... depois elas queriam me deixar em casa, mas eu não

aceitei. A minha família não poderia saber do acontecido.... Para você ver... eu

sempre estou escondendo

Outra vez eu tomei bastantes comprimidos... comprimidos que eu não me dou

bem... como a dipirona. Eu tomei uma dosagem muito grande de dipirona e tiveram

que fazer uma lavagem estomacal. Isso foi em maio... ou em julho...véspera de meu

aniversário... e cheguei meio zonza em casa e disse que estava passeando por aí....

Mas eu já tinha ingerido os comprimidos e fui parar no hospital...

134
A terceira vez foi aqui... no colégio...no sábado. Eu subi nessa caixa d’água...

mas ao chegar a uma certa altura.... eu vi uma movimentação do pessoal da escola

chegando.... Aí eu tive que descer pra abrir o portão...

Na quarta vez... eu parei na BR e o carro me pegou de cheio.... Não tive

ferimentos graves... mas machuquei o pé e fiquei quinze dias com o pé inchado e

dolorido. E quando fui ao médico... ele detectou uma fratura no pé devido ao

impacto....

E a última tentativa... a quinta vez... foi em casa... nesses dois últimos meses.

Usei um punhal que eu comprei a um colega de trabalho... porque eu tinha que sair

pra rua e não queria ir sem arma.... Eu estava no banheiro... calada.... Quando eu já ia

fazer... mãe entrou... porque achou estranho eu estar calada no banheiro... aí entrou

escondida e perguntou o que eu estava fazendo. Nada não... respondi. E tentei

outra.... No mesmo dia... eu tentei novamente... minha irmã chegou assim... de

repente.. também....

Essa é uma experiência muito... muito... muito ruim.... Eu não desejaria isso

para o meu pior inimigo. Depois que passa... depois que você pára... aí você pensa....

E depois... minha família... como é que iria ficar? Por isso eu sempre deixava....

Quando eu tinha o pensamento de me matar... eu deixava carta escrita e quando não

acontecia nada... rasgava aquela carta e minha mãe perguntava por que eu rasgava e

queimava tanto papel. Mas é uma coisa assim... até hoje eu ainda estou... como se

diz... não muito alegre no trabalho... não fico muito em casa... estou super calada...

Sinceramente... eu não estou entendendo o que se passa comigo. Estou num

estágio de vida em que me vejo parada... eu estacionei. Eu nem ando... nem volto...

135
nem para um lado e nem para o outro.... Eu parei.... E tenho tido crises depressivas....

Às vezes eu páro em casa e fico pensando em quantas vezes eu quis me matar. Por

que será...? Aí vêm aqueles motivos... tem vários sentidos.... As drogas... que eu não

quero que descubram... nem quero que elas sonhem. Talvez... um dia... quem sabe?

Mas eu sempre estou com aquela coisa... sabe... porque eu sou a santinha: "- Oh,

Elisabete é tudo.... Elisabete faz isso... aquilo.... Elisabete não reclama...."

Às vezes... até brincando mesmo... eu constato que realmente elas não sabem

o que se passa.... Você vê cair o preconceito em cima de você. Como... por

exemplo... a forma como eu me visto. Se eu gosto de andar de shorte... se eu gosto de

andar de camiseta... não tem nada a ver uma coisa com a outra! Se eu tenho um

namorado e não quero sair na rua com o namorado... é problema meu.... Acho que

ninguém tem nada a ver.... E tem, também... algumas questões financeiras em casa...

que eu me vejo aperreada... como vou fazer pra pagar o que eu devo e comprar

comida pra dentro de casa.... Só depende de mim... esse mês sou eu... então... como é

que eu vou me virar... se o que eu ganho não dá pra nada? E sinto também demais em

ver meus pais precisarem de uma coisa e eu não poder dar.... E aí... chego no trabalho

e dizem "- Ah, isso é besteira!" Eu estava no centro comunitário e disse que não ia

mais... então alguém me disse: - "Você não vai resolver seus problemas saindo do

centro comunitário". Bom... o que eu sei é o seguinte: não adianta eu estar num lugar

em que as pessoas não vão comigo... entendeu? Isso é muito... sei não... difícil.

Não vou dizer que parei de pensar nisso.... Ontem mesmo eu pensei nessa

situação de novo... morrer... Será que foi um dos meus melhores momentos? Você

fica naquela.... Eu não sei.... Ultimamente eu não estou com os meus pés no chão.

Por exemplo... ando bebendo... o que não é normal pra mim. Fumando... não a

136
maconha... não... ou cocaína... mas outros cigarros... e eu acho que isso não é legal.

Não acho legal... sabe.... Será que é uma necessidade de manter as drogas lá atrás...

essa bebida...? Essa necessidade de eu ter que beber alguma coisa hoje... será que

traz as drogas que eu já ingeri? Não sei....

Já usei vários tipos de droga: maconha... letinol... e fazia o tráfico também.

Cheguei a fazer umas dez entregas.... Foi o tempo que eu parei e disse: "- vou ter que

sair". E eles disseram: "- olha, você sai... mas sabe que não sai". E me pegaram em

abril desse ano. Eu fui visitar meu pai no interior e... na volta... eles me pegaram ...

tomaram meu dinheiro...me roubaram....e ainda me bateram.... Eu não devia nada a

eles. O que eu devia... já tinha pago.... Não sei o que eles queriam de mim. Me

deixaram em algum lugar...num descampado. Quando eu cheguei em casa... estava

super desorientada e zonza... de tanto apanhar.... Quando eu cheguei... pensei como

dizer para minha mãe que me pegaram... pois ela iria perguntar...E aí tive que mentir

mais uma vez....

Às vezes eu fico assim em casa... pensando... ou aqui mesmo no trabalho...

tem um lugar aqui que eu até gosto.... Tem um estrada ali e à noite... às vezes... eu

fico aí até 10... 11horas... pensando: - "o que foi que eu fiz da minha vida?" Perdi

toda a minha juventude... De repente essas pessoas me perseguem... de repente

ameaçam me entregar pra minha família... e é meio complicado.... Eu conheço muito

bem minha família e eu sei que se chegar com um notícia dessas... eu já era...!

Toda essa situação me dá muito medo.... Tenho certeza de que a minha

família não me aceitaria mais... porque as pessoas que eu amo assim de paixão

mesmo... são meu pai e minha mãe e minhas irmãs... demais...! Aí fica aquela coisa...

se eu contar... e um dia eu vou ter que contar.... Já tentei várias vezes... mas não

137
adianta... então eu vou ficar calada aqui... embora eu ache que não é o ideal.. não...

Vamos ver no que é que vai dar.... É muito difícil...! Daí vem a vontade da pessoa se

matar... tomar comprimido.... É uma coisa super difícil.... É ruim... é ruim demais....

Quando eu penso sobre isso, penso que não cheguei a fazer uma besteira

porque sempre chega alguém. É uma coisa super interessante.... Sempre ocorre de

alguém chegar...às vezes eu fico até chateada....E penso... puxa...você tinha que

aparecer aqui agora? Aí começo a brincar. Mas sempre... sempre... sempre... tem que

chegar alguém. Aí...eu comentando com uma colega... ela disse que eu então não

queria morrer. Sobre essa história de sempre acontecer alguma coisa que impede que

eu me mate... eu penso que isso significa que ainda tenho que sofrer um pouco na

terra.... Acho que não chegou a minha hora. Mas é aquela coisa... eu não sei o que

fazer mais! E estou um pouco violenta... fora... na rua.... Mas eu não fui sempre

assim.... Eu comecei com isso nos meus doze anos... quando eu comecei a me

envolver com drogas....Antes eu não era assim....Gostava de jogar futebol...

Atualmente...nem à televisão eu gosto mais de assistir.... Aí me pergunto: "- por que

será ?" Eu não estou... realmente... com meus pés no chão....

Não estar com os pés no chão é não estar sendo aquilo que eu acho que sou já

que eu não era assim... entende? Quando eu saí das drogas, eu fiquei super... super

tensa.... Eu praticava esportes normalmente... numa boa.... Só que depois parei...

estacionei... acabou.... Mas até hoje comprei material novo... tudo... pra jogar.... Mas

não senti mais motivação.... No próprio trabalho... às vezes... eu digo que estou muito

desgostosa... mas não sei qual o motivo.... Mas a verdade é que não estou me

sentindo à vontade no trabalho...

138
E o que me incomoda mais nisso tudo é minha família não saber e eu tenho

medo de contar e elas não quererem mais conversar comigo.... Porque eu vejo nas

reportagens sobre isso.... quando sai na televisão e elas comentam que esse fulano é

isso... é aquilo.... E aí... eu saio de perto. Eu me emociono quando falo nisso porque

eu acho que um dos pontos que mais me magoam ainda é esse....Eu estar guardando

essa verdade e eles não saberem.... E se eu contar...e porque eu sei quem são eles...eu

tenho certeza que eles me botarão na rua.... Dirão que eu não pertenço mais a essa

família Eu imagino isso.... É difícil demais! Por mais que eu já tenha deixado... acho

que eles não vão me aceitar mais.... O meu relacionamento com a minha família é

bom e é ruim. Porque... às vezes... minha mãe conversa comigo numa boa... mas

depois vem com 4... 5 pedras na mão. ..

Tem outra coisa, eu sou mediúnica... As pessoas diziam isso porque no ano

passado eu tinha umas sensações de que ia me jogar. As pessoas diziam que não era

eu... era outra pessoa. E eu sentia que não era eu.... Quantas vezes eu não chegava e

dizia à professora que ia me jogar dali. A professora dizia que eu parasse com aquilo

e eu fiquei super... super... deprimida. E ainda ficava mais quando as pessoas diziam:

"- Olha, você tem que rezar". Eu digo que ficava deprimida porque tinha vontade de

me jogar e chorava bastante. Às vezes... pegava minha cabeça... apertava e ficava

tentando entender o que era aquilo que eu sentia... qual o motivo que me fazia sentir

daquele jeito. Depois passou e eu me acalmei... Cheguei a tomar uns remédios... não

tomei nem todos....

O que me fez usar drogas foi a curiosidade.... Um rapaz chegou no colégio e

me ofereceu um cigarro e eu disse que não fumava.... Eu não me lembro como era o

nome dele... Só sei que ele estudava no colégio.... Então... aceitei... pensando que só

139
uma vez não faria mal. Então... comecei.... E às vezes eu tirava dinheiro escondido...

porque se eu pedisse... minha mãe desconfiaria. E ela não podia saber... Aí eu ia lá e

tirava... por isso me sinto muito mal... por saber que eles não sabem... por eles

pensarem que eu sou a boazinha. Na verdade... estou escondendo a verdade... como

se estivesse escondendo uma parte de mim... a de que não sou tão boazinha.

140
Narrativa 2- Valda, 18 anos.

Vou falar um pouco sobre a minha vida e de tudo que eu já passei... Eu

sempre passei por dificuldades na minha vida... Sou filha adotiva, entendeu? Me

deram a um casal porque minha mãe verdadeira não tinha condições de me criar.

Depois disso... as pessoas que me criaram fizeram-me sofrer muito porque o meu pai

de criação faleceu... e a minha mãe adotiva passou a viver com outro homem. A

partir daí a minha vida e a do meu irmão...que é filho biológico dos meus pais

adotivos... ficou muito difícil porque o novo padrasto começou a mandar nela...

exigindo que ela fizesse só o que ele queria e então ela passou a nos deixar para

trás... a cuidar menos de nós e mais dele. Ele batia muito em mim de cabo de aço...

de cinto... de corda... enfim... com qualquer coisa que ele tivesse à mão. E isso o meu

pai que me criou... nunca havia feito.

Então... aos onze ou doze anos eu saí de casa. Passei a viver na rua... a

conviver com vagabundo... ladrão... maconheiro. Depois... meu irmão foi atrás de

mim e eu voltei pra casa de novo. Passei uns dois anos em casa... embora vivesse na

rua. E quando eu sofria muito do meu padrasto... eu voltava a sair de casa.

A minha avó foi quem me criou quando a minha mãe foi para o Rio. Ela traiu

o meu pai com esse outro homem com quem ela viveu aqui em Natal. Quando isso

aconteceu... eu e meu irmão ficamos com a minha avó... que já não tinha saúde para

cuidar da gente. Assim... passamos a viver no mundo sozinhos... Foi quando

começou o sofrimento... Como o meu irmão era mais velho... tinha cabeça suficiente

para resolver o que queria. Até porque esse meu irmão é filho de outro homem...

entendeu?

141
Voltando ao meu padrasto... quando eu vi que ele estava me batendo muito...

me espancando muito... eu saí de casa. Depois eu voltei porque tinha engravidado e

tive um filho. Porém eu não tinha condições de sustentá-lo... Então a minha mãe de

criação pediu para criá-lo e até hoje ela vive com ele... que está com três anos. Eu

penso em entrar na justiça para tomar o meu filho porque eles não têm

responsabilidade. Eles o espancam e a mesma coisa que eles fizeram comigo...

podem fazer com meu filho... e não é isso que eu quero pra ele.

Além de tudo... meu padrasto já pegou nos meus seios... deu-me balas para

que eu não contasse nada a minha mãe. Porém eu disse a ela... que então brigou com

ele mas não adiantou de nada... passou um mês brigando e depois voltou tudo. Ele

batia em mim e ela não ligava. Quando ele me espancava... ela não falava nada... Isso

trouxe uma revolta para os filhos... tanto pra mim quanto para o meu irmão... Esse

meu irmão é filho legítimo dela... mas hoje ele não quer nem ver o meu padrasto... de

tanta humilhação que a gente já passou... O meu irmão já se atracou com meu

padrasto porque ele me bateu tanto que cheguei a sangrar... Ele batia muito em

mim... Certa vez ele me jogou no chão...me pisando... Me maltratava muito.... Por

isso tanto eu quanto meu irmão ficamos revoltados.

A relação com a minha mãe sempre foi mal. Sempre foi bruta, sempre foi

ruim. Porque ela sempre me humilhava e me maltratava. Do que ela me dava amor,

ela dava mais ao filho dela, claro, que era o filho legítimo, não é? Ela sempre passou

em rosto que eu era negra, que eu não era filha dela. Toda vez que eu fazia alguma

coisa errada, ela me batia. Isso desde que eu era pequena. Aí pra mim isso foi

crescendo, foi crescendo, e o ódio foi aumentando. Eu tendo ódio dela. Aí meu ódio

142
foi aumentando. Toda vez que ela batia em mim, eu olhava pra ela e dizia "– eu

tenho ódio de você!" Ela dizia: "- eu também tenho!

Eu nunca tive uma adolescência... nunca soube o que foi ter um brinquedo...

uma boneca... nunca tive condições de me divertir. Eu caí na prostituição porque foi

minha mãe de criação que me botou nisso. Aconteceu aqui em Natal...e eu estava

então com quatorze... quinze anos. Antes disso... quando eu cheguei aqui... depois

que eu tive meu filho e dei a ela... ela me mandava pedir esmola para sustentá-los.

Todos os dias eu saía de casa de manhã... logo cedo... às sete horas... pra pedir

esmola. O povo dizia: "Você é tão nova por que não vai trabalhar?" Agüentava

humilhação.... Depois eu vi que não agüentava mais...então parei. Aí ela fez a minha

cabeça e eu caí na prostituição... Eu ia para a Praia do Meio e vendia meu corpo....

Saía com um e com outro...nas casas de drink. O dinheiro que eu ganhava...

vinte...trinta...quarenta... cinqüenta reais...era para ela... porque eu não tinha

condições de comprar roupa boa pra mim... entendeu? Eu não tinha condições de

comprar roupas e sapatos... porque ela reclamava quando eu comprava e batia em

mim... Ela ia até à casa de drinks atrás de mim...bater em mim...porque eu não

arrumava dinheiro pra levar pra casa. Uma noite... ela foi até lá... e na frente das

meninas... deu uma tapa na minha cara porque eu não arrumei dinheiro.... Uma vez

eu cheguei pra ela e disse que ia arranjar um emprego. Aí ela disse assim: "- Não,

você não vai trabalhar porque cento e trinta reais por mês não vai dar de comer a

ninguém". Aí eu fui pensando bem...e foi quando eu conheci esse rapaz que é meu

marido hoje... na casa de drinks. Ele era casado e começamos a nos gostar.... Mas ela

não queria que eu ficasse com ele porque o que ela queria mais era o

dinheiro...entendeu? Ela nunca aceitou que eu ficasse com ele porque ela sempre quis

143
que eu trabalhasse pra sustentá-los... ela e o marido. Ela tem dois aparelhos de som...

duas televisões e a maioria de tudo que ela comprou foi com o meu dinheiro... foi

com o meu sustento... com o meu corpo...

Eu conheci o meu marido através da dona da casa de drinks... que trabalha

com ele no governo. Ela chegou lá e me apresentou a ele.... Foi no dia de eleição

para governador. A gente começou a brincar...a farrear...a nos conhecer mais.

Começamos a gostar um do outro... a nos encontrar... aí nos apaixonamos. Então ele

me perguntou se eu queria sair mesmo daquela vida. Eu respondi que sim... porque

eu não agüentava mais. Eu estava nessa vida não por querer... mas porque era

forçada a estar... E disse-lhe que saía de casa às sete da noite e voltava às seis da

manhã. Quando chegava em casa...cansada de tanto fazer programa...para dar de

comer aos meu pais... aí eu ia arrumar a casa... lavar a roupa... cuidar de criança.

E...mesmo cansada...quando eram seis horas da noite... de novo eu voltava a pegar o

mesmo rojão...isso acontecia todo os dias... Ele se surpreendeu com isso... quase sem

acreditar. Passou a freqüentar a minha casa e meus pais pensavam que ele era um

homem que tinha condições financeiras... entendeu? Depois que viram que ele não

tinha essas condições todas... aí começaram a humilhá-lo e a me humilhar também....

Tiraram o carro dele... além do som . Ele teve que vender tudo para passar uns

tempos lá em casa porque ele tinha deixado a mulher e os filhos... tiraram tudo o que

nos restou... Acho que tudo era inveja e olho grande. Não queriam que eu ficasse

com ele...a minha mãe foi na governadoria atrás dele... atentar... dizendo a ele que eu

voltasse pra casa...

Nessa ocasião ele perguntou à minha mãe como eu iria me sustentar... se eu

não tinha renda.... Ela então respondeu que eu me "viraria"...que desse os meus

144
"pulinhos". Certamente ela queria dizer que eu voltasse à casa de drinks para vender

o meu corpo... Aí eu disse: "Não! Isso não é vida para mim... não!" Saí... estou com

ele até hoje...vai fazer um ano que estamos juntos. Eu tenho dois filhos... um com

três e outro com dois anos... Só tive com ele o de dois e que mora conosco...o

outro... não. O outro vive na casa deles... de meus pais....

Aí a mulher dele... a mulher de meu esposo... começou a ir atrás da gente...

com a minha mãe... sabe? A minha mãe conheceu a mulher dele... aí começaram a

fuçar... infernizaram... eu estava na casa do irmão dele... então começavam a ligar...

era um inferno... a gente não conseguia ter sossego. Já tentei muitas vezes cair em

suicídio por causa disso... porque eu não tinha sossego... era de noite e de dia. Tentei

o suicídio mais de uma vez... A primeira vez que tive vontade de me matar foi

quando já estávamos morando juntos em Nova Parnamirim. Chegamos a passar fome

uma semana... eu e meu esposo porque ele estava sem trabalho e tinha pedido licença

da governadoria. Nessa fase a gente descia à pé pra casa dos irmãos dele... nos

humilhando por um prato de comida... Quando chegávamos lá os irmãos dele já

tinham almoçado... aí a gente... com a barriga seca... voltava pra casa de novo. Como

a gente era fumante... viciado... ficávamos catando piúba no meio da rua... entendeu?

Isso tudo me deu vontade de me matar porque eu disse assim: -"Meu Deus... o que é

que está acontecendo?" Outra coisa... a gente passou um período ruim... brigado...

porque na casa do irmão do meu marido tinha uma menina que trabalhava lá... só que

quando ela saiu dessa casa o meu marido pediu-me para que ela ficasse uns dias na

nossa casa enquanto não voltava ao interior. Eu concordei.... Mas essa menina dava

em cima do meu marido... eu via e reclamava. Aí... por duas vezes... ela escondeu a

chave do carro do irmão do meu marido... que ele havia pedido emprestado. A partir

145
daí ele ficou mudando pro meu lado e me desprezando. Percebi que ele estava dando

mais atenção a ela do que a mim....tratava-me com agressividade. Aí dessa vez eu

tomei veneno... realmente tomei duas vezes veneno... Baygon. Mas não adiantou

porque eu vomitei tudo pra fora....

A Segunda vez que tentei suicídio foi com um tipo de pozinho que parece

com açúcar que se usa para matar mosca.... Eu botei bastante num copo...

desmanchei e tomei... mas também não adiantou de nada... não cheguei nem a ir ao

hospital. Pronto... só foram essas duas vezes...

Dessa vez....agora... em relação a esta queimadura sobre o meu corpo...

aconteceu o seguinte. No domingo... antes desse último feriado, eu fui à casa do meu

irmão que mora lá em Parnamirim. Nós o chamamos pra passar o domingo lá em

casa. Eles foram....Aí a gente chamou meu irmão para sair.... Ele não queria ir porque

estava sem o dinheiro do ônibus e não gostaria de ir....insistimos demais... ele foi. No

domingo... meu irmão teve uma dor de cabeça. Aí arrumamos um remédio pra ele

porque queríamos sair...e meu irmão saiu bom. A gente passou a noite na praia... o

dia todinho na praia...Na segunda-feira... eu fui trabalhar com meu marido... pois ele

estava fazendo um serviço na casa do irmão dele. Aí ele chamou-me para irmos à

praia no outro dia... na terça-feira. Eu concordei.... Mas como eu vi que a casa... o

apartamento que a gente morava... estava muito sujo... eu disse que não ia sair e que

ia limpar a casa... lavar roupa... porque no outro dia eu já estaria livre daquele

serviço. Aí eu acho que ele ficou com raiva porque eu prometi que ia à praia e não

fui. Então fui lavar roupa na casa da vizinha... fui dar água ao meu filho... fui

trabalhar com ela... levando o menino. Ao terminar de lavar roupa... eu vejo uma

batedeira daquelas de botar de pé... na casa da mulher onde eu estava lavando roupa.

146
Aí eu perguntei onde ela tinha comprado...Ela respondeu que havia comprado ali

perto...Como eu estava com dinheiro nesse dia... resolvi ir comprar a batedeira.... Só

que eu pedi a ela para ficar com o menino...que eu ia comprar pão. Eu disse isso só

para que ela ficasse tomando conta do menino e eu não ter que levá-lo.... Quando

cheguei lá no lugar....não tinha a batedeira. Só que ao voltar... encontro com o meu

marido... bufando de raiva... com uma lata de cerveja na mão e me perguntou de

onde vinha. Disse-lhe a verdade... que tinha ido comprar a batedeira. Ele não gostou

porque a mulher lhe informara que eu tinha ido comprar pão. Aí começou a

confusão.... Ele começou a dizer que eu estava mentindo... que eu o estava traindo...

que eu estava fazendo isso e aquilo... e aquilo outro. E disse que isso não era

verdade... mas a discussão durou o dia inteiro.... Então pedi-lhe o dinheiro que eu ia

embora. Ele estava com duzentos e poucos reais para pagar o aluguel do

apartamento. Deu-me.... então... cinqüenta reais para eu comprar uma bolsa de

viagem. Tomei banho... arrumei meu filho e peguei um ônibus. Ao passar pelo

shopping... deu vontade de descer e comprar alguma coisa para agradá-lo. Então

comprei um CD de Zeca Pagodinho... que ele gosta....Comprei ainda um celular de

brinquedo para o meu filho. Voltando pra casa... ainda comprei uma camisa pra ele...

meu esposo. Chegando em casa... eu dei a ele a camiseta e o CD. Só que ele jogou

fora...não quis.... ficou furioso. Começamos a discutir de novo.... Então eu fui

perdendo a paciência porque ele me chamou de rapariga.... Isso porque uma vez ele

me olhou e disse que se me tirasse daquela casa de drinks jamais iria chamar-me de

rapariga.... Por isso eu fiquei furiosa... porque ele não devia ter dito aquilo por causa

de uma besteira.... Aí ele começou a discutir.... disse que tinha ido beber... gastou o

dinheiro quase todo e queria ir para a casa de drinks. Eu disse que não ia deixá-lo

gastar o dinheiro e então meti a mão dentro do seu bolso várias vezes e ele a tirava....

147
Aí eu dei duas tapas na cara dele e o empurrei no chão. Ele bateu a cabeça no chão...

parecendo que havia machucado... Nesse momento consegui tirar do seu bolso o

dinheiro... um cheque e uns trocados...Ele ficou muito zangado e saiu quebrando as

coisas.... Quando eu vi que ele ia atear fogo no guarda-roupa... jogando um pouco de

álcool no guarda-roupa... e quando eu vi aquele negócio pegando fogo... aí pronto!

Peguei o álcool... coisa que nunca temos em casa... mas nesse dia havia esse álcool

porque foi meu irmão que pediu no domingo... para curar a sua dor de cabeça.

Quando eu vi que meu esposo tocou fogo no guarda-roupa... aí eu fiquei louca e

pensei: "- se ele vai acabar com as minhas coisas.... eu acabo comigo também.".

Então eu joguei álcool... derramei a garrafa de ácool todinha na minha blusa... que

era uma blusa bem grossa de lã... de algodão.... Aí corrí pro banheiro e ele correu

atrás de mim pra tomar a garrafa... só que eu já tinha despejado todinha.... Ele não

viu que eu estava com o isqueiro na mão. Eu sempre tirava uma brincadeira com

ele... mas eu nunca fazia... sabe? Essa brincadeira era dizer que ia tomar veneno...

botar dentro do copo e não bebia fora aquelas vezes que eu disse que havia tentado

duas vezes. Aí eu acho que ele pensou que era brincadeira e não viu o isqueiro na

minha mão... de jeito nenhum. Ele não percebeu porque eram dois esqueiros... talvez

ele tenha achado que o isqueiro estava com ele.... Então quando ele foi pra

geladeira... eu risquei sem querer... sem querer mesmo... eu não ia me riscar... não.

Na hora que eu risco... o fogo sobe. Aí eu comecei a pular... gritar... meu filho estava

lá no parque e ficou vendo e chorando também.... Comecei a pular agoniada...

pedindo socorro! A gritar... e ele gritava também pedindo socorro.... Ele... querendo

colocar um pano pra apagar e não conseguia... porque ficou bastante álcool no meu

corpo... consegui tirar a blusa e ele me empurrou para o chuveiro. Aí eu desci as

escadas pedindo socorro quase seminua... ele então vestiu uma blusa em mim e eu

148
pedi para fechar a porta e pegar meu filho.... Desci as escadas pedindo socorro e ele

atrás com meu filho nos braços.... Ele caiu na escada... machucou o cotovelo...se

cortou.... Saímos loucos no meio da rua... pedindo socorro. Tinha gente no prédio

que estava com carro... mas não quis socorrer a gente. Então chamaram um táxi da

prefeitura pra me levar ao hospital.... Uma vizinha chegou a dizer que tinha sido ele

quem me queimou.... Eu disse que não havia sido ele... fui eu mesma.... E ela

retrucou que tinha escutado ele bater em mim a tarde toda... o que eu desmenti...

chamando-a de mentirosa. Quem me ajudou a sair foi a menina que cuidava do meu

filho. Chamou um táxi... pegou um lençol e me enrolou e eu então fui com meu

esposo. Agora já faz uns quinze dias que estou aqui no hospital com ele... que deixou

de trabalhar para ficar comigo....

Depois de tudo que houve... hoje eu me sinto... triste. É doloroso porque meu

corpo era muito bonito... sabe? Meu corpo era um corpo bem feito... era muito bem

feito.... Não tinha uma marca de ser morena... negra... não tinha um pingo de

marca.... Eu corria.... Eu brincava na praia com meu filho.... Eu corria pro meu

marido.... Hoje... quando eu olho pro meu corpo... quando vejo essas marcas... eu

fico triste por que dá tristeza... porque você relembrar que brincava...e hoje não estar

podendo fazer mais nada disso.... Hoje são os outros que... quer dizer... hoje é ele que

está cuidando de mim... Não tenho condições de fazer o que sempre gostei de fazer...

entendeu? Minhas coisas estão abandonadas lá na casa do irmão dele porque eu não

estou em condições de fazer nada....

Quanto aos meus projetos... estou pensando... depois que estiver tudo

melhor... em fazer tratamento... para minha pele voltar ao normal. Penso em

construir... em tirar esse pensamento que vem de instante em instante. Esse

149
pensamento que vem é o registro e a memória do que aconteceu... sabe? É como se

fosse um filme que está passando na minha cabeça a toda hora.... Mesmo que eu não

queira... ele vem... perturbando.... E o que aparece mais é o fogo queimando o meu

corpo e a gente gritando.... Rever e relembrar tudo isso dói tanto no corpo como na

alma e no coração.... Porque as vezes ... eu penso mais no meu filho... eu não penso

em mim somente... eu não penso em mim.... Eu penso no meu filho.... Eu quero sair

daqui pra cuidar do meu filho por que ele está na mão dos outros... na mão da minha

cunhada... mas eu não sei o que os outros podem fazer com meu filho.... Estou

falando do meu filho menor... de dois anos. Em relação ao outro... o mais velho... eu

me sinto triste porque ele é uma criança muito amorosa. Mas se Deus quiser... se

Deus me der força.... quando eu sair daqui eu vou entrar na justiça... eu vou fazer

qualquer coisa... vou tomar meu filho de volta. Porque quando eu dei meu filho eu

era de menor. Eu tinha quatorze anos.... quinze anos... aliás. Entendeu? Ele foi

registrado pelos meus pais... mas não pode. Porque tem um direito que você tem que

ir na justiça pedir autorização para registrar como filho.. mas nem pode registrar

como filho legítimo. Ela registrou como filho legítimo.... Não foi em justiça... não foi

em nada....

Quanto aos estudos.. só cursei até à 2ª série.. só. Mas sei ler...Embora esteja

falando sobre essas coisas... mas eu me sinto bem agora.... Acho bom estar falando....

É bom porque eu conversando assim... eu desabafo mais.... Você procura tirar tudo...

quando a gente conversa com alguém sobre alguma coisa que aconteceu... algum

problema... algum tempo atrás... já vai saindo do corpo e da memória... entendeu?

Você vai procurando... é como se fosse uma alma perdida. Quando a gente morre o

nosso espírito não sai do corpo? Então... pra mim é a mesma coisa quando eu vou

150
contando as histórias pra pessoa... vai saindo aos poucos... A alma perdida....que é a

dor dos sofrimentos que eu já passei.... Aí já vão saindo essas histórias da minha vida

toda.... Mas não é pra todo mundo que eu conto... mas só para as pessoas que eu

confio é que eu conto.... É alívio.... Parece que a cada dia que eu conto a minha

história diminui o meu sofrimento...

151
Narrativa 3: Leila, 17 anos

Vou falar sobre a minha experiência de tentar o suicídio. A primeira vez que

isso aconteceu foi lá na casa da minha mãe... só que ela não sabia. Eu tinha mais ou

menos de nove a dez anos. Eu levei uma surra imensa do meu padrasto... então eu

tomei um monte de remédios....Porque eu sempre me senti rejeitada pelas pessoas...

Passei bastante mal e fui parar no hospital.... já quase morrendo. O médico fez

lavagem e eu voltei de novo pra casa.....

Aí passou... mas... eu acho que a tentativa de suicídio é mais o

“rejeitamento”.... Eu me sinto rejeitada pelo pessoal... pela minha família.... Eu não

sei.... Ser filha assim...do meu pai de criação... e saber que só ele me dá apoio...

também me dói... porque minha mãe me abandonou....Antes de me abandonar ela já

não ligava pra mim.... Aí foi juntando tudo.... Após certo tempo aconteceram muitos

problemas. Eu conheci um rapaz... comecei a namorar com ele. Minha mãe... a

família... fez um escândalo. Eu tive que sair de casa... fugi.... E depois disseram que

eu estava doida e então me internaram no hospital psiquiátrico.

Eu vivia pensando em me suicidar porque eu acho que pra pessoa que pensa

em se suicidar ela é muito pensativa... sabe? Não sei porque... eu... pelo menos... sou

muito pensativa....Tudo o que eu vou fazer eu penso muito... muito... muito mesmo...

antes de fazer.... Eu sou muito pensativa. Aí...junta tudo. Eu acho que pra pessoa

tentar se suicidar sempre tem que ter um motivo. A pessoa não vai tentar querer tirar

a vida sem ter um motivo... tem aquele motivo... do problema....

Eu acho que desde pequenininha eu me sentia rejeitada... pois eu morava com

minha mãe... e ela sempre batia em mim...batia na minha cabeça.... Eu era sempre a

152
que mais apanhava.... Eu tenho uma irmã mais nova que eu. Mas ela nunca bateu na

minha irmã....Bater pra deixar marca... era só em mim... Eu não sei porque... mas ela

só batia em mim pra deixar marca.... A última surra que eu levei do meu padrasto

quando eu morava lá... eu quase que morria mesmo.... Se não fossem os filhos da

minha madrinha eu tinha morrido... eu acho. Eu tinha uns dez anos... foi uma surra

que eu levei dele... Ele me esmurrou qui... na minha nuca... e eu saí de lá desmaiada.

Não vi nada.... Só depois é que voltei à consciência.

Nunca me dei bem com a minha mãe.... Eu nunca disse nada com ela. Mas

agora... ela sempre achava alguma coisa pra discutir comigo... sempre... sempre. E

depois vieram os padrastos...Aí ela tinha ciúme de mim com os meus padrastos....

Com o primeiro... ela nunca teve nada. Tudo que eu via dele... eu dizia a ela. Aí eles

começavam a discutir e ela ficava chateada comigo. Eu achava engraçado.... porque

ela pedia pra eu dizer e depois ficava chateada comigo....

Depois de muito tempo... quando aconteceram esses problemas com o meu

namorado... eu fui pra lá. Antes disso eu saí de casa.... Cheguei quase a tomar um

litro de cachaça.... Não tomei porque não deixaram... Isso foi há quatro anos atrás ou

mais ou menos cinco anos atrás.... Eu tinha em torno de doze anos.... Depois disso...

me internaram no hospital psiquiátrico

Acho que nesse momento eu só pensava em me matar.... Morrer.... Eu não

pensava em outra coisa... não.... Em cortava meus pulsos e botava uma corda no

pescoço... eu queria morrer.... Morrer era uma coisa em que eu pensava sempre...

sempre...sempre me senti rejeitada pela família.... porque eu sei que minhas tias

nunca gostaram de mim... as irmãs do meu pai. Porque as irmãs da minha mãe eu

não conheço....Minha mãe muito pior....Nunca gostaram de mim. Mas eu não

153
entendo... porque o pessoal de fora gosta muito de mim... eu me dou super bem...

mas com a minha família... não. O pessoal não gosta de mim.... Eu não sei por que....

Eles têm raiva.... A minha mãe sempre falou que quando eu era pequenininha eles

não queriam que me adotassem e me registrassem.... Às vezes eu penso que é isso...

sabe.... revolta.... Eles não queriam que me registrassem porque minha mãe era prima

dele.... Ela casou com ele... esse com quem eu moro.... Só que eu já era nascida e a

família não queria.... Ele é meu pai de criação.... Eu não conheço o meu verdadeiro

pai. Então ele... meu pai... me criou e até hoje me dá apoio...de mãe... não só de

mãe... como de pai também. Ele faz os dois papéis e eu gosto dele... muito... mas

também às vezes me dá revolta.

Muitas vezes eu chego lá na casa da minha tia... e eu sinto que não sou bem

vinda. E eu sei que é isso porque quando a gente não é bem vinda... a gente

sente....Aí chego na casa da outra... do mesmo jeito.... Aí começa a revolta e o

desespero...Nessa hora eu só penso em me suicidar... em me matar.... O pessoal não

gosta de mim.... E eu...sou uma pessoa muito sentida.... Qualquer palavrinha que

você disser... me agrava. Eu me sinto revoltada... sabe? Tem hora que eu

“expludo”.... Tem hora que eu digo uma porção de coisas..... Eu não agüento nem o

meu pai..... Sem motivos... eu começo a dizer coisas até com meu pai. Sem razão

alguma... é uma revolta dentro de mim.... Eu não sei.... mas eu acho que é uma

revolta muito grande.... Aí... com o tempo... passa

Na primeira vez em que fui internada na casa de saúde... eu fiquei três

meses... O médico sempre disse que eu não tinha nada de loucura... eles diziam que

eu era louca.... Não tinha nada de loucura... só precisava de um amor... de uma coisa

assim.... E lá na casa de saúde... eu não queria mais sair de lá... porque as enfermeiras

154
de lá.... nossa... todas gostavam de mim.... Meu apelido lá era anjinho.... Eu era o

anjo da casa... a mais nova da casa.... Eu tinha doze anos... nesse meu primeiro

internamento.... O último...eu já tinha treze. Até hoje eu me sinto querida lá....O

único remédio que eu tomava era complexo B... uma vitamina porque eu não queria

comer de jeito nenhum. O médico não passou nenhuma outra medicação.... E tomei

soro porque eu não queria comer de jeito nenhum. E eu me sentia muito rejeitada....

Mas o amor das meninas... que elas tinham por mim... o carinho da assistente

social....da psicóloga... Aí foi passando o tempo... fui começando a comer e quando

fiquei melhor... voltei pra casa. Quando eu voltei pra casa... começaram as mesmas

coisas.... Voltei pra casa do meu pai e aí houve uns desentendimentos.... Eu joguei

uma cadeira nele e só sei que fui internada de novo... e dessa vez... passei quatro

meses. Eu sei que nisso tudo eu fiquei um ano lá internada.... Depois eu voltei de

novo e dessa vez voltei pra casa da minha mãe. Lá em minha mãe eu fiquei tomando

remédio controlado.... Eu dormia demais..... Um dia... ela foi pra festa... quando

chegou....eu estava dormindo na cama dela... Eu só sei que ela disse que eu tinha tido

relações com o marido dela. Aí começou a confusão.... e aí discutimos.... A revolta

foi tão grande que eu comecei a quebrar as coisas dentro de casa.... Comecei a querer

bater nela porque eu sabia que eu não tinha feito aquilo... mas ela insistia... queria

que eu dissesse que tinha feito.... Só sei que me amarraram e me levaram pro hospital

psiquiátrico...de novo...... Essa já foi a terceira vez.... quando eu passei um monte de

tempo....Saí depois do Ano Novo. Faz tempo...

Depois....por conta de um namorado...infernizaram a minha vida....

começaram a me agredir...a dizer coisas comigo...minhas tias me chamando de

rapariga... me chamando de um monte de coisa... aí eu não tinha como... não sabia

155
como me defender. A única maneira que eu achei de me defender foi ou me matar...

ou então dizer que não me lembrava de nada. Aí eu tentei me suicidar.... E depois eu

dizia que não me lembrava das pessoas.... Isso foi antes de eu me internar... depois

foi que eu fiz o internamento... depois disso eu fiquei boa....

E assim... eu me sentia... sei lá... O pessoal chega a me chamar de louca... de

doida. Eu sei que esse namorado também chegou a dizer que eu era louca e que não

namorava comigo.... Mas namorava....sim....Aí eu acabei o namoro com ele....depois

eu conheci um rapaz. Começamos a namorar e ele dizia que queria casar comigo...

me levou pra conhecer a família dele. Quando eu cheguei lá... me trataram super

bem... Só que depois eu descobri que ele tinha sido junto com uma mulher... mas eu

me sentia muito bem com ele e até hoje eu sinto falta dele... sabe.... Ele se suicidou....

Até hoje eu sinto falta dele....

Depois que esse rapaz se suicidou... aí meu pai bebia e dizia que eu era

culpada... e a família dele atrás de mim...querendo me matar. E diziam que eu era a

culpada.... o irmão dele tentou bater em mim... tentou me matar.... Aí... depois disso

tudo eu fiz uma carta. E não sei nem onde anda essa carta... por onde anda. Eu fiz

uma carta e deixei lá na minha madrinha... a assistente social. Na hora que eu deixei

lá... ela pegou e não me deixou mais sair de lá... na unidade mista de saúde de Felipe

Camarão. E nesse tempo... em vez da minha psicóloga me dar apoio... eu chegava... e

minha madrinha já tinha dito a ela que eu estava muito deprimida... mas ela nunca

podia me atender....

Porque nesse tempo eu já agredia os alunos da escola e eles já não podiam

olhar pra mim que eu já começava a agredir...Eu brigava com o diretor da

escola....coisa que eu nunca fiz....sempre fui uma excelente aluna... meu pai nunca foi

156
chamado por mim pra ir à escola... mas dessa vez foi...precisava conversar com

alguém. E na hora que eu ia na minha psicóloga... ela sempre dizia que estava

ocupada demais... que não podia me atender... que meu dia era tal dia... e realmente

meu dia era na quinta-feira. E ela não podia me atender e aí é que eu me sentia só

mesmo.... Depois minha madrinha ligou pro SOS Criança... que veio me buscar.

Perguntaram porque eu queria me suicidar....Eu disse que já não agüentava mais meu

pai...minha família... contei tudo e então eles me levaram pra Casa de Passagem.

Quando eu cheguei lá na Casa de Passagem... o pessoal sempre tinha muito

cuidado em mim... porque que eu tinha tentado suicídio... porque eu me sentia

rejeitada pela minha família... porque meu pai dizia as coisas comigo.... Lá...

encontrei grandes amigos... o pessoal... os funcionários da casa... porque com os

adolescentes eu não me dava muito bem. Eu acho que... pelo carinho que os

educadores tinham por mim... alguns tinham ciúmes de mim....

Mesmo assim... teve um dia la' que eu tentei me suicidar.... Coloquei um

cordão no meu pescoço... ainda hoje sofro com isso... pois alguma coisa deslocou no

meu pescoço. Quem me socorreu foi a educadora. Meu pescoço estava preso e eu já

quase sem fôlego.... De tanto arrochar... eu sei que eu fiquei sem fôlego... sem fala...

tive que tomar nebulização... um monte de coisa. Depois disso... outra vez que eu

fugi de lá... eu tentei me suicidar....

Dessa vez eu estava com um problema de uma raspadinha... eu ia tentar de

novo e aí as meninas da praia já me conheciam. Umas meninas que fazem

programas... e me conheciam porque elas tinham me tirado da água. Foram elas que

chamaram o salva-vidas porque elas tinham visto que eu queria morrer.... Dessa

vez... elas não deixaram... foram conversar comigo... dizendo que havia um meio

157
melhor de superar isso... aquela dívida que eu tinha com o rapaz da raspadinha. E eu

não sabia a quem pedir ajuda... Ele disse que eu tinha que arrumar um dinheirinho de

qualquer maneira. Aí... eu fui pra praia.

Quando eu cheguei na praia eu fiquei amiga delas... aí elas disseram que tinha

um meio de vida melhor... você pode até ficar na praia. Mas pra eu ficar na praia eu

tinha que dizer a meu pai que tinha arrumado um emprego de manicure.... Eu sei que

fiquei indo pra praia... trabalhando... fazendo aquelas coisas... só fiz programa uma

vez. Fiquei lá três semanas.... Ia todo dia e voltava... e foi aí que o juizado me pegou.

Foi aí que eu conheci a psicóloga de lá... Quando fui pro juizado eu dizia a eles que

ia voltar pra praia mas eu não voltei mais não.

Eu achei que esse trabalho foi uma nova experiência.... Eu me sentia bem

porque as meninas gostam de mim...Aonde eu chego... eu pego amizade e o pessoal

sempre fica gostando muito de mim.... Eu não sei você... mas o pessoal sempre fica

gostando muito de mim. Assim... a gente ficou amigas...colegas... desde o dia que

elas me tiraram de dentro d’água... aí é que me dava mais força... mais vontade de

ir....

Eu não tenho amigas... eu nunca tive amigas.... Eu estudo num colégio... o

Maria Tereza... mas as meninas têm ciúme... eu não sabia disso. Eu sabia que as

meninas tinham um pouquinho de raiva de mim... mas eu não sabia que era ciúme

dos professores... porque os professores sempre me admiraram muito.... Todos os

meus professores... aliás... a minha primeira professora que foi Elza... mora ali em

cima.

158
Hoje eu me sinto a mesma pessoa... Às vezes... eu ainda me sinto rejeitada

pela minha família. E meu pai proibiu de ir lá pra minha mãe.... Eu acho que é ciúme

que ele tem.... A minha relação com o meu pai é normal.... Ele passa o dia fora... e eu

passo o dia em casa.

A minha iniciação sexual foi ruim demais...Eu tinha onze ou doze anos. Foi aí

que eu comecei a ser internada. A minha família disse que eu tinha tido relações com

aquele rapaz.... Mas eu disse que não tinha... e eu não tinha mesmo tido relações

sexuais com ele. Aí eu saí de casa e quando eu saí de casa... eu liguei pra ele...

dizendo que queria sair com ele.... Aí ele disse que não queria fazer isso comigo

porque ele gostava muito da minha família.... Ele era trabalhador demais. Mas eu

disse que eu queria porque eles estavam dizendo que eu fiz amor... sem eu ter feito e

agora eu ia fazer mesmo.... E foi aí que começou toda a minha complicação porque

eles queriam porque queriam que eu tivesse tido relações com esse rapaz.... E daí eu

o obriguei... eu o forcei... e disse que ele tinha que ir... porque se não fosse ele...

seria outro. Então ele aceitou... mas era com uma raiva tão grande que ele me deixou

toda machucada....E foi assim... muito ruim... eu não gostei.... E é por isso que eu

nunca dei muito valor.... Eu nunca tinha dado muito valor a minha vida sexual....

Vim começar a dar valor agora... depois que eu conheci esse rapaz com quem estou

saindo...Depois que eu comecei a participar de várias jornadas... sobre sexualidade na

adolescência...é que comecei a valorizar isso.

159
Narrativa 4: Márcia, 15 anos.

Vou contar sobre o que me aconteceu quando tentei tirar a minha própria

vida. Tudo aconteceu porque eu gostava muito de um rapaz. Mas ele ficava sempre

com minhas amigas.... Então...um dia... eu cheguei da praia e tinha bebido muito...

Aí cheguei... vi o veneno... que era soda cáustica... e tomei ..."– Eu quero morrer"!

Era o que eu pensava.... A soda cáustica que eu tomei era em pedrinha... acho que

tomei umas três... então eu comecei a inchar... a inchar... aí parei de tomar.

Foi então que me levaram para o Hospital Walfredo Gurgel. Primeiro eu fui

pro Hospital da Cidade da Esperança... mas quando cheguei lá... desmaiei. Aí me

encaminharam pro Walfredo... na ambulância e ao chegarmos lá... me deram soro.

Depois de mais ou menos 1 hora... me deram leite.... eu ainda cheguei a tomar dois

litros de soro.... Depois vim embora pra casa. Fiquei um pouco fraca durante a

semana... depois melhorei.

Senti vontade de morrer por causa de um homem sem futuro.... Um rapaz sem

futuro... que não presta.... Eu pensei em morrer por causa dele.... Depois eu vi que

não adiantava... que ele tinha a mulher dele... tinha um filho.... Acho que ele queria

acabar com minha vida... sabe? Me fazendo sofrer.... Aí a gente se deixou depois

disso. Faz um bom tempo que a gente não se vê mais.... Depois eu vim trabalhar

aqui... e no final de semana eu vou pra lá....pro meu bairro...na semana eu também

costumo ir....

Naquela época eu me sentia muito triste. Só vivia chorando.... Só fazia

chorar.... Se ia dormir... era chorando. Se acordava... era chorando! E assim... sofria...

doía... acordava muito agitada. Era... sei lá... não tenho nem como falar.... Não tinha

160
apoio de ninguém... só da minha mãe.... Porque meu pai só fazia reclamar... dizer as

coisas comigo.... Dizer que eu não prestava...! Que ele já tinha raiva de mim porque

eu só vivia brigando lá... quando eu vou lá no meu bairro. A turma de lá tem raiva de

mim... e quer bater em mim. São umas vagabundas de lá...nojentas.... Elas vêm

brigar comigo... aí eu brigo também.... Meu pai só vive chorando por causa disso. Ele

fala que quem não presta sou eu. Aí...eu escuto o que ele tem pra falar.... Às vezes....

eu perco a paciência e começo a falar as coisas com ele... responder... dizer coisas

que ele não gosta....

E isso que acontece comigo e com o meu pai... não é de agora...já acontece há

muito tempo... desde que eu fui junta... que ele é assim. Fui junta com treze anos....

Vivi com um rapaz lá... depois eu me separei dele... mas voltei. Só que depois que eu

retornei pra casa dele... ele começou a falar as coisas comigo de novo.... Uma porção

de besteira. Aí eu arrumei um quartinho... e saí de dentro de casa. Final de semana eu

vou pra lá... Mas ainda vou em casa ver minha mãe....

No meu primeiro relacionamento.... Eu tinha treze anos. Nos conhecemos na

praia.... Aí ele pediu pra namorar comigo... mas meu pai não deixou.... Queria

namorar em casa... mas meu pai não deixou... Ele era solteiro... Depois de três dias...

eu o encontrei numa festa.... Aí fui lá onde ele estava. Ele me chamou.... Chegando

lá... ele botou um comprimido... uma droga... dentro da bebida... e me deu. Aí eu

bebi... sem saber que estava tomando isso. Não sabia que tinha essa droga dentro...

não. Aí tomei.... Comecei a ficar tonta.... Não via nada... minha vista escureceu. Ele

me chamou pra subir numa moto e me levou pra um motel. Fez o que quis comigo.

Aí... no outro dia... umas três horas da manhã... eu acordei... chamando ele pra ir pra

casa... perguntando o que tinha acontecido.... Então ele disse que eu já era mulher.

161
Eu respondi que não... eu não era mulher.... Me lembro que era dia 22 de dezembro.

Quando cheguei em casa... contei pro meu irmão mais velho....Ele então contou pra

minha mãe. Aí começou aquela discussão... minha mãe chorando... porque eu era

ainda uma criança.... Meu pai chegou de viagem e queria ir atrás dele... queria matar

ele.... Denunciou ele na justiça.... A delegada queria que eu casasse com ele. Eu não

queria casar... que não gostava dele... nem ele de mim.... Ele não queria casar

comigo... só queria se juntar e depois me deixar.... Aí eu disse que não queria me

juntar com ele.... Depois de muito tempo... eu comecei a gostar dele. A gente então

se juntou... por causa da delegada... que forçou muito... Mas todo dia ele batia em

mim.... Só vivia batendo em mim.... Até mulher ele levava lá pra dentro de onde a

gente morava... um quarto...Eu só vivia chorando atrás dele...e ele dando surra em

mim todo dia.... Aí a gente se deixou. Depois que eu deixei ele... eu conheci umas

meninas lá... todo dia bebia... chegava de manhã em casa... isso acontecia todo dia....

Aí eu saía com homem... bêbada. Depois eu deixei disso. Então conheci um rapaz

que é casado.... Esse por quem eu tentei me matar.... Eu já sofri tanto... assim... por

causa de besteira.... Mas agora eu estou quieta.... Estou começando a me ajeitar....

Agora... quando eu olho pra minha vida... quando eu vou dormir e penso

como era antes... eu começo a chorar.... mas agora... não. Antes eu vivia bebendo...

bagunçando no meio da rua... brigando... Aí fico pensando como era antes e como é

agora. Antes... era desse mesmo jeito que estou falando... bebendo todo dia....

Sempre foi assim... sempre... Antes foi... agora não... eu estou mais quieta. Mas antes

era sempre assim....

Isso tudo aconteceu dos treze anos aos quatorze anos... eu vivia assim..

bebendo. Antes eu vivia dentro de casa.... Não saía.... Era do colégio pra dentro de

162
casa... não arredava o pé de dentro de casa. A minha vida era melhor... Ninguém

nunca dizia que eu era perdida... ou vadia.... Minha vida sempre foi boa. Meu pai...

pra onde ia... pra qualquer canto... me levava. Quem conhece aquele ditado que diz

que o amor de pai não acaba nunca? Mas o amor dele era muito bonito comigo...

sempre me senti amada por ele.... Agora não.... Sentia... agora só me sinto amada por

minha mãe.... Porque a única pessoa que eu gosto ali é dela... ela me apoiou em

tudo.... Mesmo eu fazendo coisas erradas... ela me apoiava. Me tratava com carinho...

amor... Agora é um pouco diferente... Sinto falta do amor do meu pai.... Se ele me

tratasse como era antes... eu acho que eu não vivia trabalhando dentro da casa dos

outros... eu estaria na minha casa... e não na casa de ninguém.... Eu seria a melhor

pessoa do mundo pra ele.... Eu gostaria que ele me tratasse melhor.... Mas nunca

conversei com ele sobre isso... Não assim... A nossa conversa era assim: primeiro ele

pedia pra eu esquecer o rapaz com quem eu vivia...que era casado. Ele não entendia

que ninguém tem culpa de não mandar no coração... de gostar de alguém...

Eu ainda gosto daquele rapaz... mas não como era antes. Tentei me matar por

causa dele... Ainda gosto... mas procuro evitar... me afastar dele... pra minha vida se

tornar melhor.... Ainda estou ligada nele... mas faz um bom tempo que não o vejo....

Ele está com uma menina que era amiga minha. Tá namorando com ela... Continua

casado...mas namorando com ela.... Eu me sinto triste com isso... mas não posso

fazer nada.... A vida é deles... é dela... Eles que façam a vida deles pra lá. Eu gosto

dele.... Mas não posso fazer nada.... Eu já tentei fazer tantas das coisas... tentar me

matar... e toda vez ele chegava e falava: "eu gosto muito de você... você é isso... você

é aquilo pra mim... eu nunca vou deixar você". Mas ele dizia que eu era criança

demais... aí quem se deu mal nessa história fui eu... não foi ele. Ele só vive falando

163
que está com um bocado de menina de família... mocinha... e pra que ele ia querer

uma vagabunda como eu?

São os amigos dele que me contam isso... mas eu não acredito não.... Apesar

de me sentir muito triste com tudo isso... por tudo que tenho passado... não tenho

feito nada pra mudar essa situação.... Trabalho aqui e aluguei um quartinho pra

passar o final de semana... Quando vou em casa... me sento lá na área... fico

conversando com minha mãe.... Quando meu pai chega... peço a benção a ele.... Mas

ele não quer conversar comigo... ele não conversa... Se eu pedir dinheiro pra ir numa

festa... no SESI.. por exemplo... ou em qualquer lugar... ele não me dá. Ele me manda

pedir aos meus machos! É por isso que eu criei raiva dele.... Um tipo de ódio assim...

que eu não sei o que é ódio.... Dá uma raiva... assim... Que eu acho que se ele

chegasse pra mim e conversasse bem direitinho... eu seria a filha melhor do mundo

pra ele....

Gostaria de ouví-lo dizer que gostava de mim.... Que me pedisse pra voltar

pra casa... como era antes.... Acho que é por isso que não fico em casa quando vou

pra lá.... Eu moro nesse quartinho...que eu aluguei.... Só tem minha cama... minha

cômoda... minhas roupas... alguns objetos meus... íntimos. Não tem fogão...

geladeira... nem nada.... Às vezes... quando eu vou pra lá... no final de semana... eu

não como nada.. só pra não ir lá comer... pra ele não falar. Tudo o que ele fala é que

eu só vou pra casa comer e tomar banho e depois vou pro meio da rua...

vagabundear.... Por isso que eu não vou nem lá... Prefiro ficar onde eu estou morando

no final de semana...

Quanto a essa casa onde eu trabalho... eu também gosto de ficar aqui. Eu

passo a semana aqui e final de semana lá... às vezes eu fico aqui e outras vezes eu

164
vou em dia de semana pra lá. Vou conversar com uma amiga minha que está

grávida... não sai de casa.... Sempre vou lá conversar com ela....

Acho que meu pai não me compreende e nem a ninguém... lá em casa. Não

me sinto tratada do jeito que gostaria.... Por isso eu sinto ódio dentro de mim...

Quando eu pego em dinheiro vou logo beber. Atualmente... só bebo às vezes... Antes

eu bebia muito... agora não... parei mais... Tinha dia que eu não passava um dia

sequer sem beber... que eu ficava doida...

Eu bebia muito porque pensava que bebendo... ia apagar tudo... ia esquecer...

mas não... aí volto no outro dia à realidade. Por isso que eu deixei mais de beber....

Cada vez que eu me lembrava de tudo... ia beber de novo. E assim... ia... Quando

bebo... começo a chorar... a desabafar... não tem quase ninguém com quem eu possa

conversar... só tem uma amiga mesmo que eu converso meus assuntos com ela. É

essa amiga que está grávida.... Só com ela que eu converso mesmo.... Às vezes... ela

me dá conselho pra eu não beber. Ela é super legal...

Com exceção da bebida... eu não uso outro tipo de droga. A única coisa que

eu fiz na minha vida foi tomar esse comprimido que eu nem sabia que tinha na minha

bebida. Quem me contou sobre isso foram os amigos dele... que o viram colocando

na bebida.... No outro dia me contaram...e aí falei pro meu pai. A vontade do meu pai

era que eu dissesse à delegada que eu tinha sido estuprada... que havia sido forçada....

Mas eu não queria isso.... Um dia ele vai pagar o que fez comigo e com outras.

Embora eu não estivesse sabendo o que se passava... por conta da droga... eu também

não queria que ele passasse o resto da vida dentro das grades... preso.... Um dia ele

vai pagar o que ele fez comigo....

165
Hoje... pensando na minha vontade de morrer... eu achava... naquele tempo...

que eu fiz isso.... que se eu morresse as coisas iam melhorar.... e eu não ia sofrer

mais.... depois... ao mesmo tempo eu pensei: "– eu vou morrer... todo mundo vai

ficar aí... rindo da minha cara... que eu morri por causa de um homem." Eu falei pra

mim mesma: "eu não! Eu vou curtir minha vida". Eu sou muito nova... eu tenho

quinze anos agora... eu ainda vou aproveitar muito.... Que um dia vai chegar uma

pessoa que me faça feliz... Eu estou esperando isso.... E também não estou fazendo

nada para ser feliz...

Eu tenho planos de estudar. Eu fiz até a quarta série... mas saí do colégio... no

tempo em que me juntei àquele rapaz.... Eu não penso nem em me casar... mas em ter

um filho.... Teve um tempo que eu acho que estive grávida... não sei.... Foi desse

rapaz casado... então minha mãe me mandou tomar remédio pra abortar. Pois...

realmente... ter um filho de um homem casado... Ele já não tem o que dar ao filho

dele... que dirá ao meu! Aí eu tomei alguns remédios e então a minha menstruação

voltou... depois de muito tempo... Atualmente não tenho vida sexual. Não tenho

namorado... nem quero... agora não. Mas antes eu me prevenia pra não engravidar...

com camisinha... ou então eu tomava uns comprimidos... só uma vez que eu

esqueci... essa que eu falei e que eu pensei que estava grávida... eu acho que estava.

Faz mais ou menos um ano....

Depois daquela vez que tentei me matar... nunca mais pensei nisso. Agora...

pelo contrário... eu faço amizades com as meninas que estão com ele. Ainda assim...

ando brigando com algumas delas.... Estou assim toda marcada por conta de umas

brigas com uma menina que sai com ele... pois ela falou que eu estou com ele... sem

estar. Aí ela veio bater no meu rosto... deu um tapa no meu rosto... aí eu briguei com

166
ela. Isso aconteceu somente duas vezes... durante uma semana. Eu briguei com essa

domingo... e com a outra... terça-feira.

167
Narrativa 5: Marta, 15 anos

Vou contar sobre a minha experiência quando eu quis morrer. Me lembro

que veio algo na minha cabeça... Aí eu pensei: "Eu vou fazer isso que é melhor pra

todo mundo". Fechei a porta do quarto...me deitei na cama... Depois eu fiquei

pensando... Aí veio aquela agonia... aquela coisa na minha cabeça: "Faz... Faz... Faz

isso..." Foi quando eu peguei o lençol e ... enrolei assim no pescoço... aí eu fiquei

meio agoniada. Aí minha mãe bateu na porta do quarto. Como eu não tinha

respondido... ela abriu e ...

Não tenho certeza de como estava me sentindo...Sei lá...! Na hora me deu

vontade. Pensei: "Vou fazer isso que é melhor pra mim...pra todo mundo". Aí eu

fiz...! Fiquei agoniada na hora...só. Minha mãe... quando viu...tirou o lençol e

perguntou porque eu queria fazer isso. Na hora...eu fiquei tão agoniada... sei lá...! Eu

tive pena dela...Vi que não devia fazer isso... não....

É que eu gosto muito da minha mãe... Não vale a pena fazer isso.

Primeiro...que eu vou fazer ela sofrer.... Aí eu...Não vou fazer isso não...não.... Não

vale a pena... mas toda vez que eu fico desse jeito...me dá vontade....

Às vezes eu me sinto assim....Mas não sei dizer o que me faz sentir desse

jeito...Sei lá...! Eu fico...agoniada... tento resolver os problemas... não consigo.... aí

ah... eu vou resolver assim...! Mas...às vezes... eu acho que não vale a pena... não....

Tudo isso é por conta dos problemas que eu quero resolver e não consigo.

Aí... eu fico..."Não vou fazer isso...não..." Porque eu tenho pena da minha mãe

também. Às vezes...eu acho que não vale a pena...

168
A primeira vez que eu tentei isso... eu sei lá... eu também me arrependi... Eu

tentei uma outra vez...que eu peguei o negócio do fogão e queria tomar...Foi com um

líquido que se usa pra limpar o fogão...alguma coisa desse tipo...

Essa tentativa com o lençol faz uns dois meses...ou uns três... E essa tentativa

com o líquido foi depois...Acho que foi mais ou menos há um mês atrás...Eu estava

lá fora...e minha mãe estava lá dentro fazendo as coisas. Aí eu peguei... vi aquele

negócio debaixo da pia.... Aí eu fui lá pra ver o que era... Vi que era o líquido de

limpar o fogão...então decidi tomar...desistir logo da minha vida... Peguei um copo...

tomei só um pouquinho assim... não muito. Mas na hora que eu fui tomar a minha

mãe viu. Aí eu fiquei numa agonia... Ela falou: "você ia tomar... não é"? Eu respondi

que não...Eu queria morrer pra desistir de tudo... Eu sabia que aquele limpador de

fogão era veneno...Desde uma vez que minha mãe foi limpar o fogão e ela me

disse...aí eu fui debaixo da pia...e aconteceu...

Mas só foi isso que aconteceu... Quando eu penso na minha mãe... eu não

quero fazer isso... não....Acho que o que me segura... o que segura a minha vontade

de fazer isso é a minha mãe. Não vale a pena fazer isso... não....

Esses pensamentos passam pela minha cabeça...quando eu penso em resolver

todos os problemas...Aí eu digo: "Eu vou fazer isso... vou resolver tudo..." mas eu

acho que não....Queria resolver os problemas... Não quero brigar com meu irmão...Eu

tinha que segurar a barra antigamente. Me dava raiva... Aí eu não aguentava...

voltava.. só que agora...É tudo muito chato!

Só vejo problemas...na vida..! São uns problemas bestas... tem coisa demais

pra resolver... um monte de coisa... Negócio de ir pra escola...Mas é só por

169
isso...Essas coisas...de vez em quando me perturbam...Mas agora até que está

melhorando... Tem horas que eu ainda penso em morrer... Até um dia desses eu ainda

pensava... Agora até que melhorou...Antes de tentar a primeira vez eu nunca havia

pensado nisso...

Foi tudo porque me dava revolta... quando eu estava morrendo de dor e

ninguém entendia... Eu estava operada... E estava sentindo um pouco de dor....Mas

ninguém acreditava em mim... meu pai... meu irmão... não acreditavam em mim...Por

isso...eu achava que eles não gostavam de mim...Foi quando eu resolvi fazer isso...

Aí eu pensei... como ninguém está se incomodando comigo...me revoltei...e fiz isso

Quando eu me lembro dá vontade de chorar...choro...e também sinto

raiva...Essa raiva eu sinto de tudo... Meu pai não se entendia com meu

irmão...brigava com ele.... e ele sai gritando... E isso... eu não agüento mais...Mas no

dia que eu fiz isso eu não tinha brigado com eles...Só veio na minha cabeça: "Eu vou

fazer isso... aí melhora a vida de todo mundo..."

Hoje ...eu penso mais ou menos assim: "Ah... eu fiz errado... não devia ter

feito isso. Porque...eu... destruindo a minha vida... quem ia morrer sou eu...não eles.

Pra eles ia ficar tudo bem...e eu... não". Aí eu pensei e disse... não. Não vou fazer

isso...Não vale a pena.... Não vou tirar a minha vida... não. Só quem tira é Deus...e eu

não vou fazer isso...

Só queria terminar dizendo que não vale a pena fazer isso...Problemas...Mas

não é assim que se resolve... não...Eu me achava culpada por todos os problemas...

Mas eu não sou culpada por nada... não. Sei lá...! Eu me preocupo... mas... fazer

isso...não....

170
Narrativa 6- Alex, 17 anos.

Meu nome é Alex... tenho dezessete anos... farei dezoito em outubro. Vou

falar pra você sobre o que passei quando quis me matar. Isso aconteceu de

repente...Foi alguma coisa que deu na minha cabeça de repente....Eu andava

bebendo muito...Brigava... arranjava encrenca....

Minha mãe morreu queimada com álcool...por causa do meu padrasto. Mas

muita gente dizia que foi culpa minha... Dizia que era culpa minha porque eu fazia

muita raiva a minha mãe. Aí...Aquilo foi ficando na minha cabeça....foi ficando.....

Eu vivia dizendo aos meus amigos que ia fazer isso. Ninguém acreditava...... E um

dia....eu bebi... bebi...bebi...aí fui pra casa...e pensava em fazer isso nesse dia. E de

repente....deu na cabeça.... Comprei dois litros de álcool.... ensopei a roupa...vesti....e

toquei fogo....

Aí o vizinho apareceu e me salvou. Tirou a roupa... conseguiu ainda tirar

metade da roupa rasgada.... E foi por isso que eu ainda estou vivo... Consegui sair

dessa.... Só vivia brigando em festa... fazendo arruaça..... Mas não foi sempre

assim... não....No tempo em que minha mãe era viva... não era assim não.... Faz dois

anos que a minha mãe morreu....Eu tinha então 16 anos mais ou menos...Ela morreu

no dia das mães....Ela se queimou....E aí o pessoal só vivia botando a culpa em

mim....

Pessoal que eu falo era o povo da rua....Inclusive a minha tia...quando estava

com raiva de mim... dizia que quem matou minha mãe fui eu. Aí eu ficava com

desgosto....Só sentia desgosto....Só ficava com desgosto.... Aí ficava pensando... será

que fui eu mesmo? Ficava em dúvida se eu tinha mesmo culpa....Será que fui eu

171
mesmo? Será que ela morreu mesmo por causa de mim? Eu não sei....Eu não sei o

que pensar sobre isso....não sei...eu não sei.... Eu me arrependi do que eu fiz. Agora

tenho que levantar a cabeça e seguir a vida pra frente.... Não pensar em fazer de

novo....

A minha vida no tempo em que eu morava com a minha mãe era uma vida

normal. Ela tinha um bar....Eu não bebia.... bebia pouco.... Ela não gostava porque eu

bebia.... Vivia bem normal como a vida que qualquer um vive. Morávamos só nós

dois....mas tenho uma irmã....Mas por parte de pai tenho outros irmãos....Meu pai

morreu num acidente de carro... há mais ou menos cinco anos.....nessa época ele e

minha mãe já viviam separados...há muito tempo....tinha outra mulher....

Quanto à minha história desde pequeno...vou falar um pouco....Quando eu

nasci...a minha mãe não podia ficar comigo....porque ela tinha uma casa de drinks....

Aí eu só ia vê-la.....Por isso ela não tinha condição de me criar....não é..? Então..

quando a minha avó morreu... ela disse "– Não...! Vou acabar com isso". Aí

acabou.... Botou só um barzinho pra ela mesmo....

Quanto ao meu pai...não me lembro dele não....Só encontrei com ele quando

ele trabalhava na Coca. Mas eu não me lembro muito do jeito dele... não. Me lembro

assim... pouco....que ele era alto....Quando eu o vi...eu era pequeno....

Dessa época... eu me lembro do dia que vieram me dar a notícia: "– seu pai

morreu". Eu não vi... não cheguei a ver.... Eu vi quando ele estava vivo.... Mas

quando vieram dar a notícia... ele já tinha se enterrado há uns cinco dias. Foi quando

eu soube da sua morte.....Mas minha mãe já sabia.... Só que nesse tempo eu morava

com a minha avó. Aí com um tempinho... minha avó morreu... aí eu tive que ir morar

172
com a minha mãe....e a partir de então fiquei morando com ela..... A minha avó

morreu logo depois do meu pai....mais ou menos uns três ou quatro meses

depois....Ela morreu de câncer.... Ela já vinha sentindo dores... só que ela não dizia

nada pra gente....Morávamos eu e minha irmã com ela....

O meu relacionamento com a minha mãe era bom. Ela só não gostava porque

eu bebia....quando eu saía pra jogar bola...e vivia bebendo...Aí ela reclamava...Ela

queria que eu fosse pro colégio... eu dizia que ia...mas não ia. Saía para as festas...Por

conta disso tudo..... Aí muita gente....quando ela morreu veio dizer que foi culpa

minha....porque eu dava raiva a ela. Aí eu fiquei pensando.... Eu só vivia tentando

fazer isso...me matar....mas quando chegava na hora...eu não tinha coragem....

Eu vivia pensando em me matar e já tinha tentado outras vezes....umas duas

vezes.... Chegava a ensopar a roupa com álcool...mas na hora de riscar o fósforo eu

não tinha coragem.... Duas vezes... por duas vezes eu não tive coragem....Nessas

horas eu pensava em morrer.... Queria ir para o lugar onde ela estava....Pensava em

me encontrar com ela...Queria saber por quê ela fez aquilo.....Se foi por minha

causa...se não foi.....Queria tirar essa dúvida...E..descansar onde ela está....Só que eu

vi que não é futuro... não é.....?

Agora o que eu quero é esquecer....tirar isso da cabeça.... Vou morar com a

minha irmã...minha irmã gosta muito de mim....

Depois que minha mãe morreu eu fiquei morando com minha tia. Aí depois

vim pra casa de uma outra tia aqui ... foi onde aconteceu....

Eu sempre morei aqui na capital..... Nunca morei no interior... não....No

tempo que morei na casa da minha tia....a minha vida foi normal. Mas aí eu comecei

173
a beber... beber...de novo.... Então disse que não me queria mais lá....Foi quando eu

fui pra casa de outra tia...em outro bairro....Foi onde eu toquei fogo em mim.... E aí

vim pra cá...para o hospital..... Mas agora eu vou morar com a minha irmã. A minha

irmã mora só... separou-se do marido....depois que a minha avó morreu... ela

casou....eu fui morar com ela e o marido.... E depois que a minha mãe mudou de

casa... eu fui morar com ela..até acontecer isso.

No dia em que tentei me matar eu não estava sozinho em casa.....A minha tia

estava lavando roupa...Ela sentiu o cheiro de álcool....Correu....Na hora que ela ia

chegando eu já ia riscando o fogo....Ela saiu gritando....E aí o vizinho pulou... jogou

um tapete....um lençol....em cima de mim....aí o fogo abafou mais.... Ele puxou a

minha bermuda jeans... senão tinha queimado tudo. Eu não tinha ficado vivo...

não....Porque eu ensopei a roupa... vesti.....Eu estava com uma bermuda jeans e uma

camisa... Eu ensopei a camisa e a bermuda todinha...vesti e joguei álcool aqui em

cima de mim... queimei...queimou tudinho...Nessa hora.....Eu só pensava que ia

morrer....

Na hora eu pensei na minha irmã e na minha sobrinha.... Na hora... depois...

eu fiquei pensando... na minha irmã – "o que é que ela ia pensar, não é?" Porque eu

me queimei também... E pensava se ela também ia ficar com culpa...como eu fiquei

com a minha mãe.... sei lá....Como eu disse... sempre pensei em me matar....Mas

sempre pensava na minha irmã e na minha sobrinha.... Eu gosto muito delas duas....

Aí eu pensava... Só...só nisso...mas não chegava a fazer.....Só que dessa vez não

consegui evitar....A minha sorte foi o vizinho. Se não fosse ele eu estaria morto.....

Eu sempre dei muito trabalho pra minha mãe....Eu dizia que ia pro

colégio..mas não ia...sentava com os amigos e ia beber no meio das festas....Aí só

174
chegava de manhã. Aí isso também... ela ia ficando com raiva...não é.?...Acho que

juntou os problemas dela....com os meus....Pois ela tinha muitos

problemas....Problemas de pagar as coisas.... casa...pois a gente mora em casa de

Caixa.... Acho que preocupava muito ela. Se preocupava muito comigo... Ela não

queria que faltasse nada pra mim. Aí ela foi se preocupando... se preocupando... aí

foi juntando as coisas... fez do que fez....

Agora eu me sinto arrependido do que eu fiz.... Do que eu vivia fazendo....

Penso em sair daqui.... Tem um colégio aí que minha irmã arrumou...pra eu

estudar......

Também pretendo fazer um curso para ter uma profissão. Quero estudar o dia

inteiro...fazer esse curso e só ir pra casa à noite.

Pois é....eu estou pensando em fazer isso... sair e esquecer o passado....

Esquecer as amizades... Pois todo o tempo que eu estou aqui ninguém veio me ver...

passei muito mal... Mal... mesmo.... Até o médico chegou a dizer que... ... porque eu

cheguei muito queimado... veio dizer que ... eu ia precisar de cirurgia...pra enxerto.

Em muitos lugares do meu corpo....felizmente nem precisou....Vai precisar só nas

costas ...

Já com a minha avó era bom.... Eu gostava muito dela.... Sofri muito com a

morte dela....Gostava muito da minha avó.... muito mesmo....... gostava muito

dela...... senti muito a morte dela...foram duas perdas, não é..? Soube da morte do

meu pai...E logo depois.....da minha avó....

175
CAPÍTULO VI

COMENTÁRIOS E INTERPRETAÇÃO

Os relatos dos adolescentes são a narrativa densa da experiência em relação à

tentativa de suicídio, aos motivos alegados, às dores, às histórias de vida e a tudo que

se relaciona às vivências importantes.

São pessoas pertencentes às classes sociais e econômicas baixas, com renda

inferior à média, com exceção de Marta, uma adolescente cujos pais são funcionários

públicos, de classe média baixa, o que, de certa forma, não chega a representar uma

diferença muito significativa. O mesmo se aplica quando se observam as narrativas,

em função do nível sócio-econômico. Todos os jovens encontram-se entre os quinze

e vinte anos, com entrevistas realizadas entre agosto de 1999 e julho de 2000.

Podemos iniciar esta etapa do trabalho reconhecendo o fato do ser humano

sempre buscar uma explicação para o seu viver e para o morrer também. Talvez por

essa razão este aspecto tenha sido observado nas narrativas dos adolescentes sobre as

suas experiências de querer morrer. Percebe-se, em todas elas, uma fala que aponta

os motivos de cada um, as situações e pessoas envolvidas na experiência. A

176
experiência narrada é sempre relacionada a momentos de vida e fatos que

conduziram o jovem àquele ato de desespero. Há sempre um motivo ou motivos que

são apontados como geradores da crise que sinaliza para a morte como uma saída.

As experiências de vida dos jovens revelam que a maioria deles encontra-se

mergulhada em famílias desestruturadas, com histórias de agressões físicas e abusos

sexuais, como se pode ver nos depoimentos de Valda e Leila:

Ficou muito difícil porque o novo padrasto começou a mandar


nela... Ele batia muito em mim de cabo de aço... de cinto... de
corda... enfim... com qualquer coisa que ele tivesse à
mão...Além de tudo... meu padrasto já pegou nos meus seios...
deu-me balas para que eu não contasse nada a minha mãe.
Porém eu disse a ela... que então brigou com ele mas não
adiantou de nada... passou um mês brigando e depois voltou
tudo. Ele batia em mim e ela não ligava. Quando ele me
espancava... ela não falava nada... Isso trouxe uma revolta para
os filhos... tanto pra mim quanto para o meu irmão. (Valda)

Eu acho que desde pequenininha eu me sentia rejeitada...


pois eu morava com minha mãe... e ela sempre batia em
mim...batia na minha cabeça.... Eu era sempre a que mais
apanhava.... Eu tenho uma irmã mais nova que eu. Mas ela
nunca bateu na minha irmã....Bater pra deixar marca... era só em
mim... Eu não sei porque... mas ela só batia em mim pra deixar
marca.... A última surra que eu levei do meu padrasto quando eu
morava lá... eu quase que morria mesmo.... Se não fossem os
filhos da minha madrinha eu tinha morrido... eu acho. Eu tinha
uns dez anos... foi uma surra que eu levei dele... Ele me
esmurrou aqui... na minha nuca... e eu saí de lá desmaiada. Não
vi nada.... Só depois é que voltei à consciência. (Leila)

Essas evidências já vêm sendo ressaltadas nos estudos de Katila e Lonquist

(1991), Botega et al (1995), Cassorla (1984) e Mioto (1994) entre outros, que

identificaram, em seus estudos com jovens que tentaram suicídio, problemas de

desagregação familiar, perturbações emocionais, famílias pobres e mal integradas, ou

177
seja, um contexto de dificuldades de ordem pessoal, social e familiar, semelhante à

realidade vivida pelos adolescentes deste estudo.

As narrativas dessas jovens revelam experiências de vida comumente

marcadas pela rejeição, abandono e incompreensão. Algumas delas, como Valda e

Leila, têm história de adoção, o que lhes favorece momentos de confusão e conflitos

em relação à sua identidade e à sua aceitação pelos pais e pela família. A conturbada

história de Valda, que acaba entrando na prostituição, e com um filho que ela coloca

no mundo em plena adolescência e com uma identidade confusa e elaborada em meio

a tais adversidades, são fatos relatados por ela como fatores causadores de grandes

sofrimentos e responsáveis pela sua conturbada trajetória de vida. A formação do ego

foi deturpada logo no início da vida, com a rejeição dos pais, com a ausência do

olhar de acolhida dos pais, um olhar que diz “tenho orgulho do filho que gerei, veja

como ele(a) é lindo(a)”. Essa rejeição do olhar acolhedor dos pais impede a formação

de um self estruturado e capaz de se desenvolver plenamente.

Os motivos causadores da tentativa de suicídio sempre são identificados pelos

jovens. Há uma razão aparente e consciente que explica o ato que cada um cometeu

contra si mesmo, o que mostra uma certa compreensibilidade dos motivos de cada

um, revelando uma das estruturas existenciárias do ser, a compreensibilidade,

proposta por Heidegger.

Leila é muito clara nas suas palavras:

...eu acho que a tentativa de suicídio é mais o


“rejeitamento”....Eu acho que pra pessoa tentar se suicidar
sempre tem que ter um motivo. A pessoa não vai tentar querer
tirar a vida sem ter um motivo... tem aquele motivo... do
problema....

178
Senti vontade de morrer por causa de um homem sem futuro....
Um rapaz sem futuro... que não presta.... Eu pensei em morrer
por causa dele....

Marta:

Esses pensamentos passam pela minha cabeça...quando eu penso


em resolver todos os problemas...Aí eu digo: "Eu vou fazer
isso... vou resolver tudo..." mas eu acho que não....Queria
resolver os problemas... Não quero brigar com meu irmão...Eu
tinha que segurar a barra antigamente. Me dava raiva... Aí eu
não aguentava...

Alex:

Minha mãe morreu queimada com álcool...por causa do meu


padrasto. Mas muita gente dizia que foi culpa minha... Dizia que
era culpa minha porque eu fazia muita raiva a minha mãe.
Aí...Aquilo foi ficando na minha cabeça....foi ficando..... Eu
vivia dizendo aos meus amigos que ia fazer isso. Ninguém
acreditava...... E um dia....eu bebi... bebi...aí fui pra casa...e
pensava em fazer isso nesse dia. E de repente....deu na cabeça....
Comprei dois litros de álcool.... ensopei a roupa...vesti....e toquei
fogo....

Nessas falas, os motivos alegados sempre se localizam na figura de um outro,

representado pela família, namorado, marido e situações desfavoráveis de vida;

enfim, pelos outros do mundo. Aqui vê-se a presença da cotidianidade na qual esses

jovens estão absorvidos, na ruína e decadência que a absorção de um outro que não é

o seu ser, provoca.

Na verdade, uma crise, como diz Procópio (1999), que surge na convivência

com um desses outros concretos serve para deixar à mostra e revelar uma angústia

que já está aí, porque é originária do SER, como nos faz ver Heidegger (1927). E

que, ao ser descoberta, diante da dor que provoca, surge a necessidade de nomeá-la,

179
de fazê-la compreensível, a fim de aliviar o desespero de não se saber. E o que pode

acontecer a seguir, é o que geralmente ocorre num momento desses. Não raro se

aponta um motivo, um acontecimento ou um outro concretizado na figura de alguém,

que é o elemento causador do fato. Na verdade, é a angústia que não é encarada, e da

qual o jovem não se apropria, como sendo parte da sua existência. É a revelação do

ser e também do não ser. Porque é nessa dimensão de velamento e desvelamento que

se dá a pre-sença, ou seja, a existência.

É nesse momento, também, que a angústia pode ser facilitadora de uma

mudança nos rumos da existência. Como disse Heidegger (1927), nesse momento

duas alternativas se colocam diante do ser: continuar na ruína, ou seja, absorvido pela

cotidianidade ou se apropriar do si mesmo, ao buscar uma existência mais autêntica.

Como se pode ver, nos depoimentos mostrados aqui, a alternativa tem sido uma

outra: a tentativa de morte.

Contudo, ao não enfrentar essa realidade, parte-se para localizar no mundo

concreto, no outro, e não em si mesmo, uma explicação para a dor. O sofrimento

decorrente da angústia necessita ser nomeado e compreendido. É difícil para o

homem olhar de frente a sua finitude, porque ao fazê-lo, além de enfrentar a certeza

da morte, ele ainda tem que assumir a vida. A possibilidade da morte revela a vida

que se vive. E enfrentar a realidade da vida que se tem é tão frustrante, que em

muitos jovens, prevalece a intolerância à dor, o que os leva, freqüentemente, a

escolher a morte para escapar a esse sofrimento. O sofrimento de empunhar o seu si

mesmo, de apropriar-se da sua existência assumindo todas as implicações que daí

decorrem.A morte, sendo uma possibilidade, está presente no ser-aí e é também uma

possibilidade do homem.

180
A natureza dessa dor é muito bem reconhecida pelas palavras de Rosa

(1998)20 ao afirmar que:

Esse tipo de dor está associado com a perda de um estado


mental e de um equilíbrio psicológico em particular. Em geral a
dor está unida a uma maior percepção do self e da realidade de
outras pessoas (...) Portanto, está ligada a uma sensação de ter
uma existência separada do outro. (p. 82).

Entretanto, a capacidade para ser autêntico é inerente ao "self ", por ser

parte do dasein, isto é, pelo fato de estar lançado no mundo e assim,

representar sempre uma possibilidade de ser. E essa possibilidade, o vir-a-ser,

acontece na experiência permanente de se ver no mundo, como afirma Burton

(1978). Este autor refere-se, com muita pertinência, ao processo de vida que ocorre

com alguém que tenta o suicídio. Diz ele que a maior forma de ansiedade, por

definição, fica sendo a inautenticidade e uma vida não preenchida. A ansiedade é

sempre o grande sinal entre o eu e suas próprias expectativas (p. 173).

A ansiedade ocupa o vácuo deixado pelo não-ser. A experiência, quando não

vivenciada e atualizada no cotidiano, leva o homem a, cada vez mais, alienar-se do

seu eu, do si-mesmo, gerando um estado de ansiedade e às vezes de depressão; esses

modos de ser nada mais representam do que um não-ser. E quando a ansiedade chega

ao seu mais alto grau, aos seus limites mais extremos, desenvolve-se o terror e o

desespero, tão presentes nas experiências de quase-morrer, como aquelas relatadas

neste trabalho.

20
Rosa, J.T. (1998, p. 82). Ese tipo de dolor está asociado com la pérdida de un estado mental y de
un equilibrio psicológico en particular. En general el dolor está unido a una mayor percepción del
self y de la realidad de otras personas (...) Por lo tanto, está ligada a una sensación de tener uma
existencia separada del outro.

181
É preciso compreender que, para esses jovens, a tarefa de ser autêntico, de se

apropriar de si mesmo torna-se mais difícil ainda ou mesmo impossibilitada de

ocorrer pelas diversas circunstâncias que envolvem a sua existência. Além de serem

jovens em plena adolescência, momento este marcado pelos conflitos próprios desta

fase e por aqueles anteriores que agora são revividos, ainda têm que lidar, e como se

vê, de forma dolorosa, com as vicissitudes da sua vida real, seja no âmbito familiar,

seja no contexto social mais amplo. São geralmente famílias desestruturadas, que não

favorecem vínculos afetivos positivos com os seus filhos, isso quando os assume;

quando não, os jogam no mundo para que eles enfrentem as suas mudanças e

adversidades por conta própria. Ou seja, os pais, como se percebe nesses

depoimentos, não possuem recursos para lidar com a problemática dos seus

adolescentes.

Esta é uma realidade social que presenciamos em nossa sociedade

globalizada,como já comentamos em capítulo anterior. Contudo, não se pretende,

com tal argumento identificar, exclusivamente nas condições sociais e econômicas os

aspectos causadores ou motivadores que favorecem a tentativa de suicídio desses

jovens. Pois isso seria negar todas as evidências de que este ato acontece em todas as

sociedades, principalmente nas mais desenvolvidas e que não têm esse tipo de

problema social. Contudo, é impossível deixar de reconhecer que a miséria, a

pobreza e a injustiça social comprometem a qualidade de vida e, conseqüentemente,

a saúde mental de uma população.

A este respeito, Buarque21 apud Rosa ( 1996), mostra que,

21
Buarque, C. A cortina de ouro, R.J., Paz e Terra, 1995.

182
...tanto a psicopatologia dos pais como a das crianças ambas
podem ser dependentes de um terceiro fator, a qualidade de vida
a que estão submetidas estas famílias: desvantagens sociais,
exclusão social e econômica; conflitos conjugais, oriundos de
dificuldades emocionais associadas à vivência da paternidade e
maternidade responsáveis; e outras adversidades associadas à
vida familiar. (p. 558).

São relações familiares não favorecedoras de um self ou experiência de ser

positiva, que possibilite o desenvolvimento da auto-estima. São relações, lembrando

Rogers (1975), pouco aceitadoras, pouco respeitosas e, desse modo, pouco

facilitadoras para o desenvolvimento dos potenciais de crescimento, inerentes ao ser

humano.

Nesse sentido, as palavras de Rosa (1996, p. 563), dizem, com muita

pertinência, da importância dos vínculos primitivos vividos pelo adolescente:

A criança e o adolescente vivem imersos na cultura emocional


de seu grupo social e da família, a qual administra e organiza as
defesas, diante das angústias e conflitos entre medos e desejos,
através da sua própria cultura afetiva.

As palavras de Valda são exemplo do que é viver numa família onde a

humilhação e o desrespeito são constantes:

A relação com a minha mãe sempre foi mal. Sempre foi bruta,
sempre foi ruim. Porque ela sempre me humilhava e me
maltratava. Ela sempre passou em rosto que eu era negra, que eu
não era filha dela. Toda vez que eu fazia alguma coisa errada,
ela me batia. Isso desde que eu era pequena.

E Márcia:

Eu me sinto rejeitada pelo pessoal... pela minha família.... Eu


não sei.... Ser filha assim...do meu pai de criação... e saber que
só ele me dá apoio... também me dói... porque minha mãe me

183
abandonou....Antes de me abandonar ela já não ligava pra
mim.... Aí foi juntando tudo...

Como propõe Rogers (1975), as pessoas- critério representam o outro que irá

constituir o auto-conceito que o indivíduo formará acerca de si, constituinte da sua

subjetividade. Se os vínculos com essas pessoas estiverem baseados no respeito à

experiência genuína da criança, no respeito ao seu ser verdadeiro, enfim, se houver

um clima psicológico positivo na dinâmica familiar, então, provavelmente, o

indivíduo desenvolver-se-á de forma positiva e atualizadora das suas potencialidades.

Entretanto, nas narrativas desses adolescentes, é perceptível, em algumas

dessas experiências de vida, a falta de figuras positivas e de autoridade que possam

servir de referências para esse novo ser adulto que no mundo se constitui,

principalmente a ausência da figura paterna que efetivamente exerça a sua função. O

que se evidencia, claramente, na história de Alex, que nunca contou com a figura de

um pai e cuja mãe o deixa entregue à avó, para seguir a sua vida de "proprietária de

casa de drinks". E também na de Valda, que é adotada, e que não é aceita pelo pai em

função da sua cor da pele e que reclama o fato de não ter podido viver uma infância e

adolescência normais: Eu nunca tive uma adolescência... nunca soube o que foi ter

um brinquedo... uma boneca... nunca tive condições de me divertir. Eu caí na

prostituição porque foi minha mãe de criação que me botou nisso. E na história de

Leila, cuja mãe a rejeita, não permite que o padrasto a adote e cuja família, as tias,

segundo ela, não a aceitam e que, além de tudo, ainda passou pela prostituição:

Nunca me dei bem com a minha mãe.... Eu nunca disse nada


com ela. Mas agora... ela sempre achava alguma coisa pra
discutir comigo... sempre... sempre. E depois vieram os
padrastos...Aí ela tinha ciúme de mim com os meus padrastos....

184
Muitas vezes eu chego lá na casa da minha tia... e eu sinto que
não sou bem vinda. E eu sei que é isso porque quando a gente
não é bem vinda... a gente sente....Aí chego na casa da outra...
do mesmo jeito.... Aí começa a revolta e o desespero

... Eu sei que fiquei indo pra praia... trabalhando... fazendo


aquelas coisas... só fiz programa uma vez. Fiquei lá três
semanas.... Ia todo dia e voltava... e foi aí que o juizado me
pegou.

Tais experiências de vida configuram-se como uma forma de violência à

dignidade humana, principalmente por impedirem que essas adolescentes exerçam o

seu direito de cumprir naturalmente uma fase de desenvolvimento, a adolescência,

como deveria ser vivida. Ao invés disso, elas são obrigadas, pelas circunstâncias

psicossociais, a cair na prostituição, violentando o corpo e a alma, pela falta de

condições que lhes permitam ter uma vida mais digna.

A iniciação sexual dessas jovens acontece muito precocemente, como

mostram as experiências de Leila, Valda e Márcia. Leila diz: A minha iniciação

sexual foi ruim demais...Eu tinha onze ou doze anos. Foi aí que eu comecei a ser

internada, São geralmente experiências negativas e insatisfatórias, nas quais se

constata, com freqüência, a presença de agressões físicas, violência e desrespeito à

figura feminina. Observam-se atitudes preconceituosas e machistas não só por parte

dos parceiros dessas meninas, mas também das suas famílias, revelando assim, os

valores culturais, sociais e morais pertencentes à comunidade em que vivem. Além

disso, existem mães, como a de Valda, que induzem à prostituição, desestimulando a

filha para outras alternativas de trabalho mais dignas. Dessa forma, essas jovens são

lançadas à própria sorte, perdem as suas referências familiares, seus continentes

afetivos, quando os têm, e caem no abandono.

185
As palavras de Leila são um exemplo da condição de abandono e desproteção

em que essas meninas muitas vezes se encontram. A morte, então, surge como uma

maneira de se defender do outro, revelando um desespero e uma busca de proteção.

Nessas condições, a morte parece ser uma saída:

Depois....por conta de um namorado...infernizaram a minha


vida.... começaram a me agredir...a dizer coisas comigo...minhas
tias me chamando de rapariga... me chamando de um monte de
coisa... aí eu não tinha como... não sabia como me defender. A
única maneira que eu achei de me defender foi ou me matar... ou
então dizer que não me lembrava de nada. Aí eu tentei me
suicidar....

Não são raras a utilização de drogas, tanto as lícitas, nos casos de Elizabete,

Márcia e Alex, que faziam uso de bebidas alcoólicas, quanto as ilícitas, no caso

também de Elizabete que, além de tudo, envolveu-se com traficantes.

As experiências de algumas adolescentes também falam de depressão,

internamentos em hospitais psiquiátricos, como mostram os depoimentos de

Elizabete e Leila.

Sinceramente... eu não estou entendendo o que se passa comigo.


Estou num estágio de vida em que me vejo parada... eu
estacionei Eu nem ando... nem volto... nem para um lado e nem
para o outro.... Eu parei.... E tenho tido crises depressivas.... Às
vezes eu páro em casa e fico pensando em quantas vezes eu quis
me matar. Por que será...? (Elizabete)

E depois disseram que eu estava doida e então me internaram na


Casa de Saúde de Natal. Depois de muito tempo... quando
aconteceram esses problemas com o meu namorado... eu fui pra
lá. Antes disso eu saí de casa.... Cheguei quase a tomar um litro
de cachaça.... Não tomei porque não deixaram... Isso foi há
quatro anos atrás ou mais ou menos cinco anos atrás.... Eu tinha
em torno de doze anos.... Depois disso... me internaram no
hospital psiquiátrico. (Leila)

186
São histórias de vida que contribuem para a formação de um self inautêntico,

ambivalente e confuso, em que a alienação de si é uma constante, gerando um estar-

no-mundo distanciado do seu ser verdadeiro e onde não há lugar para o respeito e

amor-próprios. Essa alienação de si, da experiência, resultado da apropriação de um

outro que não é o seu ser verdadeiro, gera esses comportamentos de distanciamento

de si, de uma sensação de não se saber quem é, de uma identidade confusa e

ambivalente. Esta sensação de alienação de si está presente na maioria das narrativas

desses jovens. Fica muito clara essa questão nas palavras de Elizabete, que diz,

textualmente:

... por isso me sinto muito mal... por saber que eles não sabem...
por eles pensarem que eu sou a boazinha. Na verdade... estou
escondendo a verdade... como se estivesse escondendo uma
parte de mim... a de que não sou tão boazinha. Aí me pergunto:
"-por que será?" Eu não estou... realmente... com meus pés no
chão....Não estar com os pés no chão é não estar sendo aquilo
que eu acho que sou.... já que eu não era assim... entende?

Essa alienação do self se confunde com a própria identidade. O "quem sou

eu" do adolescente assume configurações mais graves, nessas condições, como

revela Elizabete: Às vezes... pegava minha cabeça... apertava e ficava tentando

entender o que era aquilo que eu sentia... qual o motivo que me fazia sentir daquele

jeito....

Como se houvesse uma certa capacidade intrínseca de compreensão dela

mesma para saber que ela não era aquilo; ainda que não soubesse o que seria. É a

experiência que desvela e ao mesmo tempo encobre o ser, já que a descoberta da

existência ocorre dentro de si mesmo (self) e esta é a condição para o conhecimento

e a experiência, como acredita Morato (1987, p.34), pois Elizabete, apesar de tudo,

187
revela uma consciência de não estar sendo ela mesma. É como se estivesse numa

encruzilhada, onde um caminho lhe aponta a vida autêntica, o verdadeiro self; e o

outro, sinaliza com a aceitação do outro, o sentir-se amada, pagando o preço da

inautenticidade.

A necessidade de ser aceito, amado, surge em todas as falas desses jovens,

seja de forma explícita, consciente, ou não. Na verdade, é a falta de amor e a busca

do outro que perpassa todos os depoimentos desses jovens. O viver de forma

inautêntica, não verdadeira, tem em suas bases a busca de aceitação pelo outro.

Rogers (1975) nos oferece em sua teoria do desenvolvimento, consistentes

argumentos que nos ajudam a entender essa dinâmica que envolve, sempre, uma

culpa por nunca estar sendo como deveria ser, ou seja, pela impossibilidade de

corresponder totalmente à expectativa do outro. Tal forma de funcionamento leva a

sentimentos de irrealização e autodesvalorização, gerando um sentimento de baixa

auto-estima. Podemos identificar claramente a culpa, a busca de aceitação e a

necessidade de amor em alguns trechos das narrtivas:

Leila:

Muitas vezes eu chego lá na casa da minha tia... e eu sinto que


não sou bem vinda. E eu sei que é isso porque quando a gente
não é bem vinda... a gente sente....Aí chego na casa da outra...
do mesmo jeito.... Aí começa a revolta e o desespero.... O
pessoal não gosta de mim.... E eu...sou uma pessoa muito
sentida.... Qualquer palavrinha que você disser... me agrava. Eu
me sinto revoltada, sabe?
Acho que nesse momento eu só pensava em me matar....
Morrer.... Eu não pensava em outra coisa... não.... Eu cortava
meus pulsos e botava uma corda no pescoço... eu queria
morrer.... Morrer era uma coisa em que eu pensava sempre...
sempre...sempre me senti rejeitada pela família.... porque eu sei
que minhas tias nunca gostaram de mim... as irmãs do meu pai.

188
Porque as irmãs da minha mãe eu não conheço....Minha mãe
muito pior....Nunca gostaram de mim.

Elizabete :

Toda essa situação me dá muito medo.... Tenho certeza de que a


minha família não me aceitaria mais... porque as pessoas que eu
amo assim de paixão mesmo... são meu pai e minha mãe e
minhas irmãs... demais! Aí fica aquela coisa... se eu contar... e
um dia eu vou ter que contar.... Já tentei várias vezes... mas não
adianta... então eu vou ficar calada aqui... embora eu ache que
não é o ideal.. não... Vamos ver no que é que vai dar.... É muito
difícil...! Daí vem a vontade da pessoa se matar... tomar
comprimido.... É uma coisa super difícil.... É ruim... é ruim
demais....

E o que me incomoda mais nisso tudo é minha família


não saber e eu tenho medo de contar e elas não quererem mais
conversar comigo..... Eu me emociono quando falo nisso porque
eu acho que um dos pontos que mais me magoam ainda é
esse....Eu estar guardando essa verdade e eles não saberem....

Márcia:

Quando meu pai chega... peço a benção a ele.... Mas ele não
quer conversar comigo... ele não conversa...Gostaria de ouví-lo
dizer que gostava de mim.... Que me pedisse pra voltar pra
casa... como era antes.... Acho que meu pai não me compreende
e nem a ninguém... lá em casa. Não me sinto tratada do jeito que
gostaria.... Por isso eu sinto ódio dentro de mim... Nessa hora eu
só penso em me suicidar... em me matar.

Marta:

Foi tudo porque me dava revolta... quando eu estava morrendo


de dor e ninguém entendia... Eu estava operada... E estava
sentindo um pouco de dor....Mas ninguém acreditava em mim...
meu pai... meu irmão... não acreditavam em mim...Por isso...eu
achava que eles não gostavam de mim...Foi quando eu resolvi
fazer isso... Aí eu pensei... como ninguém está se incomodando
comigo...me revoltei...e fiz isso.

189
Alex:

Minha mãe morreu queimada com álcool...por causa do meu


padrasto. Mas muita gente dizia que foi culpa minha... Dizia que
era culpa minha porque eu fazia muita raiva a minha mãe.
Aí...Aquilo foi ficando na minha cabeça....foi ficando.....
Inclusive a minha tia...quando estava com raiva de mim... dizia
que quem matou minha mãe fui eu. Aí eu ficava com
desgosto....Só sentia desgosto....Só ficava com desgosto.... Aí
ficava pensando... será que fui eu mesmo? Ficava em dúvida se
eu tinha mesmo culpa....Será que fui eu mesmo? Será que ela
morreu mesmo por causa de mim?

A experiência desses jovens, deduzida através das suas narrativas, revelam as

falas, revelam as pessoas que eles são nesse momento, vivenciando sentimentos de

não serem aceitos e reconhecidos como pessoa. Nas palavras de Elizabete, Leila e

Márcia, principalmente, percebe-se a necessidade que elas têm de serem aceitas e

amadas tal como se percebem; e o sofrimento por não estarem inteiras na sua relação

com os pais, com o outro. Podemos dizer que esta seria uma crise instaurada pela

necessidade de ser-com, que é, ao mesmo tempo, impossibilitada, pela consciência

de não se perceber como um si mesmo, um self, pois, como afirmam as palavras de

Morato (1987), se o self não existe isoladamente, mas está no mundo com os outros,

então o conhecimento e a compreensão do mundo e das pessoas são decorrências do

conhecimento e da compreensão de si mesmo (p.34). Assim, viver nessas condições

será sempre um vivenciar de angústias e sofrimentos constantes pela consciência de

não existir nem para si e nem para o outro, de não ser-com os outros do seu mundo,

situações que facilmente conduzem à sensação de fracasso, desesperança e solidão,

os quais podem constituir-se em um caminho que os leve ao fim do sofrimento, de

forma destrutiva, como temos visto nas experiências desses jovens.

190
Ao mesmo tempo, as falas desses jovens dizem de uma impulsividade que se

revela principalmente nos momentos em que eles se sentem rejeitados. A presença de

impulsos de se matar são evidentes, assim como constata-se uma repetição dos

pensamentos e intenções suicidas em diversos momentos das suas histórias de vida.

É visível a impulsividade no comportamento de algumas dessas meninas e no rapaz

também, como se houvessem sentimentos acumulados e contidos de não ser amado;

certamente podemos pensar numa história já sedimentada de rejeição e desamor que,

num determinado momento vem à tona, com uma carga de revolta por não existir

para o outro. Aqui revela-se a necessidade que todos temos de estar-com. E a revolta

de não poder ser reconhecido existencialmente e amado pelo outro pode provocar

reações diversas, entre elas a revolta, depressão, agressividade e até a tentativa de

morte, que é também uma maneira de dizer: eu existo! Olhem pra mim! Ou seja, o

sentimento de não existir para o outro, leva à angústia; e então, sumir, morrer, torna-

se um pedido de socorro ou mesmo um alívio para o sofrimento de não existir.

A solidão é muito presente nas vidas desses jovens. Muitas dessas

adolescentes dizem da sua falta de amigas, de não ter com quem trocar as suas

experiências de inquietudes e tristezas. A relações interpessoais são caracterizadas,

em sua maioria, pelos conflitos e disputas de homens, territórios e poder. Há uma

carência de vínculos afetivos que possam servir de continente às angústias por que

passam esses jovens, sejam no contexto familiar ou no social. Pode ser em razão

dessa falta que alguns deles recorrem às drogas, à vida sexual promíscua e mesmo

aos conflitos com os seus pares na rua e escolas. Os comportamentos hostis, assim

como as respostas agressivas muitas vezes em direção aos familiares, na verdade

podem estar representando uma defesa ou negação da angústia de não ser amado.

191
As experiências narradas nos fazem ver que viver na impropriedade nos

afasta do prazer de viver, da auto-realização e de uma existência autêntica. A

vocação originária de ser-com do homem leva-o a desejar ser aceito, a conviver de

forma verdadeira. Elizabete nos diz, na verdade, que não consegue contactar com a

experiência do seu ser. Confunde a experiência autêntica de ser com uma imagem

que idealiza de si mesma, uma vez que é esta a esperada pelos outros e a quem ela

satisfaz, para, assim, sentir-se amada. Em outras palavras, podemos dizer que

Elizabete, como outras jovens aqui apresentadas, deixou-se absorver pela

cotidianidade; tornou-se impessoal; passou a viver na impropriedade, na

inautenticidade e isso significou perder uma experiência em que o seu verdadeiro ser

se revelou, porém não pode ser apreendido ou apropriado nos momentos da sua

existência, levando-a a uma condição de alienação que cada vez mais, a faz perder-se

em si mesma e no outro, pois como já dissera Morato (1987), a descoberta da

existência ocorre dentro de si mesmo (self) e esta é a condição para o conhecimento

e a experiência (p.34).

Essa condição, portanto, vai gerar uma alienação de si; um não-sei-quem-sou,

que, além de permear de forma contundente e previsível o processo de adolescer, se

vê agravado pela confusão gerada pelas circunstâncias desfavoráveis com que cada

um deles se depara em sua vida.

Em respeito a essa questão, é válido apresentar o pensamento de Burton

(1978), quando afirma que o "eu" se reporta ao si-mesmo para fins de orientação

temporal e espacial. Se a esses "dados" falta ordenação, introduz-se um efeito

bizarro na experiência (p. 159). Assim, como já o fazia Heidegger (1927),

reconhece-se o significado da temporalidade e espacialidade na existência, podendo

192
constituir-se no núcleo da neurose, como afirma Burton (ibidem): ser capaz de viver

em nosso tempo e em nosso espaço é o melhor sinal isolado da aceitação do próprio

ser e da própria cultura (p.159).

Isto me parece verdadeiro no que se refere às tentativas de suicídio. Há um

desespero entre as experiências narradas que se confrontam com um dever-ser que

não cabe no presente, pois é o passado que aprisiona o presente e compromete o

futuro.

Elizabete diz:

Não estar com os pés no chão é não estar sendo aquilo que eu
acho que sou.... já que eu não era assim... entende? Só que
depois parei... estacionei... acabou.... No próprio trabalho... às
vezes... eu digo que estou muito desgostosa... mas não sei qual o
motivo.

E Alex:

Queria ir para o lugar onde ela estava....Pensava em me


encontrar com ela...Queria saber por quê ela fez aquilo.....Se foi
por minha causa...se não foi.....Queria tirar essa
dúvida...E..descansar onde ela está...

E ainda Valda:

Começamos a discutir de novo.... Então eu fui perdendo a


paciência porque ele me chamou de rapariga.... Isso porque uma
vez ele me olhou e disse que se me tirasse daquela casa de
drinks jamais iria chamar-me de rapariga.... Por isso eu fiquei
furiosa... porque ele não devia ter dito aquilo por causa de uma
besteira...

193
O self se perde num tempo que não foi e que já não é. O self ou a experiência

não encontra lugar no tempo que é vivido. Então o desespero e o tempo de um não-

ser se instala.

No entanto, pensando a tentativa de morte, acredito que esta pode ser

compreendida como uma diferente maneira de lidar com a angústia, eliminando-a. É

a incapacidade de enxergar uma existência na qual o outro se institua de um jeito

novo, distinto daquele que o absorveu. Ou seja, a descrença de que a vida possa ser

vivida de uma outra maneira. É também uma recusa em continuar sendo como antes.

A tentativa de suicídio poderia ser pensada como uma forma desesperada de se

apropriar da vida, do seu ser, ainda que seja eliminando-o, o que não deixa de ser

uma forma de assumir o seu destino, como um ser-para-a-morte. Isso pode ser

percebido nas experiências das jovens deste estudo, que colocam a tentativa de morte

como um desejo de sair do sofrimento, sem que se pense na possibilidade de retomar

a vida de diferente forma; e, em se pensando desta maneira, o desejo de morte se

sobrepõe pela descrença em alcançar um rumo diferente para a sua existência.

Quando ocorre de se pensar nessa alternativa, a resposta continua sendo o outro, o

que significa um não apropriar-se da sua existência, como se percebe nas palavras de

Márcia:

Eu sou muito nova... eu tenho quinze anos agora... eu ainda vou


aproveitar muito.... Que um dia vai chegar uma pessoa que me
faça feliz... Eu estou esperando isso.... E também não estou
fazendo nada para ser feliz...

Mesmo após a tentativa de morte, ou seja, a crise, Márcia ainda não

conseguiu perceber uma outra alternativa para a sua existência. Continua sem

apropriar-se do seu ser, e à espera de que alguém faça isso por ela. Na verdade,

194
consigo compreender que esta é uma tarefa muito árdua para essa menina de quinze

anos, que desde os treze foi expulsa de casa pelo pai, que a rejeita até hoje. Ela teve

que entrar na adolescência como uma adulta capaz de se auto-gerir, em todos os

sentidos, mas sem condições reais para sê-lo, em razão da natural imaturidade da

idade e das condições sócio-econômicas e psicossocias em que se encontra. Quando

ela precisava de referências, de acolhida para a sua dor, tendo vivenciado uma

experiência de tamanha violência com um namorado, necessitando de suportes

afetivos para desenvolver a sua identidade adulta, eis que esse processo é abortado e,

violentamente, ela é lançada ao mundo para enfrentá-lo, da forma que pudesse. Na

verdade, essa responsabilidade que ela coloca no outro pela mudança da sua vida,

penso que se origina da necessidade de um suporte, de um pai simbólico que possa

cumprir a tarefa não alcançada pelo seu pai real. Pode representar uma tentativa de

reparação daquilo que a vida lhe negou. O seu coração se ressente e sofre por esse

abandono, como expressam as suas palavras:

Quando vou em casa... me sento lá na área... fico conversando


com minha mãe.... Quando meu pai chega... peço a bênção a
ele.... Mas ele não quer conversar comigo... ele não conversa...
Se eu pedir dinheiro pra ir numa festa... Ele me manda pedir aos
meus machos! É por isso que eu criei raiva dele.... Um tipo de
ódio assim... que eu não sei o que é ódio.... Dá uma raiva...
assim... Que eu acho que se ele chegasse pra mim e conversasse
bem direitinho... eu seria a filha melhor do mundo pra ele....
Gostaria de ouví-lo dizer que gostava de mim.... Que me pedisse
pra voltar pra casa... como era antes....

Podemos pensar a tentativa de suicídio, ainda, como consequência, entre

tantos motivos, do desespero de não poder enfrentar a finitude da existência; ou seja,

o ser-para-a-morte. Assim, esse ato pode significar a onipotência de se tomar nas

mãos o destino do ser-para-a-morte.

195
Pode ser compreendida, também, em se tratando, principalmente, do

adolescente, de um ato de rebeldia, em não aceitar a abertura do ser-aí, que também

inclui a finitude, a morte, que não se sabe quando virá e, assim, tenta-se antecipá-la.

Desse modo, alivia-se a angústia de saber-se um ser que, em sendo um ser-para-a-

morte, deve acolher, em seu projeto, essa possibilidade. Viver um projeto que inclua

o ser-para-a-morte não significa antecipá-la, eliminá-la ou viver no sofrimento,

"morrendo" a cada momento. É, antes de tudo, encará-la como uma das

possibilidades do ser-aí, como sendo parte da abertura ao mundo. É viver a angústia

como abertura às possibilidades do ser, entre elas, a morte.

Tentar sair da vida pode ser entendido como uma recusa a enfrentar a

responsabilidade por ela. Seria antecipar o final do ser, que é a morte. Como diz Boss

(1981, p. 40), ...o futuro do ser humano, ele só o alcança completamente no momento

da morte. A culpa, tal como a angústia, por ser inerente ao homem, jamais dela este

se verá livre. De nada adiantam as explicações concretas, no nível biológico,

psicológico ou psicodinâmico, sobra a culpa, já que esta se constitui pela falta, que

sempre acompanhará o homem.

Em relação à missão do ser-aí, retorno a Rogers, quando propõe a

capacidade inata do ser humano para crescer; e a presença de uma tendência que

promoveria tal desenvolvimento e crescimento. Concepção que dota o homem de tal

possibilidade, tornando-o um ente que pode-vir-a-ser sempre na sua existência. É um

poder- ser que se encontra subjacente a essa formulação teórica. Aqui se identificam,

entre outros lugares, uma filosofia essencialmente existencialista, que acredita no

poder-ser-do indivíduo.

196
Vista sob o ângulo também da culpa, do ficar-a-dever, no dizer de Boss, a

tentativa de suicídio se configuraria no "ficar-devendo" (grifo meu), no abrir mão do

poder-ser; no desvencilhar-se da existência escolhida e responsável e mergulhar no

vácuo do não-ser. Seria uma entrega a esse sentimento indissociável do ser humano,

que é a culpa.

197
CAPÍTULO VII

CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÕES

Chegado o momento final deste trabalho, muitas questões ainda persistem. E

haverão de permanecer assim, uma vez que este estudo jamais pretendeu alcançar

conclusões definitivas ou mesmo fornecer respostas conclusivas aos questionamentos

inspiradores do estudo.

Contudo, tais argumentos não nos impedem de tentar pontuar e deixar

marcados alguns aspectos e idéias que se revelam nesta etapa do trabalho, e outras

que se consolidam, como conhecimentos que se impõem em função da sua presença

nessa construção de elaborações do pensar e do fazer psicológico.

É bem conhecido e tido como consensual, entre os suicidologistas, o

pensamento de que as condutas autodestrutivas, como o suicídio, são

multideterminadas, o que torna este tema de acesso difícil e complexo, não sendo

198
possível, dessa maneira, apontar-se as verdadeiras causas ou motivos que levam

alguém a cometê-lo. Quanto às tentativas de suicídio, estas podem parecer de mais

fácil abordagem, uma vez que o acesso a quem a cometeu poderia facilitar o

conhecimento ou descobrimento do que levou tal pessoa a querer não viver. Ledo

engano, pois, dependendo do ângulo pelo qual se considere esta questão, a "verdade"

deste ato continua velada e desconhecida, inclusive para a própria pessoa que a

cometeu. E este é o nosso caso, é a nossa conclusão.

A psiquiatria, bem como algumas teorias psicológicas, muitas vezes nos

oferecem respostas para os motivos que levam alguém a tentar se matar. Porém

muitas ficam ao nível das hipóteses, o que considero a conduta mais lúcida, por

tratar-se de uma experiência humana. É por isso, de extrema complexidade, já que o

homem pelo fato de diferenciar-se dos outros seres do mundo por constituir-se numa

subjetividade que pensa, sente e tem na linguagem a expressão da sua existência,

jamais poderá ser enquadrado, rotulado ou conhecido de forma estática e definitiva

na sua experiência, sem que se perca a principal característica que nos distingue no

mundo, que é a existência. E esta é fluida, processual, semelhante e distinta de todos

os outros, o que impossibilita explicá-lo através de verdades estáticas e aplicáveis a

todos os outros seres. Nesse momento recorro às palavras de Morato (1987), que

refletem o nosso pensamento:

O homem é livre para ser, mas também se torna responsável por


seu ser. Não existe possibilidade de um controle pleno da
existência, do que se é, e, nesse sentido, a existência não é
estática; encontra-se em constante mutação para novas
possibilidades, para a auto-realização, em direção à totalidade
do ser, buscando sua identidade (que significa "ser igual a si
mesmo" ou autêntico). (p.34)

199
Pensar dessa forma nos levou a tratar o self, constructo desenvolvido por

Carl Rogers, como suporte teórico sobre o qual este trabalho se orientou.

Duvidávamos se o self, essa noção que diz sobre o que cada pessoa é ou se imagina

ser em cada momento da sua existência, daria conta de uma compreensão mais

profunda das tentativas de suicídio de jovens adolescentes. Constatamos, uma vez

mais, que o ser humano é muito mais do que uma imagem pela qual ele se concebe e

a qual se restringe à sua dimensão subjetiva e individual, tal como é proposto na

teoria desenvolvida por Rogers. Podemos dizer que o self não diz tudo, mas também

não podemos negar que nos ajuda a esclarecer esse entendimento. O self é parte de

um todo deste ser que se chama humano, o qual habita e apreende um mundo que já

está aí quando ele é lançado na vida. O self é a parte do ser-aí que reflete a

experiência de existir; por isso ele é importante, na medida em que, sem a

experiência de ser, a experiência de ser-com pode não existir.

No entanto, foi preciso voltarmos à filosofia, à ontologia de Heidegger, para

apreender esta visão do self e o ser-no-mundo. Retornamos à essa visão que se

denomina existencial, e assim pudemos aproximarmo-nos da complexidade da nossa

existência, através das experiências dos jovens deste estudo. Foi um retorno não só

ao pensar filosófico, mas, sobretudo, à minha própria existência. Foi um resgate de

um saber ainda não esquecido e a atualização de um modo de ser que chama pela

experiência, pela vida, que é a existência. Foi preciso mergulhar na minha

experiência de angústia, de ser-para-a-morte, para sentir a experiência na qual eu

tinha me implicado existencialmente, a tentativa de morte de um adolescente e assim,

poder compreender com humanidade a sua vivência .

200
Foi com Heidegger, também, que pude reconhecer e responder às inquietudes

do meu viver e do meu fazer psicológico: que, antes de tudo, o ser humano é no

mundo, com todas as características que esse mundo apresenta, tal como Heidegger o

define; que não é possível conceber um homem fragmentado na sua experiência, que

é existência. Pensando assim, podemos assumir não só a responsabilidade pelas

nossas escolhas e pelas nossas possibilidades, mas também reconhecer que estamos

todos ligados e envolvidos uns com os outros e o mundo, também constituintes das

posssibilidades de todos os seres.

Ainda hoje discute-se o papel do mundo interno, versus externo, na

determinação da conduta. Parece uma discussão obsoleta e arcaica, porém as teorias

psicológicas nos mostram, em sua maioria, que tais questões continuam atuais. De

outro modo, já teríamos deixado de discutir o papel do social, da cultura, na

subjetividade do homem, uma vez que parece claro sermos parte de um todo, que é o

mundo e todos os seres que o habitam. Somos lançados no mundo, com tudo o que já

está aí e então passamos a construir o nosso mundo que pensamos particular e único.

Isso também é verdade. Sim, é possível, embora estejamos todos submetidos à

influências do mundo globalizante e massificante, ainda somos capazes de sermos

únicos. O encantamento da filosofia existencial reside na esperança e na crença de

nos crermos singulares, únicos, mesmo vivendo em meio a sociedades massificadas e

de subjetividades cindidas, como já havia dito Luis Cláudio Figueiredo (1998). E é

dessa forma que o homem deve ser abordado: através da sua experiência singular e

única, porém constituída na relação com o mundo.

201
Assim acontece com as tentativas de suicídio dos jovens. Não é posssível

apontar, de forma conclusiva e definitiva, o motivo ou as razões que levam o jovem a

desistir de viver, porque não existe uma causa única. Há de se considerar as

dimensões psicológicas, afetivas e os vínculos que cada um desenvolve nos seus

primeiros anos de vida, influenciando a própria constituição do sujeito, o qual passa a

sofrer de uma insegurança ontológica, desde a formação das primeiras reações

narcísicas. Igualmente devem ser considerados os quadros psiquiátricos, as condições

materiais, econômicas, financeiras e sociais que influenciam a conduta humana. E,

principalmente, há que se considerar as características biológicas, fisiológicas e

psicológicas, tão atuantes nas mudanças da fase da adolescência, as quais podem se

constituir em aspectos agravantes desse processo de não querer viver. Todos esses

aspectos formam uma configuração que, num determinado momento, poderão fazer

este adolescente preferir sair do sofrimento, tentar o suicídio, morrer, na tentativa de

aliviar a sua angústia.

A visão de dasein, do ser-aí e da cotidianidade, entre outras, que nos oferece

Heidegger, nos dão a satisfação de encontrar neste filósofo do início do século e de

outra cultura, um pensamento extremamente contemporâneo e que nos serviu como

um horizonte que nos habilita ao alcance de uma compreensão mais ampla das

questões deste mundo.

Portanto, o que fica mais evidente e que ressalta aos nossos olhos neste

estudo, é a dimensão existencial que se revela em cada experiência narrada.

Independente das condições que circunscrevem as tentativas de suicídio, tais como as

condições materiais, psicológicas, psiquiátricas ou outras, o que vem em primeiro

plano e que se impõem aos nossos olhos diante de todas essas categorizações do ser

202
humano, é a existência. É a capacidade de experienciar a vida de uma forma

particular, repleta dos seus próprios significados, fazendo com que pessoas com

condições de vida semelhantes não percorram o caminho previamente determinado e

esperado. Isso mostra que antes de qualquer categorização, rótulo ou algo

semelhante que tente aprisionar o homem, está o ser, que surge na clareira do ser-aí,

na abertura do homem ao mundo. É através de um movimento de velamento e

desvelamento, que a existência se constrói, num eterno e infindável processo de vir-

a-ser, impossível de ser apreendido estaticamente ou mesmo cristalizado no seu

desocultamento, condição intrínseca da existência. E é também essa condição que

nos legitima como responsáveis pelo nosso destino e, ao mesmo tempo, nos lança na

incerteza desse mesmo destino, quando nos coloca como seres de possibilidades e

assim, existindo num processo permanente de escolhas, em busca da completude que

nunca virá.

Pode-se concluir que, na tentativa de suicídio, há vivências importantes com

as quais o self não se acha capaz de lidar e às quais sucumbe, concluindo que a não-

vida se apresenta como um refúgio psíquico, no qual se pode livrar de sentimentos

indesejáveis e do próprio sofrimento humano. Os outros vão sofrer pelo jovem que

tenta o suicídio; o jovem, aparentemente então, passa a considerar que pode se livrar

dos pesados sofrimentos depositados em outrem.

As vivências são complexas, multicausadas, têm formas plásticas e se

apresentam multifacetadas. São compostas principalmente por sentimentos de

indignação, de angústia do existir (insegurança ontológica), de ruptura e des-

envolvimento.

203
No sentimento de indignação, há sofrimento por sentir violentado o direito de

ser livre, de se ver impedido de uma existência autêntica, de cerceamento da

liberdade de existir de maneira autônoma; de não poder sentir o que se sente; de não

poder falar o que se pode ser falado; enfim, de não poder ser o que se é e ser olhado

pelos pais com sentimento de “orgulho” mútuo (narcisamento).

O sentimento de angústia na maioria das vezes está presente no cotidiano da

juventude; tem tanta energia que consegue mobilizar a vivência do estar-no-mundo

como sujeito.

A reformulação de valores, a busca de identificações, a separação dos pais

(cesura) para poder se afirmar enquanto ser adulto, autônomo e, assim, conquistar um

espaço próprio, des-envolver-se; é nesse momento que ao buscar "sair" da casca, no

sentido simbólico, promove uma ruptura no mundo psíquico, semelhante à cesura por

ocasião do nascimento; essa ruptura pode conduzir à morte (ruptura com a vida), ou

ao desenvolvimento, e é um rompimento e uma separação do outro, de pais e/ ou de

pessoas que ocupavam espaços mentais que agora estão vazios; é preciso um self

bastante equilibrado para suportar a ruptura psíquica e a formação de buracos no self,

em lugar dos espaços "perdidos" pela separação dos objetos amados e introjetados no

self.

204
CAPÍTULO VIII

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